DECISÃO ARBITRAL
1. Relatório
A - Geral
1.1. A..., residente na Rua ..., n.º...–..., ...-... ..., contribuinte fiscal número ... (de ora em diante designado “Requerente”), apresentou no dia 04.03.2019 um pedido de constituição de tribunal arbitral singular em matéria tributária, que foi aceite, visando, por um lado, a declaração de ilegalidade do acto tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (de ora em diante “IRS”) com o número 2018..., relativo ao ano de 2017, como adiante melhor se verá e, por outro, o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios pelo pagamento indevido de prestação tributária.
1.2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (de ora em diante, “RJAT”), o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitro o signatário, não tendo as partes, depois de devidamente notificadas, manifestado oposição a essa designação.
1.3. Por despacho de 13.03.2019, a Administração Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada “Requerida”) procedeu à designação das Senhoras Dra. B... e Dra. C... para intervirem no presente processo arbitral, em nome e representação da Requerida.
1.4. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído a 16.05.2019.
1.5. No mesmo dia 16.05.2019 foi notificado o dirigente máximo dos serviços da Requerida para remeter ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo que pudesse existir e, querendo, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar produção de prova adicional.
1.6. No dia 11.06.2019 a Requerida apresentou a sua resposta e juntou o processo administrativo.
B – Posição do Requerente
1.7. O Requerente, no dia 06.07.1983, pelo equivalente a €498,00 (quatrocentos e noventa e oito euros), adquiriu 456/5103 avos de um prédio rústico, descrito sob o número..., a fls. 55v do livro B-47 da 1ª. Secção da Conservatória do Registo Predial de ... e inscrito na matriz cadastral da freguesia de ... sob o art.º ...-º, secção AK (de ora em diante, “Imóvel”).
1.8. Aquando da aquisição da referida quota-parte, o Imóvel era composto de pinhal e não se encontrava situado em zona urbanizada nem compreendido em plano de urbanização já aprovado.
1.9. No dia 03.03.1995, foi emitido pela Câmara Municipal de ... o alvará de loteamento n.º..., através do qual foi autorizada a constituição de 10 (dez) lotes no Imóvel.
1.10. No dia 11.06.1997, todos os proprietários do Imóvel procederam à sua divisão (divisão de coisa comum), tendo, a final, cabido ao Requerente o Lote identificado com o n.º 6, correspondente a um terreno para construção, com a área de 440,275m2, sito na Rua ..., ..., freguesia da ..., concelho de ..., inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ... da união das freguesias da ... e ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ... sob o número... da freguesia da ... (de ora em diante, “Prédio”).
1.11. Em virtude das suas circunstâncias pessoais, o Requerente não edificou no Prédio qualquer construção e alienou-o no dia 20.11.2017 pelo valor de € 47.000,00 (quarenta e sete mil euros).
1.12. As despesas efectuadas com as operações de loteamento ascenderam a mais de € 20.000,00 (vinte mil euros), embora o alvará quantifique apenas € 15.850,62 (quinze mil oitocentos e cinquenta euros e sessenta e dois cêntimos).
1.13. O Requerente, por ter dúvidas sobre a maneira correcta de declarar a alienação do Prédio e por ter obtido respostas discordantes aos pedidos de esclarecimento que procurou obter junto dos serviços de finanças, entendeu apresentar pedidos de informação vinculativa (a que couberam os números 12901, de 24.11.2017; 13211, de 31.01.2018; e 13313, de 14.02.2018) tendo todos eles merecido escusa de pronúncia.
1.14. O Requerente apresentou uma primeira declaração de rendimentos que deu origem ao acto de liquidação de IRS n.º 2018..., de 18.05.2018, que apresentava um valor a pagar de € 6.663,16 (seis mil seiscentos e sessenta e três euros e dezasseis cêntimos).
1.15. Apercebendo-se que havia um erro na declaração anteriormente apresentada, o Requerente apresentou uma declaração de substituição de deu origem ao acto de liquidação de IRS n.º 2018..., de 29.05.2018, que apresentava um valor a pagar de € 11.201,45 (onze mil duzentos e um euros e quarenta e cinco cêntimos).
