DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Pedro Miguel Bastos Rosado e Adelaide Moura, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, no seguinte:
I – RELATÓRIO
1. No dia 20 de Fevereiro de 2019, A..., Lda., NIPC ..., com sede na Rua..., n.º..., ..., ...-... Lisboa, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de retenções na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2017..., relativo ao período de tributação de 2014, no valor de €348.754,29, assim como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que teve o referido acto de liquidação como objecto.
2. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese:
i. ilegalidade do procedimento de inspeção, à face do artigo 36.º, n.º 2, do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira (RCPITA) por ter duração superior a 6 meses sem que tivesse havido prorrogação;
ii. caducidade do direito à liquidação de imposto, por a colocação à disposição dos sócios das importâncias em causa ter ocorrido antes do ano de 2014;
iii. erróneo enquadramento dos factos ocorridos em 2014 na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, designadamente em face da invocada existência de mútuos e do reembolso parcial da quantia mutuada.
3. No dia 21-02-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
5. Em 09-04-2019, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 02-05-2019.
7. No dia 05-06-2019, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
8. Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.
9. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.
10. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT.
11. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre proferir:
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- A Requerente é uma sociedade de direito português, constituída em 23-07-2001, que prossegue a actividade principal de “serviços de saúde na área da oftalmologia”, abrangida pelo regime geral de determinação do lucro tributável em sede de IRC e pelo regime de isenção para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA).
2- Em cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI2016..., iniciada em 16-05-2017, data em que se verificou a respetiva assinatura pelo sócio-gerente da ora Requerente, a Requerente foi objecto de uma inspecção de natureza externa e com um âmbito parcial de IVA e retenções na fonte de IRS, com incidência sobre o período de tributação de 2014.
3- Em 12-12-2017, a Requerente foi notificada do Relatório de Inspecção, no qual consta, em síntese, o seguinte:
4- Na sequência da acção inspectiva, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu a demonstração de liquidação de retenções na fonte relativa ao ano de 2014, n.º 2017 2017 ... e as respectivas liquidações de juros compensatórios.
5- Em 23-01-2018, a Requerente procedeu ao pagamento da referida liquidação.
6- A Requerente apresentou reclamação graciosa das liquidações referidas, tendo esta sido indeferida.
7- Os extratos bancários da conta da Requerente, no Banco D..., S.A., no ano de 2014, são os que constam do documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido.
8- Foram efectuados na conta da Requerente, no Banco D..., S.A., os movimentos que constam do documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, duas transferências concretizadas pelo sócio B... para a Requerente, uma no montante de €320.000,00, efectuada em 11-01-2018, e outra de € 372.301,02 efectuada em 22/01/2018.
A.2. Factos dados como não provados
Que a Requerente não haja mutuado ao seu sócio gerente qualquer valor do montante de Euro 1.091.577,18, registado na conta 26821 Activo Corrente - Empréstimos a sócios/B... .
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
O facto dado como não provado deve-se à insuficiência de prova a seu respeito. Com efeito, o único indício recolhido pela AT a este propósito foi a ausência de fluxos financeiros directos entre a Requerente e o seu sócio, o que, como se desenvolve infra, só por si, não permitirá concluir, com a necessária segurança e para lá de qualquer dúvida razoável, que não hajam sido passadas por outras vias disponibilidades monetárias para a esfera do sócio da Requerente, num quadro em que se apura, com segurança, conforme decorre do RIT, que este, de há longa data recebia directamente pagamentos devidos à Requerente, em termos assumidos por todos os envolvidos (devedor, Requerente e sócios) como liberatórios. De igual modo, não foi reunido qualquer indício de que os montantes recebidos pelo sócio, não tenham sido a título precário, tendo em vista a sua devolução à Requerente, ou utilização no seu proveito.
De resto, não se pode deixar de ponderar que tal prática já existia no período de 2014, em data anterior à instauração do procedimento inspectivo, quando se verificava já que, conforme refere o RIT, “a nível dos influxos na conta bancária de depósitos à ordem da sociedade no banco D..., identificam-se fluxos de entrada respeitantes a transferências bancárias de contas clientes e de contas particulares do sócio-gerente, bem como depósitos (...) cujo valor se aproxima do valor total das prestações de serviços”.
Bem assim, será ainda de relevar que a documentação relativa à existência de mútuos, está datada de momento anterior ao procedimento inspectivo, sendo que tal datação não foi questionada pela AT.
Neste contexto, em suma, não se julga que se possa dar como certo, para lá de qualquer dúvida razoável, que a Requerente não haja mutuado (designadamente autorizando-o a receber créditos seus, com a obrigação de restituir os montantes recebidos) ao seu sócio qualquer valor do montante de Euro 1.091.577,18, registado na conta 26821 Activo Corrente - Empréstimos a sócios/B... .
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem factos contrários ou incompatíveis com os dados como provados e não provado.
