Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 127/2019-T
Data da decisão: 2019-09-30  IRC  
Valor do pedido: € 20.204,94
Tema: IRC – Pagamento Especial por Conta; Tributações Autónomas - Dedutibilidade
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DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1. No dia 22 de Fevereiro de 2019, a A..., Lda., anteriormente designada B..., Lda., com sede na ..., ... e ..., ..., ..., ...-... Algés, titular do número único de identificação de pessoa colectiva e de matrícula ... (doravante Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, abreviadamente designado RJAT), com a redacção introduzida pelos artigos 228.º e 229.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro e pelos artigos 9.º da Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro e 17.º da Lei n.º 119/2019, de 18 de Setembro, com vista à pronúncia deste tribunal relativamente à:

- Apreciação da legalidade do despacho do Chefe de Divisão de Justiça Administrativa da Direcção de Finanças de Lisboa, em regime de subdelegação de competências, de 22 de Novembro de 2018, que indeferiu a reclamação graciosa n.º ...2018..., tendo por objecto a autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) relativa ao exercício de 2015, com a consequente anulação.

- Apreciação da legalidade da autoliquidação de IRC, relativa ao exercício de 2015, constante da declaração Modelo 22 entregue em 31 de Maio de 2016 e identificada pelo n.º ..., no montante de € 20.204,94, com a consequente anulação.

- Condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) à restituição da prestação tributaria indevidamente paga pela Requerente, acrescido dos juros indemnizatórios devidos nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT).

2. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação à AT, em 25 de Fevereiro de 2019.

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

3.1. Em 16 de Abril de 2019, as Partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

3.2. Assim, em conformidade com o preceituado do artigo 11.º, n.º 1, na alínea c) do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 8 de Maio de 2019.

4. No pedido arbitral, no essencial, a Requerente alega que:

a)            Abstraindo do debate em torno da natureza das tributações autónomas, o apuramento do respectivo montante segue o procedimento previsto para o IRC, isto é, o disposto no artigo 90.º do Código do IRC.

b)           Ou seja, à colecta originada pelas tributações autónomas podem ser deduzidos os montantes identificados no n.º 2, dentre os quais está o Pagamento Especial por Conta (PEC) – cfr. artigo 90.º, n.º 2, alínea d) do Código do IRC.

c)            Prova disso é a atribuição de carácter interpretativo ao n.º 21 do artigo 88.º do Código do IRC, aditado pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março.

d)           Para o legislador, a determinação do quantum das tributações autónomas obedece ao mesmo procedimento que está previsto para o IRC propriamente dito.

e)           Subtrair a liquidação das tributações autónomas ao regime do artigo 90.º do Código do IRC, inclusive no que toca às deduções à colecta reguladas pelo n.º 2, significaria, por um lado, introduzir uma dualidade de regimes de liquidação que não foi desejada pelo legislador.

f)            Basta que se tenha em conta que há sensivelmente duas décadas as tributações autónomas estão inseridas no Código do IRC e que até à data não existiu qualquer movimento legislativo no sentido da sua retirada do regime unitário de liquidação do imposto.

g)            O legislador fez exactamente o contrário ao clarificar que o procedimento de liquidação da tributação autónoma em IRC é o do imposto.

h)           Por outro lado, com a hipotética subtracção das tributações autónomas ao regime do artigo 90.º do Código do IRC estar-se-ia a reconhecer a inexistência de um vazio legal e, por conseguinte, que estaríamos diante de um imposto cuja liquidação não se fazia nos termos da lei.

i)             Quando, em 2016, o legislador acrescenta uma 2.ª parte ao n.º 21 do artigo 88.º do Código do IRC a proibir quaisquer deduções à colecta das tributações autónomas, está, em bom rigor, a reconhecer que a respectiva liquidação segue o regime previsto no artigo 90.º do mesmo Código.

j)             É que se não fosse para excluir a possibilidade de deduzir à colecta de tributação autónoma as importâncias elencadas no n.º 2 do artigo 90.º do Código do IRC e recortar a liquidação da tributação autónoma ao regime geral de liquidação do IRC, não haveria necessidade, tão-pouco outra qualquer razão atendível para acrescentar este segmento à lei.

k)            Aplicar-se-ia, simplesmente, o disposto no artigo 90.º do Código do IRC como um todo.

l)             A jurisprudência uniforme dos Tribunais Arbitrais vai no sentido da dedutibilidade à colecta das tributações autónomas em IRC dos benefícios fiscais a que se refere a alínea c) do n.º 2 do artigo 90.º do Código do IRC, tais como o SIFIDE (Sistema de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento Empresarial), o CFEI (Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento) e o RFAI (Regime Fiscal de Apoio ao Investimento).

m)          Com efeito, em momento algum o legislador consagrou um regime especial, diverso do regime geral do artigo 90.º do Código do IRC, para a determinação do quantum das tributações autónomas.

