DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
Acordam em tribunal arbitral
I – Relatório
1. A... SGPS, S.A., pessoa colectiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...– ..., Lisboa, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade dos actos de liquidação de retenção na fonte de IRS n.º 2014 ... e correspondentes actos de liquidação de juros compensatórios n.ºs 2014... a 2014..., relativos ao exercício de 2011, no montante global de € 192.664,71, e, bem assim, da decisão de indeferimento do recurso hierárquico contra eles interposto, praticado pela Subdirectora-Geral da Direcção de Serviços de IRS, ao abrigo de delegação de poderes.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos.
A Requerente é uma sociedade comercial anónima cujo objecto social consiste na gestão de participações sociais noutras sociedades e prestação de serviços na área da gestão às empresas participadas.
A constituição da Requerente teve origem na sociedade por quotas B..., Lda, depois transformada em sociedade anónima (B..., S. A.), tendo os sócios, por necessidade de implementar uma reestruturação societária, vindo a transmitir a totalidade das participações sociais, revalorizadas em avaliação independente segundo as regras do mercado, para a sociedade de gestão de participações sociais.
Na sequência de um procedimento inspectivo, a Autoridade Tributária efectuou correcções aritméticas em sede de IRS por considerar, em aplicação da cláusula geral anti-abuso, que os lançamentos na conta corrente dos accionistas a título de reembolso de créditos pela realização do capital social da Requerente, correspondem a adiantamentos por conta dos lucros sujeitos a imposto por retenção na fonte.
Os actos de liquidação enfermam de vício de falta de fundamentação, porquanto do teor da respectiva notificação não resultam os fundamentos de facto e de direito, nem é possível sequer invocar a fundamentação por remissão já que não existe uma referência contextual a um qualquer outro documento externo.
E caso se entenda que a motivação dos actos de liquidação se encontra consubstanciada no relatório de inspecção tributária, este contém também uma fundamentação insuficiente, tendo-se limitado a formular juízos conclusivos, quando é certo que a aplicação da cláusula geral anti-abuso torna exigível uma fundamentação mais densificada com específica concretização dos factos.
Por outro lado, ocorreu ainda a preterição da formalidade essencial do direito à audição, visto que a Requerente não foi notificada nos termos e para os efeitos do artigo 60.º, n.º 1, alínea a), da LGT.
Acresce que as operações realizadas pela Requerente - a transformação de uma sociedade por quotas numa sociedade anónima e a transmissão revalorizada das acções - inserem-se numa lógica de organização societária, motivada pelo rápido crescimento operacional da sociedade, não sendo possível extrair dessa sequência de actos a transmutação de reembolso de créditos em dividendos.
Além de que é à Administração Tributária que cabe fazer prova dos elementos constitutivos do direito de proceder à aplicação da cláusula geral antiabuso, não sendo suficiente invocar o preenchimento em abstracto dos requisitos de que depende a sua aplicação.
A liquidação de juros compensatórios enferma também de vício próprio, por falta de fundamentação, porquanto essa liquidação tem como pressuposto o retardamento da liquidação do imposto por facto imputável ao contribuinte, e no relatório de inspecção tributária não é feita qualquer referência à existência de culpa, constituindo a exigência de juros compensatórios uma mera decorrência da dívida de imposto.
A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta que a Requerente foi notificada, no âmbito do procedimento inspectivo, para exercer o direito de audição prévia sobre o projecto de relatório de inspecção tributária, em cumprimento do disposto nos artigos 60º da LGT, 60º do RCPIT, e 63º, nºs 4 e 5, do CPPT, encontrando-se dispensada, nessa circunstância, a audição antes do acto de liquidação, pelo que não ocorreu qualquer violação do direito de audiência prévia.
Por outro lado, a Requerente foi notificada do relatório de inspecção tributária, no qual se encontram expressas as razões de facto e de direito em que se baseiam as correcções aritméticas, não se verificando a alegada violação do dever de fundamentação.
O Relatório descreve, por outro lado, os diversos actos e negócios jurídicos que evidenciam o uso de meios artificiosos para a obtenção de vantagens fiscais, materializados na transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, na venda das acções representativas do capital social da empresa, revalorizadas em valor muito superior ao valor nominal, para subscrição do capital social da Requerente, e na identidade dos acionistas e administradores de ambas as empresas, factos que interligados revelam o objectivo de obter a distribuição de lucros sem qualquer tributação.
Por outro lado, os juros compensatórios são devidos quando se verifique um nexo de causalidade adequada entre o comportamento do contribuinte e a dívida de prestação tributária, desde que a conduta seja censurável a título de dolo ou negligência, e, no caso, todo o conjunto de actos e negócios jurídicos realizados com o intuito de evitar a tributação revelam ter ocorrido um retardamento de imposto por culpa imputável ao sujeito passivo.
Conclui pela improcedência do pedido arbitral.
2. No seguimento do processo, foi realizada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT com produção de prova testemunhal.
Em alegações, a Requerente procurou fixar os resultados probatórios obtidos em audiência e no mais manteve a sua anterior posição. A Autoridade Tributária não contra-alegou.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 22 de Maio de 2019.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas excepções.
O pedido arbitral é tempestivo, considerando a data da sua apresentação (11 de Março de 2019) e da notificação da decisão do recurso hierárquico, que, sendo enviada por carta registada em 10 de dezembro de 2018, se presume efectuada no dia 13 imediato.
Cabe apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Matéria de facto
4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.