B. DO DIREITO
Nos presentes autos, verifica-se que a Autoridade Tributária e Aduaneira efectuou uma inspeção à Requerente, que incluiu o exercício de 2014, tendo entendido, além do mais e em suma, que:
• em 01/01/2014 o dinheiro da sociedade contabilizado em depósitos à ordem, no valor de € 1.022.261,60 (na conta 121 Depósitos à Ordem/D..., segundo o diário de abertura do exercício de 2014), que justifica os resultados transitados acumulados pela sociedade ao longo de vários anos, efectivamente não se encontrava na sociedade, uma vez que o saldo inicial dos extratos bancários da sociedade naquela instituição bancária (D...), naquela data, só justifica € 7.645,21;
• em 2014, foram sendo promovidos lançamentos na contabilidade, onde o sujeito passivo procurou demonstrar entregas aos sócios (transferindo directamente valores de “depósitos à ordem” para o património dos sócios e contabilizando-as directamente como um débito concedido aos sócios), que ocorreram na sequência de contratos de mútuo, celebrados entre a sociedade e os sócios ao longo desse exercício;
• a empresa não realizou quaisquer empréstimos aos sócios;
• o que as entregas de recursos financeiros efectuadas pela empresa aos sócios reflectem objectivamente, com origem em “Depósitos à ordem, é a colocação à disposição dos sócios de rendimentos, constituindo um incremento patrimonial na sua esfera;
• não estão reunidos os pressupostos para que tal colocação à disposição seja considerada rendimentos de trabalho (nomeadamente, o facto de não haver qualquer conexão dos valores em causa com o trabalho prestado), pelo que apenas se pode concluir que se está perante rendimento de capitais, sob a forma de distribuição de lucros ou adiantamento por conta de lucros;
• tendo-se demonstrado a inexistência de mútuos da sociedade aos sócios, face à inexistência de outros fundamento válido para fazer afastar a presunção prevista no artigo 6º, nº4 do CIRS, como seria o caso se resultassem da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais (o que não é o caso), terão que prevalecer as datas de lançamento dos mútuos expressas pela contabilidade;
• a sociedade reconheceu no seu balanço, o montante total de empréstimos concedidos aos sócios de € 1.091.577,18, lançados contabilisticamente em contas correntes de empréstimos concedidos a sócios, declarando-os na IES/DA do exercício de 2014;
• a distribuição de lucros e adiantamento por conta de lucros ocorreu em momento em que, de uma forma objectiva, se reconheceu contabilisticamente a sua colocação à disposição dos sócios, o que sucedeu mediante “o crédito dos depósitos à ordem” por débitos dos sócios;
• os rendimentos assim distribuídos aos sócios constituem rendimentos de capitais (categoria E), por força do artigo 5º, nº1, do CIRS, cujo enquadramento está especificado no nº 2 da al. h) daquele preceito;
• o valor de € 1.091.577,18 constitui o montante das entregas totais da sociedade aos sócios contabilizadas no exercício de 2014, e configurara uma distribuição de lucros ou adiantamento por conta de lucros (facto tributário), enquadráveis no disposto art.º 5°, nº 2, al. h) e no art.º 6°, nº4, ambos do CIRS;
• a distribuição de lucros ou adiantamentos por conta de lucros ocorreu no momento em que se reconheceu contabilisticamente a sua colocação à disposição dos sócios registando as entregas efectivas dos saldos de contas de depósitos à ordem em contas específicas de empréstimos aos sócios;
*
A Requerente, como se viu já, imputa os seguintes vícios à correção e liquidação impugnada:
i. ilegalidade do procedimento de inspeção, à face do artigo 36.º, n.º 2, do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira (RCPITA) por ter duração superior a 6 meses sem que tivesse havido prorrogação;
ii. caducidade do direito à liquidação de imposto, por a colocação à disposição dos sócios das importâncias em causa ter ocorrido antes do ano de 2014;
iii. erróneo enquadramento dos factos ocorridos em 2014 na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, designadamente em face da invocada existência de mútuos e relevância do reembolso parcial da quantia mutuada.
Vejamos cada uma delas.
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i.
Alega a Requerente que, tendo o procedimento de inspecção se prolongado para além do prazo de seis meses previsto no artigo 36.º, n.º 2 e 3 do RCPITA, sem que tivesse havido prorrogação do prazo do procedimento de inspecção e a Requerente tivesse sido notificada nos termos do artigo 36.º, n.º 4 do RCPITA, verifica-se uma ilegalidade do procedimento inspectivo que acarreta a invalidade do acto de liquidação daí decorrente.
A regulamentação do procedimento de inspecção tributária, tem, em primeira linha, uma finalidade essencialmente organizatória (ordenatória) e, na perspectiva dos sujeitos passivos, visará essencialmente definir quais as condições em que os efeitos jurídicos próprios de tal procedimento se reflectirão, eficazmente, na sua esfera jurídica, para além de assegurar a sua participação nas decisões que venham a ser tomadas.
Relativamente a este último aspecto, ressalva-se, todavia, que, atento o princípio geral da participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito, consagrado no artigo 60.º da LGT, sempre estarão os interesses juridicamente relevantes daqueles, nessa matéria, no essencial devidamente salvaguardados, independentemente da concreta regulamentação do procedimento de inspecção tributária. Acresce, ainda a este propósito, que, como princípio, o procedimento de inspecção tributária não tem, primacialmente, uma natureza decisória (daí que, por exemplo, o respectivo acto final – o relatório – não seja directamente impugnável, na medida em que não é, em si mesmo, lesivo), mas meramente preparatória ou acessória , pelo que a necessidade de salvaguarda da participação dos contribuintes na formação das decisões, no seu âmbito, será secundária.
Deste modo, a principal finalidade, sempre na perspectiva dos sujeitos passivos, da regulamentação do procedimento de inspeção tributária e da respectiva observação pela Administração Tributária, residirá na fixação dos condicionalismos legalmente necessários para que se reflitam eficazmente na esfera jurídica dos contribuintes, os efeitos jurídicos próprios do procedimento em questão, maxime a suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação dos tributos pela Administração, nos termos do artigo 46.º, n.º 1 da LGT, bem como a sujeição dos visados às garantias e prerrogativas da inspeção tributária (artigos 28.º e 29.º do RCPITA), e à aplicação de medidas cautelares (artigos 30.º e 31.º do RCPITA).