5. Por lapso, a Requerida não apresentou Resposta.

6. Por despacho de 31 de Julho de 2019, foram as Partes notificadas da decisão do Tribunal Arbitral de dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, e convidadas a produzir alegações escritas, tendo sido fixado o dia 30 de Setembro de 2019 como data limite para a prolação da decisão arbitral.

7. As Partes apresentaram alegações escritas.

 

II – SANEADOR

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objecto do processo (cfr. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

III – FUNDAMENTAÇÃO

 

III-1. DE FACTO

 

§1. Factos provados

Com interesse para a decisão a proferir nos presentes autos consideram-se provados os seguintes factos:

a)            A Requerente é uma sociedade de direito português que se dedica à importação, comercialização e distribuição de vestuário;

b)           Enquanto sujeito passivo de IRC, a Requerente submeteu, em 31 de Maio de 2016, a declaração Modelo 22 de IRC respeitante ao exercício de 2015, tendo apurado um prejuízo fiscal de € 1.801.945,70;

c)            O único montante a pagar neste exercício ascendeu a € 20.204,94 e dizia respeito exclusivamente a tributações autónomas em IRC, montante este que foi reflectido na demonstração de liquidação de IRC n.º 2016..., de 24 de Junho de 2016, relativa ao exercício de 2015;

d)           No exercício de 2015, a Requerente tinha um montante de PEC realizados nos exercícios anteriores e não deduzidos à colecta dos mesmos disponível para dedução:

 

e)           Após entregar a declaração Modelo 22 respeitante ao exercício de 2015, em 31 de Maio de 2016, a Requerente constatou que a mesma continha um erro;

f)            Especificamente, que não deduzira ao montante apurado a título de tributações autónomas o valor dos PEC disponíveis para dedução;

g)            A Requerente apresentou, em 30 de Maio de 2018, uma reclamação graciosa contra a autoliquidação de IRC respeitante ao exercício de 2015;

h)           Através de ofício da Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, de 16 de Outubro de 2018, a Requerente foi notificada para se pronunciar, querendo, sobre o projecto de indeferimento da reclamação graciosa;

i)             O projecto de indeferimento foi convolado em decisão definitiva por despacho da Chefe de Divisão de Justiça Administrativa da Direção de Finanças de Lisboa, em regime de subdelegação de competências, datado de 22 de Novembro de 2018.

 

§2. Factos não provados

 

Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não resultam, factos não provados.

 

§3. Fundamentação dos factos provados

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal Arbitral fundou-se nos factos articulados pelas Partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa, na análise crítica da prova documental, que consta dos autos, incluindo o processo administrativo.

 

III- 2. DE DIREITO

 

III.2.1. Análise das questões

 

É importante recordar, preliminarmente, o que vem sendo entendido pela jurisprudência desde há anos, ou seja, que os Tribunais não têm que apreciar todos os argumentos formulados pelas partes (cfr. inter alia, Acórdão do Pleno da 2.ª Secção do STA, de 7 Jun 95, rec 5239, in DR – Apêndice de 31 de Março de 97, pgs. 36-40 e Ac STA – 2.ª Séc – de 23 Abr 97, DR/AP de 9 Out 97, p. 1094).

 

Este entendimento jurisprudencial encontra-se estribado, actualmente, no disposto nos artigos 607.º, n.º 2 e 3, do CPC e 123.º, 1.ª parte, do CPPT, quando impõem apenas ao juiz (ou ao Tribunal) que, depois de identificar as partes e o objecto do litígio e enunciar as questões decidendas, fundamente a decisão discriminando os factos provados e os não provados e indique, interprete e aplique as normas correspondentes para a sua conclusão final (decisão).

O RJAT sufraga igualmente este entendimento quando, no artigo 22.º, n.º 2, dispõe que “(...) é aplicável à decisão arbitral o disposto no artigo 123.º, primeira parte, do CPPT, relativamente à sentença judicial (...)”.

O objecto do litígio reconduz-se, por outras palavras e essencialmente, à apreciação da questão da (des)consideração da colecta decorrente das tributações autónomas para efeitos do limite das deduções previstas no artigo 90º, do Código do IRC (período de tributação de 2015).

Concretamente, defende a Requerente o seu alegado direito a deduzir os valores pagos a título de PEC à colecta de IRC produzida por tributações autónomas no exercício de 2015.

As questões que são objecto do presente processo são, em primeira linha, as de saber se são dedutíveis às quantias devidas a título de tributações autónomas as quantias pagas a título de PEC que a Requerente efectuou.