1.16. Discordando dos actos de liquidação mencionados, o Requerente apresentou reclamação graciosa a 14.06.2018, que foi indeferida.
1.17. Do indeferimento da reclamação graciosa interpôs recurso hierárquico, tendo-lhe sido negado provimento por despacho de 28.11.2018.
1.18. Entende o Requerente que os ganhos que obteve com a venda do Prédio, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, não são sujeitos a tributação em sede de IRS.
1.19. Já os serviços da Requerida não foram dessa opinião. Primeiro, entenderam que os mencionados ganhos deviam ser tratados como mais-valias e incluídos no anexo G da declaração de rendimentos. Depois, concluíram que deviam antes ser integrados na categoria B, porque de natureza comercial e industrial.
1.20. Este errado entendimento levou a que a Requerida fixasse o rendimento tributável do requerente em € 38.126,91 (trinta e oito mil cento e vinte seis euros e noventa e um cêntimos), a ser declarado no campo 407 do anexo B da declaração de rendimentos, tendo o imposto liquidado sido de € 18.517,56 (dezoito mil quinhentos e dezassete euros e cinquenta e seis cêntimos).
1.21. O imposto liquidado, porém, deveria ter sido de apenas € 3.980,21 (três mil novecentos e oitenta euros e vinte e um cêntimos), caso tivesse sido considerado, como se impunha, que tais ganhos não são sujeitos a IRS.
1.22. Recorda o Requerente que as mais-valias são ganhos de carácter ocasional ou fortuito e que não decorrem de uma actividade do sujeito passivo especificamente destinada à sua obtenção, esclarecendo que não exerce nem nunca exerceu actividade ligada à urbanização ou exploração de loteamentos.
1.23. Assim, a declaração oficiosa n.º ... e o acto de liquidação que com base nela foi praticado são ilegais, devendo o montante indevidamente pago ser reembolsado, acrescido dos juros que se mostrarem devidos.
C – Posição da Requerida
1.24. Entende a Requerida que relativamente ao Imóvel há elementos indicadores de que ele seria afecto à construção, não sendo necessários que os ditos terrenos para construção se situem em zonas urbanizadas ou compreendidas em planos de urbanização já aprovados, podendo essa característica emanar de outros elementos que a revelem.
1.25. O Imóvel integrava à data da aquisição a área de génese ilegal (AUGI) do concelho de ..., tendo sido essa a razão pela qual, a 03.03.1995 foi emitido pela Câmara Municipal de ... o alvará de loteamento n.º... .
1.26. O Imóvel tinha sido sujeito a operações físicas de parcelamento destinadas à construção até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 400/84, de 31 de Dezembro.
1.27. O alvará de loteamento n.º ... refere que foi emitido de harmonia com o Decreto-Lei nº 400/84, de 31 de Dezembro, o qual alterou o Decreto-Lei nº 289/73, de 6 de Junho, o que indicia que, não obstante o alvará de loteamento ter sido emitido em 1995, o Imóvel já havia sido sujeito a operações físicas de parcelamento, com a evidente finalidade de se transformar em terreno urbano antes da entrada em vigor do Código do IRS.
1.28. Acresce que o ponto n.º 7 do alvará de loteamento supra identificado, estipula que será devida a mais-valia prevista no Decreto-Lei nº 46 950 de 9 de Abril de 1966.
1.29. O bem jurídico vendido em 2017 não é, portanto, o mesmo que foi adquirido antes da entrada em vigor do Código do IRS, pelo que não se encontra abrangido pela norma de não sujeição do art.º 5.º, nº 1 do Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Janeiro, razão por que os ganhos resultantes da alienação do Prédio devem ser tributados em sede de IRS.
1.30. Consideram-se mais-valias quaisquer valorizações ocorridas em bens ou direitos, alheios à actividade ou vontade da entidade em cujo património tal valorização se irá repercutir. Ora, no caso vertente, houve uma actividade do Requerente desenvolvida com o fim da obtenção de ganhos ou lucros: a operação de loteamento.
