DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Professor Doutor Jónatas Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão:
1 RELATÓRIO
1. A..., contribuinte n.º..., residente na Rua ..., nº..., ... ...-..., Sintra, (doravante Requerente ou Sujeito Passivo) veio pedir a constituição de Tribunal Arbitral para impugnar a liquidação de IRS relativa ao ano de 2016, com o n.º 2018..., parcialmente confirmada pela decisão da reclamação graciosa com o nº. de processo ...2018..., que igualmente se impugna, contestando o correspondente imposto no montante de € 12.168,21.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 21.03.2019.
3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) nomeou como árbitro singular o Professor Doutor Jónatas Machado, em 14.05.2019.
4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. Por força do preceituado na alínea c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 03.06.2019.
6.A AT (ou “Requerida”), tendo sido notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, para apresentar a sua resposta, veio sustentar, em contestação de 01.07.2019, a improcedência do presente pedido de pronuncia arbitral, a manutenção na ordem jurídica do ato tributário de liquidação impugnado e a sua absolvição do pedido, com as devidas consequências legais.
7. Por não ter sido requerida pelas partes e ser considerada desnecessária, o tribunal dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, através de despacho proferido em 04.07.2019.
8. Não foram apresentadas alegações finais.
1.1 Descrição dos factos
9. O Requerente, A..., juntamente com o seu irmão, B..., NIF..., adquiriu em 27.11.2009, em partes iguais, a fração autónoma designada pela letra A do prédio descrito na Conservatória de ... sob a ficha ..., freguesia da ..., inscrito na mesma freguesia sob o artigo... .
10. Essa aquisição foi feita ao abrigo de um contrato de locação financeira (leasing) celebrado entre uma sociedade integrada no C... e a D..., Lda,, com o valor inicial € 103.368,40 – sendo € 99.759,58 o valor de compra do imóvel e o restante a respetiva Sisa – tendo a locatária, em 10.05.2006, cedido a sua posição contratual a E..., que por sua vez, em 20.06.2007, a cedeu ao pai do sujeito passivo, F... .
11. Entretanto, o pai do Requerente faleceu em 21.07.2008, tendo a posição contratual sido transmitida para o Requerente e o seu irmão.
12. Em 27.11.2009, o Requerente e o irmão adquiriram a fração autónoma em causa mediante o pagamento do valor residual de € 9.975,96, tendo alienado a referida fração a 31.05.2016.
13. O Requerente submeteu declaração modelo 3 de IRS para o ano de 2016 (...-...) em 30.05.2017 na qual declarou, no anexo G, relativamente ao prédio sito na freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., fração A, o valor de aquisição de €85.965,00 e encargos no valor de €6.918,75.
14. Tendo sido notificado pelos Serviços a fim de apresentar os comprovativos dos valores declarados, apresentou em 28.11.2017 declaração de substituição (...) na qual corrigiu o valor de aquisição para € 51.684,21 e manteve o valor dos encargos considerados no valor de € 6.918,75. Foi novamente notificado o contribuinte para comprovar os valores declarados, designadamente o valor de aquisição e os encargos mencionados.
15. Concluíram os serviços que os documentos apresentados como comprovativos não permitiam a justificação dos valores indicados na declaração de substituição, pelo que foi esta corrigida oficiosamente (declaração ... de 09.03.2018), tendo sido considerados como valor de aquisição do imóvel acima identificado o valor de €4.987,98 e o valor de encargos de €3.459,38.
16. A correção efetuada considerou a aquisição em 27.11.2009 e o valor de aquisição, para o imóvel em causa, teve como base o montante correspondente ao exercício do direito de opção de compra no termo do contrato de leasing, ou seja, €9.975,96, pelo que, ao reclamante corresponde a metade daquele valor.
17. Foi ainda considerado como encargo com a venda do imóvel a comissão paga pela intermediação na venda, conforme recibo apresentado pelo sujeito passivo, o que de acordo com as declarações prestadas no contrato de compra e venda, celebrado em 31.05.2016, atribuiu ao ora impugnante a mesma proporção da titularidade do imóvel, isto é, 1/2 daquelas despesas.
18. Tendo sido notificado da liquidação n.º 2018..., de 16.03.2016, o sujeito passivo apresentou a reclamação graciosa n.° 1...2018... .
19. Foi, por despacho de 14.11.2018, projetada a decisão no sentido do deferimento parcial da presente reclamação graciosa, a qual previa o deferimento da reclamação apenas na parte em que o Sujeito Passivo requer a consideração dos encargos suportados com a comissão de intermediação imobiliária no valor de € 6.918,75 e o indeferimento na restante, por não ter sido feita prova do capital incluído nas rendas eventualmente pagas pelo Requerente desde 21.07.2008 a 27.11.2009 e não ser legalmente admissível a consideração dos encargos suportados por terceiros.
20. Em 20.11.2018, pelo ofício n.º 2018..., registado nos CTT com o n.° RF...PT, foi o Requerente notificado para, no prazo de 15 dias, exercer o direito de audição previa nos termos do artigo 60.º da Lei Geral Tributária (LGT) relativamente à proposta de decisão da reclamação graciosa.
21. Em 12.12.2018 foi por despacho da Chefe do Serviço de Finanças convolado em definitivo o projeto de decisão de deferimento parcial.
22. No dia 13.12.2018, o Requerente enviou email ao Serviço de Finanças no qual exercia o direito de audição previa relativamente ao projeto de decisão da reclamação graciosa.
23. Da decisão final foi o Requerente notificado em 19.12.2018 através do ofício n.º 2018..., por carta registada com aviso de receção, com registo dos CTT n.° RF...PT.
24. Apesar de não concordar com a mesma, o Requerente pagou a liquidação impugnada a 02.05.2018, dentro do prazo de cobrança voluntária.