Começar-se-á, então, por apreciar esta questão da aplicação do artigo 90.º do Código do IRC à liquidação de tributações autónomas, pois da sua solução depende a apreciação da questão da dedutibilidade dos PEC à colecta daquelas tributações autónomas.

 

III.2.2. Da aplicação do artigo 90.º do Código do IRC às tributações autónomas

 

Assinale-se desde já que a questão essencial não está em saber se as tributações autónomas são, ou não, IRC sendo claro que a liquidação das tributações autónomas se efectua com base nos artigos 89.º e 90.º n.º 1 do Código do IRC mas, na verdade, aplicando regras diferentes para o cálculo do imposto:

(1) num caso a liquidação opera, mediante a aplicação das taxas do artigo 87.º à matéria colectável apurada de acordo com as regras do capítulo III do Código e

(2) no outro caso, são apuradas diversas colectas consoante a diversidade dos factos que originam a tributação autónoma.

 

Daqui resulta que o montante apurado nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 90.º não tem um carácter unitário, já que comporta valores calculados segundo regras diferentes, a que estão associadas finalidades também diferenciadas, pelo que as deduções previstas nas alíneas do n.º 2 só podem ser efectuadas à parte da colecta do IRC com a qual exista uma correspondência directa, por forma a ser mantida a coerência da estrutura conceptual do regime-regra do imposto.          

Conclui-se daqui, se bem se entende, que não há sequer verdadeira controvérsia entre as partes quanto à aplicação do artigo 90.º do Código do IRC à liquidação das tributações autónomas, limitando-se a divergência à forma de proceder à liquidação, pois a AT entende, se bem entendemos, que são apuradas diversas colectas consoante a diversidade dos factos que originam a tributação autónoma e as deduções previstas nas alíneas do n.º 2 só podem ser efectuadas à parte do colecta do IRC com a qual exista uma correspondência directa, entendendo que ela não se verifica em relação à colecta do IRC que resulta das tributações autónomas.

De qualquer forma, os referidos artigos 89.º e 90.º do CIRC, bem como outras normas deste Código, como as relativas as declarações previstas nos artigos 120.º e 122.º, são aplicáveis às tributações autónomas.

Desde logo – reafirma-se –, é hoje pacífico, na sequência de inúmera jurisprudência arbitral (grande parte dela citada pela própria Requerente) e das posições assumidas pela AT, que o imposto cobrado com base em tributações autónomas previstas no Código do IRC tem a natureza de IRC.

De resto, para além da unanimidade da jurisprudência, o artigo 23.º-A n.º 1, alínea a), do Código do IRC, na redação da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, não deixa hoje margem para qualquer dúvida razoável, corroborando o que já anteriormente resultava do teor literal do artigo 12.º do mesmo Código.

Ora, o artigo 90.º do Código do IRC refere-se às formas de liquidação do IRC, pelo sujeito passivo ou pela AT, aplicando-se ao apuramento do imposto devido em todas as situações previstas no Código, incluindo a liquidação adicional (n.º 10).

Por isso, aquele artigo 90.º aplica-se também à liquidação do montante das tributações autónomas, que é apurado pelo sujeito passivo ou pela AT, na sequência da apresentação ou não de declarações, não havendo qualquer outra disposição que preveja termos diferentes para a sua liquidação.

Assim, as diferenças entre a determinação do montante resultante de tributações autónomas e o resultante do lucro tributável restringem-se à determinação da matéria tributável e às taxas aplicáveis, que são as previstas nos Capítulos III e IV do Código do IRC para o IRC que tem por base o lucro tributável e no artigo 88.º do Código do IRC para o IRC que tem por base a matéria tributável das tributações autónomas e as respetivas taxas.

Mas as formas de liquidação que se preveem no Capítulo V do mesmo Código são de aplicação comum às tributações autónomas e à restante matéria tributável de IRC.

No entanto, a circunstância de uma autoliquidação de IRC, efectuada nos termos do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC, poder conter vários cálculos parciais com base em várias taxas aplicáveis a determinadas matérias colectáveis, não implica que haja mais que uma liquidação, como resulta dos próprios termos daquela norma ao fazer referência a «liquidação», no singular, em todos os casos em que é «feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º», tendo «por base a matéria colectável que delas conste» (seja a determinada com base nas regras dos artigos 17.º e seguintes seja a determinada com base nas várias situações previstas no artigo 88.º do Código do IRC).

Aliás, não são apenas as liquidações previstas no artigo 88.º do Código do IRC que podem englobar vários cálculos de aplicação de taxas a determinadas matérias colectáveis, pois o mesmo pode suceder nas situações previstas nos n.ºs 4 a 6 do artigo 87.º do Código do IRC.