a) A Requerente A..., SGPS, SA, com o NIPC..., foi constituída e iniciou a sua atividade em 30-12-2009, com o objeto social de "...gestão de participações sociais de outras sociedades como forma indireta de exercício de atividades económicas, bem como a prestação de serviços técnicos de administração e gestão" – conforme artigo 44º do pedido de pronúncia arbitral (PPA) e página 5 do relatório de inspecção constante do Processo Administrativo (PA) junto com a resposta da AT;
b) A Requerente foi constituída na data acima indicada, com a aquisição da participação da totalidade do capital social da sociedade "B..., SA" ("B..., SA), NIPC..., esta com início de actividade, como sociedade anónima, em 28.01.2004, tendo inicialmente sido constituída, em 03.12.2003, sob a forma de sociedade comercial por quotas – conforme página 9 do relatório de inspecção constante do PA junto com a resposta da AT;
c) Com a transformação da sociedade por quotas “B... Lda.” em sociedade anónima “B... SA,” ocorrida em 28.01.2004, a estrutura accionista manteve-se a mesma, em 96% do capital – conforme páginas 11 e 12 do relatório de inspecção constante do PA junto com a resposta da AT;
d) Em cumprimento das Ordens de Serviço nºs 012013..., 012013... e 012013..., emitidas em 3 de Julho de 2013, e da Ordem de Serviço nº 012013..., emitida em 3 de Outubro de 2013, a Requerente foi sujeita a um procedimento de inspecção externo, de âmbito univalente/parcial, que incidiu sobre exercícios de 2009 a 2012 e foi instaurado “no seguimento da «ação especial de controlo das alienações de ações por sujeitos passivos singulares», selecionados em sequência da alienação de ações, detidas por período superior a 12 meses, declarando mais valias, não tributadas” – conforme artigos 45º e 46º do PPA, documento nº 3 em anexo ao PPA e PA junto pela AT com a resposta;
e) Em 26.11.2013 a Requerente e accionistas foram notificados através dos ofícios nºs..., ..., ..., ... e ..., ao abrigo do disposto nos artºs 60º da LGT, 60º do RCPIT e nºs 4 e 5 do artº 63º do CPPT, para exercer, querendo, no prazo de 30 dias, o direito de audição sobre o teor do projecto relatório de correções, efetuadas nos termos do no 2 do artº 38º da LGT (aplicação da CGAA), tendo os mesmos exercido os direito de audição por escrito, mediante petições que deram entrada na Direcção de Finanças em 2013/12/30, às quais foram atribuídos os registos de entrada nºs..., ..., ..., ..., ... – conforme ponto IX, página 34 do documento nº 3 junto com o PPA e PA junto pela AT com a resposta;
f) A Requerente veio a ser notificada, mediante o Ofício nº..., datado de 12 de Março de 2014, dos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Lisboa, do Relatório Final de Inspecção Tributária, ofício com o seguinte teor: “Fica(m) por este meio notificado(s), nos termos do artigo 62º do RCPIT, do Relatório de Inspeção Tributária, que se anexa como parte integrante da presente notificação, respeitante à Ordem de Serviço acima referenciada. Das correções meramente aritméticas efectuadas à matéria tributável e/ou imposto, sem recurso a avaliação indireta, cujos fundamentos constam do referido Relatório. A breve prazo, os serviços da AT procederão à notificação da liquidação respetiva, a qual conterá os meios de defesa, bem como o prazo de pagamento, se a ele houver lugar. Da presente notificação e respetiva fundamentação não cabe reclamação ou impugnação. Fica ainda notificado do despacho do Sr. Diretor Geral da AT, exarado em 3.3.2014, autorizando a aplicação do procedimento proposto, nos termos e com os fundamentos expostos” – artigo 50º do PPA, documento nº 3 em anexo ao PPA e PA junto com a contestação pela AT;
g) No Relatório final de Inspecção Tributária referido na alínea anterior consta, nomeadamente, o seguinte:
“II.5.1.5. - TRANSMISSÃO DE QUOTA /TRANSFORMAÇÃO EM SOCIEDADE ANÓNIMA
Em 2009.05.14, mediante reunião da assembleia geral, ... foi deliberado a divisão da quota de um dos sócios e posterior cessão de parte dessa quota a novo sócio, a aprovação do balanço da sociedade a março de 2009, com vista à transformação da sociedade por quotas, em sociedade anónima, subsequente aprovação da transformação e, eleição das corpos sociais a operarem após a transformação em sociedade anónima, operações objeto de registo (on line) em 27-05-2009 ...
Após a divisão da quota de € 6.000,00 do sócio C... (respetivamente, em € 100,00 e € 5.900,00) e cessão da quota de € 100,00 a novo Sócio -D..., com o NIF ..., passaram a ser 5 os detentores do Capital da sociedade, podendo a mesma ser transformada em sociedade anónima.
A referida ata n.º 12, ponto 2, faz referência à aprovação do balanço a março de 2009 que serviu de base à deliberação da citada transformação e AO RELATÓRIO JUSTIFICATIVO DA TRANSFORMAÇÃO ELABORADO PELA GERÊNCIA DA SOCIEDADE ..., bem como à declaração expressa dos sócios de dispensarem o relatório do ROC, sobre o projeto de transformação, a elaborar nos termos do nº 6 do artº 99º do Código das Sociedades Comerciais (CSC).
De referir que o próprio "RELATÓRIO JUSTIFICATIVO DA TRANSFORMAÇÃO ELABORADO PELA GERÊNCIA DA SOCIEDADE" que serviu de base á citada transformação não apresenta qualquer justificação ou motivação para substanciar a transformação, nem sequer quaisquer indícios de estratégia empresarial, incremento ou diversificação do objeto social. ...
Em 2009.05.27 (13 dias após a deliberação) foi efetuada a transformação da sociedade por quotas em anónima (online) e designados os membros(s) dos social(ais) (online):
• Capital: € 150.000,00
• Ações: 30 000 ações com valor nominal de € 5,00.
• Forma de Obrigar/órgãos Sociais: A sociedade obriga-se com a intervenção o do presidente do conselho de administração ou de qualquer um dos vogais; o de mandatário no âmbito e nos termos do correspondente mandato.
De referir que, quando da transformação da sociedade por quotas, em sociedade anonima (7 meses antes da venda das participações pelos acionistas da B..., SA) permitiu, numa 1ª fase, a exclusão de tributação, em sede de IRS, dos acionistas, quanto às mais-valias resultantes da venda de participações sociais da "B..., SA" detidas a mais de 12 meses (por força da alínea a) do n.º 2 do artº 10º, conjugado com a alínea b) do nº 4 do artigo 43º, ambos do CIRS). Pois, sem a transformação, as mais valias seriam concretamente tributadas em sede de IRS. (nos termos da alínea b) do nº 1 do artº 10º do CIRC conjugado com nº 4 do artº 72º do CIRS.)
...
11.-5.1.8. - VALORIZAÇÃO/ ALIENAÇÃO DAS AÇÕES
Em 2009.12.21 — 9 dias antes da alienação das ações à nova sociedade (30/12/2009) - as 30.000 ações foram avaliadas no montante de € 15.272.000,00, utilizando o “método de avaliação dos “Free Cash Flow to lhe Firm (FCFF)”, tendo a projeção da atividade da empresa sido efetuada por extrapolação a partir de indicadores referentes aos próximos 3 anos de atividade, não estando esta projeção suportada em estudos de mercado, estratégicos ou outos (...) ...
