DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
I. RELATÓRIO
Em 28 de junho de 2019, A..., com o NIF ..., casada sob o regime da separação de bens com B..., com o NIF ..., ambos com domicílio fiscal em ..., Rua..., n.º..., ...-... ... (doravante designada por Requerente), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) e 1.º e 2.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março (Portaria de vinculação), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), informando não pretender utilizar a faculdade de designar árbitro.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exm.º Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT, e, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, encargo aceite no prazo aplicável sem oposição das Partes.
A. Objeto do pedido:
A Requerente pretende a declaração de ilegalidade e a consequente anulação dos seguintes atos tributários e em matéria tributária:
i. Liquidação de IRS n.º 2018..., Liquidação de juros n.º 2018... e Demonstração de Acerto de Contas n.º 2018..., referentes ao ano de 2014, de que resultou a quantia a pagar de € 32 009,56, exigida no processo de execução fiscal n.º ...2018...;
ii. Liquidação de IRS n.º 2019... e Demonstração de Acerto de Contas n.º 2019..., referentes ao mesmo ano de 2014, de que resultou o valor a pagar de € 17 229,90, exigido no processo de execução fiscal n.º ...2019...;
iii. Decisão da reclamação graciosa n.º ...2019..., que teve por objeto as liquidações de IRS e juros compensatórios identificadas em i).
O valor económico atribuído ao pedido corresponde ao somatório dos valores das referidas liquidações, de € 49 239,46.
B. Síntese da Posição das Partes
1. Da Requerente:
Como causa de pedir vem a Requerente invocar a “errónea qualificação e quantificação dos rendimentos (…) e outros factos tributários” sobre os quais incidiram as liquidações de IRS e juros compensatórios identificadas no pedido de pronúncia arbitral, fundamento de impugnação judicial ex vi artigo 99.º, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), de aplicação subsidiária ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
Mais invoca a Requerente a inconstitucionalidade da interpretação dada pela AT ao disposto no artigo 10.º, n.º 5, alínea a), do Código do IRS, por violação do princípio da igualdade e do direito à habitação, consagrados, respetivamente, nos artigos 13.º e 65.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Efetivamente, nas liquidações em causa, a AT não considerou a exclusão de tributação das mais-valias realizadas com a venda de um imóvel que constituiu a sua habitação própria e permanente, na parte em que o valor da respetiva realização foi afeto à amortização do empréstimo bancário contraído para a construção do imóvel alienado, referindo que tal situação não cabe na previsão artigo 10.º, n.º 5, alínea a), do Código do IRS, em que apenas se alude à situação de “aquisição do imóvel” e não à sua construção.
Defende a Requerente que o termo aquisição tanto se refere à compra como à construção e que o próprio legislador faz referência ao valor de aquisição dos imóveis construídos, para efeitos do cálculo das mais-valias obtidas na sua alienação, como resulta do n.º 3 do artigo 46.º, do Código do IRS, ao determinar que este “corresponde ao valor patrimonial inscrito na matriz ou ao valor do terreno, acrescido dos custos de construção devidamente comprovados, se superior àquele”.
E que, caso assim se não entenda, tal entendimento se traduzirá numa violação do princípio da igualdade e do direito à habitação, pois discrimina injustificadamente os contribuintes em função da forma de aquisição do imóvel que constituiu a sua habitação própria e permanente aquando da sua posterior alienação e reinvestimento noutro imóvel com o mesmo destino, pois “ao excluir de tributação os ganhos (incluindo a parte utilizada para amortização do empréstimo) o Estado está a maximizar as possibilidades dos seus cidadãos adquirirem uma nova (eventualmente melhor) habitação própria”, assim materializando o seu dever de incentivar a aquisição de habitação própria.
