DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
1. No dia 22 de março de 2019, a sociedade A..., C.R.L., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.os ... a ..., ...-..., ... (“Requerente”), apresentou pedido de pronúncia arbitral com intervenção do tribunal arbitral coletivo, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”).
2. É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“Entidade Requerida”).
3. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente peticionou ao Tribunal Arbitral a anulação da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2018..., de 5 de fevereiro de 2018, relativa ao exercício de 2014, no montante global de EUR 215.945,73, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada a 22 de maio de 2018.
Neste contexto, a Requerente sustenta ser-lhe aplicável a isenção de IRC prevista no artigo 66.º-A, n.º 1, alínea d), do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), de cujo conteúdo resulta «Estão isentas de IRC, com exceção dos resultados provenientes de operações com terceiros e de atividades alheias aos próprios fins: as cooperativas de habitação e construção».
Em conformidade, a Requerente alegada o seguinte: «É certo que o n.º 1 do artigo 66.º-A do EBF exceciona das isenções de IRC os resultados provenientes de operações com terceiros e de atividades alheias aos próprios fins, sendo esse o fundamento invocado pela AT para indeferir a reclamação da Requerente. Porém, essa é uma interpretação restritiva que ignora a dimensão teleológica da norma. O objetivo da norma do artigo 66.º-A do EBF e, concretamente, com a referida parte do seu n.º 1, foi excluir da isenção as atividades que visassem o lucro, ainda que exercidas no âmbito de uma cooperativa [...]. Não foi o caso: os imóveis incluídos na operação de dação em cumprimento eram destinados à construção de fogos, não para venda no mercado livre, mas para habitação dos sócios da cooperativa e com estrita sujeição às rigorosas regras previstas no artigo 17.º do Regime Jurídico das Cooperativas de Habitação e Construção, aprovado pelo DL n.º 502/99, de 19/11» (cfr. artigos 29.º a 31.º e 32.º do pedido de pronúncia arbitral).
4. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite a 25 de março de 2019 pelo Ex.mo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), tendo em seguida sido promovida a notificação da Entidade Requerida.
5. Subsequentemente, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, os Árbitros Signatários foram designados pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para constituir o presente Tribunal Arbitral coletivo, tendo a respetiva nomeação sido aceite a 15 e 17 de abril de 2019 nos termos legalmente previstos.
6. No dia 17 de maio de 2019, as Partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT, e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
7. O Tribunal Arbitral foi constituído a 6 de junho de 2019, em conformidade com o artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.
8. No dia 9 de setembro de 2019, a Entidade Requerida apresentou a sua resposta, tendo igualmente junto o processo administrativo.
9. Na sua resposta, a Entidade Requerida sustentou não ser a isenção de IRC prevista no artigo 66.º-A, n.º 1, alínea d), do EBF, aplicável à Requerente, na medida em que os resultados em questão provieram de «operações com terceiros» – em concreto, de contrato de dação em cumprimento celebrado a 18 de setembro de 2014 entre a Requerente e o B..., mediante o qual aquela alienou a este («terceiro»), pelo montante global de EUR 403.700,00, cinco imóveis –, estando por isso excecionados da isenção tributária sob análise.
Ademais, «a dação em cumprimento não é passível de ser enquadrada nos fins da Requerente» (cfr. artigo 29.º da resposta da Entidade Requerida).
10. No dia 10 de setembro de 2019, a Requerente foi notificada da resposta da Entidade Requerida.
11. Por despacho de 30 de setembro de 2019, o Tribunal Arbitral dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo concedido às Partes o prazo de 20 dias para apresentação de alegações escritas. Adicionalmente, considerou desnecessária a prestação do depoimento de parte solicitada pela Requerente no pedido de pronúncia arbitral.
12. No dia 21 de outubro de 2019, a Requerente apresentou as suas alegações escritas, em sede das quais reiterou a posição que perfilhara no pedido de pronúncia arbitral.
13. No dia 30 de outubro de 2019, a Entidade Requerida apresentou as suas alegações escritas, no âmbito das quais reiterou o entendimento que adotara na resposta ao pedido de pronúncia arbitral.
