DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
Os árbitros designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 9 de abril de 2019, Dr. José Poças Falcão (árbitro-Presidente), Dra. Adelaide Moura e Dr. José Nunes Barata (árbitros vogais), acordam o seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., Lda, NIPC ..., adiante designada por Requerente, com sede na Rua ..., n.º..., ...-... ..., requereu a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo, nos termos conjugados do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º e seguintes, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com as alterações subsequentes, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
A Requerente pretende o seguinte:
a) A anulação do ato tributário de autoliquidação de Imposto do Selo (IS), identificado pela guia de retenção na fonte nº..., de 20.02.2018, do qual resultou um valor a pagar de € 41.944,18, referente a IS da Verba 17.1.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS) (“Operações Financeiras”), e relativa ao período de janeiro de 2018;
b) A anulação do ato tributário de autoliquidação de IS, identificado pela guia de retenção n.º..., do qual resultou um valor a pagar de € 35.528,45, referente também a IS da Verba 17.1.4 da TGIS (“Operações Financeiras”), e relativa ao período de fevereiro de 2018;
c) A anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada sob o nº ...2018..., em 12.06.2018; e
d) A condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) no pagamento de juros indemnizatórios.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos:
Na sequência de uma ação inspetiva desencadeada pelos Serviços de Inspeção Tributária para os períodos de tributação de 2014 e de 2015 resultaram correções em sede de IS, tendo sido emitidas as respetivas liquidações adicionais. Segundo a AT a Requerente não liquidou, para os períodos de tributação de 2014 e 2015, bem como não entregou o IS devido pela aplicação da Verba 17.1.4 da TGIS a operações financeiras realizadas com base num contrato de cash pooling da qual a Requerente é parte, além de outras empresas.
No entanto, em janeiro e fevereiro de 2018, receando que a AT pudesse de novo proceder a correções, mas sem prejuízo de contestação posterior, a Requerente procedeu à autoliquidação do imposto do Selo no montante total de € 77.472,63 (€ 41.944,18 + € 35.528,45), por aplicação da taxa prevista na Verba 17.1.4 da TGIS e referente aos saldos médios mensais dos depósitos resultantes de excedentes de tesouraria apurados no âmbito do referido contrato de cash pooling,
Portanto, as liquidações, em causa na presente ação arbitral, resultaram da autoliquidação de IS, por referência a janeiro e a fevereiro de 2018, por aplicação da taxa de 0,04% prevista na Verba 17.1.4 da TGIS a "crédito utilizado sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer outra forma em que o prazo de utilização não será determinado ou determinável, sobre a média mensal obtida através da soma dos saldos em dívida apurados diariamente (..)".
Considera a Requerente que os atos tributários impugnados se afiguram ilegais por violação das normas de incidência do Código do IS (CIS).
E também por violação dos princípios da não discriminação e da liberdade de circulação de capitais, estabelecido nos artigos 18º, 63º e 65º, nº 3 do Tratado de Funcionamento da União Europeia (doravante, “TFUE”), aplicáveis por força do disposto no artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa (doravante, “CRP”).
Com efeito, entende a Requerente que as operações financeiras em causa não são tributáveis em sede de IS porque:
• São operações financeiras localizadas fora de Portugal;
• Não se verifica a utilização de crédito;
• Estão cumpridos os pressupostos da isenção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS;
• Sujeitar as operações a IS seria uma violação dos princípios do Direito da União Europeia - da não discriminação e da liberdade de circulação de capitais.
Portanto, alega a Requerente que as operações financeiras em causa não se encontram localizadas em Portugal para efeitos de IS e que os atos tributários impugnados se afiguram ilegais, por violação das normas de incidência do CIS e, ainda, por violação dos princípios da não discriminação e da liberdade de circulação de capitais, estabelecidos nos artigos 18.º, 63.º e 65.º, n.º 3 do Tratado de Funcionamento da União Europeia (doravante, “TFUE”), aplicáveis por força do disposto no artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa (doravante, “CRP”).