Com efeito, a instauração de um procedimento inspectivo externo, gera diversos deveres de colaboração e sujeição para o contribuinte, como sejam, por exemplo, o de facultar os elementos referidos nas als. c) e d) e o de acolher a inspecção nas suas instalações nos termos descritos nas als. a) e b), todas do n.º 2 do artigo 28.º do RCPITA.
Para além disso, um procedimento inspectivo externo, como se viu já, tem a virtualidade de suspender o decurso do prazo de caducidade do direito à liquidação.
Daí que, conforme referido, a normação que disciplina o procedimento de inspecção tributária tenha subjacente, em primeira linha, regular os termos em que é legítimo à Administração Tributária impor ao contribuinte os deveres, sujeições e demais efeitos desfavoráveis inerentes àquele procedimento inspectivo.
Assim, tem sido entendimento jurisprudencial que as invalidades do procedimento de inspecção externa não se projectam, imediata e automaticamente, na validade do acto de liquidação, podendo ver-se nesse sentido, por exemplo, os Acs. do STA de 25-02-2015, proferido no processo 0709/14, e Ac. do do TCA-Sul 24-05-2011, proferido no processo 04311/10.
Esta questão foi também apreciada, entre outras, na decisão arbitral proferida no processo 117/2019-T do CAAD, junta pela Requerida, tendo o Tribunal ali concluído em sentido oposto ao pugnado pela Requerente.
Como se escreveu naquela decisão arbitral (suportada no entendimento vertido Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27-02-2008, processo n.º 0955/07, de 07-05-2008, processo n.º 0102/08, e de 25-02-2015, processo n.º 0709/14), embora o artigo 36.º, n.º 2 e 3 do RCPITA consagre o prazo de seis meses como prazo de duração máxima do procedimento de inspecção, podendo este ser prorrogado por mais dois períodos de três meses, “o excesso do prazo de inspeção não tem, só por si, efeito invalidante da notificação, apenas implicando a cessação do efeito suspensivo da caducidade do direito de liquidação previsto no n.º 1 do artigo 46.º da LGT”.
Mais refere a citada decisão arbitral que, tal solução resulta actualmente da redacção do n.º 7 do artigo 36.º do RCPITA, aditado pela Lei n.º 75-A/2014 de 30 de Setembro, que estabelece expressamente que “o decurso do prazo do procedimento de inspeção determina o fim dos atos externos de inspeção, não afetando porém o direito à liquidação dos tributos” (sublinhado nosso).
Assim, e face ao exposto, deverá improceder o pedido arbitral nesta parte.
*
ii.
Suscita também, a Requerente, a questão do decurso do prazo de caducidade do direito de liquidação.
Esta questão foi também objecto de apreciação na referida decisão arbitral proferida no processo 117/2019-T, já referida na qual se entendeu que, conforme o disposto no artigo 45.º, n.º 1 da LGT, o prazo de caducidade do direito à liquidação é de quatro anos. A primeira parte do n.º 1 do artigo 46.º da LGT prevê a suspensão da contagem do referido prazo de caducidade quando decorra procedimento de inspecção. Porém, na factualidade em análise no referido processo, assim como na situação sub judice, uma vez que o procedimento de inspecção excedeu o prazo de seis meses e não se verificou nenhuma das situações previstas no n.º 5 do artigo 36.º do RCPITA, o procedimento inspectivo não tem efeito suspensivo do prazo de caducidade do direito de liquidação, atento o disposto na parte final do n.º 1 do artigo 46.º da LGT, e a jurisprudência já atrás citada.
Ora, o prazo de caducidade das liquidações por falta de retenção na fonte a título definitivo, nos termos do artigo 45.º, n.º 4 da LGT, conta-se a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou o facto tributário.
Com efeito, o prazo para emitir liquidações por falta de retenção na fonte que deviam ser efectuadas em 2014 terminava em 31-12-2018, não se verificando, portanto, o vício de caducidade do direito de liquidação relativamente a factos tributários ocorridos naquele exercício.
Não obstante, sustenta a Requerente que “atendendo à evidência documental apresentada, da qual decorre que os fluxos financeiros da Requerente para os sócios não se verificaram em 2014, mas sim, por maioria de razão, em exercícios anteriores, só se poderia concluir que o facto tributário (i.e., a colocação à disposição) ocorreu em períodos relativamente aos quais já se verificou a caducidade do direito à liquidação de imposto” (artigo 92.º do pedido arbitral).
Ora, da factualidade dada como provada consta que os pagamentos referentes a parte da facturação da Requerente eram efecutados ao sócio daquela, sem se verificar que, até 2014, aquela tenha, documental e/ou contabilisticamente, praticado qualquer acto exteriorizando o seu posicionamento quanto àquele facto, designadamente, no sentido de o autorizar, ou não, e, no primeiro caso, a que título (precário ou definitivo).
Como se escreveu no processo arbitral n.º 117/2019-T, em termos transponíveis para os presentes autos:
“a colocação à disposição dos associados de lucros ou adiantamentos por conta de lucros que a alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS configura como facto tributário que pressupõe um ato da sociedade de que se possa concluir que decidiu atribuir aos sócios quantias, o que não sucede quando, à revelia da vontade social, haja uma mera apropriação por sócios de quantias retiradas da sociedade ou que não chegaram sequer a ser entregues à sociedade”.