De qualquer forma, quaisquer que sejam os cálculos a fazer, é unitária autoliquidação que o sujeito passivo ou a AT devem efetuar nos termos dos artigos 89.º, alínea a), 90.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), e 120.º ou 122.º do Código do IRC, e com base nela que é calculado o IRC global, sejam quais forem as matérias colectáveis relativas a cada um dos tipos de tributação que lhe esteja subjacente.

Aliás, se este artigo 90.º do Código do IRC não fosse aplicável à liquidação das tributações autónomas, teríamos de concluir que não haveria qualquer norma que previsse a sua liquidação, o que se reconduziria a ilegalidade, por violação do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que exige que a liquidação de impostos se faça «nos termos da lei».

Refira-se ainda que a norma do n.º 21 aditada ao artigo 88.º do Código do IRC pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, independentemente de ser ou não verdadeiramente interpretativa, em nada altera esta conclusão, pois aí se estabelece, no que concerne à forma de liquidação das tributações autónomas, que ela «é efectuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores».

Com efeito, se é certo que esta nova norma vem explicitar como é que se calculam os montantes das tributações autónomas (o que já decorria do próprio texto das várias disposições do artigo 88.º do Código do IRC) e que a competência cabe ao sujeito passivo ou à AT, nos termos do artigo 89.º do Código do IRC, é também claro que não se afasta a necessidade de utilizar o procedimento previsto no n.º 1 do artigo 90.º, designadamente nos casos previstos na sua alínea c) em que a liquidação cabe à AT, com «base os elementos de que a administração fiscal disponha», que parece ser inquestionável que abrangerão a possibilidade de liquidar com base em tributações autónomas, se a AT dispuser de elementos que comprovem os seus pressupostos.

Por isso, quer antes quer depois da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, o artigo 90.º, n.º 1, do Código do IRC é aplicável, nos termos referidos, à liquidação de tributações autónomas, ou seja, com apuramento de forma autónoma e distinta do processado nos termos do citado artigo 90.º do Código do IRC.

 

III.2.3. Natureza das tributações autónomas e o seu grau de conexão com o IRC

 

Importa recuar ao ano de 1990 para encontrar a primeira intervenção do legislador no sentido de sujeitar determinadas despesas a tributação autónoma e que ocorreu com a publicação do Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de Junho, cujo artigo 4.º previa que «as despesas confidenciais ou não documentadas efectuadas no âmbito do exercício de actividades comerciais, industriais ou agrícolas por sujeitos passivos de IRS que possuam ou devam possuir contabilidade organizada ou por sujeitos passivos de IRC não enquadrados nos artigos 8.º e 9.º do respetivo Código são tributadas autonomamente em IRS ou IRC, conforme os casos, a uma taxa de 10%, sem prejuízo do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 41.º do CIRC.».

Esta norma foi objecto de diversas alterações posteriores que, sucessivamente, procederam ao aumento da taxa de tributação nela prevista.

Com este tipo de tributação teve-se em vista, por um lado, incentivar os contribuintes a ela sujeitos a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal e, por outro lado, evitar que, através dessas despesas, as empresas procedessem à distribuição camuflada de lucros, sobretudo de dividendos que, assim, apenas ficariam sujeitos ao IRC enquanto lucros da empresa, bem como combater a fraude e evasão fiscais que tais despesas ocasionam não apenas em relação ao IRS ou IRC, mas também em relação às correspondentes contribuições, tanto das entidades patronais como dos trabalhadores, para a Segurança Social.

SALDANHA SANCHES (Manual de Direito Fiscal, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 407), a propósito da tributação autónoma prevista no artigo 81.º, n.º 3, do Código do IRC, escreveu o seguinte: “(...)Neste tipo de tributação, o legislador procura responder à questão reconhecidamente difícil do regime fiscal de despesas que se encontram na zona de interseção da esfera pessoal e da esfera empresarial, de modo a evitar remunerações em espécie mais atraentes por razões exclusivamente fiscais ou a distribuição oculta de lucros. Apresenta a norma uma característica semelhante à que vamos encontrar na sanção legal contra custos não documentados, com uma subida da taxa quando a situação do sujeito passivo não corresponde a uma situação de normalidade fiscal. Se na declaração do sujeito passivo não há lucro, o custo pode ser objecto de uma valoração negativa: por exemplo, temos uma taxa de 15% aplicada quando o sujeito passivo teve prejuízos nos dois últimos exercícios e foi comprada uma viatura ligeira de passageiros por mais de € 40 000 (artigo 81.º, n.º 4).

