Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 329/2019-T
Data da decisão: 2019-10-11  IRC  
Valor do pedido: € 81.707,87
Tema: IRC – Gastos – Dedutibilidade – Indispensabilidade
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DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

                Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dra. Marisa Isabel Almeida Araújo e Dr. Amândio Silva (árbitros vogais) designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 17-07-2019, acordam no seguinte:

 

 

1. Relatório

 

A... SGPS, S.A., contribuinte n.º..., registada sob o mesmo número na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, com sede ..., ..., ...-..., Lisboa, (doravante “Requerente”), veio ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, tendo em vista a anulação dos seguintes actos:

– liquidação de IRC n.º 2018...;

– liquidação de juros compensatórios – pagamentos por conta n.º 2018...;

– liquidação de juros compensatórios – retardamento da liquidação n.º 2018...; e de

– juros de mora n.º 2018... .

                               A Requerente pede ainda restituição do montante pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios.

                É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 08-05-2019.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 27-06-2019, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 17-07-2019.

A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, defendendo a improcedência do pedido.

Por despacho de 14-06-2019 foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e é competente.

As Partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

 

2.1. Factos provados

A)           A ora Requerente é uma sociedade que tem como objecto social a gestão de participações sociais;

B)           A Requerente encabeça o Grupo B..., que tem como mercados principais Portugal, Espanha, Moçambique e Angola, sendo o Grupo societário composto, pelas seguintes sociedades:

- a C..., S.A. (doravante, “C..." ou “C...");

- a D..., S.L.U.;

- a E..., SAU;

- a F... .

C)           A Requerente encontra-se inscrita, enquanto sociedade dominante, e para efeitos tributários, no Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (“RETGS"), nos termos do artigo 69.º do Código do IRC;

D)           No decurso dos anos de 2017 e 2018, a C... foi objecto de um procedimento de inspecção tributária, no âmbito do qual foi analisada pelos Serviços de Inspecção Tributária a situação tributária daquela entidade relativamente ao exercício de 2014;

E)            O procedimento de inspecção tributária teve na sua base a Ordem de Serviço n.º Ol2017..., datada de 13 de Março de 2017, e com Despacho de 15 de Março de 2017;

F)            Nessa inspecção foi elaborado o Relatório da Inspecção Tributária que consta do processo administrativo cujo teor se dá como reproduzido;

G)           Da referida acção de inspecção resultaram, em sede de IRC, correcções ao resultado da C... no montante de 292.025,87€, referente à não aceitação da dedutibilidade de gastos financeiros, por a Autoridade Tributária e Aduaneira ter entendido que os gastos com financiamentos obtidos pela C... junto de instituições bancárias não são dedutíveis para efeitos fiscais, uma vez que a Requerente contrai financiamentos pelos quais suporta encargos financeiros e, simultaneamente, concede financiamentos a outras empresas sem qualquer remuneração;

H)           Durante o período de tributação de 2014, a sociedade C... contraiu diversos empréstimos junto da banca e instituições financeiras que, à data de 31/12/2014 totalizavam 4.417.841,61€, conforme resulta do seguinte quadro:

 

I)             A C... suportou com os referidos financiamentos encargos financeiros no montante de 292.025,87€ que considerou como gasto tanto para efeitos contabilísticos como fiscais;

J)            No mesmo período de tributação a C... concedeu financiamentos não remunerados à Requerente, à D..., SL sociedade pertencente ao Grupo e à sociedade “G..., Lda” (doravante “G...”), que à data ascendiam a € 6.057.710,53, conforme resulta do seguinte quadro:

 

K)           Foram celebrados em 2009 e 2014 contratos entre a Requerente e a C... com a designação de contrato de concessão de crédito entre sociedades em relação de grupo, pelos quais esta concedeu àquela importâncias destinadas a suprir dificuldades de tesouraria, não se vencendo juros;

L)            Foram celebrados contratos entre a C... e a D... SL, denominados acordos de prestações acessórias, com referência aos anos de 2010, 2012, 2013 e 2014;