14. A Requerente efetuou o pagamento da taxa de arbitragem remanescente.
II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 5.º e 6.º do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias e estão representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O processo não enferma de nulidades.
Inexistem assim obstáculos à apreciação do mérito da causa.
III. OBJETO DA PRONÚNCIA ARBITRAL
O thema decidendum objeto de pronúncia arbitral consiste na apreciação da legalidade da liquidação adicional de IRC n.º 2018..., de 5 de fevereiro de 2018, relativa ao exercício de 2014, no montante global de EUR 215.945,73, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada a 22 de maio de 2018, à luz do regime previsto no artigo 66.º-A, n.º 1, alínea d), do EBF e, bem assim, do disposto no artigo 85.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).
IV. MATÉRIA DE FACTO
A) Factos provados
No âmbito dos presentes autos, consideram-se provados os seguintes factos:
1. A Requerente é uma cooperativa de habitação cuja finalidade estatutária consiste na satisfação, sem fins lucrativos, das necessidades habitacionais dos seus membros (cfr. artigo 4.º dos Estatutos da Requerente constantes do processo administrativo);
2. Em conformidade, a Requerente tem por objeto principal a construção, promoção e aquisição de fogos para habitação dos seus membros (cfr. artigo 5.º dos Estatutos da Requerente constantes do processo administrativo);
3. Por escritura pública de 8 de fevereiro de 1994, a Requerente adquiriu quarenta e seis imóveis, os quais se destinavam «à direta e imediata realização dos seus fins estatutários» (cfr. documento n.º 7 junto ao pedido de pronúncia arbitral);
4. Por escritura pública de 12 de janeiro de 2009, a Requerente adquiriu outro imóvel, o qual igualmente se destinava à direta e imediata realização dos seus fins estatutários (cfr. documento n.º 10 junto ao pedido de pronúncia arbitral);
5. No dia 22 de agosto de 2014, a Requerente tomou conhecimento de o C... ter cedido ao B... créditos de que era titular sobre a Requerente (cfr. documento n.º 11 junto ao pedido de pronúncia arbitral);
6. No dia 18 de setembro de 2014, a Requerente e o B... celebraram um contrato de dação em cumprimento, mediante o qual a primeira transmitiu ao segundo, pelo montante global de EUR 403.700,00, cinco dos imóveis acima referidos, o qual visou a satisfação dos referidos créditos;
7. Dois dos cinco imóveis encontravam-se inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho da Azambuja, sob os artigos ... e ... (cfr. documento n.º 1, anexo 1, junto ao pedido de pronúncia arbitral);
8. Por seu turno, três dos cinco imóveis estavam inscritos na matriz predial urbana da união de freguesias de ... e ..., concelho de Vila Franca de Xira, sob os artigos ..., ... e ... (cfr. documento n.º 1, anexo 1, junto ao pedido de pronúncia arbitral);
9. Os valores patrimoniais tributários definitivos dos referidos imóveis, os quais serviram de base à liquidação do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, ascenderam ao montante global de EUR 1.254.226,55 (Artigo 3235: EUR 984.800,00; Artigo ...: EUR 14.340,00; Artigo ...: EUR 67.131,81; Artigo ...: EUR 138.950,00; Artigo ...: EUR 49.004,74) (cfr. documento n.º 1, anexo 1, junto ao pedido de pronúncia arbitral);
10. A coberto da ordem de serviço n.º OI2017..., de 26 de outubro de 2017, a Autoridade Tributária instaurou ação de inspeção tributária interna ao exercício de 2014, a qual visou o controlo da situação tributária da Requerente por referência ao regime previsto no artigo 64.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas («Correções ao valor de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis») (cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de pronúncia arbitral);
11. Do relatório final da inspeção tributária resultaram correções em sede de IRC no montante global de EUR 850.526,55, correspondentes à diferença entre os valores patrimoniais tributários definitivos (EUR 1.254.226,55) e os valores constantes do contrato de dação em cumprimento EUR 403.700,00) (cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de pronúncia arbitral);