Assim, defende a Requerente que a expressão “empréstimo contraído para aquisição” incluída no artigo 10.º, n.º 5, alínea a), do Código do IRS, deve ser objeto de interpretação extensiva, abarcando as situações de construção, pois como tem sido entendimento do STA, embora as normas que estabelecem isenções não sejam passíveis de integração analógica, não está vedada a sua interpretação extensiva.
Termina a Requerente por pedir que os atos impugnados sejam declarados inconstitucionais e ilegais, determinando-se a sua anulação, com condenação da Requerida à abstenção de efetuar novas liquidações de imposto relativas ao ano de 2014, mantendo-se a liquidação inicial, bem como à restituição dos valores eventualmente cobrados, acrescidos de juros.
2. Da Requerida:
Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou resposta e fez juntar o processo administrativo, em que veio defender a legalidade e a manutenção dos atos de liquidação objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, argumentando, em síntese:
• Que n.º 5 do artigo 10.º, do Código do IRS consubstancia uma norma de delimitação negativa, excluindo da tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, nas condições previstas nas suas alíneas a) a c);
• Que nas situações contempladas na alínea a) não estão excluídos da incidência os valores despendidos na amortização dos empréstimos contraídos para a construção de habitação própria e permanente;
• Que, atendendo ao elemento literal da norma, se conclui que se o legislador pretendesse incluir a amortização de empréstimo concedido para a construção de imóvel, teria discriminado essa situação e não o fez, apenas sendo de aceitar para efeito de reinvestimento a amortização do empréstimo contraído para aquisição do imóvel, conforme o entendimento plasmado no Acórdão do STA – processo 0774/14;
• Que, se se atender ao elemento histórico-teleológico, na redação inicial do n.º 5 do artigo 10.º, do CIRS, não estava sequer prevista a amortização de empréstimo, pelo que, ao acrescentar esta matéria à redação da norma, o legislador colocou o que pretendia e nada mais;
• Quanto à alegada violação do princípio constitucional previsto no artigo 65.º da CRP, entende a AT não dispor de competência para apreciar a conformidade das normas fiscais com os princípios ou regras constitucionais e legais, competência atribuída aos tribunais, nos termos do disposto nos artigos 204.º, 221.º, 223.º e 280.º da CRP;
• Que o que está em causa nos autos não é a compra do imóvel, mas apenas saber qual o montante a reinvestir;
• Que também não está em causa o artigo 13.º da CRP, enquanto princípio estruturante do Estado de direito democrático, como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, determinando que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente;
• E que, no presente caso, o legislador entendeu que só a amortização de empréstimo contraído para a aquisição de imóvel era suscetível de ser deduzido ao valor de realização para efeitos de reinvestimento e foi isso que ficou consagrado na norma.
• Que o direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do artigo 43ºda LGT, derivado de anulação judicial de um ato de liquidação, depende de ter ficado demonstrado no processo que esse ato está afetado por erro imputável aos serviços de que tenha resultado pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, o que não acontece no caso dos autos.
Termina a AT por requerer a dispensa de realização da reunião a que se refere o artigo
18.º, do RJAT, por desnecessária à boa decisão da causa.
Não tendo sido invocadas exceções nem requerida a produção de prova adicional, foi dispensada a reunião mencionada no artigo 18.º, do RJAT, salvo oposição da Requerente, que nada disse. No mesmo despacho se determinou que o processo prosseguisse com alegações escritas sucessivas pelo prazo de 15 dias com início na Requerente, fixando-se o dia 5 de dezembro de 2019 como data para prolação da decisão arbitral e advertindo-se a Requerente de que, até essa data, deveria dar cumprimento ao disposto no artigo 4º, n.º 3, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Ambas as Partes apresentaram alegações escritas, nas quais reiteraram as posições iniciais.
II. SANEAMENTO
1. O tribunal arbitral singular é competente e foi regularmente constituído em 9 de setembro de 2019, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, 6.º e 11.º, n.º 8, todos do RJAT.
