DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
1. A..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º..., ..., Lisboa, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação adicional de IVA, no valor de € 1.067.934,85, e de juros compensatórios, no valor de € 166.843,17, referentes ao ano de 2005, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.
Em resposta, a Autoridade Tributária defendeu-se por excepção, invocando a impossibilidade da lide e a existência de caso julgado, com base nos seguintes fundamentos.
O pedido arbitral foi deduzido ao abrigo do regime de migração de processos dos tribunais judiciais regulado no Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de outubro, que prevê a possibilidade de os sujeitos passivos, até 31 de dezembro de 2019, submeterem aos tribunais arbitrais tributários as pretensões que tenham formulado em processos de impugnação judicial que se encontrem pendentes de decisão em primeira instância nos tribunais tributários, e que nestes tenham dado entrada até 31 de dezembro de 2016, desde que as pretensões a submeter aos tribunais arbitrais coincidam com o pedido e a causa de pedir do processo interposto perante o tribunal tributário e o pedido de constituição de tribunal arbitral seja acompanhado de certidão judicial electrónica do requerimento apresentado para a extinção da instância judicial.
No entanto, a Requerente não apresentou a certidão judicial electrónica do requerimento da extinção da instância, e, por outro lado, o processo de impugnação judicial instaurado no Tribunal Tributário de Lisboa, sob o n.º.../10...BELRS, já foi decidido em primeira instância por sentença de 14 de Maio de 2019, encontrando-se actualmente pendente de recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, pelo que o pedido arbitral não reúne os pressupostos processuais legalmente definidos para que o julgamento seja cometido ao tribunal arbitral.
Acresce que sempre se verificaria a excepção dilatória do caso julgado, nos termos do disposto no artigo 581.º do CPC, porquanto não é possível a repetição de uma causa quando uma outra, com identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, se encontre ainda pendente numa instância jurisdicional.
Notificada para se pronunciar quanto à matéria de excepção, a Requerente veio dizer que em 24 de Abril de 2019, apresentou requerimento de extinção da instância no processo de impugnação judicial pendente no Tribunal Tributário de Lisboa, para efeitos do disposto no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de outubro, sucedendo que o tribunal proferiu sentença em 4 de Maio seguinte, no sentido da improcedência parcial da impugnação judicial, omitindo qualquer referência ao requerimento de desistência anteriormente apresentado nos autos, o que motivou a interposição de recurso para o Tribunal Central Administrativo do Sul para efeito da declaração de nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
À data da apresentação do pedido de extinção da instância do processo de impugnação judicial estavam cumpridos todos os requisitos legais de que dependia o exercício do direito de migração de processo para a jurisdição arbitral, pois o processo estava pendente de decisão em 1.ª instância e tinha sido apresentado antes de 31 de dezembro de 2016, além de que o pedido de extinção da instância judicial produz efeitos imediatos nos autos independentemente da anuência do Tribunal Tributário, o qual não pode proferir outro acto que não seja a sentença homologatória do pedido de desistência apresentado, sob pena de violação directa do disposto no referido Decreto-Lei.
Não ocorreu, por outro lado, a excepção de caso julgado, porquanto a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa encontra-se ferida de vício de nulidade, por omissão de pronúncia, o que motivará a remessa do processo para 1.ª instância para efeitos de prolação de nova decisão que reconheça a extinção da instância na sequência do pedido formulado pela Requerente.
Com a resposta à excepção, a Requerente veio ainda juntar certidão judicial eletrónica emitida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que comprova a entrega do requerimento de desistência do processo judicial no dia 24 de Abril de 2019, e requerer, caso se entenda que se não verificam os requisitos previstos no Decreto-Lei n.º 81/2018, a suspensão da instância no processo arbitral até ao trânsito em julgado da decisão a proferir no processo pendente no tribunal tributário.
Na sequência do despacho arbitral de 22 de Outubro de 2019, a Autoridade Tributária juntou aos autos a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa, de 14 de Maio de 2019, proferida no processo de impugnação judicial n.º .../10...BELRS-
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 30 de Agosto de 2019.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
Cabe apreciar e decidir.