25. Por despacho de 12.12.2018, notificado ao Requerente a 07.01.2019, a Autoridade Tributaria e Aduaneira (AT) decidiu confirmar a liquidação adicional de IRS do Impugnante com o nº 2018..., no valor de € 12.999,78, salvo no que respeita à consideração dos encargos suportados com a comissão de intermediação imobiliária no valor de € 6.918,75
26. Na sequência desse despacho, como o sujeito passivo, apesar de não concordar com a mesma, já havia pago a dita liquidação adicional de IRS, foi-lhe devolvida a quantia de € 831,57, permanecendo um valor de impugnação de € 12.168,21.
27. Em 29.04.2019, foi proferido despacho de Revogação Parcial pela Srª G..., através da liquidação n.º 2019... de 29.06.2019, resultando um valor a receber de € 1.096,27, do qual foi aplicado em compensação de dívidas, o montante de € 64,09 e reembolsado o remanescente, no montante de € 1.032,18, em 16.07.2019.
28. O Requerente foi reembolsado do valor de € 1096.27, subsistindo um valor em litígio no montante de € 11.071,94.
1.2 Argumentos das partes
29. Os argumentos trazidos aos autos centram-se na questão da determinação do valor de aquisição que deve ser considerado para efeitos de apuramento de eventuais mais-valias pela alineação do imóvel.
30. O Requerente sustenta a ilegalidade da decisão da reclamação graciosa, por violação do direito de audição prévia e alega que o valor de aquisição do imóvel é o valor do somatório do capital incluído nas rendas pagas durante a vigência do contrato de leasing mais o valor pago para efeitos de exercício do direito de opção, com exclusão de quaisquer encargos, com argumentos que a seguir se sintetizam:
a) A decisão da reclamação graciosa apresentada pelo sujeito passivo e que correu termos com o nº de processo ...2018... é nula ou anulável por não ter sido garantido o direito de audição prévia do sujeito passivo, nos termos do artigo 60.º da Lei Geral Tributária (LGT) e artigos 121.º e seguintes do Código de Procedimento Administrativo (CPA) e artigo 61.º ou 163.º do CPA);
b) O despacho na reclamação graciosa foi proferido sem aguardar pelo exercício desse direito, que o Impugnante exerceu de facto a 13.12.2018, conforme email enviado pelo seu TOC nesse mesmo dia;
c) Independentemente de outros fundamentos, deve ser ordenado que a AT volte a pronunciar-se sobre a reclamação graciosa apresentada pelo sujeito passivo, tomando em consideração o que por ele foi alegado no exercício do seu direito de audição prévia;
d) O facto de o contrato de leasing ter sido inicialmente celebrado por uma sociedade terceira, tendo posteriormente sido cedido a outro terceiro e depois ao pai dos adquirentes, que adquiriram a posição deste último em virtude da sua morte, em nada altera a aplicação da regra do artigo 46º, n.º 5, do CIRS;
e) No caso de cessões onerosas da posição de locatários em leasing, deveria ser considerado o valor da cessão ou, não estando esse valor declarado, o do capital já pago nas rendas anteriores, tal como dispõe, sem distinguir, o nº 5 do art. 46º do CIRS;
f) No caso de cessões não onerosas, não poderia deixar de ser considerado o valor patrimonial tributário da fração à data das mesmas;
g) O Requerente e o seu irmão adquiriram a fração autónoma em causa a título gratuito, como representantes do falecido pai, facto relevante no que respeita às rendas de leasing anteriores a junho de 2007, data do óbito, devendo a AT considerar como valor de aquisição o valor patrimonial tributário que à data era de € 85.060,46;
h) Em qualquer caso, a AT nunca poderia deixar de considerar as rendas pagas pelo sujeito passivo após a morte do seu pai, pois essas rendas, a partir de junho ou julho de 2007 (a partir da renda 111 ou 112), foram necessariamente pagas pelo Impugnante e pelo seu irmão e não pelo seu pai, entretanto falecido;
i) O C... informou que o valor do somatório do capital incluído nas rendas pagas durante a vigência do contrato e o valor pago para efeitos de exercício do direito de opção é igual ao valor inicial do contrato, que foi de € 103.368,41, devendo este ser considerado como valor de aquisição cabendo ao sujeito passivo metade desse valor, isto é, € 51.684,20;
j) A não ser considerado esse valor de aquisição, o sujeito passivo estaria a ser tributado por uma mais-valia que efetivamente não teve, pois os adquirentes finais e os anteriores locatários despenderam de capital muito mais que o valor considerado pela AT, o que se traduz num manifesto tratamento desigual face às restantes situações de leasing;
k) Em qualquer caso, mas sem minimamente condescender, a AT teria que ter considerado como valor de aquisição, o somatório do capital incluído nas rendas pagas pelo sujeito passivo, o seu irmão e o seu pai, isto é, desde a renda 99 (e € 19.977,15), mais o valor residual (€ 9.975,96) no total de € 29.953,11, cabendo metade desse valor ao Requerente;
l) Ou, no mínimo dos mínimos, tinha que ter considerado valor das rendas já pagas pelo sujeito passivo e o seu irmão, após a morte do seu pai, ocorrida a 21.07.2018, isto é, desde pelo menos a renda 112 (possivelmente desde a renda a anterior, mas certamente desde essa), correspondendo o valor de capital dessas rendas a € 8.445,39, a que acresce o valor residual, tudo perfazendo € 18.421,35, cabendo metade desse valor ao Requerente;
m) Os cidadãos, na sua relação tributária com o Estado, têm direito à restituição dos impostos indevidamente pagos – alínea c) do nº 1 do artigo 30º da Lei Geral Tributária (LGT);
n) Nos termos do artigo 43.º, nº 1, da LGT, são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, ter havido erro imputável aos serviços do qual resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
31. A AT sustenta que não foi violado o direito de audição prévia do Requerente e que o valor de aquisição do imóvel deve ser o valor residual pago no momento da aquisição acrescido do valor das rendas pagas pelo Requerente com base nos seguintes fundamentos:
a) O Requerente foi convidado, pelo ofício 2018..., de 20.11.2018, para exercer, querendo, no prazo de 15 dias, o seu direito de audição;