12. Os serviços inspetivos estribaram as suas correções no seguinte entendimento: «No caso em análise, o sujeito passivo transmitiu através de dação em cumprimento os imóveis [...] por valores inferiores aos valores patrimoniais tributários considerados para efeitos de liquidação de IMT, não tendo efetuado o respetivo requerimento de prova do preço efetivamente praticado nos termos do artigo 139.º do Código do IRC. Assim, o valor positivo da diferença, de EUR 850.526,55, deveria ter sido acrescido ao resultado líquido, do ano de 2014, no campo 745 do Quadro 07 da declaração Mod. 22 de IRC de 2014 [Diferença positiva entre o valor patrimonial tributário definitivo do imóvel e o valor constante do contrato (artigo 64.º, n.º 3, alínea a)], para determinação do lucro tributável nos termos do artigo 17 e n.os 2 e 3, alínea a), do artigo 64.º do Código do IRC [...]. No decurso deste procedimento inspetivo, o sujeito passivo procedeu à regularização voluntária da situação [...] através da substituição da declaração Modelo 22 de IRC do ano de 2014 [...] em 05/02/2018, tendo acrescido ao Resultado Líquido do período o valor de EUR 850.526,55, no campo 745 do Quadro 07 da Modelo 22, nos termos dos n.os 2 e 3 do artigo 64.º do Código do IRC. Na medida em que procederam à substituição da Declaração Modelo 22 de IRC do ano de 2014, verifica-se que o lucro tributável, no valor de EUR 23.763,97, foi corrigido para um lucro tributável no valor de EUR 874.290,52, tendo sido efetuada uma regularização voluntária à matéria coletável no valor de EUR 850.526,55» (cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de pronúncia arbitral).
13. Apesar de, no decurso da ação de inspeção, ter substituído a sua declaração periódica de rendimentos (“Modelo 22 de IRC”) do exercício de 2014 em conformidade com as correções propostas pela Autoridade Tributária, a Requerente não efetuou o pagamento do imposto em falta (cfr. documento n.º 1 junto ao pedido de pronúncia arbitral).
14. Em consequência, no dia 5 de fevereiro de 2018, em concretização das correções constantes do relatório final da inspeção tributária, a Autoridade Tributária emitiu a liquidação adicional de IRC n.º 2018..., relativa ao exercício de 2014, no montante global de EUR 215.945,73 (EUR 194.685,11 de imposto; EUR 20.944,79 de juros compensatórios; EUR 315,84 de juros de mora) (cfr. documento n.º 4 junto ao pedido de pronúncia arbitral);
15. No dia 22 de maio de 2018, a Requerente apresentou reclamação graciosa da liquidação adicional de IRC n.º 2018..., de 5 de fevereiro de 2018, relativa ao exercício de 2014, no montante global de EUR 215.945,73, em sede da qual invocou erro sobre os pressupostos de direito, estribando-o na incorreta aplicação do artigo 66.º-A, n.º 1, alínea d), do EBF, tendo requerido a anulação do ato tributário em referência (cfr. documento n.º 5 junto ao pedido de pronúncia arbitral);
16. Por ofício de 20 de dezembro de 2018, a Requerente foi notificada de despacho, da autoria da Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Lisboa, datado de 18 de dezembro de 2018, de cujo conteúdo resulta o indeferimento da reclamação graciosa (cfr. documento n.º 6 junto ao pedido de pronúncia arbitral);
17. De acordo com a posição sustentada na decisão de indeferimento, «O negócio jurídico que se encontra subjacente ao rendimento apurado em sede de IRC é uma dação em pagamento [...]. Como resulta da letra da lei, encontram-se excecionadas da isenção prevista no n.º 1 do artigo 66.º-A do EBF as operações realizadas com terceiros, enquadrando-se neste caso a referida dação em pagamento, porquanto a entidade credora classifica-se como entidade terceira [...]. Não constituindo este tipo de negócios a atividade da reclamante, pelo que não se encontra abrangida pela isenção prevista na primeira parte do n.º 1 do artigo 66.º-A do EBF» (cfr. página 5 do documento n.º 6 junto ao pedido de pronúncia arbitral);
18. No dia 22 de março de 2019, a Requerente apresentou junto do CAAD o pedido de pronúncia arbitral na origem dos presentes autos, em sede do qual requereu a declaração de ilegalidade da liquidação adicional de IRC n.º 2018..., relativa ao exercício de 2014, no montante global de EUR 215.945,73, com fundamento na preterição do artigo 66.º-A, n.º 1, alínea d), do EBF.