Fundamentação
3. A Requerente veio deduzir um pedido arbitral para apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação adicional de IVA e de juros compensatórios, ao abrigo do regime de migração de processos dos tribunais judiciais previsto no Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de Outubro.
O pedido arbitral foi aceite em 21 de junho de 2019.
Em resposta, a Autoridade Tributária invocou as excepções dilatórias de impossibilidade da lide e caso julgado por considerar que não se verificam os requisitos de migração de processos para o tribunal arbitral e ter sido entretanto proferida decisão judicial no processo de impugnação judicial instaurado no tribunal tributário que se pretende remeter para a jurisdição arbitral.
O Tribunal Tributário de Lisboa, por sentença de 14 de Maio de 2019, julgou parcialmente procedente o pedido de impugnação judicial incidente sobre os actos tributários de liquidação adicional de IVA e de juros compensatórios que são objecto do presente pedido arbitral.
Com a resposta à matéria de excepção, a Requerente juntou aos autos certidão electrónica da apresentação, em 24 de Abril de 2019, do requerimento de extinção da instância no processo de impugnação judicial n.º .../10...BELRS, a correr termos no Tribunal Tributário de Lisboa, para efeito do processo ser cometido à apreciação do tribunal arbitral, nos termos do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de outubro, bem como a alegação de recurso da sentença de 14 de Maio de 2019 do Tribunal Tributário de Lisboa interposto perante o Tribunal Central Administrativo do Sul, com fundamento em nulidade de sentença, por omissão de pronúncia, por o tribunal recorrido não se ter pronunciado sobre o requerimento de extinção de instância.
A questão que vem colocada, preliminarmente, é pois a de saber se se encontram verificados os requisitos da migração de processos para a jurisdição arbitral, e, na hipótese afirmativa, se ocorre a excepção dilatória que obste a que o tribunal arbitral conheça do mérito da causa.
4. O Decreto-Lei n.º 81/2018 pretendeu implementar medidas de carácter extraordinário para a recuperação de pendências nos tribunais administrativos e fiscais, e, entre elas, a possibilidade dos sujeitos passivos submeterem as suas pretensões impugnatórias aos tribunais arbitrais em matéria tributária, com dispensa de pagamento de custas processuais, relativamente a processos tributários pendentes que tenham dado entrada nos tribunais tributários até 31 de dezembro de 2016.
Esse objectivo foi concretizado através do artigo 11.º desse diploma, que, sob a epígrafe “Cometimento de processos tributários pendentes para a arbitragem”, prescreve o seguinte:
1- Os sujeitos passivos podem, até 31 de dezembro de 2019, submeter aos tribunais arbitrais tributários, dentro das respetivas competências, as pretensões que tenham formulado em processos de impugnação judicial que se encontrem pendentes de decisão em primeira instância nos tribunais tributários, e que nestes tenham dado entrada até 31 de dezembro de 2016, com dispensa de pagamento de custas processuais.
2- As pretensões a submeter aos tribunais arbitrais devem coincidir com o pedido e a causa de pedir do processo a extinguir, apenas se admitindo a redução do pedido.
3- O pedido de constituição de tribunal arbitral, a submeter ao Centro de Arbitragem Administrativa, é necessariamente acompanhado de certidão judicial eletrónica do requerimento apresentado para a extinção da instância judicial nos termos do presente artigo.
O preceito pressupõe que a migração de processos para a arbitragem tributária seja precedida de pedido de desistência da instância. É esse pedido que origina a extinção da instância, e, por sua vez, é essa consequência processual que justifica a remissão do processo para apreciação do tribunal arbitral.
Nesse enquadramento, o pedido de desistência da instância não pode deixar de entendido por integração com regras gerais dos artigos 290.º e 291.º do CPC, que regulam os termos em que se processam a confissão, desistência ou transação, sendo que cabe ao juiz examinar o termo ou o documento pelo qual se pretende desistir da instância de modo a verificar se, pelo objecto e qualidade das pessoas que nele intervieram. a desistência é válida.