1.31. Assim, os ganhos decorrentes da alienação de um prédio que foi objecto de uma operação de loteamento são rendimentos da categoria B (rendimentos empresariais e profissionais), porquanto são rendimentos resultantes da actividade, habitual ou esporádica, que visa a obtenção do lucro, através da revenda ou transformação de bens.
1.32. Uma vez que, à data dos factos, a Requerida fez a aplicação da lei nos termos em que como órgão executivo está adstrita constitucionalmente, não se pode falar em erro dos serviços nos termos do disposto no artigo 43.º da Lei Geral Tributária (de ora em diante, “LGT”), pelo que não são devidos juros indemnizatórios.
D – Conclusão do Relatório e Saneamento
1.33. Por despacho de 29.10.2019 o Tribunal Arbitral dispensou a reunião prevista no art.º 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), por entender que as Partes haviam já carreado para o processo os elementos de facto necessários e suficientes para a prolação da decisão, que se previu pudesse ter lugar até ao dia 16.11.2019, tendo sido as partes convidadas a apresentar, querendo, as suas alegações, o que ambas fizeram sem alterar minimamente as posições assumidas nos articulados por cada uma anteriormente apresentados.
1.34. O tribunal arbitral é materialmente competente, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT.
1.35. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade nos termos do art.º 4.º e do n.º 2 do art.º 10.º do RJAT, e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, não padecendo o processo de qualquer nulidade.
1.36. A cumulação de pedidos efectuada no presente pedido de pronúncia arbitral, em homenagem ao princípio da economia processual, justifica-se uma vez que o art.º 3.º do RJAT, ao admitir expressamente a possibilidade de “cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos”, acomoda, sem abuso hermenêutico, a apreciação de um pedido que decorre, em termos necessários, do juízo que o tribunal arbitral sufrague quanto à validade da liquidação mediatamente posta em crise.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
2.1.1. O Requerente, no dia 06.07.1983, pelo equivalente a €498,00 (quatrocentos e noventa e oito euros), adquiriu 456/5103 avos de um prédio rústico, descrito sob o número..., a fls. 55v do livro B-47 da ... Secção da Conservatória do Registo Predial de ... a, inscrito na matriz cadastral da freguesia de ... sob o art.º 165-º, secção AK – Cfr. docs. 1 e 2, juntos com o pedido de pronúncia arbitral.
2.1.2. Aquando da aquisição da referida quota-parte, o Imóvel era composto de pinhal e não se encontrava situado em zona urbanizada nem compreendido em plano de urbanização já aprovado, nem do título aquisitivo consta ser o Imóvel um terreno para construção – Cfr. docs. 1 e 3, juntos com o pedido de pronúncia arbitral.
2.1.3. No dia 03.03.1995, foi emitido pela Câmara Municipal de ... o alvará de loteamento n.º..., através do qual foi autorizada a constituição de 10 (dez) lotes no imóvel referido em 2.1.1. – Cfr. docs. 3 e 4, juntos com o pedido de pronúncia arbitral.
2.1.4. No dia 11.06.1997, todos os proprietários do Imóvel procederam à sua divisão, tendo, a final, cabido ao Requerente o Lote identificado com o n.º 6, correspondente a um terreno para construção, com a área de 440,275m2, sito na Rua ..., freguesia da..., concelho de..., inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ... da união das freguesias da ... e ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ... da freguesia da ...– Cfr. docs. 3 e 5, juntos com o pedido de pronúncia arbitral.
2.1.5. O Requerente alienou o Prédio referido no ponto anterior no dia 20.11.2017 pelo valor de € 47.000,00 (quarenta e sete mil euros) – Cfr. docs. 3 e 6, juntos com o pedido de pronúncia arbitral.
