DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
I. RELATÓRIO
A..., residente na Rua ..., antigo ..., n.º..., ..., ...-..., Cascais, contribuinte fiscal número..., doravante designado por “Requerente”, solicitou a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo da alínea a), do n.º 1 do artigo 2.º e artigos 10.º e segs. do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, em conjugação com os artigos 99.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”).
O Requerente deduziu pedido de pronúncia arbitral contra o despacho do Exmo. Chefe do Serviço de Finanças de Cascais, datado de 28/12/2018, que indeferiu a reclamação graciosa proferida no processo n.º ...2018... que, por sua vez, incidiu sobre a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2017..., referente ao ano de 2016, pretendendo, em suma, que o Tribunal Arbitral anule o despacho de indeferimento do procedimento de Reclamação Graciosa acima referido e, em consequência, anule parcialmente a liquidação de IRS relativa ao ano de 2016.
Para fundamentar o seu pedido alega, em suma que:
a) Em 31 de Maio de 2017 apresentou a Declaração de Rendimentos Modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2016;
b) No dia 30 de Novembro de 2017 submeteu uma declaração de substituição referente ao mesmo exercício reflectindo um conjunto correcções respeitantes ao que considera ser o rendimento sujeito a tributação;
c) Em 21 de Dezembro de 2017 apresentou nova declaração de substituição de IRS onde corrigiu a composição do agregado familiar;
d) Esta declaração foi convolada pelos serviços da AT em reclamação graciosa;
e) A reclamação graciosa deferiu parcialmente o pedido do Requerente;
f) O rendimento de trabalho obtido em Portugal ascende a €.144.871,32, valor que corresponde à remuneração atribuída pelo trabalho exercido em território português e pago pela sociedade B..., Lda., entidade patronal do Requerente;
g) Contudo, a Autoridade Tributária entendeu que esse valor ascendeu a €.238.096,32;
h) Ora, o Requerente entende que parte daquele valor deriva de trabalho dependente exercido nos Estados Unidos da América (“EUA”) e respeita a um período temporal que antecedeu a sua alteração de residência para Portugal;
i) De facto, o Requerente considera que apenas é residente fiscal em Portugal desde 1 de Junho de 2016, e entende que tal é aceite pela AT;
j) Refere que o montante de €.93.225,00, pago em Outubro de 2016, diz respeito a remuneração acessória por conta de trabalho exclusivamente exercido nos EUA entre 1 de Julho de 2015 e 31 de Maio de 2016;
k) Em particular, tratou-se de um prémio referente a um período de doze meses, onze dos quais foram os meses que antecederam o destacamento para Portugal e em que o Requerente residia nos EUA, aí trabalhando exclusivamente para a “C...”;
l) Assim, o aludido montante de €.93.225,00 corresponde ao valor do prémio na proporção do tempo de exercício de funções nos EUA (onze doze avos);
m) De acordo com a Convenção entre a República Portuguesa e os EUA para evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal em matéria de impostos sobre o rendimento (“CDT”) e, em particular, com o artigo 16.º deste Instrumento Convencional, Portugal não tinha competência para tributar estes rendimentos pertencendo essa competência, em exclusivo, aos EUA;
n) Tal entendimento é sustentado pelos Comentários ao artigo 15.º do Modelo de Convenção Fiscal sobre o Rendimento e o Património da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económico (“MC-OCDE”);
o) Subsidiariamente, e caso se entenda que o rendimento teria de ser declarado para efeitos do IRS em Portugal entende o Requerente que aquele rendimento, de fonte americana, no valor €.93.225,00 deveria ser considerado isento nos termos do artigo 81.º, n.º 4, alínea a), do Código do IRS;
p) Termina, pugnando pelo reembolso do imposto indevidamente suportado acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”).
O Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro singular do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, nos termos do disposto nos artigos 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 2 do Código Deontológico do CAAD.
As partes, oportunamente notificadas, não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos previstos no Código Deontológico do CAAD, e o Tribunal Arbitral foi constituído em 14 de Junho de 2019, de acordo com a alínea c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT.