Com esta previsão, o sistema mostra a sua natureza dual, com uma taxa agravada de tributação autónoma para certas situações especiais que se procura desencorajar, como a aquisição de viaturas para fins empresariais ou viaturas em princípio demasiado dispendiosas quando existem prejuízos. Cria-se, aqui, uma espécie de presunção de que estes custos não têm uma causa empresarial e, por isso, são sujeitos a uma tributação autónoma. Em resumo, o custo é dedutível, mas a tributação autónoma reduz a sua vantagem fiscal, uma vez que, aqui, a base de incidência não é um rendimento líquido, mas, sim, um custo transformado – excecionalmente – em objecto de tributação (...)” [sublinhado nosso].

Contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efectuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar directamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.

Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cfr. artigo 8.º, n.º 9, do Código do IRC).

Já no que respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo.

Esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso).

Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos actos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efectuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efectuadas na determinação da taxa.

Neste caso estamos perante um tributo de obrigação única, incidindo sobre operações que se produzem e esgotam de modo instantâneo, em que o facto gerador do tributo surge isolado no tempo, originando, para o contribuinte, uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Ou seja, as taxas de tributação autónoma aqui em análise não se referem a um período de tempo, mas a um momento: o da operação isolada sujeita à taxa, sem prejuízo de o apuramento do montante devido pelos agentes económicos sujeitos à referida “taxa” ser efectuado periodicamente, num determinado momento, conjuntamente com outras operações similares, sem que a liquidação conjunta influa no seu resultado.

Por esta razão, SÉRGIO VASQUES (Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, pág. 293, nota 470) chama a atenção para a circunstância de os impostos sobre o rendimento contemplarem elementos de obrigação única, como as taxas liberatórias do IRS ou as taxas de tributação autónoma do IRC.

As tributações autónomas, de acordo com a sua regulamentação inicial, constituíram como que um sucedâneo do regime da não dedutibilidade anteriormente previsto no Código do IRC.

Com efeito, na sua génese estava a não aceitação fiscal de uma percentagem de certas despesas, constituindo as tributações autónomas uma forma alternativa e mais eficaz de correção dos custos sempre que se trate de áreas mais propícias à evasão fiscal (ajudas de custo, despesas de representação, despesas com viaturas, etc.).

Assim, não seria razoável, antes até contrário ao motivo que levou o legislador a tributar autonomamente aquelas despesas, que, através da sua dedução ao lucro tributável a título de gastos, fosse eliminado o fundamento da existência das tributações autónomas.

A jurisprudência arbitral tem decidido no sentido de que as tributações autónomas pertencem, por regra, sistematicamente, ao IRC, e não ao IVA, ao IRS, ou a um qualquer outro imposto do sistema fiscal português. É o caso, entre outros, dos processos arbitrais n.º 166/2014-T, n.º 246/2013-T, n.º 260/2013-T, n.º 282/2013-T, n.º 6/2014-T, n.º 36/2014-T e n.º 697/2014-T.

Elas estão, por isso, fortemente ligadas aos sujeitos passivos do imposto sobre o rendimento respetivo, e, mais especificamente, à actividade económica e empresarial por eles levada a cabo. Do que se trata, nas tributações autónomas é, com efeito, de tributar certas despesas ou encargos (gastos), vistas estas na sua relação com a ideia geral de lucro real e efectivo e a tributação do rendimento.

Com efeito, parece-nos fora de dúvida que o mecanismo de tributação autónoma do conjunto das realidades previstas no artigo 88.º do CIRC visa, primacialmente, acautelar os equilíbrios gerais do próprio sistema fiscal, os equilíbrios específicos do IRC e a receita do próprio imposto. Isto é, visa impedir que através da relevação significativa de encargos como os previstos no artigo 88.º, se não introduzam entorses afectadoras do sistema e a expectativa sobre o que deverá ser a receita “normal” do imposto não saia gorada. No caso, como é igualmente consabido, do que se trata é de desincentivar a realização / relevação dessas despesas, desde logo porque, pela sua natureza e fins, elas podem ser mais facilmente objecto de desvio para consumos que, na essência, são privados ou correspondem a encargos que não deixam de ter, também, como finalidade específica e última, o evitamento do imposto. Realidades que apresentam alguma medida de censurabilidade já que, não violando directamente a lei, geram desequilíbrios sensíveis e importantes sobre a ideia geral de justiça, sobre o dever fundamental de contribuir na proporção dos seus haveres, da igualdade, do sacrifício, da proporcionalidade da medida do imposto em face das manifestações possíveis de riqueza, da tributação do rendimento real e da justiça.