Por seu turno, considera a AT que as operações financeiras em análise se encontram sujeitas e não isentas de Imposto do Selo, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 1° e no nº 1 do artigo 4º, ambos do CIS, na medida em que se consubstanciam em concessões de crédito sob a forma de conta corrente, efetuadas pela Requerente no âmbito do referido acordo de cash pooling.
A AT entende também que no caso dos autos estamos perante a modalidade de “cash pooling concentration” ou “zero balancing”, sendo aplicável a Verba 17.1.4 da TGIS, na medida em que do acordo resulta um crédito utilizado sob a forma de conta corrente em que o prazo de utilização não se encontra determinado, nem é determinável.
2. Em 31 de janeiro de 2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerente e à entidade Requerida.
3. Nos termos do disposto nos artigos 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, notificando-se as partes dessa designação em 20 de março de 2019.
4. O Tribunal Arbitral Coletivo ficou regularmente constituído em 9 de abril de 2019.
5. A Requerida, notificada em 15 de abril de 2019 ao abrigo do n.º 1 do artigo 17.º do RJAT, veio apresentar a sua Resposta em 22 de maio de 2019.
6. Em 24 de junho de 2019 o Tribunal Arbitral emitiu despacho a dispensar a reunião do Tribunal com as partes (artigo 18º, do RJAT) e a inquirição de testemunhas [Cfr artigos 16º-c), do RJAT e 130º, do CPC, aplicável ex vi artigo 29º-1/e), do RJAT], bem como convidando ambas as partes para apresentarem, no prazo simultâneo de 20 (vinte) dias, alegações escritas, de facto (factos essenciais que consideram provados e não provados) e de direito.
7. Nem a Requerente nem a Requerida alegaram.
II. FUNDAMENTAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
8. Factos provados
Estão provados os seguintes factos:
a) A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de produção e comercialização de capas, espumas, estofos e estruturas metálicas para assentos de automóveis (C.A.E. 29320 – R3).
b) O capital social da Requerente; à data dos factos em análise, era detido pelas sociedades do mesmo Grupo de empresas, B..., S.A., e C..., S.A., ambas com sede em França.
c) Em 23.02.2000, foi celebrada a denominada “Convention ...” entre a sociedade C... e as entidades aderentes do grupo, a qual se destinava a pôr em prática um acordo de cash pooling, destinado a assegurar a gestão de tesouraria das diferentes entidades do Grupo A... localizadas em diferentes jurisdições (Doc 3, com a PI).
d) Mais tarde, em 08.06.2009, a sociedade C... sentiu necessidade de otimizar este acordo de cash pooling, tendo, para o efeito, celebrado com a instituição financeira de direito francês, D... S.A., o denominado “D...” (cfr. Doc 5, com a PI).
e) Este acordo visou contratualizar a prestação, pelo D..., de um serviço de centralização da gestão de tesouraria do Grupo que procurava nivelar os saldos das diferentes contas (classificadas como principal, secundárias ou intermediárias).
f) A Requerente aderiu a este acordo de cash pooling do Grupo em 20.07.2010 através do “Bulletin d’Adhèsion” (cfr. Doc n.º 4, com a PI).
g) Em 30.12.2010, a Requerente, a C... e a B... celebram um contrato de cessão de posição contratual/cedência de crédito...
h) ...nos termos do qual a B... e a Requerente assinaram um novo contrato de empréstimo com efeitos a 01.01.2011, no qual a segunda figura como mutuante e a primeira como mutuária (Doc 6, com a PI).
i) A C... transferiu para a B... os direitos e obrigações resultantes da citada “Convention d’...”.
j) A Requerente e a B... concluíram, em 01.01.2011, um contrato de crédito pelo qual a primeira concede um empréstimo à segunda na modalidade de crédito rotativo de um ano, no montante máximo de € 65.000.000,00, tendo, ademais, sido acordado o pagamento de juros, à taxa média da Euribor a 1 mês, arredondada para 1/16 de 1% adicionada de uma margem de 0,5% ao ano, calculados no fim de cada mês com base na utilização mensal de crédito (Cf Doc 7, com a PI).