2.1.6. Até à sua alienação, o Requerente não edificou no Prédio qualquer construção – Consenso das Partes.
2.1.7. O Requerente apresentou uma primeira declaração de rendimentos que deu origem ao acto de liquidação de IRS n.º 2018..., de 18.05.2018, que apresentava um valor a pagar de € 6.663,16 (seis mil seiscentos e sessenta e três euros e dezasseis cêntimos) – Cfr. doc. 8, junto com o pedido de pronúncia arbitral.
2.1.8. O Requerente apresentou uma declaração de substituição da anteriormente apresentada e que deu origem ao acto de liquidação de IRS n.º 2018..., de 29.05.2018, que apresentava um valor a pagar de € 11.201,45 (onze mil duzentos e um euros e quarenta e cinco cêntimos) – Cfr. doc. 9, junto com o pedido de pronúncia arbitral.
2.1.9. O Requerente apresentou, no dia 14.06.2018, reclamação graciosa do acto de liquidação de IRS n.º 2018..., de 29.05.2018, que veio a ser indeferida – Cfr. págs. 1 a 44 e 48/61 do Processo Administrativo, junto aos autos com a apresentação da Resposta.
2.1.10. O Requerente apresentou, no dia 31.08.2018, recurso hierárquico do despacho de indeferimento da reclamação graciosa que, por seu turno, foi também indeferido – Cfr. págs. 1 a 18/18 do Processo Administrativo, junto aos autos com a apresentação da Resposta e doc. 11, junto com o pedido de pronúncia arbitral.
2.1.11. A Requerida, pela declaração oficiosa n.º..., fez declarar o valor de € 38.126,91 (trinta e oito mil cento e vinte seis euros e noventa e um cêntimos) a título de saldo positivo das mais e menos-valias e restantes incrementos patrimoniais no anexo B da declaração, considerando esses ganhos como provenientes de actividades comerciais e industriais, aplicando os artigos 3.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 al. h), 4.º, n.º 1, al. g), 10.º, n.º 1, al. a) e 331.º, n.º 1 al. d) – Cfr. doc. 10, junto com o pedido de pronúncia arbitral.
2.1.12. O Requerente procedeu ao pagamento da prestação tributária que lhe foi exigido pela liquidação n.º 2018..., de 10.11.2018, no montante de € 18.517,56 (dezoito mil quinhentos e dezassete euros e cinquenta e seis cêntimos) – Cfr. doc. 10, junto com o pedido de pronúncia arbitral e consenso das Partes.
2.2. Factos não provados
Não ficou demonstrado que o Imóvel tenha sido sujeito a operações físicas de parcelamento destinadas à construção, antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Outubro. Para além deste, não há mais factos relevantes para a apreciação do mérito da causa que hajam sido dados como não provados.
2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos aos autos pelas Partes e nas posições por elas assumidas nos articulados apresentados.
3. Matéria de direito
3.1. Questões a decidir
Resulta do que acima se deixou dito que as questões a apreciar são, no fundo, as seguintes:
a) A de saber se os ganhos decorrentes da alienação, ocorrida a 20.11.2017, de um lote para construção urbana, se encontram ou não sujeitos a IRS, tendo em conta que o referido lote foi adquirido a 06.07.1983 como prédio rústico e loteado por alvará da Câmara Municipal de ... por alvará de 03.03.1995;
b) Em caso afirmativo, a de dilucidar se esses ganhos devem ser enquadrados na categoria B ou na categoria G do IRS;
c) Por fim, a de esclarecer se, caso se julgue procedente o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação oficiosa promovida pela Requerida e ora mediatamente contestada, o Requerente, no âmbito do presente processo arbitral poderá obter a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios relativamente à quantia por si entregue para satisfação da prestação tributária por esta ilegalmente exigida.