M)          Nos contratos entre a C... e a D... SL refere-se que esta tem vindo a carecer de meios financeiros e, a fim de suprir tal carência acordaram em que a C... efectuasse as prestações acessórias a fim de os montantes serem utilizados na prossecução do seu objecto social, sem serem devidos juros;

N)           No que concerne à empresa G..., foi celebrado o Contrato de Gestão Conjunta de Activo, firmado em 2009, entre a C... e as sociedades de direito espanhol D..., SL e a E..., SA, que consiste no desenvolvimento de uma plataforma informática denominada ...; em 2012 foi feita uma adenda respeitante à adesão da G... ao projecto;

O)           Não foi apresentado qualquer documento respeitante à concessão de crédito pela C... à G...;

P)           Os movimentos ocorridos no período de 2014 respeitantes à G... resultaram num saldo devedor de e 584.431,29 em 31-12-2014;

Q)           Na fundamentação das correcções refere-se no Relatório da Inspecção Tributária, além do mais o seguinte, depois de transcrever o artigo 23.º do CIRC, n.ºs 1 e 2 alínea c), na redacção da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro:

(...)

Da análise ao normativo fiscal anteriormente mencionado, resulta que são necessários três requisitos essências para que os encargos financeiros suportados sejam valorados fiscalmente como gasto: a comprovação documental, o carácter de indispensabilidade e o da ligação aos rendimentos sujeitos a imposto.

O primeiro requisito reporta à efetividade da realização dos gastos o que consiste em várias formas de apoio escritural aos lançamentos contabilísticos, ou seja, à prova documental.

O segundo faz depender a dedutibilidade fiscal do gasto de uma relação justificada com a atividade produtiva do sujeito passivo e esta indispensabilidade ocorre quando esses gastos se relacionem com a obtenção de lucro.

Quanto ao terceiro requisito, que compõe a cláusula geral de dedutibilidade em matéria de gastos na formulação legal introduzida pelo Código do IRC, é o da exigência de ligação aos rendimentos sujeitos a imposto. De forma a obter ou garantir os mesmos. Os gastos têm de estar relacionados com a atividade da empresa e têm de contribuir para a obtenção de ganhos.

Ou seja, nos termos do n.º 1 do artigo 23.º daquele normativo, são dedutíveis os gastos e perdas que foram contraídos no âmbito da atividade da empresa, isto é, todos aqueles que potenciem o bom desenvolvimento da empresa e claro, o seu objetivo último, o lucro.

Efetivamente, o gasto tem de garantir rendimentos sujeitos a IRC, o que revela um reforço da congruência económica entre o gasto suportado no âmbito da atividade da empresa e o rendimento conexo, com vista a potenciar o seu desenvolvimento e a assegurar os rendimentos sujeitos a IRC.

Com efeito e conforme se viu, o gasto tem de estar devidamente comprovado e tem de se encontrar adstrito à obtenção de rendimentos sujeitos a IRC, ou garantir, de forma clara, a obtenção desses mesmos rendimentos, em conjugação com as obrigações contabilísticas formais do artigo 123.º do CIRC, por forma a assegurar a legitimidade e consistência dos gastos da atividade empresarial e a sua congruência com a atividade da empresa, com o seu escopo social e, com o seu fim último que é o lucro.

(...)

 No caso em análise, verifica-se que o sujeito passivo contrai financiamento e, simultaneamente, concede financiamento a outras empresas, suportando encargos financeiros, que contabilizou como gastos, não existindo a obtenção do equivalente ganho financeiro destes empréstimos efetuados, designadamente juros.

Do exposto, não emerge da situação em apreço, que o montante contabilizado a título de juros e Imposto do Selo de empréstimos bancários, possui o caráter qualitativo de comprovadamente ser indispensável para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a imposto, pelo que não será de aceitar fiscalmente as importâncias contabilizadas pelo sujeito passivo, por não se encontrar cumprido o princípio basilar da dedutibilidade de gastos ou perdas que preside o artigo 23.º do CIRC.