k) Este contrato foi objeto de várias alterações posteriores, em particular:
Em 01.01.2013, a “Amendment 2 to the loan agreement dated as of January 1st 2011” (Doc 8 com a PI);
Em 03.12.2013, a “Amendment 3 to the loan agreement dated as of January 1st 2011”, que alterou o montante máximo do empréstimo de € 65.000.000,00 para € 100.000.000,00 (Doc 9, com a PI);
Em 01.10.2014, a “Amendment 4 to the loan agreement dated as of January 1st 2011”, que alterou o montante máximo do empréstimo de € 100.000.000,00 para € 200.000.000,00 (Cf Doc 10, com a PI) e
Em 31.12.2014, a “Amendment 5 to the loan agreement dated as of January 1st 2011”, que alargou o período do contrato de 01.01.2015 para 01.01.2017 (Cf Doc 11, com a PI).
l) De forma a concretizar a adesão da Requerente ao contrato de cash pooling do Grupo, foi ainda necessário introduzir alterações ao “D...”, através dos seguintes documentos:
• “Appendix 2 – Participation form to the D... Cash Concentration Agreement”, celebrado em 15.05.2012, segundo o qual a Requerente foi incluída no acordo celebrado com o D... (Cf Doc 12, com a PI);
• “Appendix 1 – Automated Centralization of Cash Management per hierarchy”, celebrado em 23.05.2012 (cf Doc 13, com a PI); e
• Mais tarde, em 12.09.2014, o “Appendix 1.1. – Description of the Hierarchy” (cfr. Anexo XI do Relatório de Inspecção), no qual é identificada a Master Account no contrato de cash pooling (localizada em França), bem como as Intermediate Accounts, entre elas a da aqui Requerente (localizada em Portugal).
m) A Requerente foi objeto de duas ações inspetivas desencadeada pelos Serviços de Inspeção Tributária para os períodos de tributação de 2014 e de 2015 da qual resultaram correções em sede de imposto do selo.
n) Segundo a AT a Requerente não liquidou, para os períodos de tributação de 2014 e 2015, bem como não entregou o IS devido pela aplicação da Verba 17.4.1 da TGIS a operações financeiras realizadas com base no citado contrato de cash pooling da qual a Requerente é parte, além de outras empresas.
o) Para evitar outras ações inspetivas, em janeiro e fevereiro de 2018, a Requerente procedeu à autoliquidação do imposto do Selo no montante total de € 77.472,63 (€ 41.944,18 + € 35.528,45), por aplicação da taxa prevista na Verba 17.1.4 da TGIS e referente aos saldos médios mensais dos depósitos resultantes de excedentes de tesouraria apurados no âmbito do referido contrato de cash pooling,
p) A Requerente apresentou Reclamação Graciosa que foi indeferida por despacho comunicado por ofício de 29.10.2018 (Cf PA).
q) Do relatório apresentado pela Inspeção Tributária relativo às ações inspetivas referidas supra, em c), consta o seguinte:
r)
9. Factos não provados
Com relevo para a decisão não existem outros factos que devam considerar-se não provados.
10. Motivação
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição, os anteriormente citados e outros, todos não impugnados, incluindo a cópia do processo administrativo instrutor junta pela Autoridade Tributária e Aduaneira em execução do disposto no artigo 17º-2, do RJAT, analisado este no sentido de que, nos termos do art.º 76º/1, da LGT, as informações prestadas pela inspeção tributária fazem fé, quando fundamentadas, não forem impugnadas e se basearem em critérios objetivos.
Do enunciado legal (artigo 76º-1, da LGT) retira-se, pelo menos, uma inequívoca presunção legal .
II Saneamento
O Tribunal é competente.
O processo é o próprio.
As partes são legítimas e têm personalidade e capacidade judiciárias.
Não há exceções ou questões prévias a apreciar.