A Requerida apresentou Resposta e juntou o processo administrativo. Na Resposta apresentada, a Requerida apresentou defesa por impugnação nos termos que, a seguir, sucintamente, se descrevem.
a) Refere, em primeiro lugar, que acto de liquidação impugnado, para além de ter já sido parcial e favoravelmente decidido em sede de reclamação graciosa, foi também por despacho de 14/05/2019, da Senhora Subdiretora Geral da área dos impostos sobre o rendimento, parcialmente revogado;
b) Assim, relativamente à questão controvertida, os rendimentos disponibilizados pela entidade patronal ao Requerente no ano de 2016, enquanto rendimentos da categoria A e obtidos em Portugal, encontram-se sujeitos às normas de tributação previstas para essa categoria de rendimentos e para contribuintes aos quais foi reconhecido o alto valor acrescentado da atividade desenvolvida, nos termos previstos no artigo 72.º,
n.º 6 do Código do IRS;
c) No caso em apreço, e como resulta da consulta da declaração mensal de remunerações apresentada pela entidade patronal junto da AT (DMR), a empresa B..., Lda., pagou ao Requerente, no ano de 2016, o rendimento bruto de €.238.711,20, com retenção na fonte no montante de €.93.162,00 e de €.24.134,07 suportado a título de contribuições obrigatórias para o sistema social, devendo estes valores serem considerados no anexo A da declaração Modelo 3 de IRS do ano de 2016 e, como residente não habitual, no anexo L daquela Declaração;
d) No ano de 2016, o Requerente, para além de ter obtido rendimentos em território português, na qualidade de residente não habitual, aqui sujeitos nos termos do n.º 1 do artigo 15.º do Código do IRS, declarou também ter obtido rendimentos nos EUA, tendo, nesse país, sido objeto de tributação, e estas declarações sido devidamente tidas em conta pela AT, pelo que lhe foi aplicado o método da isenção, nos termos do artigo 81.º, n.º 4, alínea a) do Código do IRS, por ter sido esta a opção do Requerente;
e) Encontrando-se estes rendimentos isentos devem, contudo, nos termos do n.º 7 do artigo 81.º do Código IRS, serem estes obrigatoriamente englobados para efeitos de determinação da taxa a aplicar aos restantes rendimentos tributáveis, verificando-se, porém, da liquidação oficiosa, que àqueles rendimentos foi aplicada a taxa proporcional de 20%;
f) Quanto à argumentação do Requerente segundo a qual, para além dos rendimentos obtidos no estrangeiro, foram também auferidos rendimentos, enquanto remuneração diferida, por conta do trabalho exclusivamente exercido nos EUA, no período que decorreu entre Julho de 2015 e 31 de Maio de 2016, correspondente a um prémio pago pela entidade patronal naquele país, no montante de €.101.700,00, foi solicitado parecer à Direção de Serviços das Relações Internacionais, que considerou que Portugal tinha legitimidade para tributar os rendimentos ora em litígio;
g) Para além do exposto, estipula o artigo 74.º da Lei Geral Tributária que:
“1 - O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.
2 - Quando os elementos de prova dos factos estiverem em poder da administração tributária, o ónus previsto no número anterior considera-se satisfeito caso o interessado tenha procedido à sua correcta identificação junto da administração tributária.
3 - Em caso de determinação da matéria tributável por métodos indirectos, compete à administração tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos da sua aplicação, cabendo ao sujeito passivo o ónus da prova do excesso na respectiva quantificação.”
h) Por sua vez, o artigo 75.º da Lei Geral Tributária determina:
“1 - Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos.
2 - A presunção referida no número anterior não se verifica quando:
a) As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo;
b) O contribuinte não cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, salvo quando, nos termos da presente lei, for legítima a recusa da prestação de informações;
c) A matéria tributável do sujeito passivo se afastar significativamente para menos, sem razão justificada, dos indicadores objectivos da actividade de base técnico-científica previstos na presente lei.
d) Os rendimentos declarados em sede de IRS se afastarem significativamente para menos, sem razão justificativa, dos padrões de rendimento que razoavelmente possam permitir as manifestações de fortuna evidenciadas pelo sujeito passivo nos termos do artigo 89.º-A.