(...)

 O montante total dos financiamentos concedidos às empresas do grupo e à empresa “G...” (€ 6.057.710,53) sem remuneração associada, é largamente superior ao valor total de financiamentos obtidos pelo sujeito passivo junto de entidades bancárias (€ 4.417.841,61), pelo que se infere que, caso o sujeito passivo não tivesse canalizado meios financeiros para as empresas do grupo através de empréstimos concedidos, não teria que recorrer ao financiamento bancário e, consequentemente, suportado encargos financeiros. (...)

R)           Na sequência da inspecção, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu as seguintes liquidações:

– liquidação de IRC n.º 2018...;

– liquidação de juros compensatórios – pagamentos por conta n.º 2018...;

– liquidação de juros compensatórios – retardamento da liquidação n.º 2018...; e de

– juros de mora n.º 2018....

S)            Em 15-03-2019, a Requerente pagou a quantia liquidada no valor de € 81.707,87 (documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

T)            Em 07-05-2019, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e no processo administrativo.

Não há controvérsia sobre a matéria de facto.

 

3. Matéria de direito

 

               

A Requerente é a sociedade dominante de um grupo de sociedades em que se integra a sociedade C...- Viagens, S.A. (doravante «C...» ou “C...”).

No exercício de 2014, a C... contraiu empréstimos remunerados que, em 31-12-2014, totalizavam € 4.417.841,61, suportando, no exercício de 2014, encargos financeiros no montante de € 292.025,87 que considerou como gasto tanto para efeitos contabilísticos como fiscais.

 No mesmo período de tributação a C... concedeu financiamentos não remunerados à Requerente, à D..., SL sociedade pertencente ao Grupo e à sociedade G..., Lda, que à data ascendiam a € 6.057.710,53.

 

3.1. Posições das Partes

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu

 

– «que o montante contabilizado a título de juros e Imposto do Selo de empréstimos bancários, possui o caráter qualitativo de comprovadamente ser indispensável para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a imposto, pelo que não será de aceitar fiscalmente as importâncias contabilizadas pelo sujeito passivo, por não se encontrar cumprido o princípio basilar da dedutibilidade de gastos ou perdas que preside o artigo 23.º do CIRC»;

– que «o montante total dos financiamentos concedidos às empresas do grupo e à empresa “G...” (€ 6.057.710,53) sem remuneração associada, é largamente superior ao valor total de financiamentos obtidos pelo sujeito passivo junto de entidades bancárias (€ 4.417.841,61), pelo que se infere que, caso o sujeito passivo não tivesse canalizado meios financeiros para as empresas do grupo através de empréstimos concedidos, não teria que recorrer ao financiamento bancário e, consequentemente, suportado encargos financeiros.

 

A Requerente defende o seguinte, em suma:

– não existe na lei (aplicável à data dos factos) qualquer critério e muito menos “principio” da indispensabilidade dos gastos;

– os gastos estão devida e documentalmente comprovados, bem como se encontram relacionados com a actividade empresarial da C...;

– quer os empréstimos quer os investimentos efectuados pela C... às entidades do Grupo têm como fim e resultado a obtenção de rendimentos;

– os gastos não têm estar directamente associados a um rendimento tributável;

– pelo simples facto de haver créditos concedidos pela C..., quaisquer gastos de financiamentos a que esta recorra deixem de ser dedutíveis;

– a negação da dedutibilidade dos gastos de financiamento pela Administração Tributária não se funda em critérios legais de dedutibilidade deste tipo de gastos, mas sim, num critério do que, para si, seria necessário ou desnecessário, de acordo com os seu próprio entendimento do que deveria ser a gestão da C... - o que não se aceita;

– os empréstimos concedidos pela C..., embora não vençam juros a seu favor, nem por isso deixam de ter relação com o escopo societário ou relação com proventos a favor desta;