No dia seguinte — 2009.12.22 -, foi elaborado relatório pelo Dr. E... (ROC no 1266), membro da sociedade F..., SROC, Lda. a fim de dar cumprimento ao disposto no artigo 28º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), face à entrada em espécie das ações, então valorizadas, para realização do capital social da sociedade a constituir: "A... SGPS, SA", mediante a transferência de participações representativas de 100% do capital social da B..., SA. ...
Em 30/12/2009 — 7 meses depois da transformação da sociedade por quotas, em anónima e 9 dias depois da valorização das ações da B..., SA - os acionistas, efetuaram a alienação da totalidade das suas participações no capital social da sociedade B..., S.A" (constituído por € 150.000,00, dividido em 30 000 ações com o valor nominal de €5,00 cada) avaliadas pelo valor de € 15.272.OOO,OO
Os mesmos acionistas, que detinham 30.000 ações na "B..., SA" passaram, por força da alienação à "A..., SGPS", a deter apenas 10.000 ações, com igual valor nominal, face ao capital realizado de € 50.000,00.
Todavia, por via da valorização e, subsequente alienação das ações, assumiram os acionistas o papel de credores da nova sociedade, relativamente ao valor restante (€ 15.222.000,00).
De acordo com o referido, o preço de aquisição das ações pela “A..., SGPS” ascendeu ao montante de € 15.272.000,00 a que corresponde um valor unitário por ação de € 509,07 (€ 15.272.000,00/30 000 ações = € 509,067), valor consideravelmente superior ao valor nominal de € 5,00 das ações detidas pelos mesmos acionistas, em ambas as sociedades, ainda que em períodos distintos.
De referir que dos elementos disponibilizados relativamente à "A..., SA", a valorização das ações não aparece refletida, contabilisticamente, em nenhuma das contas.
...
II.5.2.1. - ESTRUTURA ACIONISTA DA “A... SGPS, SA”
Face ao referido o capital social da “A..., SGPS, SA” (realizado em espécie) é de € 50.000,00 correspondentes a 10.000 ações nominativas com o valor nominal de € 5,00 cada ação, distribuídas pelos seguintes acionistas que alienaram as ações da “B..., S.A.”
Verifica-se que os acionistas e administradores da “A..., SGPS, SA” são os mesmos da “B..., SA”, antes da venda das ações àquela e, precisamente, com a mesma percentagem de direitos de voto, em ambas as sociedades, muito embora o número da sociedade participada e sociedade participante, seja diferente.
...
II. 5.2.3. - REALIZAÇÃO DO CAPITAL SOCIAL DA SOCIEDADE A... SGPS SA, MEDIANTE ENTRADA EM ESPÉCIE
No âmbito da reunião de Assembleia Geral Extraordinária, celebrada em 2009.12.30 ..., deliberaram os acionistas sobre o reconhecimento das entradas em espécie, para a realização do capital social da sociedade e, reconhecimento do crédito dos acionistas sobre a sociedade.
Porque o capital social "A... SGPS, SA", é constituído por € 50.000,00 dividido em 10.000 ações ordinárias com o valor nominal de € 5.00 e, face à deliberação de que a realização do capital fosse feita mediante a entrada em espécie das 30.000 ações, representativas de 100% do capital social da "B... 3, S.A.", valorizadas em € 15.272.000,00, reconhece-se a referida sociedade, devedora para com os acionistas, do montante correspondente à diferença - € 15.222.000,00 .
O montante de que a sociedade se reconhece devedora, para com os acionistas, foi registado contabilisticamente, no balanço da sociedade, a crédito dos acionistas, cuja distribuição cada, é a seguinte:
Segundo declarações prestadas pelas entidades envolvidas, não foi celebrado qualquer contrato de promessa de compra e venda de ações e também não foi entregue a declaração Modelo 4 — “ Aquisição e/ou Alienação de valores Mobiliários” - exigível aos alienantes e adquirentes das ações, nos 30 dias subsequentes à realização das operações, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 138º do Código do IRS (CIRS). Relativamente à não entrega da declaração Modelo 4, pelos sujeitos passivos em questão, confirmou-se o seu incumprimento, por consulta às aplicações informáticas da AT, nomeadamente na “Consulta às Obrigações Acessórias” dos contribuintes.
É de salientar que o balancete analítico da empresa “A..., SGPS, SA" à data de 2010/12/31, evidencia o registo dos referidos créditos a favor dos acionistas, com exceção do crédito a favor do acionista, "G..." no valor de € 10.081,33, o qual se apresenta registado e identificado a favor do anterior acionista, "D... (ambos advogados da sociedade “A..., SGPS, SA”), porque tal como é relatado em ponto subsequente (11.5.2.6.) as referidas ações e, correspondente crédito, é novamente transferido para a posse deste, mediante contrato celebrada em 2009.12.31. ..., após valorização/transmissão das ações à “A..., SGPS, SA"
...
II.5.2.5. — CONTRATO DE MANAGEMENT E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
Na mesma data da constituição da sociedade “A...SGPS SA” – 2009.12.30 -, mediante reunião ordinária do Conselho de Administração (cfr. ata nº 1 ...) foi discutido e deliberado a celebração de um “Contrato de Management e Prestação de Serviços” com a sociedade participada a 100%, - “B..., SA. “, o qual foi celebrado, em 2010/01/01, nos termos previstos no artigo 4.º do Decreto- Lei n.0 495/88 de 30 de Dezembro. ...
O citado contrato rege-se pela contratualização de serviços de gestão, técnicos e administrativos, por parte da “B..., SA” à “A... SGPS SA” (cfr. Cláusula 1ª e 2ª ) por uma quantia mensal, a título de “Fee”, de natureza variável entre o mínimo de €45.000,00 e o valor máximo de € 350 000,00 (cfr. sua cláusula 6.) a desenvolver nos escritórios situados na sede social de ambas as sociedades, sita na Rua ..., nº ..., ...C, Lisboa. (cfr. Cláusula 3ª) por tempo indeterminado a não ser que a “A... SGPS, SA” deixe de deter uma percentagem do capital social da ‘B..., SA” inferior a 10% (cfr. Clausula 4).