3 - A força probatória dos dados informáticos dos contribuintes depende, salvo o disposto em lei especial, do fornecimento da documentação relativa à sua análise, programação e execução e da possibilidade de a administração tributária os confirmar.”
i) Decorre do exposto que a declaração do Requerente beneficia da presunção de veracidade e de boa-fé, princípio este consagrado no artigo 75.º da LGT, sendo que, o afastamento da presunção ocorre nos termos das alíneas a) e b) do n.º 2 daquele mesmo preceito.
j) A AT apenas pode considerar os factos que documentalmente se encontrem provados, não tendo o Requerente junto qualquer documento que comprove as suas alegações;
k) Para além do exposto, a entidade patronal pagadora dos rendimentos ora em litígio, declarou, sem mais, à AT, que o Requerente auferiu no ano de 2016, o montante de €.238 711,20;
l) Termina referindo que, à data dos factos, a Administração Tributária fez a aplicação da lei nos termos em que como órgão executivo está adstrito constitucionalmente, pelo que não se verifica, in casu, qualquer erro imputável aos serviços e, em consequência, não estão verificados os requisitos previstos no artigo 43.º da LGT.
Por despacho datado de 07/08/2019, o Tribunal Arbitral decidiu a dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT. No mesmo despacho foi concedido às partes o prazo de 20 dias sucessivos para apresentação de Alegações.
Neste despacho, foram ainda as Partes notificadas da data limite para a prolação da decisão, que se fixou em 30 de Outubro de 2019.
Decorrido o prazo para o efeito, as partes apresentaram Alegações onde, em síntese, reafirmam as posições assumidas no pedido de constituição de Tribunal Arbitral e na Resposta.
II. SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído, o pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto na alínea a), do n.º 1, do artigo 10.º do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
III. FUNDAMENTAÇÃO
A. DE FACTO
§.1. Factos Provados
a) O Requerente apresentou, em 31 de Maio de 2017, Declaração de Rendimentos Modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2016 – Acordo;
b) No dia 30 de Novembro de 2017 o Requerente submeteu uma declaração de substituição relativa ao mesmo exercício – Acordo;
c) Na mesma data, submeteu, na internet, através do portal e-balcão, um requerimento com o seguinte teor:
- cfr
- Processo Administrativo, fls. 101 e 102;
d) Em 21 de Dezembro de 2017 foi apresentada nova declaração de substituição relativa ao ano de 2016 – Acordo;
e) A referida Declaração não foi validada pela Autoridade Tributária – Acordo;
f) Em 24/01/2018 o Requerente apresentou Reclamação Graciosa, à qual foi atribuído o número ...2018..., na qual solicitava “eliminação” das declarações anteriores “dando-se a Declaração de Substituição submetida no dia 21 de Dezembro de 2017 como vigente” - PA;
g) Em 28 de Maio de 2018, e através do Ofício n.º..., datado de 22/05/2018, proveniente do Serviço de Finanças de Cascais –..., o Requerente foi notificado da proposta de decisão que recaiu sobre a referida Reclamação Graciosa – documento n.º 3 junto com Pedido de Constituição do Tribunal Arbitral e PA;
h) Para fundamentar a referida decisão, afirmava a Autoridade Tributária:
i) E prossegue:
j) Por Requerimento datado de 12/06/2018, recebido nos serviços da Autoridade Tributária em 14/06/2018, o Requerente exerceu o Direito de Audição Prévia sobre a referida proposta de decisão – PA;
k) Por despacho do Exmo. Sr. Chefe do Serviço de Finanças de Cascais –..., datado de 28/12/2018, foi o Requerente notificado da decisão final de deferimento parcial da Reclamação Graciosa – documento n.º 2 junto com o Pedido de Constituição de Tribunal Arbitral e PA;
l) No referido despacho, e para além do que já constava na proposta de decisão, refere a Autoridade Tributária:
m) E acrescenta:
n) Concluindo:
o) Na folha de vencimento do Requerente relativa a Outubro de 2016, emitida pela sociedade B..., Lda., consta como tendo sido pago o valor de €.101.700,00 a título de “CBI” – PA, em particular, o documento n.º 3 junto pelo Requerente com o direito de Audição à proposta de deferimento parcial da Reclamação Graciosa;
p) O CBI (“Core Priority Based Incentive”) corresponde a um bónus de produtividade pago por referência ao trabalho prestado entre 1 de Julho de 2015 e 30 de Junho de 2016 – PA, em particular, o regulamento junto ao processo administrativo, em particular o documento n.º 5 junto pelo Requerente com o direito de Audição à proposta de deferimento parcial da Reclamação Graciosa;
q) A B..., Lda., emitiu a seguinte Declaração datada de 06/07/2018:
r) O Requerente é residente em Portugal para efeitos fiscais desde 01 de Junho de 2016 – Acordo;
s) Em 1 de Março de 2019, o Requerente submeteu o pedido de Constituição do Tribunal Arbitral – consulta ao sistema de gestão processual do CAAD;
t) Em 17/05/2019, e através de Requerimento dirigido ao Exmo. Sr. Presidente do CAAD, a Requerida informou que, por despacho de 14/05/2019 da Subdiretora-Geral da Área da Gestão Tributária – Imposto sobre o Rendimento, foi o ato impugnado revogado parcialmente – consulta ao sistema de gestão processual do CAAD;
u) Por despacho datado de 17/05/2019, o Exmo. Sr. Presidente do CAAD notificou o Requerente sobre a sua intenção de prosseguir com os autos – consulta ao sistema de gestão processual do CAAD;
v) Por Requerimento datado de 30/05/2019, o Requerente manifestou o seu interesse no prosseguimento dos autos para conhecimento do mérito da causa – consulta ao sistema de gestão processual do CAAD.