Por outro lado, e como é sabido, a ilicitude na obtenção dos rendimentos não afasta a tributação (artigo 1.º, n.º 1 e artigo 5.º, n.º 1 do CIRS).
Porém, como refere a decisão arbitral referida, “o facto de, eventualmente, terem ocorrido factos anteriores a 2014, tendo por objeto a disponibilidade por sócios de quantias pertencentes à sociedade, que poderiam ser tributados no âmbito da categoria E de IRS, relativamente às quantias que em 2014 vieram a ser indicadas como objeto de contratos de mútuo, não obsta a que não seja aplicada a tributação a factos que ocorreram em 2014, designadamente a colocação à disposição pela sociedade de lucros ou adiantamentos por conta de lucros a que se refere a alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS”. Pelo que, em caso de concurso de normas de incidência tributária, será de se afastar a cumulação de tributação relativamente a um mesmo rendimento, mas não haverá qualquer fundamento para não aplicar qualquer das normas se não ocorreu a cumulativa aplicação de outra.
Nestes termos, conclui-se que não tendo havido tributação por qualquer facto anterior a 2014, conexionada com a disponibilização aos sócios da Requerente das quantias que foram indicadas como objecto de contratos de mútuo em 2014, a questão que se coloca é apenas a de saber se os factos ocorridos se inserem no âmbito de incidência do referido artigo 5.º, n.º 2, alínea h) do CIRS, questão que se analisará de seguida.
Neste termos, e pelo exposto, deve improceder, também nesta parte, o pedido arbitral.
*
iii.
Sustenta ainda a Requerente que é de afastar “a presunção de adiantamento por conta de lucros prevista no artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS, pelo facto de os lançamentos contabilísticos em conta corrente dos sócios terem como base a existência de efectivos mútuos”.
Em causa está, assim, a apreciação da legalidade da aplicação da presunção do artigo 6.º, n.º 4 do CIRS que determina que os lançamentos em conta corrente do sócio, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, se presumem feitos a título de lucros ou adiantamentos de lucros.
Com interesse para a decisão da causa, dispõe o artigo 6.º do CIRS aplicável que:
“4 - Os lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.
5 - As presunções estabelecidas no presente artigo podem ser ilididas com base em decisão judicial, ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Direção-Geral dos Impostos.”.
Com relevo, também, para a situação sub iudice, dispõe o artigo 5.º do mesmo Código:
“1 - Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respetiva modificação, transmissão ou cessação, com exceção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias.
2 - Os frutos e vantagens económicas referidas no número anterior compreendem, designadamente: (...)
h) Os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respetivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20.º;”.
Releva, igualmente, o artigo 7.º do mesmo Código, ao dispor:
“1 - Os rendimentos referidos no artigo 5.º ficam sujeitos a tributação desde o momento em que se vencem, se presume o vencimento, são colocados à disposição do seu titular, são liquidados ou desde a data do apuramento do respetivo quantitativo, conforme os casos.(...)
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, atende-se: (...)
2) A colocação à disposição, para os rendimentos referidos nas alíneas h), i), j), l) e r), assim como dos certificados de consignação;”.
*
Sobre a matéria ora em causa, foi já proferida abundante jurisprudência dos tribunais superiores da jurisdição tributária, da qual são exemplos:
- Acórdão do TCA-Sul de 25-11-2008, proferido no processo 02544/08, e de 13-10-2009, proferido no processo 03221/09;
- Acórdão do TCA-Sul de 11-01-2011, proferido no processo 04357/10;
- Acórdão do TCA-Sul de 22-02-2011, proferido no processo 04487/11 (citado pela Requerida);
- Acórdão do TCA-Sul de 18-02-2016, proferido no processo 08760/15;
- Acórdão do TCA-Sul de 05-02-2015, proferido no processo 08216/14;
- Acórdão do TCA-Sul de 04-06-2015, proferido no processo 07453/14;
- Acórdão do TCA-Sul de 15-12-2016, proferido no processo 09929/16;
Com especial interesse para a concreta questão a dirimir nos autos, destacam-se ainda os seguintes arestos:
- Acórdão do STA de 15-12-2004, proferido no processo 01187/04, onde se pode ler:
“A decisão judicial, proferida em sede de impugnação judicial, segundo a qual o contribuinte não recebeu juros em contrato de mútuo em que foi mutuante constitui base suficiente à ilisão da presunção constante do artº 7º nº 5 do C.I.R.S.”
E, mais adiante:
“Dispõe o artº 7º nº 2 do CIRS que se presume que os mútuos são remunerados.
Por sua vez o nº 5 desta disposição legal estabelece que esta presunção pode ser ilidida com base em decisão judicial, acto administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento da Direcção Geral de Impostos.
Este preceito legal encontra paralelismo no anterior art.º 14º do C. do Imposto de Capitais que, para além de estabelecer idêntica presunção, prescrevia que a mesma só podia ser ilidida “por decisão judicial proferida em acção intentada pelo contribuinte contra o Estado, em que se declare ter ficado provado que não foram recebidos juros antecipadamente, nem eram ou são devidos ou, sendo-o, têm taxa diferente, ou por declaração passada pelo Banco de Portugal em que se confirme a taxa de juro efectivamente praticada ou a sua inexistência”.