III. FUNDAMENTAÇÃO (cont)
11. O DIREITO
Thema decidendum
Suscita-se nestes autos a questão da aplicação ou não da taxa prevista na Verba 17.1.4, da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS) aos saldos médios mensais dos depósitos resultantes de excedentes de tesouraria apurados no âmbito de um contrato denominado de cash pooling celebrado em 8-6-2009 entre a sociedade C... e o Banco D..., SA, a que aderiu a Requerente em 20-7-2010, na sequência do qual a Requerente e as sociedades C..., SA e B..., SA, celebraram contrato de cedência de crédito que a final permitiam a cada uma das empresas do Grupo A... ver colmatadas as necessidades de tesouraria por via dos excedentes gerados também pelas diferentes entidades daquele Grupo de empresas, sendo gestora desses fluxos monetários a empresa B..., SA.
Mais concretamente: o thema decidendum gira em torno da decisão de indeferimento proferida pela AT relativamente à reclamação graciosa nº ... apresentada pela Requerente tendo por objeto as guias de retenção na fonte de imposto de selo [verba 17.1.4, da TGIS], nºs ... (€41.944,18) e ... (€35.528,45), correspondentes ao ano de 2018 (janeiro e fevereiro), decisão que deu origem às liquidações objeto do presente pedido de pronúncia arbitral de anulação desses atos por alegada ilegalidade dos mesmos.
Entende a Requerente, por um lado, que as operações financeiras que constituem fundamento das sobreditas liquidações (i) são localizadas fora de Portugal, (ii) não se verifica a utilização de crédito, (iii) que tais operações preenchem os requisitos de isenção de imposto do selo prevista na alínea g), do nº 1, do artigo 7º, do Código do Imposto do Selo e que (iv) sujeitar essas operações constitui violação dos princípios, da não discriminação e da liberdade de circulação de capitais, do Direito da União Europeia.
Vejamos então.
A incidência subjetiva do imposto do selo está prevista no artigo 2º, do CIS, disposição donde resulta que, relativamente às operações financeiras, maxime, às operações de tesouraria que envolvam financiamento ao cessionário, aderente ou devedor, é sujeito passivo do imposto, o mutuário ou quem beneficia do crédito – cfr citado artigo 2º-1/d), do CIS.
E, à luz do disposto no artigo 4º, do CIS, só estão sujeitas a imposto do selo os atos e factos previstos na TGIS ocorridos em território nacional, ressalvadas as situações assinaladas pelo CIS e pela TGIS.
Do disposto em 17.1 e 17.4, da TGIS, na redação introduzida pela Lei n.º 12-A/2010 de 30 de Junho, extrai-se que “(...) pela utilização de crédito, sob a forma de fundos, mercadorias e outros valores, em virtude da concessão de crédito a qualquer título excepto nos casos referidos na verba 17.2, incluindo a cessão de créditos, o factoring e as operações de tesouraria quando envolvam qualquer tipo de financiamento ao cessionário, aderente ou devedor, considerando-se, sempre, como nova concessão de crédito a prorrogação do prazo do contrato (...)”, se aplica, “(...)sobre o respetivo valor, em função do prazo (...), pelo crédito utilizado sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer outra forma em que o prazo de utilização não seja determinado ou determinável, sobre a média mensal obtida através da soma dos saldos em dívida apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30 (...)”, a taxa de 0,04%.
Por força do artigo 7º-1/g), do CIS, estão isentas de imposto do selo “as operações financeiras, incluindo os respetivos juros, por prazo não superior a um ano, desde que exclusivamente destinadas à cobertura de carência de tesouraria e efetuadas por sociedades de capital de risco (SCR) a favor da sociedade em que tenham participações, bem como as efetuadas por outras sociedades a favor de sociedades por elas dominadas ou a sociedades em que detenham uma participação de, pelo menos, 10% do capital com direito de voto ou cujo valor de aquisição não seja inferior a € 5 000 000, de acordo com o último balanço acordado e, bem assim, efetuadas em benefício de sociedade com a qual se encontre em relação de domínio ou de grupo”.