2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
3. O processo não padece de vícios que o invalidem.
4. Não foram invocadas exceções que o tribunal arbitral deva apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1 MATÉRIA DE FACTO
A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental e do processo administrativo (PA) juntos aos autos, fixa-se como segue:
A – Factos Provados
1. Em 29.11.2010, a Requerente e seu marido celebraram com o C..., junto da Conservatória do Registo Predial de ..., no âmbito do “Procedimento Casa Pronta” n.º .../2010 ali arquivado, um contrato de mútuo com hipoteca e mandato no valor de 300 000,00, tendo em vista a construção a implantar no prédio rústico inscrito sob o artigo ..., ..., da freguesia de ..., concelho de ... (Doc. 1 junto ao pedido de pronúncia arbitral – ppa –, que se dá como reproduzido);
2. O referido contrato, regido pela “legislação sobre crédito à habitação”, destinou-se à construção, naquele prédio rústico dado de hipoteca, de um imóvel para habitação própria e permanente dos mutuários, prevendo a entrega da quantia mutuada por trances, em função da construção realizada (Doc. 1 junto ao ppa);
3. Em 28.07.2011, foi celebrado entre os mesmos outorgantes novo contrato de mútuo com hipoteca e mandato referente ao mesmo prédio, tendo sido mutuada a quantia de € 40 000,00, com o mesmo destino anterior, conforme o “Procedimento Casa Pronta” n.º .../2011, da Conservatória do Registo Predial de ... (Doc. 2 junto ao ppa, que se dá como reproduzido);
4. Em 04.05.2012, a Requerente participou à matriz o novo prédio urbano, inscrito sob o artigo ... da União das Freguesias de ... e ..., concelho de ..., a que foi atribuído o valor patrimonial tributário de € 269 230,00 (cfr. informação prestada pelo Serviço de Finanças de ..., incluída no PA e caderneta predial urbana junta ao ppa como Doc. 4, que se dão como reproduzidas);
5. O prédio rústico adquirido pela Requerente em 2009 passou a prédio misto: a parte urbana com a área coberta de 505,50 m2 e descoberta de 2 415,50 m2 e a parte rústica com a área total de 4,061600 ha (cfr. a caderneta predial urbana já citada, a caderneta predial rústica e certidão da Conservatória do Registo Predial de ..., juntas aos ppa – Docs. 3 e 4, que se dão como reproduzidos);
6. Em 18.07.2014, por escritura de compra e venda lavrada no cartório notarial a cargo da Dr.ª D..., sito em ... e ali registada no Livro 151-A, a fls. 63, a Requerente e o marido alienaram o prédio misto identificado, pelo preço global de € 900 000,00, correspondendo o valor de € 200 000,00 à parte rústica e de € 700 000,00 à parte urbana (Doc. 5 junto ao ppa, que se dá como reproduzido);
7. No anexo G à declaração de IRS do ano de 2014, apresentada em 23.11.2015 e identificada com o n.º..., a Requerente declarou a alienação do prédio misto já identificado, inscrevendo no respetivo quadro 5, campo 505, o valor de € 326 620,92, correspondente ao valor em dívida do empréstimo à data da alienação do prédio urbano inscrito sob o artigo ... da União das Freguesias de ... e ... e, no campo 506, a intenção de reinvestimento da parte remanescente do valor de realização, no montante de € 373 379,08 (Docs. 6 e 8 juntos ao ppa, que se dão como reproduzidos);
8. Com base na declaração apresentada, a AT emitiu a liquidação de IRS n.º 2015..., da quantia de € 14 937,96, paga pela Requerente e posteriormente objeto de estorno na compensação n.º 2018... (cfr. demonstração de acerto de contas n.º 2018..., junta ao ppa, que se dá como reproduzida);
9. Em 10.04.2017, a Requerente apresentou declaração modelo 1 de IMI, para inscrição matricial do prédio urbano a que viria a ser atribuído o artigo ... da União de Freguesias de ... e ..., “tendo constituído o referido imóvel como habitação própria e permanente”, tendo procedido “à alteração da sua morada fiscal” em 07.07.2017 (cfr. informação prestada na reclamação graciosa n.º ...2019..., junta ao ppa como doc. n.º 14, que se dá como reproduzido);