Do confronto destas disposições legais resulta, desde logo, não ser agora necessária, como era, decisão judicial proferida em acção cível intentada pelo contribuinte contra o Estado, com vista à ilisão de tal presunção.
Assim sendo nada impede que a decisão judicial a que agora alude o art.º 7º nº 5 do CIRS seja proferida, como no caso foi, em processo de impugnação judicial.
Por outro lado, de tal confronto resulta também que, não se prevendo, no regime anterior, qualquer limitação quanto aos meios de prova de que o interessado pudesse lançar mão para o efeito, não se vê, face ao actual quadro legal, que o processo de formação da dita decisão judicial não se possa apoiar, ao contrário do que afirma a F.P., em prova testemunhal e/ou documental.
De resto, como afirma André Salgado de Matos (CIRS, anot., 1999, fls. 148/149) esta presunção é ilidível, sob pena de inconstitucionalidade, podendo a prova de que não corresponde à realidade ser feita pelo sujeito passivo através de qualquer meio legalmente admissível, nos termos gerais de Direito, nomeadamente os que a F.P., no recurso, entende não serem admissíveis.
Em suma, volvendo ao caso dos autos, não suscita reparos a decisão recorrida, no ponto ora em análise, sendo base adequada à ilisão da dita presunção, pois que é, obviamente, uma decisão judicial, tendo sido proferida em impugnação judicial que é meio adequado para o efeito, com base em meios de prova admitidos nos termos gerais do Direito.”;
- Acórdão do TCA-Sul de 13-04-2010, proferido no processo 03461/09, onde se pode ler:
“1. Constituem rendimentos da categoria E do IRS os rendimentos lançados em quaisquer contas correntes dos sócios, escriturados nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, que, em princípio, se presumem feitos a título de lucros ou de adiantamento dos lucros;
2. Para tal presunção de incidência do imposto se verificar, é necessário que se mostre provada a base da presunção judicial, sob pena de a mesma não poder operar e a causa ter de ser decidida contra parte onerada com esse ónus da prova;
3. Não tendo a AT provado a base dessa presunção (os lançamentos em conta corrente do sócio escrituradas nessa sociedade) não pode a mesma fundar a liquidação na presunção que dela resultava, que assim é ilegal, por inexistência de facto tributário.”.
E, mais adiante:
“No caso, entendeu a AT tributar o ora recorrente com base no facto desconhecido – que tal importância depositada pela sociedade a seu favor resultava de lucros ou adiantamentos dos lucros dessa mesma sociedade – que fez subsumir à norma do n.º4 do art.º 7.º do CIRS, mas sem curar de demonstrar e nem de provar a base da presunção, ou seja que tal importância tenha sido escriturada como lançamento na sua conta corrente como sócio e que não resultava de mútuo, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, antes tendo mesmo apurado que este montante não se encontrava relevado na conta deste sócio (cfr. relatório a fls 11 do PAT apenso), pelo que, desta forma não se encontra preenchida a base da presunção, não podendo a mesma concluir pela atribuição dessa importância a tal título, como o resultado daquela, que como se viu, não existia, pelo que a liquidação, perante esta factualidade, não poderia ter sido efectuada ao abrigo desta norma de incidência, que assim se revela indevida por inexistência deste facto tributário.
Nos termos do disposto nos art.ºs 74.º, n.º1 da LGT e 342.º, n.º1 do CC, a base da presunção judicial deve imperativamente ser provada com os correspondentes factos dela integradores sob pena de a causa ser decidida em sentido desfavorável à parte onerada com esse ónus, ou seja à AT, e, perante tal falta, o resultado que com a presunção judicial se visava obter não se pode dar por alcançado”
- Acórdão do TCA-norte de 07-07-2016, proferido no processo 00446/11.9BEBRG, onde se pode ler:
“I - O artigo 6.º, n.º 4 do CIRS consagra uma presunção relativa a rendimentos de capitais, de que as quantias escrituradas em quaisquer contas de sócios de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quantias essas que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.
III - Só os lançamentos feitos em conta de sócio (e que não se prove que respeitem a alegados mútuos) se presumem, face ao disposto no n.º 4 do artigo 6.º do CIRS, feitos a título de lucros ou adiantamento de lucros.
IV - A Administração Tributária não lançou mão da presunção constante deste normativo, porque a quantia em apreço não estava escriturada numa conta de sócios da sociedade.
V - Competia à Administração Tributária fazer prova dos pressupostos do seu agir (cfr. artigo 74.º, n.º 1, da LGT), sendo que, no caso concreto tal não se verificou, dado que não se encontram reunidos os factos índice que permitem à Administração Tributária fazer o enquadramento de valores contabilísticos como rendimentos da categoria E, colocados à disposição dos sócios, nos termos previstos no artigo 5.º, nºs.1 e 2, alínea h) do CIRS, assim padecendo a liquidação impugnada de vício de violação de lei.”
*
Posto isto, cabe, à luz dos entendimentos acima sedimentados, apreciar o fundo da causa.
A matéria sub iudice suscita, desde logo, uma questão decorrente do entendimento pacífico, e reiterado na jurisprudência acima citada, de que compete “à Administração Tributária fazer prova dos pressupostos do seu agir”.
Estando em causa a norma do art.º 6.º, n.º 4 do CIRS, compete, in casu, à AT fazer prova dos respectivos pressupostos.