§.2. Factos não provados
Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não há factos que não se tenham provado.
§.3. Motivação quanto à matéria de facto
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que é alegado pelas partes, cabendo-lhe, outrossim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada [cfr. n.º 2 do artigo 123.º do CPPT e n.º 3 do artigo 607.º do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT]. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o P.A. juntos aos autos, consideraram-se provados os factos acima elencados.
Não se deram como provadas ou não provadas alegações que consistam em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DE DIREITO
§.1. Delimitação das questões a decidir
Face à matéria factual dada como provada e acima elencada, a questão a decidir cinge-se, unicamente, em saber se o Estado Português tinha, ou não, competência para tributar o valor de €.93.225,00 e que correspondente a 11/12 avos do valor do “CBI” pago ao Requerente em Outubro de 2016. Em particular, há que verificar:
(i) Se foi violado, in casu, o artigo 16.º da Convenção entre a República Portuguesa e os EUA para evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal em matéria de impostos sobre o rendimento (“CDT”); e
(ii) Subsidiariamente, caso se entenda que aquele rendimento poderia ser tributável em Portugal, se o mesmo deveria ser considerado isento nos termos da alínea a) do n.º 4 do artigo 81.º do Código do IRS.
Em função da resposta à questão anterior, haverá ainda que verificar se há lugar, no caso em apreço, à condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
§. Apreciação
1. Dos vícios invocados pelo Requerente
Como ponto prévio, convirá referir que a função das CDTs reside, unicamente, na definição de um modo operativo de eliminar a dupla tributação e fazem-no mediante a repartição dos poderes tributários, seja pela atribuição exclusiva do poder tributário a um dos Estados ou repartindo-o pelos dois Estados Contratantes, impondo, nestes casos, a eliminação da possível dupla tributação daí resultante mediante a concessão de uma isenção ou crédito ao Estado onde o contribuinte é residente.
As CDTs não encerram normas de incidência próprias e não impõem a tributação de quaisquer rendimentos, nem tão pouco determinam o regime fiscal aplicável a um determinado rendimento obtido por um residente de um dos Estados Contratantes. Elas constituem, antes, limites autónomos ao âmbito de incidência das leis tributárias do Estado na medida em que procedem a uma delimitação negativa da incidência criada por tais leis naquilo que se designa por “efeito negativo dos tratados” .
Face a tal enquadramento, vejamos de que modo são tratados, do ponto de vista convencional, os rendimentos subjacentes aos presentes autos.
Para tanto, importa atentar no teor do artigo 16.º da CDT celebrada entre Portugal e os EUA, nos termos da qual:
“1 – Com ressalva do disposto nos artigos (…), os salários, ordenados e remunerações similares obtidos de um emprego por um residente de um Estado Contratante só podem ser tributados nesse Estado, a não ser que o emprego seja exercido no outro Estado Contratante. Se o emprego for aí exercido, as remunerações correspondentes podem ser tributadas nesse outro Estado.