Perante o presente contrato de prestação de serviços, a empresa “B..., SA” teve que concretizar atos que permitiram a celebração do mesmo, nomeadamente ceder o espaço necessário para os a prestar pela empresa A... SGPS, SA cessar o pagamento das remunerações aos três administradores da sociedade (cfr. Ata n.º 14, de 31/12/2009 lavrada aquando da Assembleia Geral Extraordinária da “B..., SA” ...), (1 dia antes da data do contrato) e ceder dois colaboradores — a diretora financeira e um empregado.
Importa realçar, que apesar da celebração do contrato de prestação de serviços com a “A..., SGPS” (serviços de gestão, técnicos e administrativos) é de realçar que a empresa “B..., SA” regista, nomeadamente:
• Um aumento no número de colaboradores (251, 458, 455 e 488 trabalhadores em média nos de 2009, 2010, 2011 e 2012 ...)
• Os técnicos oficiais de contas (TOC’s) responsáveis pela contabilidade da sociedade “A... SGPS. SA’, nos anos de 2010, 2011 e 2012, foram, em igual período, os TOC’s responsáveis pela contabilidade da “B... SA” e, inclusive, o TOC nomeado para o exercício de 2012, integra o quadro de pessoal “B...”.
Estes factos demonstram que os serviços de contabilidade e administrativos são assegurados pela “B..., SA”, não obstante esta, suportar gastos de igual natureza, no âmbito do “contrato de prestação de serviços”
Como complemento ao supra relatado, é de realçar o facto de a sociedade “B..., SA”, nos exercícios de 2010 a 2012, registar resultado líquidos decrescentes (cfr Declarações Anuais/IES), não obstante registar uma expansão, da atividade de exploração comercial de restaurantes, conforme quadro resumo que se segue:
...
II. 5.2.9. — FLUXOS FINANCEIROS NA SGPS
Com o referido contrato de "MANAGEMENT DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS', a empresa "B..., SA", realiza pagamentos (cfr. extratos de contas SNC 12, 7211 e 21121 ...), que permite dotar a "A... SGPS, SA", de meios financeiros disponíveis, permitindo-lhe de forma direta e imediata, canalizá-los para pagamento aos acionistas:
• A título de remuneração, enquanto membros do conselho de administração, que a partir de 2010, passaram a auferir os rendimentos de trabalho dependente - categoria A - pagos por esta empresa;
• A título de reembolsos parciais e diferidos no tempo (mensalmente em cada um dos exercícios) dos créditos constituídos a favor dos mesmos, a quando da venda das ações, previamente valorizadas por um valor, consideravelmente superior ao seu valor nominal. (Extrato de conta SNC- 26 8 ...);
Para além dos fluxos financeiros que, na sua maioria são transferidos da "B... SA", para a "A... SGPS” no âmbito da referida prestação de serviços técnicos de administração e gestão, subjacente ao contrato “Contrato de Management e Prestação de Serviço”, ou seja, no âmbito da atividade secundária exercida pela empresa, também declara como rendimentos e/ou réditos, os dividendos que recebeu relativamente às participações que detém ..., visto a atividade principal da "A... SGPS, SA" ser de gestão de participações sociais.
Em resumo, nos exercícios em análise, os réditos obtidos/declarados que tiveram um maior peso na "A... SGPS, SA" foram os relativos á prestação de serviço que deveria ser de carater acessório e não principal. ...
Resulta do exposto, que os pagamentos aos acionistas ..., quer a nível de remunerações, quer a nível de pagamento do “crédito” gerado, é precedida, mensalmente, por transferência bancária da B... SA, que consistem no recebimento pela "pretensa" prestação de serviços e, distribuição de dividendos desta. ...
No caso concreto, o que os acionistas (que são comuns a ambas as sociedades) pretenderam com a avaliação da ações da “B..., SA” (e para isso a realizaram naquela data - 9 dias antes da sua alienação), não foi avaliar a empresa operacional para efeitos de uma potencial venda, nem mesmo para efeitos de registo na A..., SGPS SA pelo seu "justo valor".
O objetivo foi, que a diferença entre os bens entregues (realização em espécie) e o valor nominal das ações permitisse criar na A..., SGPS, SA, “um crédito” favor dos acionistas, no montante de € 15.222.000,00, e desta forma, transferir para o património dos acionistas os lucros da atividade operacional da “B..., SA” sem qualquer tributação.
Em suma, os referidos actos e negócios jurídicos, estão relacionados com as operações de criação e realização do capital da sociedade “A... SGPS, SA” e deles resultou a criação de uma dívida da sociedade aos acionistas, no montante de € 15 222 000,00, a qual à data da operação - 2009.12.31 - ficou lançado na conta corrente dos acionistas ..., sob a forma de crédito que a sociedade se reconheceu devedora (cfr. ata nº 1 de 30/12/2009 ...).
O crédito em causa, constituiu a partir daquele momento um direito sobre a sociedade, que entra de imediato na esfera do património dos acionistas, mediante a amortização da referida dívida, sem qualquer tributação.
Desta forma, resta á AT, nos termos do disposto no nº 4 do artº 36º da LGT, o enquadramento tributário dos créditos, lançados na conta corrente dos acionistas.”
h) Na sequência do acima referido a Requerente foi notificada do acto de liquidação de Retenção na Fonte de IRS nº 2014 ... e os correspondentes actos de liquidação de Juros Compensatórios nºs 2014 ... a 2014 ..., todos relativos ao exercício de 2011, dos quais resultou um valor a pagar de € 192.664,71 – conforme artigo 56º do PPA e documento nº 2 em anexo ao PPA;
i) Em 15.09.2016 a Requerente procedeu ao pagamento dos montantes constantes dos actos de liquidação de Retenções na Fonte de IRS de 2010, 2011 e 2012 através de uma única transferência bancária no valor total de 1.055.548,45 – conforme documentos nºs 4 e 5 juntos com o PPA e artigos 64º e 65º do PPA.
j) Em 07.08.2014 a Requerente apresentou reclamação graciosa das liquidações (Processo ...2014...), tendo sido indeferida por despacho de 30.12.2014 do Director de Finanças de Lisboa e em 06.01.2015 foi notificada desta decisão – conforme folhas 3 e 4 do Documento nº 1 junto com o PPA e PPA junto pela AT com a resposta;
k) Em 03.02.2015 a Requerente apresentou recurso hierárquico (processo ...2015...), tendo sido indeferido por despacho de 06.12.2018 da Subdiretora-geral do IRS e notificada a decisão através do ofício ... de 10.12.2018 – conforme parte inicial do PPA e documento nº 1 em anexo ao PPA.