Sucede que a redacção de tal norma é equívoca nos termos do respectiva formulação, não resultando claro da mesma se, para se prevalecer da presunção ali consagrada, à AT cumpre apenas demonstrar a existência de lançamentos em contas correntes dos sócios, ou se, para além disso, lhe incumbe ainda o ónus de demonstrar que tais lançamentos não resultam de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais (prova negativa).
Não tendo sido tal questão objecto de tratamento directo na jurisprudência analisada, é possível detectar entendimentos divergentes a tal respeito.
Assim, se o citado Acórdão do TCA-Sul de 11-01-2011, proferido no processo 04357/10, se aparenta bastar com a prova da existência de movimentos nas contas de sócios, já o também citado Acórdão do TCA-Sul de 13-04-2010, proferido no processo 03461/09, parece considerar que a base da presunção abrange a demonstração de “que tal importância tenha sido escriturada como lançamento na sua conta corrente como sócio e que não resultava de mútuo, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais”.
Tendo em conta o teor literal da norma em questão, propende-se para este último entendimento, ou seja, de que a AT deverá demonstrar que as importâncias que pretende presumir como atribuídas a título de lucros ou adiantamentos por conta dos lucros:
a) tenham sido escrituradas em quaisquer contas correntes dos sócios; e
b) não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.
Efectivamente, ao constarem tais circunstâncias, na norma do art.º 6.º, n.º 4 do CIRS, previamente à estatuição da presunção, indicia-se ter sido intuito legislativo de que apenas verificadas todas elas, possa operar a presunção consagrada, devendo o facto de as importâncias escrituradas não resultarem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais ser entendido como um facto base da presunção, e não o facto contrário como um facto impeditivo da mesma.
Não obstante ser questionável a opção tomada, tendo em conta a dificuldade acrescida típica da prova de factos negativos, crê-se ter sido essa a consagrada no texto legislativo em causa.
Ora, e desde logo, tendo em conta os factos apurados no RIT, e a respectiva fundamentação, não se poderá considerar realizada, para lá da dúvida razoável, a prova referida, ou seja, a prova de que as importâncias em questão nos autos, não tenham resultado de mútuos.
Com efeito, a AT, na fundamentação ora sindicada, apenas se limita a infirmar a prova apresentada pela Requerente, designadamente a inscrição contabilística como empréstimos a sócios, a existência de recibos (cuja genuinidade não questiona), e a “devolução” parcial operada em 2018, não fazendo ela própria qualquer esforço probatório na matéria relativa à (in)existência de qualquer mútuo, aparte a indicação de que não se verifica “correspondência nas evidências dos fluxos financeiros do sujeito passivo a favor dos sócios”, operando, na prática uma inversão (não legalmente sustentada) do ónus da prova, relativamente à circunstância controvertida da (in)existência de qualquer mútuo.
Daí que, face a tal défice probatório, haverá que concluir, com o supra-referido Acórdão do TCA-Sul de 13-04-2010, proferido no processo 03461/09, que “Não tendo a AT provado a base dessa presunção (...) não pode a mesma fundar a liquidação na presunção que dela resultava, que assim é ilegal, por inexistência de facto tributário.”.
Em todo o caso, e mesmo que se entendesse, como parece decorrer de alguma outra jurisprudência citada, que à AT apenas cumpre demonstrar a existência de lançamentos em contas correntes dos sócios, competindo, assim, ao contribuinte a demonstração de que aqueles resultam de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, sempre se haveria de concluir da mesma forma.
Efectivamente, e como já indicado, encontra-se provado que as importâncias em questão foram objecto de inscrição contabilística como empréstimos a sócios (o que é reconhecido pela própria AT), a existência de recibos (cuja genuinidade a AT não questionou), bem como a “devolução” daquelas importâncias operada em 2017 (também reconhecida pela AT).
E não se encontra provado que aquelas mesmas importâncias não hajam sido entregues a título de mútuo.
Ponderada a circunstância invocada pela AT nesta matéria, de não se verificar “correspondência nas evidências dos fluxos financeiros do sujeito passivo a favor dos sócios”, naturalmente que a mesma não assumirá, desligada de outros factos, qualquer relevância determinante na matéria, uma vez que a existência de um contrato de mútuo não pressupõe, por qualquer forma, a existência de fluxos directos entre mutuante e mutuário.
Esta conclusão não contende, naturalmente, com a natureza real quod constitutionem consensualmente reconhecida ao contrato de mútuo.
Com efeito, sendo, sob pena de nulidade, necessário à validade do mútuo a entrega da coisa, esta pode ser entregue, naturalmente, pelo mutuante, ou por terceiro, antes ou depois da formalização do contrato.
Assim, como se escreveu no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 25-11-2013, proferido no processo 4316/11.2TBVFR-A.P1, concluir-se-á pela nulidade do mútuo, no que ao requisito agora sob análise diz respeito, quando “não ocorreu, nem na data da sua celebração, nem antes nem depois, a entrega de qualquer quantia pecuniária”.
Ora, no caso, não se demonstra que não tenha ocorrido tal entrega, designadamente em períodos anteriores a 2014, antes pelo contrário, já que essa entrega é pressuposta pela própria tributação aplicada, para além de resultar do RIT, e do alegado pela Requerente, que as entregas terão ocorrido em exercícios anteriores a 2014, consistindo em pagamentos devidos à Requerente, feitos na pessoa do seu sócio, e por ele recebidos.
Efectivamente, não fossem os pagamentos feitos ao sócio da Requerente, recebidos em nome desta, não poderiam ser considerados adiantamentos por conta dos lucros.