– os empréstimos concedidos pela C... tiveram como objectivo e como efeito, a possibilidade do Grupo se expandir e operar em diversos mercados, tendo a C... gerado (também) através desse facto, negócio próprio, aumentando o seu resultado tributável (e do Grupo);

– a Administração Tributária bastou-se pela circunstância de existir financiamentos e empréstimos contabilisticamente reconhecidos, sem lograr aferir e muito menos provar, que efectivamente aqueles financiamentos tiveram como destino ou objectivo custear os empréstimos concedidos;

– os meios financeiros são por natureza fungíveis, sendo difícil, senão impossível, lançar mão de qualquer método de afetação directa ou especifica de afectação dos encargos financeiros suportados;

– é intolerável qualquer tipo de método indirecto - no caso, aliás, totalmente infundamentado - de afectação de gastos financeiros quando se esteja, como no caso vertente, perante uma sociedade com efectiva actividade operacional, e que não tenha por objecto único ou sequer predominante a gestão de participações ou a canalização de recursos financeiros;

– não existe qualquer correspondência de valores entre os montantes dos financiamentos contraídos e os empréstimos concedidos;

– não ter logrado estabelecer qualquer relação factual entre os financiamentos obtidos e os empréstimos concedidos pela C..., nunca poderia a Administração Tributária recusar a dedutibilidade dos gastos gerados pelos primeiros, nos termos dos artigos 23.ºdo Código do IRC e 74.ºda LGT, com base nos fundamentos invocados;

– a Autoridade Tributária e Aduaneira teria de demonstrar que os financiamentos captados pelo sujeito passivo a montante o foram directa e totalmente direcionados à concessão de empréstimos a jusante;

– conforme resulta do Relatório, a C... procedeu, por motivos estratégicos, no ano de 2012, à entrada num negócio referente a uma plataforma tecnológica (denominada ...) que vinha sendo desenvolvida, conjuntamente, por várias entidades do Grupo;

– em 2012 foi celebrada uma adenda ao contrato de gestão conjunta de activos (este de 2009), que havia sido celebrado entre as entidades D... S.L e E..., S.A., que lhe permitiria a entrada nesse mesmo contrato, para efeitos do desenvolvimento e lançamento da aludida plataforma tecnológica, enquanto co-proprietária;

– não se tratando estas importâncias de "empréstimos", mas antes de entradas para desenvolvimento de um activo em conjunto com outras entidades, resulta claro que os financiamentos obtidos pela C...- e que geraram os gastos cuja dedutibilidade está em causa nos presentes autos - não se destinam (e muito menos na sua totalidade) à concessão de crédito à entidade em causa;

– atenta a natureza deste investimento e o objectivo do mesmo (qual seja, o aproveitamento da rentabilidade futura do activo), não faria qualquer sentido a C... “cobrar juros” dos montantes despendidos na compra de um activo que pretende aproveitar enquanto co-investidora/co-proprietária;

– a não aceitação dos encargos financeiros como gasto quando não lhes está associado um juro, não se justifica no quadro da correcção do lucro tributável do grupo, no que especificamente concerne aos financiamentos concedidos pela C... à sociedade dominante e ora Requerente;

– resulta da aplicação do regime especial de tributação de grupos de sociedades que os fluxos com impacto nos resultados no seio do grupo são matematicamente eliminados, produzindo um impacto nulo no apuramento da matéria colectável do Grupo;

– quaisquer correcções ao resultado fiscal de uma das entidades dever conduzir a uma correcção correlativa ao resultado tributável da outra entidade (cf. o n.º11 do artigo 63.ºdo Código do IRC);

– mesmo que a C... houvesse cobrado um juro à Requerente, reconhecendo o correspondente rendimento, assim preenchendo a (aparente) condição da dedutibilidade dos juros contraídos nos financiamentos suportados, sempre o efeito fiscal, em termos de apuramento da matéria colectável do Grupo seria exactamente igual ao que foi apurado na declaração Modelo 22 do Grupo, dado que tal rendimento seria compensado com um gasto refletido no lucro tributável da Requerente;

– não é feita referência ao requisito de culpa com pressuposto da liquidação de juros compensatórios.