Funcionando de um modo diferente do que constitui o escopo essencial do IRC – que tributa os rendimentos – as tributações autónomas, reafirma-se, tributam certas despesas ou encargos específicos – e constituem uma realidade instrumental, acessória desse imposto, na justa medida em que é em função dele que foram instituídas e são, por isso, passíveis de lhes ser reconhecida uma instrumentalidade ou acessoriedade de fins, radicada na salvaguarda dos objectivos do próprio imposto onde se manifestam.

Tem-se assim como certo que as tributações autónomas não constituem IRC em sentido estrito mas encontram-se a este (IRC) imbricadas, devendo conter-se nos “outros impostos” de que nos dá conta a parte final da alínea a) do n.º 1 do artigo 45.º do Código do IRC [redação então vigor e actual artigo 23.º-A, n.º 1, alínea a), do Código do IRC)].

Como se ponderou no acórdão do Tribunal Constitucional em recurso de decisão arbitral tributária, “(...)a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não directamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal (...)” [cfr. Acórdão n.º 197/2016 do Tribunal Constitucional, in DR, 2.ª Série, nº. 99, de 23 de maio de 2016] .

Revelações dessa ligação de funcionalidade, e no quadro da intenção do legislador no seu todo, sobressaem, por exemplo da disciplina do artigo 12.º do Código do IRC a propósito das entidades sujeitas ao regime da transparência fiscal, ao não as tributar em IRC, “salvo quanto às tributações autónomas”, relação essa que igualmente se manifesta face ao n.º 14 do artigo 88.º do Código do IRC, no sentido em que as taxas de tributação autónoma têm em consideração o facto do sujeito passivo apresentar ou não prejuízo fiscal.

“Embora formalmente inserida no CIRC e o montante que permita arrecadar seja liquidado no seu âmbito e a título de IRC, a norma em causa respeita a uma imposição fiscal que é materialmente distinta da tributação nesta cédula, (…). Com efeito, estamos perante uma tributação autónoma, como diz a própria letra do preceito. E isso faz toda a diferença. Não se trata de tributar um rendimento no fim do período tributário, mas determinado tipo de despesas em si mesmas, pelas compreensíveis razões de política fiscal que o acórdão aponta.

Deste modo, o facto revelador de capacidade tributária que se pretende alcançar é a simples realização dessa despesa, num determinado momento. Cada despesa é, para este efeito, um facto tributário autónomo, a que o contribuinte fica sujeito, venha ou não a ter rendimento tributável em IRC no fim do período, sendo irrelevante que esta parcela de imposto só venha a ser liquidada num momento posterior e conjuntamente com o IRC (...)” [voto do Juiz do Tribunal Constitucional Vítor Gomes no Acórdão desse Tribunal proferido no Processo nº 2014/2010. Este entendimento foi ulteriormente confirmado ou reiterado pelo Acórdão do Plenário do TC n.º 617/2012 - Processo n.º 150/12, de 31/1/2013 e no Acórdão n.º 197/2016 - Processo n.º 465/2015, para além do citado Acórdão n.º 197/2016].

Foi igualmente reconhecido pela jurisprudência do STA (2.ª secção, Processo 830/11, de 21-03-2012) “que sob a designação de tributações autónomas se escondem realidades muito diversas, incluindo, nos termos do n.º 1 do (então) artigo 81.º do Código do IRC, as despesas confidenciais ou não documentadas, que são tributadas autonomamente, à taxa de 50%, que será elevada para 70%, nos casos de despesas efectuadas por sujeitos passivos total ou parcialmente isentos, ou que não exerçam, a título principal, actividades de natureza comercial, industrial ou agrícola (n.º 2 do [então] artigo 81.º) e que não são consideradas como custo no cálculo do rendimento tributável em IRC.

Refira-se, contudo, que já as despesas de representação e as relacionadas com viaturas ligeiras, nos termos do disposto no (então) artigo 81.º n.º 3 do Código do IRC e ajudas de custo estão afectas à actividade empresarial e “indispensáveis” pelo que são fiscalmente aceites nalguns casos ainda que dentro de certos limites.

Por sua vez, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 18/11, diz-nos que existem factos sujeitos a tributação autónoma, que correspondem a “encargos comprovadamente indispensáveis à realização dos proveitos” e que por isso a proibição da aplicação retroativa da lei nova não se aplica, pois tais encargos teriam sido incorridos independentemente do regime fiscal aplicável: isto significa que a tributação autónoma também recai sobre encargos que correspondem ao núcleo do conceito de rendimento real, rendimento líquido e cumprimento de obrigações contabilísticas. Este argumento do Tribunal Constitucional, a propósito da aplicação retroativa da lei fiscal às tributações autónomas (e esta matéria da aplicação da lei no tempo não cabe no objecto desta decisão), interessa-nos apenas salientar que o Tribunal reconhece que este regime constitui uma limitação à tributação do rendimento real (a qual é garantida pelo artigo 104.º n.º 2 da CRP).