E, concluindo-se que não foram aqueles pagamentos feitos aos sócios da Requerente, por esta, dever-se-ia então julgar infirmada a presunção do artigo 6.º, n.º 4 do CIRS, já que, como refere a Requerida, e se verifica, não existem fluxos financeiros da Requerente para os seus sócios, no ano de 2014.
Acresce que, a aceitar-se a tese que, previamente a 2014, o sócio da Requerente tivesse feito suas quantias devidas à Requerente, sem o consentimento desta , indiciar-se-ia um crime de abuso de confiança agravado, em função do valor, de natureza pública e, consequentemente, de comunicação obrigatória ao Ministério Público, nos termos do art.º 242.º/1/b) do Código de Processo Penal.
Também o argumento esgrimido pela AT, relativamente à nulidade do mútuo, por vício de forma, deverá julgar-se insusceptível de acolhimento.
Assim, e como é consabido, a invalidade de um negócio jurídico, não se confunde com a sua inexistência, e da norma do art.º 6.º, n.º 4 do CIRS não é possível extrair a interpretação de que a mesma se restrinja, no que para o caso interessa, a mútuos validamente celebrados.
Por outro lado, é igualmente certo que os negócios jurídicos, mesmo inválidos (anuláveis ou nulos), são susceptíveis de produzir efeitos jurídicos, designadamente, e também no que para o caso importa, a obrigação de restituir as prestações recebidas por força do negócio inválido, em termos de a confissão de dívida, em escrito particular, relativa a um mútuo nulo por falta de forma, ser aceite como título executivo da obrigação de restituir a importância entregue .
Esta circunstância não poderá, naturalmente, deixar de relevar para a matéria em análise, na medida em que está em causa a tributação de uma importância (presumidamente) deferida a título de rendimento, por uma sociedade a um seu sócio.
Ora, se essa importância tiver sido deferida no quadro de um negócio jurídico, ainda que nulo, do qual emerge a obrigação de a restituir, a mesma não constituirá, formal e substancialmente, um rendimento de quem a recebeu e está obrigado a restituir, seja por força de um contrato de mútuo, ou da nulidade deste.
Assim, e como se escreveu no Acórdão arbitral proferido no processo n.º 165/2013-T do CAAD, em termos que se subscrevem :
“Entende a Requerida que o Contrato de Mútuo não respeita os requisitos formais exigidos pelo artigo 1143.º do Código Civil, razão pela qual não é válido. Assim, considera que estamos perante adiantamentos de lucros, os quais deveriam ter sido tributados em IRS.
É certo que, nos termos do disposto no artigo 1143.º do Código Civil, o mútuo de valor superior a €25.000 só é válido se for celebrado por escritura pública e o de valor superior a €2.500 se o for por documento assinado pelo mutuário. Decorre no artigo 294.º do Código Civil que os negócios jurídicos celebrados contra disposição de carácter imperativo, como é o caso, são nulos.
A nulidade, nos termos do disposto no artigo 286.º do Código Civil, é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal. A declaração de nulidade tem efeito retroactivo, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil, devendo ser restituído tudo o que for prestado.
Efectivamente, como aliás alega a Requerida, estamos perante uma matéria de direito civil, pelo que, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 11.º da LGT, as normas fiscais em análise devem ser interpretadas recorrendo aos termos próprios desta área do direito. Por outro lado, a lei fiscal, ou a aplicação que dela é feita, não pode criar previsões normativas diferentes das existentes nos diplomas próprios.
Dito de outra forma: o Código Civil prevê que os contratos de mútuo que não cumpram os requisitos de forma legalmente estabelecidos são nulos, não podendo produzir quaisquer efeitos, devendo ser restituído tudo o que foi prestado (o mutuário deve restituir o valor recebido e o mutuante deve restituir os juros eventualmente recebidos). É esta a cominação legalmente prevista para a falta de cumprimento dos requisitos de forma associados ao contrato de mútuo. No fundo, a lei determina que é como se o contrato de mútuo nunca tivesse existido, desaparecendo da ordem jurídica tanto o contrato como os seus efeitos.
Esta é a única consequência do não cumprimento dos requisitos formais previstos na lei. Não resulta, todavia, da lei, que do contrato de mútuo nulo possam advir outras consequências. E, assim, não pode aplicar-se a lei fiscal no sentido de retirar do incumprimento desta formalidade consequências diferentes das legalmente previstas. Ou seja, se o contrato de mútuo é nulo por falta de forma, pode determinar-se a restituição do que foi prestado, mas não pode considerar-se que da invalidade resulta que os montantes pagos ao abrigo do contrato têm outra natureza que não a de mútuo.
Assim, tem de se concluir que, o facto de terem sido preteridas as formalidades na celebração do contrato de mútuo não pode ter como consequência que o contrato não existiu e, portanto, estamos perante uma realidade diferente – no caso, um adiantamento de lucros. E se, perante a nulidade do contrato, as partes ficam obrigadas a restituir o que receberam, poderá, no limite, entender-se que o mesmo deve suceder neste caso, devendo o sócio-gerente restituir os valores registados na conta corrente antes identificada, mas não pode considerar-se que, por falta de cumprimento das formalidades que estão associadas à celebração deste tipo de contrato, a operação substancialmente praticada (um mútuo) deve ser qualificada de outra forma.