B) Factos não provados
Dos factos com interesse para a decisão da causa, constantes do pedido de pronúncia arbitral, da resposta e do processo administrativo, todos objeto de análise concreta, não se provaram os que não constam da factualidade supra elencada.
C) Fundamentação da decisão da matéria de facto
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral e, bem assim, no processo administrativo, cuja correspondência à realidade não se afigura controvertida.
V. MATÉRIA DE DIREITO
Nos termos do artigo 66.º-A, n.º 1, alínea d), do EBF: «Estão isentos de IRC, com exceção dos resultados provenientes de operações com terceiros e de atividades alheias aos próprios fins: d) as cooperativas de habitação e construção» [sublinhado e negrito nossos].
Do exposto resulta não ser aplicável a isenção tributária em apreço se os resultados de uma cooperativa de habitação e construção provierem de operações com terceiros ou de atividades alheias aos seus fins.
O preenchimento destes pressupostos reveste caráter alternativo, pelo que basta que uma destas circunstâncias se verifique para que aos correspetivos resultados não seja aplicável a isenção de IRC prevista naquele preceito legal.
Perante a posição perfilhada prima facie pela Autoridade Tributária – a qual baliza os fundamentos que subjazem à prolação e manutenção da liquidação adicional de IRC n.º 2018..., de 5 de fevereiro de 2018, relativa ao exercício de 2014, no montante global de EUR 215.945,73 –, no sentido de a alienação dos imóveis acima identificados, a favor do B..., representar uma «operação com terceiros» na aceção do artigo 66.-ºA, n.º 1, do EBF, estando, por isso, excluída do âmbito de aplicação da isenção de IRC nele plasmada, importa num primeiro momento clarificar o conteúdo e alcance de tal conceito jurídico.
De acordo com as regras de hermenêutica previstas no artigo 11.º, n.os 1 e 2, da LGT, «Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis»; «Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos do direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da lei».
Em conformidade, cumpre verificar se o conceito de «operações com terceiros» previsto no artigo 66.º-A, n.º 1, do EBF é coincidente com o congénere conceito refletido no artigo 2.º, n.º 2, do Código Cooperativo, nos termos do qual «As cooperativas, na prossecução dos seus objetivos, podem realizar operações com terceiros, sem prejuízo de eventuais limites fixados pelas leis próprias de cada ramo».
Neste contexto, chamamos à colação os ensinamentos de NINA AGUIAR: «Delimitar o âmbito da isenção implica, pois, demarcar o conceito de “operações com terceiros” [...]. Será que a norma fiscal de isenção utiliza o termo “terceiros” em sentido coincidente com o proposto pela doutrina privatística para o direito substantivo? Ou, pelo contrário, para a norma fiscal “terceiros” são todos aqueles que não são associados? [...] Para a doutrina privatística, “operações com terceiros” são operações realizadas entre a cooperativa e “não-associados”, dentro da atividade que constitui o objeto principal da cooperativa. A norma de isenção, por seu turno, retira do âmbito da isenção os rendimentos das operações efetuadas pela cooperativa com “terceiros” e os rendimentos provenientes de atividades alheias aos “próprios fins” da cooperativa. Ora, as expressões “objeto principal” e “fins próprios” da cooperativa não são expressões às quais possa ser atribuído o mesmo significado. Por objeto de uma entidade entende-se a atividade que essa entidade deve desenvolver por força dos seus estatutos. A alusão a um “objeto principal” significa apenas que a cooperativa pode ter uma atividade principal, que define o ramo a que a cooperativa pertence, e uma ou mais atividades que estejam previstas explícita ou implicitamente nos estatutos e que devam ser desenvolvidas de modo secundário, i.e., em subordinação à atividade principal. Já a expressão “fim”, quando se refere a uma pessoa coletiva, não pode ser confundida com “objeto” [...]