10. Em 30.10.2018, a AT emitiu em nome da Requerente e marido a liquidação de IRS n.º 2018 ... e a liquidação de juros compensatórios n.º 2018 ..., objeto da compensação n.º 2018 ..., de que resultou a quantia a pagar de € 32 009,56, com data limite de pagamento em 12.12.2018 (docs. 8 a 10 juntos ao ppa, que se dão como reproduzidos);
11. Em 19.12.2018, o Serviço de Finanças de ... dirigiu ao marido da Requerente citação no processo de execução fiscal n.º ...2018..., instaurado para cobrança coerciva da liquidação de IRS n.º 2018...;
12. Em 04.01.2019, a Requerente apresentou reclamação graciosa da liquidação de IRS n.º 2018..., registada sob o n.º ...2019..., cujo projeto de decisão lhe foi notificado, para exercício do direito de audição, por ofício do Serviço de Finanças de ..., de 05.02.2019 (doc. 12 junto ao ppa, que se dá como reproduzido);
13. A Requerente exerceu o direito de audição, juntando novos documentos comprovativos do reinvestimento, apreciados na decisão final de indeferimento parcial da reclamação graciosa, conforme o despacho da Senhora Chefe do Serviço de Finanças de ... datado de 22.03.2019, que lhe foi notificada por ofício do mesmo Serviço de Finanças, de 25.03.2019, expedido ViaCTT;
14. Da fundamentação da decisão da reclamação graciosa n.º ...2019... consta, nomeadamente, o seguinte:
(…)
15. Na sequência e em resultado da decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa n.º ...2019..., a AT emitiu em nome da Requerente e do marido a liquidação de IRS n.º 2019..., de 08.04.2019, objeto da compensação n.º 2019..., de 10.04.2019, de que resultou o valor a pagar de € 17 229,90, com data limite de pagamento em 20.05.2019 (Docs. 15 e 16 juntos ao ppa, que se dão como reproduzidos);
16. Em 06.06.2019, o Serviço de Finanças de ... dirigiu citação ao marido da Requerente, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...2019..., em que é exigida a liquidação de IRS n.º 2019... .
B – Factos não provados
Não se provou que a Requerente tivesse procedido ao pagamento de quaisquer quantias por conta das liquidações objeto do pedido de pronúncia arbitral.
C – Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Os factos acima enunciados, dados como provados e como não provados, decorrem da análise crítica dos documentos probatórios juntos ao pedido de pronúncia arbitral e ao processo administrativo.
III.2 DO DIREITO
1. A questão decidenda
A principal questão a decidir nos autos é a de saber se a amortização de um empréstimo contraído para construção de um prédio destinado a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar beneficia da exclusão de tributação a que se refere o n.º 5 do artigo 10.º, do Código do IRS, aquando da sua alienação e posterior reinvestimento do valor de realização na aquisição ou construção de novo imóvel a que seja dado o mesmo destino e se a interpretação dada àquela norma pela Administração Tributária e Aduaneira é violadora do princípio constitucional da igualdade ou do direito à habitação, consagrados nos artigos 13.º e 65.º, da Constituição da República Portuguesa, respetivamente.
Ora vejamos:
As mais-valias constituem incrementos patrimoniais (artigo 9.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS) ocasionais, não decorrentes do exercício de qualquer atividade, que provêm da valorização de um bem pelo decurso do tempo e que não devam ser considerados rendimentos de outras categorias.
A sua inclusão no Código do IRS deriva da conceção do rendimento-acréscimo acolhida pelo legislador, “que alarga a base da incidência a todo o aumento do poder aquisitivo, incluindo nela as mais-valias” em contraposição à do rendimento rendimento-produto, “que leva a tributar o fluxo regular de rendimentos ligados às categorias tradicionais da distribuição funcional” (ponto 5 do preâmbulo do Código do IRS).