É certo que, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 36.º da LGT, “A qualificação do negócio jurídico efetuada pelas partes, mesmo em documento autêntico, não vincula a administração tributária.”. Por outro lado, cumpre também aludir ao número 1 do artigo 74.º da LGT, nos termos do qual o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos recai sobre quem os invoque, bem como ao número 1 do artigo 75.ºdo mesmo diploma, nos termos do qual se presumem verdadeiros e de boa-fé os registos contabilísticos dos contribuintes, quando realizados nos termos da legislação fiscal e comercial. Esta presunção não se verifica quando ocorrer uma das circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 75.º da LGT – o que não é o caso.
Acresce que, nos termos do disposto no artigo 293.º do Código Civil, “O negócio nulo ou anulado pode converter-se num negócio de tipo ou conteúdo diferente, do qual contenha os requisitos de substância e forma, quando o fim prosseguido pelas partes permita supor que elas o teriam querido, se tivessem previsto a invalidade.”. Assim, no limite, poderia considerar-se estarmos perante um contrato-promessa de mútuo, o qual não teria de respeitar as exigências de forma, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 410.º do Código Civil. Assim, os pagamentos seriam realizados por conta de um contrato de mútuo definitivo, a celebrar em data a indicar.
De referir ainda que, o registo contabilístico dos montantes pagos ao sócio foi realizado numa conta 268, que é uma conta de Accionistas/Sócios – Outras Operações. Habitualmente, são registadas nesta conta as operações com os sócios que não sejam adiantamentos de lucros, resultados atribuídos ou lucros disponíveis, entre outros. O registo a débito reflecte um pagamento realizado pela sociedade, pelo que, o registo feito para efeitos contabilísticos é coincidente com o enquadramento que foi dado à operação.
Portanto, verifica-se que o registo contabilístico dos movimentos associados a esta operação, nos vários exercícios em causa, está realizado em termos semelhantes ao do contrato de mútuo. Também aqui deve ser referido o disposto no n.º 1 do artigo 75.º da LGT, ou seja, não tendo a contabilidade da Requerente sido posta em causa, deverá considerar-se que a mesma espelha a realidade dos factos – e, portanto, que foi efectivamente celebrado um contrato de mútuo entre a Requerente e o sócio-gerente.
Em suma, verifica-se que as liquidações emitidas têm como único fundamento o não cumprimento pela Requerente das formalidades associadas à celebração do contrato de mútuo. No entanto, esse fundamento é meramente formal. O n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS estabelecia uma presunção nos termos da qual “os lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultarem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento de lucros.”. As presunções podem ser ilididas, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 351.º do Código Civil, o que se verificou neste caso1 – a Requerente apresentou o Contrato de Mútuo celebrado com o sócio-gerente, tendo registado contabilisticamente a operação em conformidade, o que permite ilidir a presunção de que a operação configuraria um adiantamento por conta de lucros.
Neste contexto, o ónus da prova de que o contrato não correspondia efectivamente a um contrato de mútuo foi devolvido à Administração Tributária e Aduaneira. Sucede que, nenhuma prova foi feita a este respeito – apenas foi alegado que, em virtude de o contrato não ter sido celebrado por escritura pública, o mesmo não era válido e portanto deveria qualificar-se como adiantamento por conta de lucros. Assim, e porque a Administração Tributária não logrou fazer prova do facto alegado (que os montantes em causa foram entregues a título de adiantamento por conta de lucros), deve considerar-se que a operação existe na ordem jurídica nos termos em que foi definida pela Requerente. Estamos, assim, perante um contrato de mútuo, sendo os pagamentos feitos ao sócio-gerente entregas dos valores mutuados.
As disponibilizações de montantes feitas no âmbito contrato de mútuo não configuram rendimentos do sócio-gerente, não estando por isso sujeitas a tributação, nem através de retenção na fonte, nem a final. Assim, a correcção deverá improceder.”
“lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais”.
Deste modo, mesmo que se entendesse que à AT apenas cumpre demonstrar a existência de lançamentos em contas correntes dos sócios, competindo ao contribuinte a demonstração de que aqueles resultam de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, ponderados os elementos de prova apresentados pela Requerente e pela AT, sempre se concluiria, no limite, pela existência de fundada dúvida sobre a existência do facto tributário, nos termos pressupostos pelo art.º 100.º do CPPT, determinante da anulação do acto tributário, tal como julgado no Acórdão do TCA-Sul de 06-03-2001, proferido no processo 1703/99.
A anulação da liquidação de imposto, acarreta, consequentemente, a anulação da liquidação de juros sobre aquele.
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Quanto ao pedido de juros indemnizatórios formulado pela Requerente, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
No caso, o erro que afecta a liquidação anulada é imputável à Requerida, que a emitiu sem o necessário suporte legal.
Tem, pois, direito a Requerente a ser reembolsada da quantia que pagou (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT) por força do acto anulado e, ainda, a ser indemnizada do pagamento indevido através do pagamento de juros indemnizatórios, pela Requerida, desde a data daquele pagamento, até ao seu reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
a) Anular o acto de liquidação de retenções na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2017..., relativo ao período de tributação de 2014, no valor de €348.754,29, assim como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que teve o referido acto de liquidação como objecto;
b) Condenar a AT na devolução do imposto indevidamente pago por força da liquidação anulada, e no pagamento de juros indemnizatórios nos termos acima indicados;
c) Condenar a Requerida nas custas do processo, no montante abaixo fixado.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 348.754,29, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 5.814,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela AT, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 4 de Novembro de 2019
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho)
O Árbitro Vogal
(Pedro Miguel Bastos Rosado)
O Árbitro Vogal
(Adelaide Moura)