b) Sendo o registo postal de 20.11.2018, considera-se concretizada a notificação no terceiro dia posterior ao do registo, nos termos do artigo 39.º, n.º 1, do CPPT, ou seja, em 23.11.2018;
c) O prazo de 15 dias para exercício do direito de audição iniciou-se em 24.11.2018 e terminou em 10.12.2018, contado nos termos do artigo 279.º do Código Civil, ex-vi artigo 57.º, n.º 3, da LGT, sendo que a decisão foi proferida em 12.12.2018, respeitando o prazo legal para o exercício do direito de audição;
d) Inicialmente, a AT sustentava que o valor de aquisição do imóvel deveria incluir unicamente o valor residual pago pelos adquirentes pelo exercício do direito de opção de compra;
e) Porém, por despacho da Subdiretora-Geral da área de gestão tributária – Impostos sobre o rendimento, proferido em 29.04.2019, foi revogado parcialmente o ato que constituía o objeto do presente pedido, tendo o mesmo sido notificado ao requerente e seu mandatário;
f) Aí a AT entendeu que, tendo uma parte das rendas sido paga por terceiros, só deve ser considerado no valor de aquisição, para além do valor residual, o valor das rendas pago pelo sujeito passivo e o seu irmão;
g) A revogação parcial supra identificada foi ao encontro do pretendido pelo Requerente, em sede do valor de aquisição que deve ser considerado para efeitos de apuramento de eventuais mais-valias pela alienação do imóvel em questão;
h) Tendo a AT comunicado a revogação parcial, nos termos do artigo 13.º do RJAT em 07/05/2019, foi na mesma data o Requerente notificado do despacho do Exmo. Presidente do CAAD, relativamente ao prosseguimento dos autos, nada tendo dito sobre o assunto;
i) Carece, assim, consequentemente, o pedido de constituição de Tribunal Arbitral, de objeto, pelo que deve o Requerente ser condenado no pagamento da respetiva taxa de arbitragem.
1.3. Saneamento
32. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.
33. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT).
34. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.
35. Não obstante ter sido proferido, em 29.04.2019, despacho de revogação parcial, pela DSIRS, através da liquidação nº 2019 ... de 29.06.2019, na sequência do qual o Requerente foi reembolsado do valor de € 1096.27, a lide jurídico-tributária mantém a sua utilidade relativamente à parte não revogada da liquidação de IRS relativa ao ano de 2016, n.º 2018..., estando em discussão o imposto no montante de € 11.071,94.
36. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.
2 FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Factos dados como provados
37. Com base nos documentos trazidos aos autos são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:
a) O Requerente, A..., juntamente com o seu irmão, B..., NIF..., adquiriram em 27.11.2009, em partes iguais, a fração autónoma designada pela letra A do prédio descrito na Conservatória de ... sob a ficha ..., freguesia da ..., inscrito na mesma freguesia sob o artigo ...; (Documento 3)
b) Essa aquisição foi feita ao abrigo de um contrato de locação financeira celebrado entre a H..., S.A. entretanto integrada no C..., e a D..., Lda, no valor de € 103.368,40, sendo € 99.759,58 o valor de compra do imóvel e o restante a respetiva Sisa; (Documento 3)
c) A D..., Lda, em 10,05.2006, cedeu a título gratuito a sua posição a E..., que constava no contrato inicial como sublocatário, que por sua vez, em 20.06.2007, a cedeu a título gratuito ao pai do sujeito passivo, F...; (Documento 3 e Processo Administrativo)
d) O valor das rendas pagas pelo Sr. F... foi de € 22. 389,32, incluindo a amortização de capital no valor de € 19.977,15. (Documento 3 e 4)
e) O valor das rendas e do valor residual pagos pelo Requerente e seu irmão foi de € 27.097.90; (Documento 2B)
f) O pai do Requerente faleceu em 21.07.2008, tendo a posição contratual sido transmitida por via sucessória ao Requerente e o seu irmão; (Processo Administrativo)
g) A fração autónoma em causa foi adquirida pelo sujeito passivo e o seu irmão em 27.11.2009, pelo valor residual de € 9.975,96; (Processo Administrativo)
h) O sujeito passivo e o seu irmão alienaram a referida fração autónoma, a 31.05.2016; (Processo Administrativo)
i) Em 2017 foi produzida liquidação de IRS relativa ao ano de 2016 com o n.º 2018..., tendo sido apresentada reclamação graciosa com o nº de processo ...2018..., em 27.08.2018; (Documento 1)
j) O Requerente foi convidado, pelo ofício 2018..., de 20.11.2018, para exercer, querendo, no prazo de 15 dias, o seu direito de audição, sendo o registo postal de 20.11.2018; (Processo Administrativo)
k) A decisão foi proferida em 12.12.2018 e o direito de audição foi exercido no dia 13.12.2018. (Processo Administrativo)
l) Por despacho de 12.12.2018, notificado ao Requerente a 07.01.2019, a AT decidiu confirmar a liquidação adicional de IRS do Impugnante com o nº 2018..., no valor de € 12.999,78, salvo no que respeita à consideração dos encargos suportados com a comissão de intermediação imobiliária no valor de € 6.918,75; (Processo Administrativo).
m) Em 29.04.2019 foi proferido despacho de revogação parcial, da DSIRS, através da liquidação nº 2019... de 2019-06-29, resultando um valor a receber de € 1.096,27, do qual foi aplicado em compensação de dívidas, o montante de € 64,09 e reembolsado o remanescente, no montante de € 1.032,18 em 16.07.2019; (Documento 1 da AT)
n) O Requerente foi reembolsado do valor de € 1096.27, subsistindo um valor em litígio no montante de € 11.071,94. (Documento 1, AT)
2.2 Factos não provados
38. Com relevo para a decisão sobre o mérito não existem factos alegados que devam considerar-se como não provados.
2.3 Motivação
39. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
40. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
41. Assim, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
2.4 Questão decidenda
42. As questões decidendas prendem-se com a eventual invalidade por violação do direito de audição prévia do requerente e a determinação do valor de aquisição para efeitos de tributação de mais-valias em sede de IRS pela alienação de um imóvel adquirido com base num contrato de locação financeira.