Por se tratar de rendimentos excecionais, sujeitos a englobamento por taxas progressivas, foi prevista uma substancial dedução à matéria coletável dos rendimentos de mais-valias a fim de evitar uma excessiva gravosidade na sua tributação, tendo-se mesmo previsto, na redação inicial do Código, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro, a delimitação negativa da incidência, total ou parcial, para os rendimentos de mais-valias, nas condições previstas nos n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º, a que foi dada a seguinte redação:
“Artigo 10.º - Rendimentos da categoria G
(…)
5 - Os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação do sujeito passivo ou do seu agregado familiar não são considerados como rendimento se, no prazo de 24 meses, o produto da realização for reinvestido na aquisição de outro imóvel ou de terreno para a construção de imóvel ou na construção de imóvel, exclusivamente com o mesmo destino.
6 - No caso de reinvestimento parcial do valor de realização, não será tributada a parte proporcional dos ganhos referidos no número anterior que lhe corresponde.”.
De acordo com esta redação inicial dos n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º, do Código do IRS, apenas estava prevista a exclusão de tributação do valor objeto de reinvestimento, só tendo passado a ser contemplada a “amortização de eventual empréstimo para a aquisição do imóvel”, com a redação dada pelo artigo 30.º, da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2002) às alíneas a) e b) do n.º 5 do artigo 10.º, segundo as quais,
“Artigo 10.º - Mais-valias
(…)
5 - São excluídos da tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, nas seguintes condições:
a) Se, no prazo de vinte e quatro meses contados da data de realização, o valor da realização, deduzido da amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, for reinvestido na aquisição da propriedade de outro imóvel, de terreno para a construção de imóvel, ou na construção, ampliação ou melhoramento de outro imóvel exclusivamente com o mesmo destino, e desde que esteja situado em território português;
b) Se o valor da realização, deduzido da amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, for utilizado no pagamento da aquisição a que se refere a alínea anterior, desde que efectuada nos doze meses anteriores;
(…)”
Não obstante as sucessivas alterações legislativas introduzidas às alíneas a) e b) do n.º 5 do artigo 10.º, do Código do IRS, designadamente as operadas pelo Decreto-Lei n.º 361/2007, de 2 de novembro e pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, sempre se manteve a expressão “amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel”, sem que ali tenha sido feita alusão à construção, exceto no que respeita ao reinvestimento do valor de realização, que pode efetivar-se pela aquisição da propriedade de outro imóvel ou de terreno para a construção de imóvel, construção, ampliação ou melhoramento de outro imóvel, em qualquer dos casos, exclusivamente destinado a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar.
É consabido que na interpretação das normas fiscais se seguem os mesmos cânones hermenêuticos aplicáveis na interpretação da generalidade das normas jurídicas (artigo 11.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária – LGT), dispondo o artigo 9.º, do Código Civil, que,
“Artigo 9.º - (Interpretação da lei)
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”.
Assim, a letra da lei é “não só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação”, o que quer dizer que “o texto funciona também como limite da busca do espírito” , dada a presunção de que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
No entanto, como acontece neste caso, o termo adquirir pode ter mais do que um significado, o que leva à busca da ratio legis não apenas a partir do texto, mas de outros elementos interpretativos, nomeadamente os elementos sistemático e histórico.
O elemento histórico, ou seja, “as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, indicia não ter sido intenção do legislador excluir da incidência do IRS a parte do valor de realização de um imóvel destinado a habitação própria e permanente do sujeito passivo e do seu agregado familiar, aplicada na amortização de empréstimo contraído para a sua construção, pois que nunca tal situação foi contemplada na letra da lei, pois a expressão utlizada pelo legislador na alínea a) do n.º 5 do artigo 10.º, do Código do IRS, foi sempre a de “amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel”.