No acórdão n.º 310/12, de 20 de Junho (Relator Conselheiro João Cura Mariano), o Tribunal Constitucional vem reformular a doutrina do Acórdão n.º 18/11 do mesmo Tribunal, aproximando-se do voto de vencido do Conselheiro Vítor Gomes e do Acórdão do STA n.º 830/11, nos termos seguintes: “(...) Contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efectuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar directamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação. [sublinhado nosso].

Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cfr. artigo 8.º, n.º 9, do Código do IRC). Já no que respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo. Esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso). Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos actos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efectuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efectuadas na determinação da taxa (...)”

Analisada, ainda, sob outro prisma, haverá que considerar as tributações autónomas no contexto de normas anti-abuso específicas e a sua similitude com o regime previsto sob o n.º 1 do artigo 65.º do Código do IRC, na redação de 2011 (“não são dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável as importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável, salvo se o sujeito passivo puder provar que tais encargos correspondem a operações efectivamente realizada e não têm um carácter anormal ou um montante exagerado”).

Visando as tributações autónomas reduzir a vantagem fiscal alcançada com a dedução ao lucro tributável dos custos sobre os quais incide e ainda combater a evasão fiscal que este tipo de despesas, pela sua natureza, potencia, não poderá ser ela mesma através da sua dedução ao lucro tributável a título de custo do exercício constituir factor de redução dessa diminuição de vantagem pretendida e determinada pelo legislador.

Concluindo: as tributações autónomas, que incidem sobre encargos dedutíveis em IRC, integram o regime e são devidas a título deste imposto, não constituindo as despesas com o pagamento daquelas tributações encargos dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável.

Este entendimento foi também clarificado pelo artigo 3.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, que aditou o artigo 23.º-A) ao Código do IRC (ao mesmo tempo que o seu artigo 13.º revogou o artigo 45.º.

 

 Não subsistindo dúvidas quanto ao carácter interpretativo do preceito em causa, de acordo com as regras de hermenêutica jurídica, na prática, tal norma, vem expressar o que o legislador sempre entendeu e continua a entender, ou seja que os encargos decorrentes com o custo associado às tributações autónomas, não relevam para efeitos de apuramento do lucro tributável.

 

III.2.4. O Pagamento Especial por Conta de IRC devido a final

 

A génese e a evolução do PEC desenvolvem-se em três estádios, designadamente (i) o regime que vai do seu nascimento até ao ano 2000; (ii) o regime aplicável aos exercícios de 2001 e 2002; e o regime subsequente que vigora até hoje.

Na sua versão inicial o PEC foi apresentado como ferramenta de melhoria do sistema, que era e é muito baseado na declaração dos rendimentos pelos contribuintes. A sua introdução no sistema fiscal foi simultânea com a redução da taxa geral do IRC em dois pontos percentuais. A ocorrência dos dois factos não é coincidência; por um lado, reduziu-se a taxa aplicável aos contribuintes pagadores de imposto; através do PEC promoveu-se o pagamento especial de quantia a título de imposto, ainda que a título provisório, pelos sujeitos passivos que apesar de continuarem a desenvolver a sua actividade ano após ano, persistiam em declarar rendimentos negativos ou nulos, escapando à tributação efectiva. É, pois, como medida de combate às “práticas evasivas de ocultação de rendimentos ou de empolamento de custos” que o PEC foi justificado no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 44/98, de 3 de março, que o instituiu.

A provisoriedade do pagamento do imposto residia afinal na possibilidade de deduzir as quantias pagas como PEC ao IRC apurado nos termos gerais, fixados no artigo 71.º do Código do IRC então vigente (do qual ainda não faziam parte as tributações autónomas), embora essa dedução só fosse possível se apesar dessa operação o valor do imposto a pagar fosse positivo (artigo 71.º, n.º 6 do Código do IRC [1998]). Não havendo IRC a pagar nos termos gerais, o valor do PEC satisfeito podia ser reportado para o exercício seguinte (artigo 74.º-A, n.º 1 do Código do IRC) ou reembolsado mais tarde (artigo 74.º-A, n.º 2 do Código do IRC). Procurava-se assim garantir que a generalidade dos sujeitos passivos satisfizesse valor por conta do IRC, calculado provisoriamente sobre o volume de negócios do exercício anterior (artigo 83.º-A do Código do IRC). No fundo ficcionava-se que todas as empresas teriam por tendência um lucro tributável, calculado de acordo com os parâmetros gerais, equivalente a 1% do seu volume de negócios do ano anterior, acertando-se posteriormente a conta, se assim não fosse.