3.2. O regime transitório do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro – sua aplicabilidade ao caso sub judice
No âmbito das mais-valias em sede de IRS há que atender ao regime transitório previsto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro (de ora em diante, “Regime Transitório”), que dispõe o seguinte:
“1 - Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46373, de 9 de Junho de 1965, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos de cuja transmissão provêm se houver efectuado depois da entrada em vigor deste Código [ou seja, 01.01.1989]
2 - Cabe ao contribuinte a prova de que os bens ou valores foram adquiridos em data anterior à entrada em vigor deste Código, devendo a mesma ser efectuada, quanto aos valores mobiliários, mediante registo nos termos legalmente previstos, depósito em instituição financeira ou outra prova documental adequada e através de qualquer meio de prova legalmente aceite nos restantes casos.”
O mencionado Regime Transitório remete, como se pode ler, para o Código do Imposto de Mais-Valias (de ora em diante, “CIMV”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 373, de 9 de Junho de 1965, que determinará, ao cabo e ao resto, quais os ganhos que, no âmbito desse diploma, não eram sujeitos ao dito imposto de mais-valias e que, consequentemente, são passíveis de beneficiar do regime transitório de não sujeição ao IRS.
A abrir o Código, o capítulo I, com a epígrafe “da incidência”, dispunha no seu artigo 1.º o seguinte:
“O imposto de mais-valias incide sobre os ganhos realizados através dos actos que a seguir se enumeram:
1.º Transmissão onerosa de terreno para construção, qualquer que seja o título por que se opere, quando dela resultem ganhos não sujeitos aos encargos de mais-valia previstos no artigo 17.º da Lei n.º 2030, de 22 de Junho de 1948, ou no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 41 616, de 10 de Maio de 1958, e que não tenham a natureza de rendimentos tributáveis em contribuição industrial.”
Por sua vez, o parágrafo 2.º desse art.º 1.º do CIMV lia-se assim:
“São havidos como terrenos para construção os situados em zonas urbanizadas ou compreendidos em planos de urbanização já aprovados e os assim declarados no título aquisitivo.”
Consequentemente, só os ganhos derivados da alienação onerosa de terrenos para construção preenchiam a previsão da norma de incidência tributária do imposto de mais-valias. E, nos termos do Regime Transitório, os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos de cuja transmissão provêm se houver efectuado depois 01.01.1989. A contrario, se os ganhos eram sujeitos ao imposto de mais-valias, continuam a sê-lo no âmbito do IRS.
Importa, pois, saber se o Imóvel era, ou não, um terreno para construção, nos termos e para os efeitos do disposto no CIMV. E parece indisputado que o momento temporal relevante para aferir se um determinado prédio é, ou não, um terreno para construção, só pode ser o da entrada em vigor do CIRS . Não há dúvida de que o Prédio, aquando da sua alienação em 2017, é um terreno para construção. E é-o, indisputavelmente, desde a emissão do alvará de loteamento, em 1995. Mas sê-lo-ia já no dia 01.01.1989, à luz do que dispunha a este respeito o CIMV?
A noção de terreno para construção para efeitos de tributação em sede de imposto de mais-valias era oferecida pelo próprio CIMV. Assim, para aqueles efeitos, eram terrenos para construção os situados em zonas urbanizadas ou compreendidos em planos de urbanização já aprovados e os assim declarados no título aquisitivo.
Esta noção de terrenos para construção distingue a destinação objectiva – os situados em zonas urbanizadas ou compreendidos em planos de urbanização já aprovados – da destinação subjectiva – os assim declarados no título aquisitivo .
Ora, lê-se na escritura pública de compra e venda pela qual o Requerente adquiriu uma quota de 465/5103 avos do Imóvel, outorgada em 1983, que “o identificado prédio não se encontra situado em zona urbanizada nem compreendido em plano de urbanização já aprovado”. Portanto, no título aquisitivo fica claro que o Imóvel não é um terreno para construção , ficando ainda demonstrado que as partes não pretenderam declará-lo como tal. Na certidão do registo predial lê-se, aliás, que era um prédio rústico e na certidão emitida pela 3.ª repartição de finanças de ... junta aos autos diz-se que o prédio é composto de pinhal.