. No caso das cooperativas, que não têm fins lucrativos, o seu fim é “a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais” dos seus membros. Dito de outra forma, o seu fim é mutualístico. E, tal como as sociedades, [...] também as cooperativas, para atingir os fins mutualísticos, podem realizar operações alheias ao seu objeto. Por exemplo, se uma cooperativa agrícola realiza aplicações financeiras de modo a rentabilizar as suas reservas, tais operações não se compreendem no objeto da cooperativa mas estão ainda de acordo com os seus fins, ao contribuírem para fortalecer financeiramente a cooperativa. Sendo assim, a noção de “fins próprios da cooperativa”, também utilizada para delimitar negativamente o âmbito da isenção, tem de ser entendida como sendo mais abrangente do que a noção de “objeto principal” da cooperativa, que é o conceito utilizado pela doutrina comercialista para definir o conceito de “operações com terceiros”. Se a cooperativa praticar com um “não-associado” uma operação que, embora não compreendida no seu objeto principal, ainda assim se compreenda num objeto secundário [...] ou que não seja alheio aos fins da cooperativa, tais operações não serão, para o direito comercial, “operações com terceiros”. Mas, em contrapartida, também não serão, para o direito fiscal, rendimentos provenientes de “atividades alheias aos próprios fins”. Para o direito comercial, esses resultados não serão excedentes cooperativos no sentido próprio do termo, pois não resultam de operações com cooperadores, mas também não serão resultados de “operações com terceiros” – uma vez que não se enquadram no objeto principal da cooperativa. Serão resultados ou rendimentos “extracooperativos”. Quanto à norma de isenção fiscal [...], se a expressão “operações com terceiros” fosse interpretada com o mesmo sentido com que é definida no direito comercial, tais rendimentos não ficariam excluídos da isenção por serem provenientes de operações com terceiros, e também não ficariam excluídos por serem provenientes de atividades alheias aos “próprios fins” da cooperativa, porque efetivamente não o são. Haveria assim que concluir que ficariam excluídos da isenção de IRC os rendimentos provenientes de operações com não-associados conexas com o objeto principal da cooperativa, desde que compreendidas num objeto secundário ou, mesmo, não compreendidas de todo no objeto da cooperativa mas não alheias aos “próprios fins” da cooperativa» [sublinhados nossos] – cfr. NINA AGUIAR, A Tributação do Rendimento das Cooperativas em Portugal, Cooperativismo e Economia Social, n.º 36, 2014, páginas 69 e 71.
Constata-se assim não ser coincidente o conceito de «operações com terceiros» utilizado em Direito fiscal e em Direito comercial.
Caso coincidissem, no que não se concede, a isenção de IRC prevista no artigo 66.º-A, n.º 1, do EBF seria desprovida de racionalidade e congruência, uma vez que se isentariam rendimentos oriundos de operações com não cooperantes não conexas com o objeto (principal ou secundário) da cooperativa (sempre que não alheias aos fins desta, nos termos do artigo 66.º-A, n.º 1, parte final, do EBF) e, simultaneamente, tributar-se-iam rendimentos provenientes de operações com não cooperantes conexas com o objeto principal da cooperativa.
Deste modo, o conceito «operações com terceiros» constante do artigo 66.º-A, n.º 1, do EBF deve ser usado no sentido de “operações com não cooperantes”.
Em conformidade, a referida Autoria sublinha: «Em nossa opinião, haveria vantagem em substituir, por uma questão de segurança jurídica, no artigo 66.º-A, n.º 1, do EBF, a expressão “terceiros” por “não-associados” ou “entidades que não sejam sócias da cooperativa”» – cfr. NINA AGUIAR, A Tributação do Rendimento das Cooperativas em Portugal, Cooperativismo e Economia Social, n.º 36, 2014, página 72.