Por outro lado, consubstanciando a norma contida na alínea a) do n.º 5, do Código do IRS, invocada pela Requerente, uma norma de delimitação negativa da incidência e, como tal, abrangida pela reserva de lei da Assembleia da República (artigos 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP), as eventuais lacunas nela contidas não são suscetíveis de integração por analogia, isto é, “segundo a norma aplicável aos casos análogos” (artigos 11.º, n.º 4, da LGT e 10.º, do Código Civil), de forma a englobar no conceito de aquisição ali mencionado, o de construção, como pretende a Requerente.
Apela ainda a Requerente à interpretação extensiva do termo aquisição, de molde a abranger a construção, invocando o disposto no artigo 46.º, n.º 3, do Código do IRS, referente ao “Valor de aquisição a título oneroso de bens imóveis”, segundo o qual “3 - O valor de aquisição de imóveis construídos pelos próprios sujeitos passivos corresponde ao valor patrimonial inscrito na matriz ou ao valor do terreno, acrescido dos custos de construção devidamente comprovados, se superior àquele.” (elemento sistemático).
Todavia, a interpretação extensiva apenas é legítima “quando há razões para concluir que uma hipótese mais vasta não pode ter deixado de ter sido ponderada pelo legislador” .
Por outro lado, tal como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18.01.2017, no processo n.º 0774/14, 2.ª Secção , mencionado por ambas as Partes, “Estando em causa a interpretação de normas de exclusão de tributação, as mesmas devem ser interpretadas nos seus exatos termos, sem o recurso à analogia e evitando também a interpretação extensiva, tornando prevalente a certeza e a segurança na sua aplicação sendo que as regras interpretativas ditadas pelo artº 9.º n.º 3 do Código Civil determinam que tenhamos de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”.
Analisando comparativamente as disposições da alínea a) do n.º 5 do artigo 10.º com o n.º 3 do artigo 46.º, ambos do Código do IRS, escreveu-se naquele Acórdão:
“Dos normativos destacados parece-nos que, quando o legislador refere empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, este termo aquisição a que o legislador se refere não pode igualar-se em termos de significado jurídico ao conceito de aquisição referida no artº 46º nº 3 do CIRS que conduziu à incorporação do prédio na esfera jurídica do interessado por via da construção por conta do próprio interessado, na consideração primeira de que, ainda que a lei para efeitos fiscais integre no conceito de aquisição tanto o imóvel adquirido a terceiros como a imóvel construído pelo próprio, a mesma norma ao efetuar uma definição concreta para efeitos de cálculo do valor de aquisição, acaba por limitar a possibilidade de deduzir um qualquer empréstimo hipotecário contraído para a construção do imóvel.
A lei especifica um concreto modo de determinação do valor de aquisição a título oneroso de bens imóveis construídos pelo sujeito passivo onde prevalece uma espécie de prestação de contas assente por um lado no valor do terreno para construção e por outro nos concretos custos de construção devidamente documentados/comprovados permitindo que o valor de aquisição de um imóvel construído pelo contribuinte se aproxime ou coincida mesmo com o seu valor real de construção, tenha ou não existido empréstimo bancário para financiar a mesma. E daí, cremos que, face à possibilidade concreta de um empréstimo contraído para construção de um imóvel ser desviado dos seus fins pelo mutuário o legislador tenha limitado o benefício em causa apenas a empréstimos contraídos para aquisição de imóvel, situação mais facilmente verificável e menos propensa a desvios relativamente aos seus fins.