Como bem sublinha o Supremo Tribunal Administrativo , tanto a destinação objectiva como a subjectiva têm natureza ilidível, pelo que deve ceder quando confrontada com elementos que a contrariem. Os índices de qualificação referidos no preceito legal (destinação objectiva ou subjectiva) constituem mera presunção iuris tantum, pelo que se o sujeito passivo provar que, pese embora esses índices de qualificação, o terreno efectivamente não pode ser sujeito à destinada construção urbana, designadamente pela impossibilidade de nele se construir, essa presunção legal tem de ceder. Por outras palavras, a declaração do título aquisitivo é, em princípio, suficiente para qualificar um prédio como terreno para construção, o que não impede o sujeito passivo de ilidir essa presunção legal de destinação específica à construção urbana, isto é, de provar a insusceptibilidade de o terreno poder ser efectivamente destinado à construção urbana que é o pressuposto do facto tributário.
De uma outra perspectiva, num ângulo simétrico, também pode sustentar-se que devem revestir natureza de terrenos para construção todos aqueles que se apresentem objectivamente afectos a esse fim, sendo que os indicativos concretos e explícitos constantes do artigo 6.º, nº 3 do Código da Contribuição Autárquica, actualmente o artigo 6.º, n.º 3 do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, mais não são do que indicadores facultados pelo legislador apenas com o propósito de facilitar, nas circunstâncias aí referidas, a determinação da incidência. É claro que estes códigos não existiam antes da entrada em vigor do CIRS, pelo que não podem ser convocados para os fins assinalados. Antes deles, durante a vigência do CIMV, constatava-se não haver uniformidade na classificação dos terrenos para construção, tanto para efeitos de sisa e de imposto sobre sucessões e doações como de imposto de mais-valias. Por isso, foi sancionado o entendimento de que o critério definidor do conceito era o critério objectivo e restrito às hipóteses previstas nas normas legais, devendo, portanto, considerar-se terrenos para construção apenas os situados em zonas urbanizadas ou compreendidos em planos de urbanização já aprovados e os assim declarados no título aquisitivo . Contudo, mesmo admitindo a citada abertura conceitual, nunca se desvinculará esse juízo de factores objectivos que indubitavelmente mostrem a vocação construtiva dos imóveis em causa.
Sucede que dos elementos constantes dos autos não resulta que o Imóvel era, à data da entrada em vigor do CIRS, terreno para construção para efeitos do previsto no CIMV, nem sequer demonstrado fica que o Imóvel foi sujeito a operações físicas de parcelamento destinadas à construção , sendo certo que o ónus dessa demonstração caberia à Requerida, pelo que falha o pressuposto de que dependeria a tributação dos ganhos percebidos pelo Requerente com a sua alienação em 2017 em sede de IRS . O que é decisivo para a questão da tributação em IRS, sublinhe-se, é a natureza que o bem tinha no momento da entrada em vigor do CIRS. Ora, o Imóvel era um prédio rústico na data da respectiva aquisição pelo Requerente e manteve essa mesma qualidade até à data da entrada em vigor do CIRS . A alteração deu-se já em 1995, com o loteamento, em plena vigência do CIRS.
Também não se vê que possa sustentar o entendimento da Requerida a referência ao ponto n.º 7 do alvará de loteamento. Nele lê-se que “será devida a Mais Valia, prevista nos termos do Decreto-Lei 46950 de 09.04.66”. Este diploma sujeita a um encargo de mais-valia os prédios rústicos sitos na margem sul do Tejo que, por virtude da execução da ponte entre Lisboa e Almada, aumentem de valor pela possibilidade da sua utilização como terrenos de construção urbana e os prédios rústicos e os terrenos de construção definidos no artigo 11.º, n.º 2, da Lei n.º 2030 e no artigo 44.º do Decreto n.º 43587, também situados na margem sul do Tejo. Ora, como é bom de ver, não é este encargo de mais-valia que releva para efeitos da aplicação do Regime Transitório , uma vez que este não alude a quaisquer encargos relativos a mais-valias, mas ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46373, de 9 de Junho de 1965.