A possibilidade de migração de processos não pode ser entendida como um mero direito potestativo do sujeito processual que este possa accionar independentemente de qualquer tipo de controlo jurisdicional. Basta notar que o cometimento de processos para a arbitragem está dependente de certos requisitos processuais. Torna-se necessário que o pedido seja formulado até 31 de dezembro de 2019, e, por outro lado, apenas abrange pretensões deduzidas no âmbito de processos de impugnação judicial para as quais os tribunais arbitrais tributários disponham de competência, e se trate de processos que se encontrem pendentes de decisão em primeira instância nos tribunais tributários e tenham dado entrada até 31 de dezembro de 2016.
E são esses requisitos que cabe ao juiz estadual verificar para efeitos de homologar a desistência e declarar a extinção da instância.
Certo é que o n.º 3 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018 apenas exige que o pedido arbitral seja instruído com certidão judicial electrónica do requerimento de extinção da instância judicial. Mas esse é um mero requisito formal da apresentação do pedido arbitral que não contende com o regime processual próprio da desistência da instância. E, de todo o modo, é ao juiz que cabe declarar a extinção da instância e o processo não pode ser remetido a um outro tribunal antes de se encontrar findo naquele em que havia sido inicialmente instaurado.
5. Em qualquer caso, não pode deixar de reconhecer-se que se verifica, no caso, a excepção dilatória de litispendência. A litispendência, tal como o caso julgado, pressupõe a repetição de uma causa e tem por objectivo “evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior” (artigo 580.º, n.º 2, do CPC). A litispendência opera quando uma causa se repete estando a anterior ainda em curso, ao passo que, no caso julgado, a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário e que, por isso, transitou em julgado (artigo 580.º, n.º 1, do CPC).
Como se deixou exposto, o pedido arbitral foi aceite em 21 de junho de 2019 e, a essa data, havia já sido proferida sentença pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que, entretanto, foi objecto de recurso para o Tribunal Central Administrativo do Sul. Não tendo a sentença transitado em julgado, por se encontrar ainda pendente de recurso jurisdicional, não pode invocar-se a excepção de caso julgado, mas há lugar a litispendência visto que o pedido arbitral foi apresentado quando uma acção idêntica se encontra ainda em curso nos tribunais estaduais tributários.
É absolutamente irrelevante para o caso que a decisão judicial tenha sido objecto de recurso jurisdicional, com fundamento em nulidade de sentença por omissão de pronúncia, por o tribunal de primeira instância se não ter pronunciado sobre o pedido de desistência da instância.
De facto, não cabe ao tribunal arbitral apreciar a pretensa nulidade de sentença, substituindo-se ao tribunal de recurso. E a circunstância de ter sido suscitada em recurso a nulidade de sentença não obsta a que o processo prossiga, na instância competente, em vista ao indeferimento da arguição ou ao suprimento da nulidade (artigos 617.º e 665.º do CPC). E a declaração de nulidade, ainda que possa determinar a reconstituição do processo, com a consequente emissão de despacho que se pronuncie sobre o pedido de desistência da instância, não pode retroagir os seus efeitos a um momento anterior àquele em que foi apresentado o pedido arbitral de modo a entender-se como verificados os requisitos da migração de processos e inexistente a situação de litispendência.
A Requerente solicita ainda, a título subsidiário, a suspensão da instância até ao trânsito em julgado da decisão a proferir em sede de recurso pelo Tribunal Central Administrativo.
No entanto, a suspensão da instância tem como pressuposto que a decisão da causa esteja dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado (artigo 272.º, n.º 1, do CPC). Constatando-se, no caso, que o pedido arbitral não preenche os requisitos da migração de processos e se verifica a excepção de litispendência, que constituem causas de extinção da instância, não há motivo para suspender a instância mas apenas para a julgar extinta.
Decisão
Termos em que se decide julgar extinta a instância arbitral.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 1.201.586,28, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 16.524,00, que fica a cargo da Requerente.
Notifique.
Lisboa, 21 de Novembro de 2019
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O Árbitro vogal
Nuno Cunha Rodrigues
O Árbitro vogal
Luís Menezes Leitão