2.4.1. Direito de audição prévia
43. Relativamente à primeira questão, resulta dos autos que o Requerente foi convidado, pelo ofício 2018..., de 20.11.2018, para exercer, querendo, no prazo de 15 dias, o seu direito de audição. Sendo o registo postal de 20.11.2018, considera-se concretizada a notificação no terceiro dia posterior ao do registo, nos termos do artigo 39.º, n.º 1, do CPPT, ou seja, em 23.11.2018. Pelo que o prazo de 15 dias para exercício do direito de audição iniciou-se em 24.11.2018 e terminou em 10.12.2018, contado nos termos do artigo 279.º do Código Civil, ex-vi artigo 57º, nº 3 da LGT, sendo que a decisão foi proferida em 12/12/2018, respeitando o prazo legal para o exercício do direito de audição. Assim, nesta matéria deve considerar-se procedente a posição da AT segundo a qual não foi violado o direito de audição do Requerente.
2.4.2. Valor de aquisição
44. A segunda questão prende-se com a determinação do valor de aquisição, para efeito de tributação de mais-valias, de um imóvel adquirido através do exercício de opção de compra no termo de um contrato de locação financeira. No caso concreto, foi liquidado imposto de mais-valias, em sede de IRS, relativo ao ano de 2016, no montante de € 12.168,21 (obtido por dedução de reembolso) por causa da alienação, pelo Requerente e o seu irmão, da fração objeto de contrato de locação financeira cuja posição contratual havia sido cedida ao pai de ambos em virtude do seu falecimento. Em causa está a interpretação a dar ao artigo 46.º, n.º 5, do CIRS, onde se dispõe:
“Nos casos de bens imóveis adquiridos através do exercício do direito de opção de compra no termo da vigência do contrato de locação financeira, considera-se valor de aquisição o somatório do capital incluído nas rendas pagas durante a vigência do contrato e o valor pago para efeitos de exercício do direito de opção, com exclusão de quaisquer encargos.”
45. A resposta à questão em apreço remete, desde logo, para a figura da cessão da posição contratual. Sobre ela se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que a mesma, definida no artigo 424.º do Código Civil (CC), envolve uma substituição de sujeitos num dos lados da relação contratual, uma modificação subjetiva numa relação contratual. Esta relação, todavia, permanece a mesma. Assim, a relação contratual que existia entre o cedente e o cedido é a mesma de que passa a ser sujeito, após o novo negócio, o cessionário. Ponto é que a substituição do cedente pelo cessionário tenha o consentimento do cedido.
46. A cessão da posição contratual supõe uma distinção clara entre dois contratos: o contrato-base, ou contrato inicial, celebrado originariamente entre o cedente e o cedido, e o contrato-instrumento de cessão da posição contratual. No caso sub judice, o contrato-base é o contrato de locação financeira , celebrado em 26.05.1999, entre o locador C... e a locatária D... . Dele resulta o acervo de direitos e obrigações que constitui o objeto da cessão da posição contratual.
47. Por seu lado, o contrato-instrumento da cessão corresponde, no caso concreto, aos contratos de cessão de posição contratual realizados posteriormente a favor de um dos sublocatários, E..., e, mais tarde, de F... . Foi através deles que sucessivamente se operou a transmissão de uma das posições derivadas do contrato-base, a de locatário. Em todo o caso, este último contrato, o contrato-base de locação financeira, permanece em vigor, havendo apenas a alteração subjetiva num dos polos da relação jurídica.
48. Para além dos contratos de cessão de posição contratual, importa ter presente, no caso concreto, uma situação de transmissão mortis causa da posição contratual de F... para o Requerente e o seu irmão, na qualidade de filhos herdeiros. A transmissão por morte do contrato de locação financeira encontra-se disciplinada no artigo 11.º, ns.º 2 e 3, do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira (RJCLF) . Aí se admite a transmissão por morte da posição contratual nos contratos de locação financeira que versem sobre bens que não sejam de equipamento, nos mesmos termos da locação, se a isso não se opuser o locador mediante prova de que o locatário cessionário não oferece garantias bastantes à execução do contrato.
49. Esta remissão legal para o regime da locação obriga a que se considere o disposto no artigo 1051.º, alínea d), do CC, que estabelece a regra da caducidade dos contratos de locação por morte do locatário, salvo convenção escrita em contrário (art. 1059.º, nº.1). Contudo, no caso de arrendamento para habitação vale o regime excecional consagrado nos artigos 1106.º e 1107.º do CC que, entre outras coisas, admite a transmissão do arrendamento a pessoa (v.g. parente) que com ele vivesse em economia comum há mais de um ano. Nos termos do n.º 3 do artigo 106.º do CC, “Havendo várias pessoas com direito à transmissão, a posição do arrendatário transmite-se, em igualdade de circunstâncias, sucessivamente para o cônjuge sobrevivo ou pessoa que com o falecido vivesse em união de facto, para o parente ou afim mais próximo ou, de entre estes, para o mais velho ou para a mais velha de entre as restantes pessoas que com ele residissem em economia comum.” Este preceito estabelece uma hierarquização dos beneficiários do direito à transmissão do arrendamento, com base numa regra de prioridade semelhante à fixada no artigo 2134.° do CC para as classes de sucessíveis (art. 2133.º CC).