 

 Autoridade Tributária e Aduaneira no presente processo sustenta a posição assumida no Relatório da Inspecção Tributária e defende o seguinte, em suma:

– «a Requerente defende que os empréstimos concedido pela “C...” ajudaram o Grupo a expandir-se e operar em diversos mercados» e «embora se conceda que, porventura, tal possa ter ocorrido na sequência da estratégia de internacionalização adoptada e que tais encargos, para a “C...”, não deixem de ser convenientes, pelo menos, para a manutenção da fonte produtora das empresas do Grupo e da “G...”, tal não justifica a assunção por esta sociedade de juros de capitais alheios cujo financiamento foi inequivocamente utilizado no desenvolvimento da actividade empresarial de a outras sociedades, sociedades juridicamente distintas e autónomas da “C...”»;

– o regime especial de tributação dos grupos de sociedades «não ignora que cada sociedade que integra o perímetro fiscal do Grupo tem a sua própria personalidade e a sua capacidade tributária, constituindo um centro económico de interesses autónomo e individualizado das demais sociedades do Grupo, a cuja esfera jurídico-tributária devem ser alocados os rendimentos e os gastos que lhe são imputáveis atenta a actividade por si desenvolvida, estando sujeita à regras gerais de determinação do lucro tributável a declarar na sua modelo 22 de IRC»;

– «para que determinada verba seja considerada custo fiscal tem de respeitar, desde logo, à própria sociedade contribuinte e que a actividade respectiva seja por ela própria desenvolvida e não por outras sociedades»;

– «esta interpretação do art. 23º do CIRC está conforme com o princípio da tributação real do rendimento das empresas, consignado no art. 104, nº 1 da CRP, do qual resulta que não se podem deduzir encargos suportados com empréstimos efectuados quando o financiamento não integra o objecto social da empresa nem é gerador de rendimento sujeito a imposto».

 

 

3.2. Apreciação da questão

 

O artigo 23.º, n.º 1 do CIRC, na redacção da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, estabelece o seguinte, no que aqui interessa:

Artigo 23.º

 

Gastos e perdas

 

1 - Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.

 

2 - Consideram-se abrangidos pelo número anterior, nomeadamente, os seguintes gastos e perdas:

 

c) De natureza financeira, tais como juros de capitais alheios aplicados na exploração, descontos, ágios, transferências, diferenças de câmbio, gastos com operações de crédito, cobrança de dívidas e emissão de obrigações e outros títulos, prémios de reembolso e os resultantes da aplicação do método do juro efetivo aos instrumentos financeiros valorizados pelo custo amortizado;

 

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que a C... fez financiamentos gratuitos a empresas do grupo e à empresa G..., e, concomitantemente, suportou encargos financeiros com empréstimos contraídos junto de instituições financeiras, em montante superior aos financiamentos efectuados.

A Autoridade Tributária e Aduaneira concluiu no Relatório da Inspecção Tributária «o montante contabilizado a título de juros e Imposto do Selo de empréstimos bancários, possui o caráter qualitativo de comprovadamente ser indispensável para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a imposto, pelo que não será de aceitar fiscalmente as importâncias contabilizadas pelo sujeito passivo, por não se encontrar cumprido o princípio basilar da dedutibilidade de gastos ou perdas que preside o artigo 23.º do CIRC» e «que, caso o sujeito passivo não tivesse canalizado meios financeiros para as empresas do grupo através de empréstimos concedidos, não teria que recorrer ao financiamento bancário e, consequentemente, suportado encargos financeiros».

                Na redacção anterior deste n.º 1 do artigo 23.º estabelecia-se que «consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora».