2 – Não obstante o disposto no n.º 1, as remunerações obtidas por um residente de um Estado Contratante de um emprego exercido no outro Estado Contratante serão tributadas unicamente no Estado primeiramente mencionado se:
a) O beneficiário permanecer no outro Estado durante um período ou períodos que não excedam, no total, 183 dias em qualquer período de 12 meses com início ou termo no ano fiscal em causa;
b) As remunerações forem pagas por uma entidade patronal ou em nome de uma entidade patronal que não seja residente do outro Estado; e
c) As remunerações não forem suportadas por um estabelecimento estável ou por uma instalação fixa que a entidade patronal tenha no outro Estado”.
Decorre pois, do referido preceito, com clareza meridiana, a competência exclusiva do estado da residência para tributar os rendimentos desta natureza o que, aliás, constitui a regra das Convenções Internacionais que seguem o Modelo OCDE .
Subsumindo a referida norma aos presentes autos e sabendo que se está, in casu, perante um bónus de produtividade (cuja qualificação como rendimento de trabalho não oferece dúvidas nem é contestada pela Requerida) há que responder a uma pergunta:
O que sucede se, como no caso em apreço, no momento em que o rendimento é colocado à disposição do sujeito beneficiário, este é residente noutro Estado que não aquele em que desempenhou as funções que deram origem ao rendimento?
Sobre esta matéria e com relevância para os presentes autos, referem os comentários ao Modelo de Convenção que, como se sabe, assume a natureza de referência interpretativa .
Com relevância para os presentes autos, refere o comentário 2.4. ao artigo 15.º da Convenção Modelo (que corresponde ao artigo 16.º da CDT celebrada entre Portugal e os EUA):
“Qualquer remuneração paga após a cessação da relação de emprego relativa a trabalho prestado antes da cessação (e.g., um salário ou um bónus relativo ao último período de trabalho ou comissões por vendas realizadas durante esse período) será considerada como tendo origem no Estado em que foram exercidas as actividades assalariadas em causa” – o negrito é nosso.
Resulta do exposto que, numa situação como a dos autos, para efeitos de determinação do Estado com poderes tributários, o que é relevante é a situação factual à data em que a actividade foi desenvolvida. Dito de outro modo, a situação factual à data do pagamento é irrelevante .
Ora, nos presentes autos e face à prova documental produzida nos autos, nomeadamente a referida nas alíneas p) e q) da factualidade dada como assente, resulta inequívoco que o rendimento em causa (11/12 avos do bónus) tem origem em trabalho prestado nos EUA e não em Portugal, pelo que, à luz da CDT celebrada entre Portugal e os EUA – e que, sublinhe-se, prevalece sobre as normas de direito interno nos termos do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa – é a este último Estado que pertence, em exclusivo, a competência tributária.
Uma nota final para a argumentação sustentada pela Requerida para obstar à pretensão do Requerido e que assenta, em suma, nos artigos 74.º e no artigo 75.º da LGT. No que se refere ao ónus da prova, dir-se-á que os documentos juntos pelo Requerido e acima melhor identificados, cuja veracidade, sublinhe-se, a Requerida não coloca em causa, são aptos a provar que o rendimento em causa refere-se a trabalho prestado nos EUA. O documento reproduzido na alínea q) do probatório é, a este respeito, inequívoco.
Quanto à alegada presunção de veracidade das declarações e, em particular, da DMR apresentada pela sociedade B..., Lda., salvo melhor opinião, lavra a Requerida em erro.
Desde logo, porque, como é Jurisprudência pacífica, a referida presunção “não é estabelecida em favor da Fazenda Pública” .
Na verdade, e como, com interesse para o caso em apreço, se decidiu Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 27/05/2010 e proferido no âmbito do processo 00097/03 (Francisco Rothes):
“ (…) se é certo que as declarações apresentadas pelos contribuintes nos termos legais se presumem verdadeiras (art. 75.º, n. 1, da LGT), essa presunção apenas se refere ao próprio declarante nas suas relações com a AT, não sendo extensível às relações da AT com terceiros. Assim, no caso sub judice, que se refere à liquidação de IRS com base em rendimentos do trabalho dependente, a declaração que beneficia da referida presunção é a apresentada pelo sujeito passivo (a declaração apresentada para efeitos de IRS pelo trabalhador) e já não a apresentada pela entidade patronal ao abrigo do disposto no art. 113.º do CIRC, a qual apenas beneficia daquela presunção em sede da tributação desta entidade em sede de IRC” – negrito e sublinhado nossos.