50. Este regime vale, por força do artigo 11.º, n.º 2, do RJCLF, para os contratos de locação financeira, admitindo-se por isso a transmissão da posição contratual por morte no caso de imóvel locado para habitação, como sucedia no caso em apreço. Em causa, no presente processo, não está a análise dessa transmissão. A mesma é dada pelas partes no processo como validamente concretizada, tendo sido aceite pelo locador – que em momento algum se lhe opôs e cujo interesse o artigo 1051.º alínea d) do CC visa salvaguardar –, pelos locatários cessionários herdeiros (i. e. Requerente e irmão) e nunca tendo sido posta em causa pela AT.
51. Dispõe o artigo 11.º, n.º 4, do RJCLF, que “O contrato de locação financeira subsiste para todos os efeitos nas transmissões da posição contratual do locador, ocupando o adquirente a mesma posição jurídica do seu antecessor.” Seguindo esta orientação, o artigo 14.º, n.º 2, do Contrato de Locação Financeira em causa prescreve que “a cessão compreenderá a transferência para o cessionário do benefício da opção de compra”. Este aspeto – da subsistência do contrato-base de locação financeira a despeito das sucessivas cessões de posição contratual – reveste-se de grande importância, permitindo sublinhar que o Requerente e o seu irmão não adquiriram gratuitamente quaisquer direitos reais sobre um imóvel com a morte do seu pai, mas apenas uma posição contratual num contrato de locação financeira em que o mesmo assumia a posição de locatário.
52. A exigência de consentimento do cedido (in casu, locador) na cessão da posição contratual faz todo o sentido no caso específico do contrato de locação financeira. Neste tipo de contratos, uma das obrigações do locatário consiste em “Não proporcionar a outrem o gozo total ou parcial do bem por meio da cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, exceto se a lei o permitir ou o locador a autorizar” .
53. Estamos aqui diante de um contrato intuitu personae que supõe, nomeadamente, uma avaliação do risco de crédito concretamente existente, ou seja, da capacidade financeira do locatário. Ora, em momento algum o locador manifestou qualquer oposição às várias cessões de posição contratuais ocorridas. Pelo contrário, foi a participação ativa do locador que possibilitou a sua concretização.
54. A permanência em vigor do contrato de locação financeira a despeito da ocorrência de várias transmissões da posição contratual reveste-se do maior relevo para a interpretação e aplicação do artigo 46.º, n. º5, do CIRS, onde se dispõe que “nos casos de bens imóveis adquiridos através do exercício do direito de opção de compra no termo da vigência do contrato de locação financeira, considera-se valor de aquisição o somatório do capital incluído nas rendas pagas durante a vigência do contrato e o valor pago para efeitos de exercício do direito de opção, com exclusão de quaisquer encargos”.
55. O contrato cuja vigência está em causa, no artigo 46.º, n.º 5, do CIRS, para efeitos de contabilização do somatório do capital incluído nas rendas pagas, é o contrato-base, a saber, o contrato de locação financeira inicialmente celebrado entre o C... e a D... . Este contrato continuou em vigor mesmo depois da transmissão da posição contratual, sucessivamente, a E..., a F... e, mortis causa, aos respetivos filhos.
56. Tendo em conta o facto de que o contrato de locação financeira se mantem em vigor mesmo havendo cessão de posição contratual, o teor literal do artigo 46.º, n.º 5, do CIRS, ao falar das “do capital incluído nas rendas pagas durante a vigência do contrato”, permite concluir que, quando o Requerente e o seu irmão exercem o direito de opção, o valor de aquisição deve contar, não apenas com o valor residual pago na altura, mas também com o somatório do capital incluído nas rendas pagas durante a vigência do contrato base de locação financeira, ou seja, desde 1999.
57. O artigo 46.º, n.º 5, do CIRS, fala das rendas pagas ao longo da vigência do contrato de locação financeira, que se mantém em vigor independentemente da existência ou não de cessão de posição contratual, e não das rendas pagas pelo cessionário que haja exercido o direito de opção de compra pelo valor residual. Por outras palavras, nada há, no teor literal do artigo 46.º, nº 5, do CIRS, que aponte para a necessidade de a AT distinguir entre os casos em que não houve e os casos em que houve cessão de posição contratual. O texto é bem claro. Para a determinação do valor de aquisição do imóvel por opção de compra num contrato de locação financeira o que conta é o valor residual e o somatório do capital incluído nas rendas pagas ao longo da vigência do contrato. A indiferença do artigo 46.º, n.º 5, do CIRS, à eventual ocorrência de uma ou mais cessões de posição contratual é tanto mais significativa quanto é certo que se trata aí de uma vicissitude muito frequente nos contratos de locação financeira, inclusivamente apregoada como uma das vantagens do recurso a este contrato por comparação com a opção imediata pelo contrato de compra e venda e o recurso ao crédito hipotecário.
58. A consideração das rendas pagas ao longo da vigência do contrato de locação financeira para efeitos de determinação do valor de aquisição do imóvel adquirido através do exercício de opção de compra, para além de resultar da natureza e da estrutura da cessão da posição contratual, compatibiliza-se, em boa medida, com o princípio da neutralidade fiscal. Este concentra-se na noção de que, quando um sistema fiscal tem o potencial de distorcer as decisões económicas, a tributação pode afetar negativamente as decisões de investimento e resultar em decisões económicas ineficientes. O conceito de neutralidade fiscal refere-se a um sistema tributário que não influencia as opções pessoais e financeiras e não favorece uns contribuintes na escolha de um determinado investimento em detrimento de outros em situação economicamente equivalente. Este princípio é indissociável do objetivo tributário de favorecer o investimento socialmente relevante (artigo 7.º da LGT).