                À face desta anterior redacção do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC, foi-se estabilizando o entendimento doutrinal e jurisprudencial no sentido de para ser permitida a dedutibilidade de gastos e para se demonstrar sua indispensabilidade para obtenção de rendimentos sujeitos a imposto não era necessária uma relação de causalidade entre os gastos e a obtenção de rendimentos, bastando que aqueles fossem suportados no interesse da empresa, como foi reconhecido nos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 21-9-2016, processo n.º 0571/13 e de 15-11-2017, processo n.º 0372/16:

I – No entendimento que a doutrina e a jurisprudência têm vindo a adoptar quanto à indispensabilidade como requisito para que um custo seja dedutível na determinação da matéria tributável para efeitos de IRC (cfr. art. 23.º do CIRC na redacção anterior a 2009), está completamente arredada a visão finalística, segundo a qual se exigiria uma relação de causa efeito, do tipo conditio sine qua non, entre custos e proveitos.

II – No mesmo entendimento, um custo será aceite fiscalmente desde que, num juízo reportado ao momento em que foi efectuado, seja adequado à estrutura produtiva da empresa e à obtenção de lucros e a AT apenas pode desconsiderar como custos fiscais os que não se inscrevem no âmbito da actividade do contribuinte e foram contraídos, não no interesse deste, mas para a prossecução de objectivos alheios.

 

                À face desta jurisprudência, não tem razão a Autoridade Tributária e Aduaneira ao sustentar, à face da nova redacção de 2014, a subsistência do requisito da «indispensabilidade», que deixou de ter a referência textual que tinha na redacção anterior, e a existência de uma relação de causalidade entre os gastos e a obtenção de rendimentos.

                Na verdade, no Relatório Final da Comissão para a Reforma do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas – 2013, não se alude a qualquer intenção de alterar o regime anteriormente previsto no artigo 23.º do CIRC quanto à desnecessidade de uma relação de causalidade entre gastos e rendimentos, antes se refere expressamente esclarecer essa desnecessidade:

 

Ora, na doutrina, é hoje bastante consensual que a indispensabilidade dos gastos deve, num plano geral, ser entendida como considerando dedutíveis aqueles que sejam incorridos no interesse da empresa, na prossecução das respetivas atividades. Tem-se afastado, pois, a interpretação do conceito de indispensabilidade como significando uma necessária ligação causal entre gastos e rendimentos.

A jurisprudência tem firmado, consistentemente, uma linha interpretativa na qual se sustenta que o critério da indispensabilidade foi criado para impedir a consideração fiscal de gastos que não se inscrevem no âmbito da atividade das empresas sujeitas ao IRC. Isto é, encargos que foram incorridos no âmbito da prossecução de interesses alheios, mormente dos sócios.

Neste contexto, entendeu a Comissão propor uma evolução normativa quanto ao princípio geral da aceitação dos gastos. Tal proposta acolhe a linha que a doutrina e a jurisprudência vêm sustentando, e pode revelar-se um meio para incrementar o grau de certeza na aplicação concreta do princípio basilar relativo à dedutibilidade. Adicionalmente, pode ainda constituir uma via para o decréscimo da significativa litigância decorrente da aplicação do preceito em causa.

Assim, o artigo 23.º do Código do IRC passa a consagrar como princípio geral de que, para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis os gastos relacionados com a atividade do sujeito passivo por este incorridos ou suportados.

 

                É certo, no entanto, que a formulação proposta pela Comissão para o n.º 1 do artigo 23.º e a que veio a ser adoptada são diferentes.

                A Comissão propôs a seguinte redacção:

 

«Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis os gastos relacionados com a atividade do sujeito passivo por este incorridos ou suportados».

 

A redacção que veio a ser adoptada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, é:

 

«Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC».

 

No entanto, se é certo que a nova redacção do artigo 23.º inclui uma referência à relação entre os gastos e os rendimentos sujeitos a IRC que não constava da proposta de Comissão, também o é que a nova fórmula não é, neste ponto, substancialmente diferente da utilizada na redacção anterior do artigo 23.º, n.º 1 do CIRC, pois nela já de incluía uma referência ao referir que a realização de gastos «para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora», que era generalizadamente interpretada, inclusivamente pelo Supremo Tribunal Administrativo, como não exigindo uma relação de causalidade entre gastos e rendimentos.