l) A sociedade “B..., Lda. foi constituída em 03/12/2003 como sociedade por quotas, com o capital social de € 5.000,00, distribuído por quatro sócios, tendo como objecto social a prestação de serviços de restauração, hotelaria e actividades similares, sendo sócios H..., I..., J... e K... (RIT, II – 5.1.1);
m) Por assembleia geral de 06/10/2008, foi deliberado o aumento do capital social em € 145.000,00 por incorporação de prestações suplementares realizadas pelos sócios H... e I... (RIT, II – 5.1.4);
n) Por assembleia geral de 14.05.2009, foi deliberado a divisão da quota de um dos sócios e posterior cessão de parte dessa quota a novo sócio com vista à transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, designada “B..., S. A., com o capital social de € 150.000,00, representativo de 30 000 ações, com valor nominal de € 5,00, sendo accionistas H..., I..., J..., K... e D... (RIT, II – 5.1.5);
o) Em 21.12.2009, as ações foram reavaliadas no montante de € 15.272.000,00 e no dia 30 de Dezembro imediato os accionistas procederam à alienação das acções revalorizadas para realização do capital social da "A... SGPS, SA" (RIT, II – 5.1.8);
p) Em assembleia geral extraordinária da "A... SGPS, SA", ocorrida nessa mesma data, as entradas em espécie para a realização do capital social da sociedade foram reconhecidas como constituindo créditos dos acionistas sobre a sociedade (RIT, II – 5.1.9.);
q) Em 30 de Dezembro de 2019, foi constituída a sociedade “A... SGPS SA”, tendo como objecto social a gestão de participações sociais de outras empresas, como forma indirecta do exercício da actividade económica, e prestação de serviços na área da gestão das empresas participadas (RIT 5.1.10);
r) Na data da constituição da sociedade “A... SGPS SA”, em reunião do Conselho de Administração, foi deliberada a celebração de um “Contrato de Management e Prestação de Serviços” com a sociedade participada “B..., SA.” (RIT, II – 5.2.5.);
s) Com base no referido contrato, a empresa "B..., SA" realiza pagamentos a favor da "A... SGPS, SA", por prestação de serviços técnicos de administração e de gestão, que permitem o pagamento aos acionistas, a título de remuneração, enquanto membros do conselho de administração, e de reembolsos parciais dos créditos constituídos a seu favor por efeito da alienação das acções (RIT, 5.2.9.);
t) Nos exercícios de 2010, 2011 e 2012 a “A... SGPS SA” efectuou reembolsos parciais aos accionistas pelos créditos constituídos a seu favor pela alienação das acções, nos montantes de € 2.112.543,65, 818.250,84 e 986.374,34, respectivamente (RIT, III – 5.1.);
u) A estrutura administrativa da “A... SGPS SA” era constituída pelos accionistas H..., I..., J... (RIT, II – 5.2.1.);
v) As sociedades “B..., SA” e “A...SGPS, SA” eram à data dos factos, sociedades não cotadas em mercados regulamentados, tendo a revalorização das acções da Sociedade “B..., SA” resultado de avaliação por revisor oficial de contas – artigos 133º a 136º do PPA, declarações de parte de H... e depoimento de L...;
w) A Sociedade "B..., S.A." deixou de ser a única empresa existente, para passar a ser uma das entidades operacionais que passou a estar sob a alçada de uma sociedade holding, aqui Requerente, sociedade holding essa que passou a ser detida pelos mesmos accionistas que anteriormente detinham a (única) entidade que desenvolvia toda a actividade empresarial do grupo entretanto constituído – conforme artigos 139º e 140º do PPA, declarações de parte de H... e depoimento de L...;
x) Em 08 de Março de 2019 o Requerente entregou no CAAD o presente pedido de pronúncia arbitral (PPA) – registo de entrada no SGP do CAAD do pedido de pronúncia arbitral.
Factos não provados
O Tribunal não considerou provada a factualidade alegada nos artigos 129º a 131º do pedido de pronúncia arbitral. Sobre essa factualidade a prova produzida resulta essencialmente das declarações de parte e no depoimento da directora financeira. Sobre esta matéria, por um lado, o Tribunal terá de partir de presunções judiciais que resultem das diversas operações que se encontram documentadas, e por outro lado, neste aspecto, os depoimentos prestados não lograram convencer o Tribunal, face ao relevo da questão para a resolução do litígio.
Não existe outra factualidade alegada que não tenha sido considerada provada e que seja relevante para a composição da lide processual.
Fundamentação da fixação da matéria de facto
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (conforme artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (conforme anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, indicando-se, por cada ponto levado à matéria de facto assente, os meios de prova que se consideraram relevantes, como fundamentação.
As declarações de parte de H..., membro do Conselho de Administração da Requerente e o depoimento de L..., directora financeira da Requerente, mostraram que tinham conhecimento dos factos mencionados em v) e w) dos factos assentes e foram prestados com a espontaneidade suficiente de forma a terem convencido o Tribunal, muito embora se tratar, o primeiro, de acionista e membro dos órgãos sociais da Requerente e, a segunda, de uma trabalhadora dependente.
Matéria de direito
Falta de fundamentação
5. Subdividiremos a nossa apreciação jurídica em dois aspectos que ressaltam como distintos, quer do articulado, quer das alegações da Requerente e da Requerida. Um primeiro tem a ver com a alegada falta de fundamentação por parte da AT para as correcções que foram produzidas nas declarações de IRS sub judicio, na sequência do RIT, que desconsiderou os pagamentos feitos aos sócios como tendo fundamento em pretensa liquidação de créditos que estes tinham perante a sociedade A... SGPS, SA, considerando-os dividendos e não pagamentos de dívida. Neste aspecto da fundamentação importa ainda levar em linha de conta a questão dos aspectos formais que conduziram à aplicação da cláusula geral anti-abuso, no sentido de saber se, logo por aí, as liquidações nela fundadas pecam por falta de fundamentação. Um segundo aspecto, prende-se com a questão de fundo, ou seja, se há legitimidade por parte da AT na aplicação da cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38º da LGT ao caso em apreço, designadamente, se foram preenchidos os requisitos para a aplicação da mesma.