59. Tendo como ponto de apoio o princípio da neutralidade fiscal, mesmo reconhecendo que não se trata de um princípio absoluto, dir-se-ia que, se tivesse sido celebrado um contrato de locação financeira idêntico ao que está em causa no processo (v.g. duração, valor do imóvel, rendas, valor residual) sem que houvesse lugar a qualquer cessão de posição contratual e também aí tivesse sido exercido o direito de opção de compra no termo da vigência do contrato, o valor de aquisição do imóvel pelo locatário, para efeitos de tributação mais-valias, seria a soma do valor residual mais o somatório do capital incluído nas rendas pagas, nos termos do artigo 46.º, n.º 5, do CIRS. Mesmo para situações anteriores à entrada em vigor deste preceito, já o STA já sustentava que no caso de aquisição do imóvel no fim do contrato de locação financeira deve-se ter em conta não só o valor residual, mas também e ainda o valor das rendas pagas ao longo do período acordado, tendo mobilizado precisamente o princípio da neutralidade fiscal.
60. Na sua argumentação, o STA chamava a atenção para o facto de que, nos termos do artigo 10.º, n.º 14, do Código do Imposto Municipal sobre a Transmissão de Imóveis (CIMT), o valor dos bens imóveis ou do direito de superfície constituído sobre os imóveis locados, adquiridos pelo locatário, através de contrato de compra e venda, no termo da vigência do contrato de locação financeira e nas condições nele estabelecidas, seria o valor residual determinado ou determinável, nos termos do respetivo contrato. Para o STA, esta solução resulta da aplicação do princípio da neutralidade fiscal em sede de IMT, uma vez que, do ponto de vista da substância económica da transação, o locatário já suportou o IMT pago pela locadora quando da aquisição do imóvel, desde logo porque o valor desse imposto foi repercutido pela mesma locadora no valor das rendas por si pagas. Assim sendo, compreende-se consideração do valor residual para efeitos de IMT.
61. Pelas mesmas razões, havendo lugar a cessão de posição contratual, quer se trate de uma ou de várias cessões, o valor de aquisição do imóvel adquirido a final, para o locatário cessionário que exerce o direito de opção de compra pelo valor residual, dificilmente poderia deixar de ser o mesmo que o valor de aquisição para aquele locatário que em nenhum momento cede a sua posição contratual a um terceiro, aplicando-se, em qualquer dos casos, o disposto no artigo 46.º, n.º 5, do CIRS. Assim sucede porque, em princípio – tirando situações eventuais de existência de uma relação de especial proximidade entre cedente e cessionário – a cessão da posição contratual será um negócio oneroso, que – na medida em que isso seja possível diante das condições de mercado – terá em conta o valor do capital incluído nas rendas pagas ao locador pelo locatário cedente até ao momento da cessão da posição contratual. Mais, é possível que, nomeadamente por efeito da valorização do imóvel, o locatário cedente obtenha, por altura da cessão da posição contratual, um ganho pecuniário superior ao montante das rendas que até então haja pago ao locador, caso em que o artigo 10.º, n. º1, alínea d) do CIRS, sujeita a tributação as mais-valias resultantes da cessão onerosa de posições contratuais ou outros direitos inerentes a contratos relativos a bens imóveis.
62. Nesse caso, se o preço pago pelo cessionário é tido em conta para a determinação das mais-valias do cedente, mal seria que não fosse tido em conta para a determinação do preço de aquisição do cessionário quando este, mais tarde, em dois momentos diferenciados, exercer a opção de compra e venda do imóvel e posterior alienação. Dai que faça todo o sentido, em termos gerais, a solução constante do artigo 46.º, n.º 5, do CIRS que considera preço de aquisição o somatório do capital incluído nas rendas pagas durante a vigência do contrato de locação financeira e o valor residual pago para efeitos de exercício do direito de opção, com exclusão de quaisquer encargos, sem distinguir se houve ou não lugar a cessão da posição contratual. Semelhante solução serve o objetivo económico de redução dos custos de transação, favorecendo a tomada de decisões com base em critérios de racionalidade económica, garantindo a qualquer locatário, seja ele inicial ou cessionário, o mesmo valor de aquisição para efeito da tributação de mais-valias no caso de ulterior alienação do imóvel, sem prejuízo da tributação das eventuais mais-valias do cedente a que haja lugar.
63. De acordo com o princípio da neutralidade fiscal, não seria admissível que o locatário visse a sua posição substancialmente agravada, quando da venda do imóvel, face ao proprietário que tenha adquirido o imóvel sem recurso ao regime da locação financeira. Do mesmo modo, à luz do mesmo princípio, não é admissível que o locatário cessionário – que adquiriu onerosamente a sua posição contratual – veja a sua posição agravada, quando da alienação do imóvel, face ao locatário inicial que manteve a sua posição contratual ao longo da vigência do contrato de locação financeira. Se isso acontecesse, as normas fiscais estariam a agravar os custos de transação e a interferir ativamente nas decisões dos agentes económicos e dos particulares.
64. É certo que no caso presente, tanto quanto se pode deduzir dos autos, as cessões de posição contratual foram efetuadas a título gratuito, aparentemente sem quaisquer contrapartidas. Isto, sem prejuízo do facto de o primeiro cessionário, E..., surgir referido, desde o início, no contrato de locação financeira como sublocatário da empresa D..., antes da cessão da posição contratual, presumivelmente pagando rendas à locatária. Por sua vez, o segundo, F..., é familiar do primeiro, como se deduz dos apelidos de ambos. O Requerente e o seu irmão receberam a posição de locatários por falecimento do pai.