Assim, a Requerente tem razão ao defender que não tem suporte legal, à face da redacção do CIRC de 2014, a exigência do requisito da indispensabilidade que foi deliberadamente retirado da letra do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC, e o fundamento invocado no Relatório da Inspecção Tributária de não existir «a obtenção do equivalente ganho financeiro destes empréstimos efetuados, designadamente juros».

Na verdade, à face da redacção do artigo 23.º, n.º 1 do CIRC, a dedutibilidade de gastos não depende da indispensabilidade para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a imposto, bastando que os gastos tenham sido suportados no interesse da empresa, nem da existência de uma relação de causalidade directa entre os gastos e ganhos, como exigiu a Autoridade Tributária e Aduaneira ao referir a não «obtenção do equivalente ganho financeiro destes empréstimos efetuados».

Aliás, a própria Autoridade Tributária e Aduaneira no presente processo acaba por admitir, no artigo 35.º da sua Resposta, que os empréstimos efetuados possam «ter ocorrido na sequência da estratégia de internacionalização adoptada e que tais encargos, para a “C...”, não deixem de ser convenientes, pelo menos, para a manutenção da fonte produtora das empresas do Grupo e da “G...”» (negrito nosso), o que basta para assegurar a dedutibilidade a face do artigo 23.º, n.º 1, do CIRC, que faz referência aos «gastos (...) suportados pelo sujeito passivo para (...) garantir os rendimentos sujeitos a IRC».

Por isso, a correcção efectuada enferma de vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de direito.

Por outro lado, em relação às quantias entregues pela C... à G..., afigura-se que nem se quer se trata de empréstimos não remunerados, mas sim, como afirma a Requerente, de «entradas para desenvolvimento de um activo em conjunto com outras entidades», que era o desenvolvimento de uma plataforma informática denominada ..., em que não há razão para duvidar que há interesse da Requerente, pelo que a correcção efectuada enferma de vício de erro sobre os pressupostos de facto.

Estes vícios justificam a anulação da liquidação de IRC, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

3.3. Liquidações de juros compensatórios e moratórios

 

As liquidações de juros compensatórios e juros de mora têm como pressuposto a liquidação de IRC, pelo que enfermam dos mesmos vícios.

 

 

4. Reembolso da quantia paga e juros indemnizatórios

 

Em 15-03-2019, a Requerente pagou a quantia liquidada e pede o seu reembolso com juros indemnizatórios.

Sendi de anular as liquidações de IRC, juros compensatórios e juros de mora, a Requerente tem direito à restituição da quantia paga.

No que concerne a juros indemnizatórios, o regime substantivo é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

 

Artigo 43.º

 Pagamento indevido da prestação tributária

 

1. São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2. Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

(...)

4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.

 

O erro que afecta a liquidação é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira que efectuou a correcção por sua iniciativa.

Assim, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios nos temos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT.

Os juros indemnizatórios são devidos, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva, e contados desde a data do pagamento (15-03-2019) até à data do processamento da respectiva nota de crédito e calculados sobre a quantia de € € 81.707,87.

 

5. Decisão

 

                De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a)            Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)           Anular a liquidação de IRC n.º 2018...; a liquidação de juros compensatórios – pagamentos por conta n.º 2018...; a liquidação de juros compensatórios – retardamento da liquidação n.º 2018...; e a liquidação de juros de mora n.º 2018...;

c)            Julgar procedente o pedido de restituição da quantia paga e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente a quantia de € 82.054,29;

d)           Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagá-los à Requerente, à taxa legal supletiva, contados desde a data do pagamento (15-03-2019) até à data do processamento da respectiva nota de crédito e calculados sobre a quantia de € € 81.707,87.

 

 

6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 81.707,87.

 

 

7. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.754,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

 

Lisboa, 11-10-2019

 

Os Árbitros

 

(Jorge Lopes de Sousa)

(Marisa Isabel Almeida Araújo)

(Amândio Silva)