Todavia, esta isenção não existe ou não se aplica no caso de qualquer dos intervenientes (nas operações respetivas) “(...) não ter sede ou direção efetiva no território nacional, com exceção das situações em que o credor tenha sede ou direção efetiva noutro Estado membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal, caso em que subsiste o direito à isenção, salvo se o credor tiver previamente realizado os financiamentos previstos nas alíneas g) e h), do nº 1 [do artigo 7º, do CIS] através de operações realizadas com instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no estrangeiro ou com filiais ou sucursais no estrangeiro de instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas em território nacional (...)”
Relativamente à constituição ou nascimento da obrigação tributária de imposto (do selo - IS), dispõe o artigo 5.º n.º 1, alínea g), do CIS (Código do Imposto do Selo), que, nas operações de crédito, tal ocorre “(...) no momento em que forem realizadas ou, se o crédito for utilizado sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer outro meio em que o prazo não seja determinado nem determinável, no último dia de cada mês.
Sobre a incidência do Imposto do Selo nas concessões de crédito, há muito que se tem entendido, quer na jurisprudência quer na doutrina, que o imposto do Selo incide sobre a efetiva utilização do crédito e não sobre o contrato que lhe é subjacente - Cfr, v. g., o Acórdão do STA proferido no processo 0800/17 de 14-03-2018, que decidiu:
“A concessão de crédito está sujeita a imposto do selo, qualquer que seja a natureza e forma, relevando, contudo, para o efeito a efetiva utilização do crédito O facto tributário eleito para tributação em imposto do Selo é, sempre, a concessão de crédito - prestação de valores monetários de uma parte a outra obrigando-se esta última a restituir aquele montante (em singelo ou acrescido de valor convencionado), no futuro-. A mera celebração do contrato de concessão de crédito nem sempre gera facto tributário do imposto. Quando a utilização do crédito for imediata, o facto tributário emerge na data de utilização que coincide com a data de celebração do contrato de concessão de crédito. (…) Quando a utilização do crédito não for imediata, o facto tributário emerge na data de utilização que não coincide com a data de celebração do contrato concessão de crédito. ”
Refere a este propósito JOSÉ MARIA FERNANDES PIRES: “é no domínio das operações financeiras que o novo Código introduz duas inovações fundamentais relativamente ao anterior. Por um lado o imposto passa a incidir sobre as utilizações de crédito e não sobre a celebração dos contratos que lhes dão origem (…). Por outro lado, o tempo de duração da relação creditícia passa a ser determinante para a determinação do imposto a pagar (…). As operações de crédito são tributadas nos termos da verba nº 17.1 da Tabela Geral. A lei enuncia alguns tipos contratuais de concessão de crédito, como é o caso da cessão de créditos, o factoring, as operações de tesouraria, a abertura de crédito em conta corrente e o descoberto bancário. Porém, esta enunciação é meramente exemplificativa, dado que a lei tributa a concessão de crédito independentemente da forma contratual que lhe está subjacente (“a concessão de crédito a qualquer título”, como determina a referida verba da Tabela Geral). Como antes vimos, mais que a forma do contrato que está na base da relação de crédito, o que está sujeito a imposto é a efectiva utilização do crédito pelo beneficiário.” - cf. “Lições de Impostos sobre o Património e do Selo”, 2ª Edição, 2013, Lisboa, Almedina, pp. 443 e 444
Igualmente, como sublinham J. Silvério Mateus e L. Corvelo de Freitas, “Os Impostos sobre o Património. O Imposto do Selo: Anotados e Comentados”, Lisboa, Endifisco, 2005, p.734, “o facto gerador da obrigação tributária é, de acordo com a alínea g) do artigo 5º, a utilização do crédito, não sendo, pois, as aberturas de crédito especialmente tributadas enquanto tal utilização não se verifique.”
Aqui chegados, é altura de abordar, em especial e mais de perto, as questões suscitadas, para depois se concluir pela existência ou não de fundamento legal para a liquidação de imposto de selo operada pela AT nos períodos de tributação respetivos e que levaram a Requerente, para evitar ulterior correção pela AT, a proceder às autoliquidações de IS por retenção na fonte, identificadas nos autos.