65. Esta realidade em nada prejudica a aplicação do artigo 46.º, n.º 5, do CIRS, e a inerente exigência de que sejam computadas, além do valor residual, o somatório do capital incluído nas rendas estipuladas e pagas ao longo da vigência do contrato de locação financeira em que Requerente e irmão surgem como locatários cessionários. Assim é, porque o valor da aquisição do imóvel para efeitos de determinação das mais-valias resultantes da sua posterior alienação só pode ser determinado no momento da aquisição, devendo refletir, em medida razoável, o valor económico nele incorporado. Tratando-se aqui de um imposto sobre ganhos de capital, a liquidar e cobrar por altura da disposição de um ativo, é natural que o mesmo tenha em conta o valor de capital objetivamente incorporado no ativo no momento da aquisição e da alienação.
66. Em matéria de tributação do património por transmissões a título oneroso e gratuito, o valor de referência é, alternativamente, o que consta do ato ou contrato ou o valor patrimonial tributário do imóvel, no pressuposto de que os mesmos traduzem, com suficiente plausibilidade, a substância económica da realidade patrimonial em presença. Para as transações onerosas o CIMT considera o maior dos valores em causa. O CIS remete para o valor patrimonial tributário no caso das transmissões gratuitas. Para efeitos de tributação de mais-valias em casos de transmissão a título gratuito nunca se contabiliza o valor zero como valor de aquisição, ou custo base, mesmo que alguém haja recebido um imóvel a título gratuito, remetendo-se aí para o valor patrimonial tributário do imóvel (cfr. art. 12.º, n.º 1, do CIMT, e art. 13.º do CIS, 45.º, n.º1ª alínea a) e 46.º1, n.º1, do CIRS). Nestas situações, o valor de aquisição, a subtrair ao valor de alienação, é o valor patrimonial tributário do imóvel, sendo o custo base reajustado de forma a aproximá-lo do valor de mercado, ou justo valor, na lógica da chamada stepped-up basis rule .
67. No caso em apreço, o imóvel em causa não foi adquirido pelo Requerente e o seu irmão por transmissão gratuita mortis causa, por falecimento do pai, tendo apenas ocorrido uma transmissão aos mesmos de uma posição contratual com uma opção de compra, que, de resto, podia não ter sido exercida pelos cessionários. Todavia, não foi esta posição contratual que foi alienada por ambos, mas sim o imóvel em causa. E este só viria a ser adquirido mais tarde através do exercício da opção de compra, pelo valor residual, inscrito no contrato de locação financeira, através da celebração de um contrato de compra e venda.
68. Por estas razões, não é de aplicar aqui o artigo 45.º, n.º 1, do CIRS, sobre o valor de aquisição a título gratuito, que determina que:
“Para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS considera-se o valor de aquisição, no caso de bens ou direitos adquiridos a título gratuito: a) O valor que tenha sido considerado para efeitos de liquidação de imposto do selo; b) O valor que serviria de base à liquidação de imposto do selo, caso este fosse devido.”
O mesmo sucede com a norma do artigo 13.º, n.º 1, do CIS, que, nas transmissões gratuitas de imóveis, determina a consideração do respetivo “valor patrimonial tributário constante da matriz nos termos do CIMI à data da transmissão”. Em todo o caso, esta solução mostra que também aqui um sucessor que herdasse um imóvel a custo zero e posteriormente o alienasse nunca seria chamado a pagar mais-valias com base na diferença entre zero e o valor de alienação, em caso algum se podendo mobilizar os princípios da pessoalidade do IRS e da capacidade contributiva para justificar esse resultado, absolutamente desproporcional. Se é certo, que o CIRS pretende tributar as mais-valias, também o é que as mesmas devem ser calculadas com base em escorados na substância económica e patrimonial das transações em presença.
69. A não aplicação, neste âmbito, do artigo 45.º, n.º 1, do CIRS, e do 13.º, n.º 1, do CIS, deve-se, em primeiro lugar, ao facto de os direitos inerentes à posição contratual adquirida mortis causa pelo Requerente e seu irmão não terem sido por eles alienados em condições potencialmente geradoras de mais-valias. Um e outro não procederam a uma cessão onerosa da posição contratual que lhes havia sido transmitida por morte do pai. Em segundo lugar, essas normas não são aplicáveis também porque o imóvel alienado, cujo valor de aquisição e alienação serve de base ao computo das mais-valias, não foi adquirido a título gratuito, mas sim a título oneroso, mediante pagamento do valor residual, por contrato de compra e venda celebrado no termo do contrato de locação financeira. Por outras palavras, nem os direitos contratuais adquiridos a título gratuito pelo Requerente e irmão foram por eles alienados, nem o imóvel alienado por ambos foi adquirido a título oneroso. Não há, por isso, lugar à aplicação das normas, sobre transmissões gratuitas, constantes dos artigos 45.º, n.º 1, do CIRS e 13.º, n.º 1, do CIS.
70. No entender deste Tribunal, não há razão plausível para afastar a aplicação do artigo 46.º, n.º 5, do CIRS, entendido como contendo a exigência de, nos casos de bens imóveis adquiridos através do exercício do direito de opção de compra no termo da vigência do contrato de locação financeira, considerar como valor de aquisição o somatório do capital incluído nas rendas pagas durante a vigência do contrato e o valor pago para efeitos de exercício do direito de opção, com exclusão de quaisquer encargos. Ele reflete, com suficiente objetividade e plausibilidade, o valor de capital substancialmente incorporado no imóvel ao longo da vigência do contrato, prevenindo a ocorrência de situações de tributação materialmente desigual e desproporcional – considerando valores de aquisição muito abaixo do valor patrimonial tributário do imóvel – que, por poderem afetar severamente o princípio da justiça fiscal horizontal, no caso de sujeitos passivos colocados em situações económicas praticamente equivalentes, estariam irremediavelmente feridas de inconstitucionalidade. Além de o teor literal do artigo 46.º, n.º 5, do CIRS não distinguir entre os casos em que tenha ou não havido cessão de posição contratual – a despeito da normalidade da sua ocorrência no caso de contratos de locação financeira – a solução normativa que o mesmo tem subjacente, de aproximação do valor de aquisição ao justo valor de mercado (fair market value) do imóvel, é sistemicamente consistente com a realidade jurídica da manutenção da vigência do contrato-base no caso cessão da posição contratual. Acresce que a mesma se apresenta, em boa medida, compatível com o princípio da neutralidade fiscal – seguindo uma orientação substancialmente mais próxima da lógica da stepped-up basis rule geralmente aplicável no caso da transmissão gratuita de imóveis – ainda que se conceda que essa compatibilidade e esse princípio não sejam necessariamente absolutos em todos os casos.