Assim, conclui, “existindo divergência entre aquelas declarações, não pode a AT, exclusivamente com base na declaração da entidade patronal, proceder à correcção dos rendimentos do trabalho dependente declarados pelo trabalhador. Nessa situação, deverá proceder a mais diligências no sentido de tentar apurar da existência de factos que autorizem a tributação ou a tributação com uma dimensão diversa da resultante da declaração. Isto, porque compete à AT a prova dos factos constitutivos do direito de tributar (cf. art. 74.º, n.º 1, da LGT). O que significa que se a AT não recolher prova suficiente da existência do facto tributário ou de que a dimensão do facto tributário é diferente da declarada, não deve proceder à correcção da matéria tributável cuja declaração respeita os termos legais nem à consequente liquidação adicional.”
E note-se que essa conclusão não é diferente por se estar, no caso em apreço, perante uma declaração de substituição. Como se refere no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 16/01/2007 e proferido no âmbito do processo 01389/06 (Eugénio Sequeira):
“Quer a declaração inicial de rendimentos, quer a declaração de substituição, oportunamente apresentadas pela contribuinte, são de presumir como verdadeiras e de boa fé”.
Assim, nestes casos, se a Administração Tributária não demonstrar a falta de correspondência entre o teor de tais declarações, contabilidade ou escrita e a realidade, o seu conteúdo terá de se considerar como verdadeiro. Acresce que “o ónus da prova da Administração Tributária persiste no caso de o contribuinte ter apresentado declaração de substituição e, depois, ter impugnado judicialmente com fundamento em não corresponder à realidade o afirmado nesta declaração” .
Face a tudo o que antecede, procede pois, nesta parte o pedido do Requerente.
2. Dos Juros indemnizatórios
Peticiona, ainda, o Requerentes juros indemnizatórios sobre a quantia a anular e reembolsar, “desde a data da validação da primeira declaração de substituição, i.e., 30/11/2017, até à data da emissão da respectiva nota de crédito, calculados à taxa legal de juros em vigor”.
Vejamos:
O direito a juros indemnizatórios encontra fundamento no artigo 43.º da Lei Geral Tributária que, no seu n.º 1, o faz depender da ocorrência de erro imputável aos serviços do qual tenha resultado o pagamento de prestação tributária superior à legalmente devida. Dispõe esta norma que “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Por outro lado, quando está em causa a errada interpretação e aplicação de uma norma de incidência tributária por parte da Requerida, tem sido pacificamente entendido que os Tribunais Arbitrais tributários têm competência para proferir pronúncias condenatórias em moldes em tudo idênticos aos que são admitidos no processo de impugnação judicial, incluindo, portanto, as que derivam do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5 do RJAT e 43.º e 100.º da LGT.
Como decorre dos autos, o Requerente suportou uma prestação tributária que não decorria da lei, atento o preceituado no artigo 16.º da CDT celebrada entre Portugal e os EUA, erro este que não pode deixar de ser imputável à AT. Acresce que, pelo menos desde 30/11/2017 que a Requerida dispunha de elementos que lhe permitiam corrigir a situação. Se o não fez, sibi imputet.
Nestes termos, consideram-se verificados os pressupostos legais previstos no artigo 43.º, n.º 1 da LGT, sendo, por isso, devido o pagamento de juros indemnizatórios pela AT ao Requerente.
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IV. DECISÃO
Nos termos expostos, decide este Tribunal Arbitral:
1. Julgar procedente o pedido formulado pelo Requerente quanto à ilegalidade do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa que correu termos sob o processo n.º ...2018... deduzida contra o acto de liquidação de IRS n.º 2017...referente ao ano de 2016, no montante de €.24 098,12;
2. Julgar procedente o pedido de condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios, calculados desde 30/11/2017 até integral reembolso do montante indevidamente pago;
3. Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas do presente processo.
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VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto nos artigos. 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de €.24.098,12 (vinte e quatro mil, noventa e oito Euros e doze cêntimos).
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CUSTAS
Custas no montante de €.1.530,00 (mil, quinhentos e trinta Euros) em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Lisboa, 29 de Outubro de 2019,
O Árbitro,
Isaque Marcos Lameiras Ramos
Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do CPC, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT. A redacção da presente decisão arbitral rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.