«O facto de a isenção não abranger os resultados provenientes de operações com terceiros implica que, na sua contabilidade, as cooperativas devem separar as operações que realizam com cooperadores e as operações que realizam com terceiros. A razão de ser da exclusão das operações com terceiros do âmbito da isenção coincide exatamente com a que levou o legislador a vedar a distribuição aos cooperadores dos rendimentos provenientes da mesma categoria de operações. Ao contrário dos excedentes cooperativos, que são gerados nas operações com cooperadores, os resultados originados em operações com terceiros não têm natureza mutualista, não são “o resultado de uma renúncia tácita dos cooperadores a vantagens cooperativas imediatas”» [sublinhados nossos] – cfr. NINA AGUIAR, A Tributação do Rendimento das Cooperativas em Portugal, Cooperativismo e Economia Social, n.º 36, 2014, páginas 68 e 69.
Em sentido consonante, ainda que por referência ao artigo 7.º, n.º 3, do revogado Estatuto Fiscal Cooperativo, a jurisprudência dos tribunais superiores refere: «A apreensão literal do texto da lei é o ponto essencial para a interpretação que fazemos, sendo certo que o legislador não antecedeu a norma de qualquer exposição de motivos. Dos demais elementos de interpretação que propiciam, em abstrato, uma tarefa de complemento interpretativo (tarefa de interligação e valoração que vai para além do domínio literal), no caso sobressaem e relevam o elemento histórico de discriminação positiva das cooperativas e o racional ou teleológico, pois que o fim visado pelo legislador ao editar as normas do EFC é o de favorecer a atividade cooperativa. Não obstante, a atividade legislativa foi nesta matéria claramente tipificadora e limitativa» [sublinhados nossos] – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 01214/12, de 12 de abril de 2013.
«Ora, o Estatuto Fiscal Cooperativo (EFC) consagra o regime fiscal das cooperativas, qualidade reconhecida à impugnante, ora recorrente. Trata-se de um regime que enquadra um setor de atividade da sociedade civil, regido por princípios próprios, identificados como os princípios cooperativos, cuja proteção constitui a razão de ser da isenção. Daí ter sido criada uma taxa de 20% bem mais favorável que a que era prevista no artigo 69.º, n.º 1, do CIRC, na redação da Lei n.º 3-B/2000, de 4/4. Porém, a lei estabeleceu limitações à aplicação desta taxa reduzida. A saber: a) que os resultados obtidos não fossem provenientes de operações com terceiros. b) que os resultados obtidos não fossem provenientes de atividades alheias aos fins cooperativos. c) que os resultados obtidos não estejam abrangidos pela tributação do lucro consolidado. Entendemos que cada uma destas limitações opera por si própria e, uma vez verificada a limitação, esta delimita negativamente o direito à isenção. No caso dos autos, os resultados assentam inequivocamente num ganho ocasional derivado de uma operação com terceiros, [pelo que] não há lugar à redução de taxa a que nos vimos referindo, ainda que conste do probatório que o ganho foi destinado a solver débitos financeiros da cooperativa recorrente assumidos para compra de equipamentos [...]» [sublinhados nossos] – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 01214/12, de 12 de abril de 2013.
Perante o exposto, a dação em cumprimento tida lugar, mediante a qual a Requerente transmitiu, a título oneroso, imóveis ao B..., consistiu numa «operação com terceiros» na aceção do artigo 66.º-A, n.º 1, do EBF, não estando por isso os rendimentos dela advenientes isentos de tributação em sede de IRC.
A jurisprudência invocada pela Requerente no processo arbitral (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 01214/12, de 16 de setembro de 2015) não colide com este entendimento, tendo o referido aresto tão-somente analisado a aplicação da isenção em presença à luz da parte final do artigo 66.º-A, n.º 1, do EBF («[...] com exceção dos resultados provenientes [...] de atividades alheias aos próprios fins [cooperativos]»). Com efeito, em face dos fundamentos invocados pela Autoridade Tributária nesse caso, o tribunal viu-se impedido de apreciar a aplicação da isenção de IRC à luz da parte inicial do referido preceito legal («[...] com exceção dos resultados provenientes de operações com terceiros [...]»).
Em consequência, diferentemente do entendimento assumido pela Requerente, o acórdão em presença não legitima, nem corrobora, a posição por si perfilhada no pedido de pronúncia arbitral.