Principiando, então, pela hipotética falta de fundamentação, a Requerente alega que recebeu as notificações sem fundamentação, em violação do artigo 77º, nº 2, da LGT que determina que a fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições aplicáveis, a qualificação e a quantificação dos factos tributários e as operações do apuramento da matéria tributável e do tributo. Como supra se evidenciou no relatório da presente decisão arbitral, as correcções objecto da apreciação do Tribunal radicam num RIT devidamente notificado à Requerente, tendo sido, nos termos legais, concedido prazo para a mesma se pronunciar no âmbito do direito de audição prévia, a que se seguiu uma reclamação graciosa do acto de liquidação e depois um recurso hierárquico de cujo indeferimento a Requerente interpôs a presente impugnação.
Ora, é inquestionável que os actos tributários têm de conter a respectiva fundamentação de facto e de Direito para que o sujeito passivo possa, em consciência, saber dos fundamentos para as correcções propostas. A jurisprudência e doutrina invocadas pela Requerente e pela Requerida são eloquentes quanto a este ponto que não merece dúvidas.
O que valerá a pena verificar é se, no caso vertente, tal fundamentação não existiu, ou foi insuficiente, ou se, pelo contrário, como defende a Requerida, a mesma foi conforme aos ditames legais.
Para tanto, relembra-se, as correcções resultaram de um RIT que, como é usual (cfr. Ofício..., de 12.03.14, assinado pela Directora de Finanças de Lisboa da AT) diz que remete ao sujeito passivo o relatório definitivo da inspecção dando conta das correcções meramente aritméticas efectuadas à matéria tributável e/ou imposto, sem recurso a avaliação indirecta cujos fundamentos constam do referido Relatório. A breve prazo, os serviços da AT procederão à notificação da liquidação respectiva, a qual conterá os meios de defesa, bem como o prazo de pagamento, se a ele houver lugar. Da presente notificação e respectiva fundamentação não cabe reclamação ou impugnação. Fica ainda notificado do despacho do Sr. Director-Geral, exarado em 3.3.2014, autorizando a aplicação do procedimento proposto, nos termos e com os fundamentos expostos.
E assim é que é enviada, pouco tempo depois, a liquidação do IRS pretensamente em falta (relativa a retenções na fonte não efectuadas pela Requerente), acompanhada do cálculo dos juros compensatórios, tudo num valor de 192.664,71€, dos quais o capital em dívida é de 175.924,08€ e 16.740,63€ são os juros compensatórios. Ora, se compulsarmos o RIT, verificar-se-á que o valor da dívida principal objecto da liquidação é exatamente aquele que consta do referido relatório, para o ano de 2011, conforme fls 3 e 4 do RIT.
Acresce que, na mesma liquidação, se faz referência aos meios de defesa do contribuinte e ao limite do prazo de pagamento, ao imposto em dívida e respectivo ano a que diz respeito e ao tipo de imposto em falta (retenção na fonte por parte da A..., SGPS, SA).
Assim, parece que não subsistirão dúvidas de que a dívida objecto de litígio é a que resulta do RIT, sendo certo que do relatório consta a fundamentação para se chegar a tal valor, validada com sucessivos despachos de concordância da cadeia hierárquica da AT, culminando no DG que autorizou a aplicação da dita CGAA. Em momento ulterior veremos se a dita fundamentação, ao abrigo da aplicação da CGAA, é adequada ou não, mas esse será outro problema.
Acrescem, ainda, mais dois argumentos que vão no sentido de não validar a tese da Requerente de que houve vício do acto tributário por falta de fundamentação do mesmo: o primeiro, é que, como se diz no Acórdão do STA de 2 de Julho de 2014, Processo nº 0174/1, deste modo, o acto estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na sua posição de destinatário normal – o bonus pater familiae de que fala o artigo 478º, nº 2 do C.Civil - possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, por aceitar, ou não, o acto.
Ora, no caso em apreço parece, justamente, que foi isso que aconteceu, ou seja, a Requerente desenvolveu todo o seu argumentário procurando desmontar a justificação para aplicação da CGAA que esteve na génese das liquidações correctivas e que constavam do RIT.
Acresce que, a ter dúvidas, sempre poderia ter lançado mão do mecanismo previsto no artigo 37º do CPPT, que dispõe que se a comunicação da decisão em matéria tributária não contiver a fundamentação legalmente exigida, a indicação dos meios de reacção contra o acto notificado ou outros requisitos exigidos pelas leis tributárias, pode o interessado, dentro de 30 dias ou dentro do prazo para reclamação, recurso ou impugnação ou outro meio judicial que desta decisão caiba, se inferior, requerer a notificação dos requisitos que tenham sido omitidos ou a passagem de certidão que os contenha, isenta de qualquer pagamento.
Sucede que a Requerente não o fez e parece ter entendido o sentido da decisão e a respectiva fundamentação, de tal modo que a sua contestação se centrou, justamente, no RIT.
Nessa medida, entende o Tribunal que não procedem os alegados vícios de forma, por falta de fundamentação, alegados pela Requerente.
Diz, ainda, a Requerente (ver artigos 80º a 84º do pedido de pronúncia arbitral), que quando está em causa a aplicação de métodos indirectos, outras presunções ou a CGAA, a densidade da fundamentação exigida é máxima, acrescentando que atenta a matéria que está em causa nos presentes autos, esses especiais pressupostos encontram-se elencados no nº 3 do artigo 63º do CPPT.
Vejamos, então, o teor desse artigo, na parte relevante para os autos, em ordem a aferir se o mesmo foi cumprido de forma escrupulosa pela AT. Para o efeito, num primeiro momento, centraremos o nosso juízo em aspetos de forma que possam, porventura, ter inquinado a aplicação da CGAA, para, num segundo momento, nos pronunciarmos sobre a matéria mais substancial, qual seja, se houve ou não razão para que a AT pudesse liquidar imposto, no caso retenção na fonte, fundada na desconsideração fiscal do negócio efetuado e na tributação como se tal negócio não fosse relevante para efeitos fiscais dada a sua realização por razões eminentemente de poupança fiscal, utilizando meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, como se dizia na redacção do artigo 38º da LGT, que estava em vigor à data das liquidações dos tributos pela AT.
Diz o nº 3 do mencionado artigo 63º do CPPT o seguinte:
A fundamentação do projecto e da decisão de aplicação da disposição antiabuso referida no nº 1 (CGAA) contém necessariamente:
a) A descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam;
b) A demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do ato jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou ato com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais.