71. Por outro lado, o artigo 8.º, n.º 1, da LGT estabelece que “estão sujeitos ao princípio da legalidade tributária a incidência, a taxa, os benefícios fiscais, as garantias dos contribuintes, a definição dos crimes fiscais e o regime geral das contraordenações fiscais”. De acordo com o princípio da legalidade tributária, que é um subprincípio do princípio da legalidade da administração, ínsito no princípio do Estado de direito, a AT está sujeita à lei, não lhe cabendo derrogar por via interpretativa normas legais em termos que se repercutam na incidência do imposto. Além do mais, essa conduta por parte da AT iria gerar uma forte instabilidade e incerteza em matéria fiscal, podendo por em causa os princípios da igualdade tributária e da segurança jurídica e proteção da confiança dos cidadãos. Quando cria normas legais de natureza fiscal, o legislador tem frequentemente em vista ponderar e harmonizar objetivos e interesses fiscais, económicos e sociais, em termos que, sendo naturalmente mutáveis em face de circunstâncias e conceções cambiantes, não devem ser infirmados por leituras hermenêuticas e metódicas de natureza estritamente administrativo-tributária, que consistam, objetivamente, na substituição das valorações mais amplas do legislador pelos objetivos mais restritos da Administração Tributária.
72.A solução preconizada, não sendo de modo algum a única pensável em abstrato, aponta, no caso concreto, no sentido da consideração como valor de aquisição, não simplesmente o valor residual, ou o valor residual mais as rendas pagas pelo Requerente, ou o valor residual mais as rendas pagas pelo requerente e pelo seu pai, ou o valor patrimonial tributário do imóvel no momento da aquisição ou este último valor acrescido do valor residual pago pelo Requerente na compra do imóvel, mas sim, e na totalidade, como se dispõe no artigo 46.º, n.º5, do CIRS, “o somatório do capital incluído nas rendas pagas durante a vigência do contrato e o valor pago para efeitos de exercício do direito de opção, com exclusão de quaisquer encargos.” Trata-se de uma solução, que além de resultar da interpretação literal, sistemática e teleológica do preceito análise, se afigura sistemicamente consistente, no presente quadro jurídico-normativo, por aproximar o valor de aquisição do imóvel ao justo valor de mercado, prevenindo lesões significativas ao princípio da equidade horizontal, que é um subprincípio dos princípios da igualdade e da justiça fiscais. No caso concreto, como resulta da informação do C..., o valor do somatório do capital incluído nas rendas pagas durante a vigência do contrato e o valor pago para efeitos de exercício do direito de opção é igual ao valor inicial do contrato, que foi de € 103.368,41, devendo esse ser o valor de aquisição considerado, cabendo ao Requerente metade desse valor, isto é, € 51.684,20.
2.5. Juros indemnizatórios
73. O Requerente formula pedido de restituição das quantias arrecadadas pela AT, bem como de pagamento de juros indemnizatórios. Nos termos disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, de acordo com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.
74. Não obstante o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilizar a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, há muito que se entende que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.
75. Apesar de ser, essencialmente, um processo de anulação de atos tributários, o processo de impugnação admite a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” e do artigo 61.º, n.º 4, do CPPT (na redação dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redação inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea». Nos termos do n.º 5 deste mesmo artigo, “Os juros são contados desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos.”
76. Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral. Este entendimento decorre do princípio da tutela jurisdicional efetiva e da correspondente ampliação dos poderes conformadores da jurisdição administrativa e tributária. Por isso, o Requerente tem o direito de ser reembolsado do imposto pago e juros indemnizatórios por força dos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.
77. No caso em apreço, está em causa a liquidação ilegal de imposto de mais-valias tendo por base a determinação do valor de aquisição de um imóvel adquirido no termo de um contrato de locação financeira a partir da soma do valor residual pago no exercício da opção de compra e das rendas pagas pelo cessionário, e não “o somatório do capital incluído nas rendas pagas durante a vigência do contrato e o valor pago para efeitos de exercício do direito de opção, com exclusão de quaisquer encargos”, como resulta do teor literal do artigo 46.º, n.º 5, do CIRS, interpretado igualmente à luz da sua congruência sistemática com a lógica da cessão da posição contratual e com o princípio da neutralidade fiscal. A solução preconizada pela AT, por permitir um afastamento substancial do valor patrimonial tributário dos imóveis e da respetiva substância económica – relevante mesmo em sede de tributação das mais valias geradas pela alienação de imóveis adquiridos a título gratuito – é potencialmente geradora de situações de tributação materialmente desproporcional e discriminatória, diante de sujeitos passivos colocados em situações economicamente equivalentes, em termos constitucionalmente inadmissíveis.
3 DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
Anular a liquidação de IRS de 2016 com o nº 2018... e ordenar a restituição ao Impugnante da quantia de € 12.168,21, acrescida de juros indemnizatórios desde a data do pagamento.
4 VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 11.071,94, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
5 CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem 918.00 € a cargo da Requerida em nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo
Notifique-se.
Lisboa, 26 de setembro de 2019
O Árbitro
Jónatas E. M. Machado