Na situação sub judice, o litígio assume contornos distintos, impondo-se verificar se a dação em cumprimento celebrada entre a Requerente e o B... configura uma «operação com terceiros», o que, conforme acima exposto, não sucede. A circunstância desta operação não ser «alheia aos próprios fins» da Requerente não é idónea a modificar a posição deste Tribunal Arbitral, uma vez que os pressupostos elencados na regra excecional ínsita no artigo 66.º-A, n.º 1, do EBF revestem caráter alternativo. Pelo que, mesmo que tal operação se integre nos fins estatutários da Requerente, não deixará de ser uma «operação com terceiros», o que, só por si, preclude a aplicação da isenção de IRC plasmada naquele preceito legal.
Por outro lado, «nas sucessivas leis [disciplinadoras do regime fiscal das cooperativas], o legislador português absteve-se sempre de enunciar os princípios ou bases concetuais sobre as quais tem vindo a definir o regime fiscal das cooperativas, nomeadamente no que diz respeito à delimitação do âmbito dos benefícios fiscais e das condições que as cooperativas devem cumprir para auferir de tais benefícios [...]. [Em concreto,] quanto ao atual regime, introduzido no Estatuto dos Benefícios Fiscais através da Lei do Orçamento do Estado para 2012, é omitido qualquer elemento explicativo sobre os fundamentos ou os limites do regime fiscal das cooperativas ou sobre as razões das alterações introduzidas [...]» – cfr. NINA AGUIAR, A Tributação do Rendimento das Cooperativas em Portugal, Cooperativismo e Economia Social, n.º 36, 2014, página 58.
[Porém,] se procurarmos os princípios ou as bases concetuais que alicerçam o atual regime fiscal cooperativo fiscal português [...] um conjunto de princípios [ainda que limitado] que não se encontram expressos nos textos legais, mas se deduzem da configuração do próprio regime fiscal em causa e que interpretamos como sendo os seguintes: i) Só devem ser beneficiadas com desagravamentos fiscais as atividades das cooperativas que funcionem efetivamente segundo o modelo mutualista; ii) Os desagravamentos fiscais relativos à tributação do rendimento devem, em princípio ou predominantemente, aplicar-se aos rendimentos provenientes das operações com os cooperadores, devendo pelo contrário ser tributados de acordo com o regime geral vigente para as sociedades os rendimentos provenientes de operações com terceiros; iii) Os desagravamentos fiscais devem apenas beneficiar a atividade essencial da cooperativa, i.e. a atividade que constitui o objeto mutualista, e não outras atividades que possam ser levadas a cabo de modo secundário ou, mesmo não tendo caráter secundário, que não tenham caráter mutualista» [sublinhados nossos] – cfr. NINA AGUIAR, A Tributação do Rendimento das Cooperativas em Portugal, Cooperativismo e Economia Social, n.º 36, 2014, páginas 59 e 60.
Assim sendo, contrariamente à posição assumida pela Requerente no pedido de pronúncia arbitral, não se perceciona em que medida possa ter sido preterido o regime previsto no artigo 85.º, n.os 1 e 2, da CRP, nos termos do qual «O Estado estimula e apoia a criação e a atividade das cooperativas»; «A lei definirá os benefícios fiscais e financeiros das cooperativas, bem como as condições mais favoráveis à obtenção de crédito e auxílio técnico».
VI. DECISÃO
De harmonia com o exposto, julga-se totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, mantêm-se na ordem jurídica a liquidação adicional de IRC n.º 2018..., de 5 de fevereiro de 2018, relativa ao exercício de 2014, no montante global de EUR 215.945,73, e a decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada a 22 de maio de 2018.
Nos termos dos artigos 306.º, n.os 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em EUR 215.945,73 (duzentos e quinze mil, novecentos e quarenta e cinco euros e setenta e três cêntimos), condenando-se a Requerente nas custas do processo, as quais perfazem EUR 4.284,00, ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT e, bem assim, da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
(Texto elaborado em computador, nos termos do CPC, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, com versos em branco e revisto pelos Árbitros Signatários).
Lisboa, 2 de dezembro de 2019
O Tribunal Arbitral Coletivo,
José Poças Falcão
(Presidente)
Miguel Patrício
(Vogal)
Jaime Esteves
(Vogal)