Por seu turno, os números seguintes do preceito (números 4, 5, 6 e 7), reforçam as garantias do sujeito passivo no domínio da audição prévia (a exercer no prazo de 30 dias), acrescentando que pode apresentar provas que entenda pertinentes, estatuindo-se, ainda, que a aplicação da CGAA deverá ser autorizada pelo dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em quem ele tiver delegado essa competência.
Diremos que, em termos puramente formais, o nosso entendimento é o de que foram cumpridos os requisitos exigidos pela lei, ou seja, no RIT foi descrito o negócio realizado, com remissão para as normas legais aplicáveis, procurando demonstrar que o negócio se fez claramente com o intuito de transformar dividendos susceptíveis de tributação em pagamento de créditos dos sócios sobre a A... SGPS, SA, naturalmente isentos de imposto.
Acresce que dúvidas não subsistem que foi dado o prazo de 30 dias à ora Requerente para se pronunciar (cfr. Capítulo IX do RIT e anexo 25 do mesmo) e que esta, bem como os accionistas, exerceram efectivamente o seu direito de audição.
Por outro lado, conforme consta do já mencionado ofício nº... da Direcção de Finanças de Lisboa, o então Director-Geral da AT, despachou favoravelmente, após a audição prévia do contribuinte, a aplicação da CGAA ao caso em apreço.
Vejamos, agora, se no entender do Tribunal, há ou não razões plausíveis para a aplicação da CGAA no caso subjudicio.
Cláusula geral anti-abuso e correcções à matéria colectável
6. Como se deixou dito em momento anterior, a AT, no caso vertente, entendeu que havia razão para aplicação da CGAA porquanto houve uma série de operações que conduziram a que a Requerente se eximisse ao pagamento de dividendos, mediante retenção na fonte, na medida em que dessa série de operações, fundamentalmente, resultou que a mesma houvesse transformado os dividendos que a sociedade operativa B... deveria pagar aos sócios em pagamento de dívida de uma SGPS, a A..., SGPS, SA, para com os mesmos sócios.
Baseando-nos na matéria de facto dada como provada, assim como no RIT, verifica-se que os sócios identificados a fls. 5 do RIT constituíram a sociedade B... LDA, em dezembro de 2003; em abril de 2007, o sócio K... transmitiu a sua quota a C... e em outubro de 2010, o capital social, que antes era 5,000,00€ passou a ser de 150.000,00€, por incorporação no mesmo de prestações suplementares efetuadas em outubro de 2005 e março de 2007 (cfr. fls 6 do RIT). Em maio de 2009, foi dividida a quota do sócio C... e cedida por 100,00€ uma nova a outro sócio (D...), sendo posteriormente transformada a sociedade de quotas em anónima com o capital social dividido por 5 sócios. No ano de 2009, mais concretamente em dezembro, as 30.000 acções representativas do capital de 150.000,00€ foram objeto de reavaliação por auditor externo para um valor total de 15.272.000,00€, avaliação essa necessária para a constituição de uma SGPS, a A... SGPS, SA, mormente para efeitos de entrada em espécie com acções da sociedade B... SA por parte dos seus sócios que são, simultaneamente, sócios da nova sociedadade a constituir (a SGPS). Em 30.12.2009, os sócios alienaram a totalidade das suas participações para a SGPS, sendo que os accionistas do B..., SA passaram a deter 10.000 acções na SGPS avaliadas pelo valor nominal de 50.000,00€, tendo as restantes sido vendidas ao valor de 509.07€, resultante da reavaliação que, por a SGPS não ter liquidez, assumiu como crédito a favor dos seus accionistas, bem como a diferença entre o valor nominal das açções dadas para realizar o capital e valor resultante da reavaliação. Daqui resultou que os accionistas – que são os mesmos da B... e da A... SGPS SA, como se disse – ficaram detentores de um crédito de 15.222.000,00€.
Foi, ainda, celebrado entre a sociedade B... e a SGPS um contrato de management e de prestação de serviços, mediante o qual a B...– sociedade operativa – pagava à SGPS serviços técnicos de administração e gestão, que posteriormente a SGPS devolvia aos sócios, quer a título de remuneração, quer como pagamento da dívida da SGPS para com os mesmos.
Face a esta descrição das operações realizadas, importa agora efectuar o respetivo enquadramento jurídico, dizendo, desde já, que seguiremos de perto as decisões arbitrais tiradas nos processos nºs 357/2018, de 2019-05-24 e 463/2018, de 2019-04-23.
Começará por rememorar-se o que diz o artigo 38º, nº2 da LGT, com a redacção à data dos factos:
São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem a utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.
Como assinala Sérgio Vasques, a cláusula geral antiabuso consagrada na LGT é composta de três elementos essenciais. “Em primeiro lugar exige-se a prática de acto ou negócio jurídico artificioso ou fraudulento e que exprima abuso das formas jurídicas, no sentido de estarmos perante esquemas negociais que ocultam os verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum. Em segundo lugar, exige-se o objectivo único ou principal de através desses esquemas negociais obter uma vantagem fiscal, qualquer que seja a sua natureza, com a marginalização evidente de objectivos económicos reais. Em terceiro lugar, exige-se que da lei resulte com clareza a intenção de tributar os bens em causa, nos mesmos termos em que estes seriam tributados tivesse o contribuinte recorrido às formas jurídicas e práticas negociais mais comuns” (Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2018, pg. 374).
Resulta evidente da lei que o que se pretende não é anular o negócio, mas efectuar a tributação sem levar em linha de conta os efeitos fiscais da utilização de esquemas artificiosos ou fraudulentos que contribuíram para que houvesse uma erosão da base tributável. Em síntese, desqualifica-se o negócio jurídico realizado cujo propósito principal foi o de evitar ou diminuir a carga fiscal através de tais meios.
Por outro lado, e como se acentua no acórdão do TCA Sul de 15 de fevereiro de 2011, Processo nº 04225/10 e acórdãos proferidos nos processos arbitrais supra mencionados, a aplicação da cláusula antiabuso depende de uma apreciação casuística, havendo que ponderar a actuação concreta imputável ao sujeito passivo em função das circunstâncias de facto que possam ser dadas como assentes.