Em vista de tudo quanto antecede, entende este tribunal arbitral que os ganhos auferidos pelo Requerente com a alienação do Prédio em 2017 não se encontram sujeitos a IRS, por aplicação do regime transitório do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88 de 30 de Novembro. Assim, fica prejudicada, por processualmente inútil, a análise da questão relativa ao enquadramento, se na categoria B ou na categoria G do IRS, dos ganhos em questão.
3.3. Dos juros indemnizatórios
A alínea b) do n.º 1 do art.º 24.º do RJAT dispõe que “a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, o que está de harmonia com o previsto no art.º 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 29.º do RJAT.
Não se ignora que a autorização legislativa concedida ao Governo pelo art.º 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, na base da qual foi aprovado o RJAT, determina que o processo arbitral tributário constitua um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária. Ainda que as alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT fundem a competência dos tribunais arbitrais em “declarações de ilegalidade”, parece razoável o entendimento segundo o qual se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo certo que nos processos de impugnação judicial, para além da anulação de actos tributários, podem ser apreciados pedidos de indemnização, desde logo relativos a juros indemnizatórios.
Com efeito, o princípio da cognoscibilidade dos pedidos de indemnização, em reclamação graciosa ou em processo judicial, justifica-se sempre que o dano que se pretende ver ressarcido resulte de facto imputável à Administração Tributária e Aduaneira. Aliás, nos termos do n.º 5 do art.º 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” (CPPT), o que remete para as manifestações desse princípio que encontramos no n.º 1 do art.º 43.º da LGT e no art.º 61.º do CPPT.
Assim, justifica-se a apreciação do pedido de pagamento de juros indemnizatórios feito pelo Requerente.
São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, ter havido erro imputável aos serviços do qual resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
Considera-se erro imputável aos serviços aquele que não for imputável ao contribuinte e assentar em errados pressupostos de facto que não sejam da responsabilidade do contribuinte. Ora, aquando da prática do acto de liquidação controvertido, a administração tributária e aduaneira conhecia ou não podia ignorar que os ganhos auferidos pelo Requerente decorrentes da alienação do Prédio em causa no ano de 2017, não se mostravam sujeitos a IRS em virtude do regime transitório do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88 de 30 de Novembro. Portanto, não há dúvida ter havido, para estes efeitos, erro imputável aos serviços.
Como o Requerente pagou a prestação tributária que pela liquidação reclamada e ora anulada lhe foi, por erro imputável aos serviços, exigido, tem ele direito não apenas ao reembolso do que pagou indevidamente, mas ainda a perceber juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento até ao seu integral reembolso.
4. Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, o tribunal arbitral decide:
a) Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando o consequentemente o acto de liquidação de IRS referente a 2017 com o n.º 2018..., de 10.11.2018, no montante de € 18.517,56 (dezoito mil quinhentos e dezassete euros e cinquenta e seis cêntimos), fazendo-o substituir por outro que não sujeite a tributação os ganhos auferidos pelo Requerente decorrentes da alienação do Prédio em virtude da aplicação do regime transitório do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88 de 30 de Novembro;
b) Condenar a Requerida a reembolsar o Requerente do que este pagou em excesso e, bem assim, a pagar-lhe juros indemnizatórios nos termos legais, desde a data do pagamento da quantia indevidamente exigida, até à data de integral reembolso; e
c) Condenar a Requerida nas custas do presente processo.
5. Valor do processo
Por despacho arbitral de 14.11.2019 fixou-se ao processo o valor de € 14.537,35 (catorze mil quinhentos e trinta e sete euros e trinta e cinco cêntimos).
6. Custas
Para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 12 e no n.º 4 do art.º 22.º do RJAT e do n.º 4 do art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 918,00 (novecentos e dezoito euros), nos termos da Tabela I anexa ao dito Regulamento, a suportar integralmente pela Requerida.
Lisboa, 16 de Novembro de 2019
O Árbitro
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(Nuno Pombo)
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do art.º 131.º do CPC, aplicável por remissão da al. e) do n.º 1 do art.º 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro e com a grafia anterior ao dito Acordo Ortográfico de 1990.