Acresce referir que quando a lei exclui de tributação os ganhos provenientes da transmissão caso o sujeito proceda, no prazo de 24 meses, ao reinvestimento do valor de realização, deduzido da amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel - alínea a) do nº 5 do art. 10º do CIRS, estabelece assim, de forma clara, os critérios legalmente exigidos para que se verifique a exclusão de tributação: tem de haver, no prazo fixado, o reinvestimento do valor de realização, embora a este valor de realização seja deduzida a amortização do empréstimo contraído exclusivamente para a aquisição do imóvel, sendo que caso o empréstimo contraído esteja já integralmente amortizado, não há esta dedução, pese embora a injustiça que isso possa constituir relativamente aos contribuintes que na altura em que alienaram o imóvel que constituía a sua habitação já tenham procedido à amortização integral do empréstimo que tenham contraído.
(…)
Tudo visto e ponderado, por não estar em causa um empréstimo contraído para aquisição do imóvel, no seu sentido imediato e com expressão comercial, a nosso ver, considerando tudo o que ficou dito, designadamente as apertadas regras interpretativas que em matéria de não tributação/benefícios fiscais devem ser observadas, entendemos que não está satisfeita a condição para exclusão de tributação do montante de 62.315,09 Euros que era o valor em dívida de empréstimo ao banco à data da venda e que a Administração Tributária aceita que foi amortizado não obstante a não total clareza do probatório neste ponto mas que podemos colmatar por consideração do conteúdo do projeto de correções que consta do processo instrutor apenso aos autos (…)”.
Alega a Requerente que, no Acórdão citado, nem sequer foi equacionada a violação do princípio da igualdade e do direito à habitação, com assento constitucional, e que a interpretação dada pela AT discrimina injustificadamente os contribuintes em função do modo de aquisição de imóvel destinado a sua habitação própria e permanente, ignorando o igual esforço despendido na aquisição por compra e na construção de imóvel com aquele destino, deixando de cumprir o desiderato de, por via fiscal, o Estado “maximizar as possibilidades dos seus cidadãos adquirirem uma nova (eventualmente melhor) habitação própria”.
O princípio da igualdade em matéria de impostos analisa-se em termos de capacidade contributiva ou capacidade para pagar, “revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património” (artigo 4.º, n.º 1, da LGT), não se podendo falar na sua violação nas situações de injustiça relativa que, comparativamente, ocorrem relativamente aos contribuintes que, tendo contraído empréstimo destinado à construção de habitação própria e permanente, o têm totalmente amortizado à data da alienação do imóvel, não sendo tal amortização relevada para efeitos de exclusão de tributação dos ganhos de mais-valias, como é referido no Acórdão citado.
Quanto ao direito à habitação a que se refere o artigo 65.º, da CRP, diga-se que a incumbência do Estado não passa exclusivamente pelo incentivo à construção privada para acesso dos cidadãos a habitação própria, mas também para acesso a habitação arrendada (n.º 2 alínea c) do artigo citado), solução eventualmente reveladora da menor capacidade contributiva daqueles que a ela recorrem e que o legislador fiscal não deixa de proteger, em sede de deduções à coleta (atual artigo 78.º-A, do Código do IRS).
Conclui-se, deste modo, que, no caso concreto, a não consideração do valor da amortização do empréstimo contraído para construção do imóvel, para efeito de reinvestimento e consequente exclusão de tributação de mais-valias, não viola o direito da Requerente à habitação, pois foram, para aquele efeito, aceites as despesas de financiamento da construção de novo imóvel com o mesmo destino.
Em face do exposto, conclui-se que não é de conceder razão à Requerente, devendo as liquidações impugnadas ser mantidas na ordem jurídica, de acordo com a decisão proferida na reclamação graciosa n.º ...2019... .
IV. DECISÃO
Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados e, nos termos do artigo 2.º do RJAT, decide-se em, julgando inteiramente improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira de todos os pedidos.
VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 49 239,46 (quarenta e nove mil, duzentos e trinta e nove euros e vinte e quarenta e seis cêntimos).
CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 2 142,00 (dois mil, cento e quarenta e dois euros), a cargo da Requerente.
Notifique-se.
Lisboa, 29 de novembro de 2019.
O Árbitro,
Mariana Vargas
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.
A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.