Ora, no entender do Tribunal a sucessão de actos, em particular a interposição da SGPS entre os accionistas comuns da A... SGPS e da B... SA, nos moldes em que foi feita, parece não deixar dúvidas de que foi realizada com preocupações manifestas de poupança fiscal, ou se se quiser, usando meios artificiosos e abuso das formas jurídicas de forma a atingir os propósitos mencionados. Desde logo, porque, a não haver a interposição da SGPS, os valores distribuídos pela B... aos sócios sê-lo-iam a título de dividendos e não de pagamento de dívidas, que, aliás, não existiam na esfera da B... para com os seus accionistas. Estas só surgem com a reavaliação dos ativos para efeitos da constituição da SGPS, estribadas, é certo e como é de lei, em relatório de ROC independente, mas curiosamente se bem que o relatório seja anterior ao da venda das participações na B... pelos sócios à SGPS, o valor considerado, mormente para a constituição da entrada do capital, foi o do valor nominal e não o do valor de mercado, e é somente este facto que fez nascer, como se realça a fls 12 do RIT, um enorme crédito dos accionistas da SGPS sobre esta, que foi pago no futuro mediante o já citado contrato de prestação de serviços da SGPS à B... .
Relembremos o que é dito a fls. do RIT:
Porque o capital social A... SGPS SA é constituído €50.000, dividido por 10.000 acções ordinárias com o valor nominal de €5,00 e, face à deliberação de que a realização do capital fosse feita mediante a entrada em espécie das 30.000 acções, representativas de 100% do capital social da B... SA, valorizadas em €15.272.000,00, reconhece-se a referida sociedade devedora para com os accionistas, do montante correspondente à diferença - €15.222.000,00.
O montante de que a sociedade se considera devedora, para com os accionistas, foi registado contabilisticamente, no balanço da sociedade, a crédito dos accionistas (…)
Tal “engenharia financeira” não foi posta em crise pela Requerente que procura demonstrar o racional de toda a operação com pretensas entradas de capital provenientes de entidades externas ou uma mais racional estratégia de gestão de participações sociais.
O que é facto é que os valores dos lucros distribuídos da B... só desta forma é que não pagaram impostos, mediante a criação de um pretenso crédito dos accionistas sobre a SGPS, criada nos moldes em que o foi , em que nem sequer as entradas em espécie(10.000 acções da B...) foram valoradas com base no valor que lhes foi atribuído pelo ROC independente e, além disso, não tendo sido dado cumprimento, como supra se referiu à deliberação inicial de que a entrada em espécie dos sócios na A... SGPS se faria com as 30.000 acções que constituíam 100% do capital social da B..., permitindo a sua alienação por parte dos sócios a valores resultantes da reavaliação, ficando os sócios, como reiteradamente temos dito, com um crédito sobre a SGPS de 15.222.000,00€ que só existiu pela sucessão de factos encadeados que se enunciaram.
Face ao que acabámos de expor, é convicção do Tribunal de que a aplicação da CGAA tem fundamento no caso em apreço, pelo que as retenções na fonte e demais juros compensatórios exigidos à Requerente se mostram devidos, mostrando-se improcedente o pedido de anulação do despacho de indeferimento do recurso hierárquico e dos actos de liquidação.
Sendo considerado improcedente o pedido efetuado pela Requerente, fica necessariamente prejudicado o pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
Dos vícios de que enfermam as liquidações de juros compensatórios
7. Analisaremos, ainda, um último ponto que tem a ver com uma pretensa ilegalidade autónoma na liquidação de juros compensatórios por parte da AT (artigos 189º a 220º do pedido de pronúncia arbitral).
A Requerente fá-lo com dois argumentos, a saber:
Primeiro, de que não foi ouvida previamente sobre a liquidação dos juros compensatórios que lhe foram liquidados, em ordem a pronunciar-se quanto aos mesmos, invocando os artigos 267º, nº 5, da CRP, 60º, nºs 1, alínea a) e e), da LGT e 45º do CPPT.
Segundo, invocando diversa jurisprudência, entende que a AT não fez prova de que houvesse culpa ou negligência do sujeito passivo que justificasse a aplicação dos juros compensatórios.
Do ponto de vista deste Tribunal não procedem os argumentos apresentados. Começando, desde logo, pelo segundo afigura-se-nos que se a liquidação do tributo resulta da aplicação, a nosso ver correcta, da CGAA, é óbvio que havendo lugar à desconsideração para efeitos fiscais da operação levada a cabo da constituição da SGPS como forma de transformar dividendos em dívida daquela para com os sócios, houve uma manifesta vontade de atingir a finalidade, qual fosse a de não haver tributação dos dividendos, no caso através de retenção na fonte por porte da SGPS. Donde resulta provado que a não liquidação de dividendos foi algo querido pelos sócios; considerando o Tribunal que estes eram devidos, há claramente um nexo de causalidade que justifica a liquidação dos juros compensatórios.
Quanto ao primeiro argumento da Requerente, também é entendimento do Tribunal que não assiste razão a esta. Efectivamente, os juros compensatórios são uma decorrência da lei (artigo 35º da LGT), sempre que o contribuinte, por motivos que lhe sejam imputáveis, retarde a liquidação do tributo, o que como acabámos de ver, foi o caso. De resto, a forma de os calcular ou a taxa a aplicar resultam de critérios definidos por lei e o artigo em apreço diz que os mesmos se integram na própria dívida de imposto (nº 8 do art.). Ora, o contribuinte tem todo o direito a participar na audiência relativamente a qualquer liquidação nova do tributo (o que, de resto, aconteceu), sendo certo que em relação aos juros compensatórios, os mesmos serão calculados a posteriori com parâmetros rigidamente determinados na lei e que, em qualquer caso, seriam sempre passíveis de ser sindicados, designadamente, na presente impugnação o que a Requerente manifestamente não fez, ou seja, tudo indica que acha que estão bem calculados, não invocando qualquer erro de facto no cálculo dos mesmos.
Face ao exposto, o Tribunal entende que não assiste razão à Requerente quanto aos pretensos vícios das liquidações de juros compensatórios, pelo que indefere o pedido nesse ponto.
III – Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar improcedente o pedido arbitral e manter a decisão de indeferimento do recurso hierárquico;
b) Julgar prejudicado o pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 192.664,71, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 3.672,00, que fica a cargo da Requerente.
Notifique.
Lisboa, 26 de Novembro de 2019.
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O Árbitro vogal
Augusto Vieira
O Árbitro vogal
Vasco Valdez