A taxa prevista na Verba 17.1.4, da TGIS incidiu, no caso, sobre os saldos médios mensais dos depósitos resultantes de excedentes de tesouraria apurados no âmbito do citado contrato de cash pooling [cf d), dos factos provados].
Analisemos sumariamente este contrato com vista a nele surpreender ou não, por um lado, os elementos necessários de ato objetiva e subjetivamente sujeito a imposto do selo.
O contrato de cash pooling
Designa-se por cash pooling a gestão consolidada da tesouraria de Grupos de Sociedades, assegurada por um dos seus membros ou por terceira empresa designada para o efeito e que é titular de uma conta bancária centralizada, agregando as contas individuais de cada um dos membros do Grupo, de tal modo que, diariamente se opera a consolidação, real ou virtual, dos saldos bancários de cada um dos membros do Grupo, com o consequente apuramento de um saldo único na conta bancária agregada gerida pela citada entidade centralizadora.
Fácil é ver que o cash pooling permite a compensação, real ou virtual, dos saldos credor e devedor das empresas do Grupo e, igualmente, o financiamento.
O modelo de cash pooling constará da convenção de tesouraria celebrada entre os membros do Grupo.
Do exposto resulta que as operações de transferência de saldos entre a conta da participante ou aderente e a conta da entidade centralizadora, bem como os movimentos de transferência inversos, da conta agregada a favor da conta bancária devedora consubstanciam financiamentos obtidos/concedidos através da realização de operações de tesouraria, sujeitos ao imposto do selo previsto na citada verba 17.1.4, da TGIS, que recai sobre o saldo devedor da conta apurado no final de cada mês.
Resulta assim dos autos e, concretamente, do quadro factual apurado, que os créditos eram utilizados sob a forma de conta corrente contabilística, sem prazo de utilização determinado ou determinável (cash concentration ou zero balancing).
Ora no sobredito enquadramento factual, a liquidação do imposto do selo é feita mensalmente, sendo ou devendo ser aquele (imposto) calculado tendo em atenção os saldos-valor diariamente apurados e não os saldos contabilísticos.
Ou seja: a realidade tributável será as transferências de saldos entre a Requerente e a entidade centralizadora da Tesouraria, transferências que nada mais são que financiamentos obtidos/concedidos através dessas operações de tesouraria.
Trata-se, em conclusão, de uma forma ou meio, direto ou indireto de financiamento das empresas do Grupo que necessitem.
Torna-se óbvia, deste modo, a conclusão de que há lugar objetivamente à tributação em sede do imposto do selo.
A questão da territorialidade
Tendo em atenção as regras de territorialidade previstas no artigo 4.º, n.º 2, alínea b) do Código do Imposto (CIS), será tributada a utilização de crédito, da empresa portuguesa proveniente da entidade não residente, por aplicação da verba 17.1.4 da TGIS.
Importa ainda referir que esta verba é destinada a tributar operações de financiamento, sendo, portanto, de excluir a parte dos movimentos financeiros, para pagamentos ou recebimentos de operações comerciais devidamente identificadas, por exemplo, o pagamento de uma fatura.
A liquidação do imposto do selo, se estiver envolvida uma empresa não residente é efetuada pela empresa portuguesa, a quem compete a liquidação e entrega do imposto nos cofres do Estado, quando seja concedente do crédito ou quando seja utilizadora do crédito.
Se forem operações entre empresa nacionais, o sujeito passivo de imposto do selo (a quem compete a liquidação e entrega ao Estado) é da empresa concedente do crédito, conforme a alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do CIS.
O encargo do imposto incumbe sempre ao utilizador do crédito, seja empresa não residente ou empresa portuguesa (sublinhado nosso).
Pois bem, no caso em análise a entidade utilizadora do crédito não é a Requerente mas antes sociedade, com sede fora do território nacional, gestora ou centralizadora dos fundos excedentes de tesouraria que lhe foram disponibilizados pela Requerente.
Na verdade e conforme alínea h) do elenco supra de factos provados, “(...)a B... e a Requerente assinaram um contrato de empréstimo com efeitos a 01.01.2011, no qual a segunda figura como mutuante e a primeira como mutuária (Doc 6, com a PI)”.
Ou seja: a entidade financiadora (mutuante) é a Requerente e a entidade financiada é uma entidade com sede em França e gestora dos excedentes de tesouraria das demais empresas do Grupo A..., a B... que, sendo estrangeira, não está obrigada a IS à luz do direito português.
Logo, não sujeita a imposto do selo.
Procedem, consequentemente, com este fundamento, os pedidos de revogação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa e de anulação das liquidações formulados nos autos.
A questão dos juros indemnizatórios
A Requerente pede o reembolso do imposto indevidamente pago emergente das citadas autoliquidações de IS, em janeiro e fevereiro de 2018, no montante global de € 77.472,62, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, nos termos do art. 43.º da LGT e 61.º do CPPT.
De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.
Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.
O processo de impugnação judicial, incluindo por via arbitral, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».
Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.
No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade parcial do ato de liquidação, há lugar a reembolso do imposto, por força dos referidos arts. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”, na parte correspondente à correção que foi considerada ilegal.
No que concerne aos juros indemnizatórios, é também claro que a ilegalidade do acto é imputável à Administração Tributária e Aduaneira, que, por sua iniciativa praticou sem suporte legal.
Todavia o crédito de juros só se vence após estar transcorrido um ano desde a data da apresentação da reclamação graciosa e não desde a data do pagamento do imposto – Cf artigo 43º-3/c), da LGT.
À luz do exposto é de concluir que deve ser reconhecido à Impugnante o direito a juros indemnizatórios, nos termos da alínea c) do n.º 3, do art. 43.º da LGT, a partir do período de um ano posterior à apresentação do pedido de reclamação graciosa e até que seja emitida nota de crédito.
Assim, deverá a Autoridade Tributária e Aduaneira dar execução ao presente acórdão, nos termos do art. 24.º, n.º 1, do RJAT, determinando o montante a restituir aos Requerentes e calcular os respetivos juros indemnizatórios, à taxa legal supletiva das dívidas cíveis, nos termos dos arts. 35.º, n.º 10, e 43.º, n.ºs 1 e 5, da LGT, 61.º, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (ou diploma ou diplomas que lhe sucederem).
IV. DECISÃO
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:
a) Anular o ato de indeferimento da sobredita reclamação graciosa apresentada pela Requerente à AT sob o nº ...2018..., em 12.06.2018;
b) Anular o ato tributário de autoliquidação de Imposto do Selo (IS), identificado pela guia de retenção na fonte nº ..., de 20.02.2018, do qual resultou um valor a pagar de € 41.944,18, referente a IS da Verba 17.1.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS) (“Operações Financeiras”), e relativa ao período de janeiro de 2018;
c) Anular o ato tributário de autoliquidação de IS, identificado pela guia de retenção n.º..., do qual resultou um valor a pagar de € 35.528,45, referente também a IS da Verba 17.1.4 da TGIS (“Operações Financeiras”), e relativa ao período de fevereiro de 2018;
d) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a restituir à Requerente as importâncias que esta pagou, no valor global de €77.472,62, a título de imposto do selo;
e) Julgar, nos termos expostos supra, parcialmente procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios e, em consequência, condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de tais juros, à taxa ou às taxas legais em vigor, desde 12-6-2019 (um ano após a apresentação da reclamação graciosa pela Requerente), até à emissão da correspondente nota de crédito;
f) Julgar prejudicada pelo decidido supra a apreciação das demais questões suscitadas nos autos e
g) Condenar as partes nas custas na proporção de 98% pela Autoridade Tributária e Aduaneira e 2% pela Requerente.
V. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 77.472,63, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VI. CUSTAS
Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 2.448,00, a cargo de ambas as partes na proporção supra.
• Notifique-se.
Lisboa, 6 de novembro de 2019
O Tribunal Arbitral Coletivo
O Árbitro Presidente
(José Poças Falcão)
O Árbitro Vogal
(Adelaide Moura)
O Árbitro Vogal
(José Nunes Barata)