Tal como bem se faz notar na Decisão Arbitral proferida no Processo n.º 722/2015-T, do CAAD, que aqui seguimos de perto, a reforma do IRC operada em 2000-2001 através da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, reduziu o caráter de pagamento por conta que o imposto tinha, impedindo o seu reembolso enquanto o contribuinte se mantivesse em actividade e impôs que o reporte das quantias satisfeitas fosse feito apenas até ao quarto exercício subsequente (artigo 74.º-A, n.º 1 do Código do IRC [2001]). Desta norma restritiva resulta, pela primeira vez, a possibilidade do PEC se transformar em colecta mínima [neste sentido, TERESA GIL, Pagamento Especial por Conta, Revista Fisco, Ano XIV, (Março 2003), n.º 107-108, p. 12] quando não fosse possível deduzir as quantias satisfeitas, por esgotamento do período de reporte. Em síntese, é possível afirmar que as alterações introduzidas nesta reforma não só mantiveram como acentuaram a tónica de combate à evasão fiscal que tinha animado a introdução do PEC. Apesar de nesta ocasião as “tributações autónomas” terem sido introduzidas no Código do IRC, não foi previsto qualquer mecanismo de articulação entre os dois instrumentos.

A terceira configuração do PEC é introduzida pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, que no seu artigo 27.º introduziu um novo regime da dedutibilidade do PEC no artigo 87.º, n.º 3, do Código do IRC, repondo a possibilidade de reembolso das quantias entregues a título de pagamento especial por conta e não abatidas na liquidação anual de IRC. Manteve-se ainda aqui o carácter de medida de perseguição da evasão fiscal, embora se tenha aligeirado, sem o abolir completamente, o cunho de colecta mínima, face aos apertados condicionalismos impostos para o reembolso.

Dispõe o artigo 104.º do Código do IRC (redacção do Decreto-Lei n.º 292/2009, de 13 de Outubro) que: “As entidades que exerçam, a título principal, actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, bem como as não residentes com estabelecimento estável em território português, devem proceder ao pagamento do imposto nos termos seguintes:

 

a)            Em três pagamentos por conta, com vencimento em Julho, Setembro e 15 de Dezembro do próprio ano a que respeita o lucro tributável ou, nos casos dos nºs 2 e 3 do artigo 8.º, no 7.º mês, no 9.º mês e no dia 15 do 12.º mês do respectivo período de tributação;”

E o artigo 106.º do Código do IRC (redacção dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro) dispõe: “Sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 104.º, os sujeitos passivos aí mencionados ficam sujeitos a um pagamento especial por conta, a efetuar durante o mês de Março ou em duas prestações, durante os meses de Março e Outubro do ano a que respeita ou, no caso de adoptarem um período de tributação não coincidente com o ano civil, nos 3.º e 10.º meses do período de tributação respetivo.”.

Do que antecede resulta a obrigatoriedade, para os sujeitos passivos de IRC, de efectuar pagamentos por conta do IRC que será devido a final. Como é sabido, a técnica dos pagamentos por conta consiste, no geral, num mero mecanismo de antecipação do imposto que venha a ser devido a final. Trata-se, como é pacificamente aceite e bem se salientou na Decisão Arbitral proferida no Processo n.º 722/2015-T do CAAD, e noutras, “de um meio que tem vantagens para o Estado pois permite-lhe antecipar o recebimento do imposto, ao mesmo tempo que assegura a sua colecta no momento ou à medida que o rendimento se produz, sem prejuízo do apuramento final e com observância do apuramento do que for devido segundo o método geral de tributação pelo lucro real.”.

É verdade que a razão de ser dos pagamentos por conta e do pagamento especial por conta, partindo deste tronco comum - já que, inequivocamente, ambos são o produto de uma técnica tributária pela qual a colecta do imposto devido a final é antecipada – diverge, pois, ainda assim, apresentam (no segundo caso), justificações algo diferenciadas. Ao passo que a razão de ser dos pagamentos por conta se esgotam, a nosso ver, nos fundamentos supra evidenciados, já o pagamento especial por conta, não perdendo essa finalidade de vista, tem ainda uma outra que se lhe adicionou. Com efeito, como bem se refere na Decisão Arbitral Processo n.º 113/2015-T, “na doutrina e na jurisprudência o regime do PEC sempre foi tido como sistema para evitar a evasão fiscal e para garantir o pagamento de imposto por todas as empresas em actividade.”. É, também, isso que resulta do trabalho doutrinário desenvolvido pelo Tribunal Constitucional. Do seu acórdão n.º 494/2009, resulta que o PEC, no recorte que que lhe foi dado no Código do IRC, está também “indissociavelmente ligado à luta contra a evasão e fraude fiscais”, procurando garantir que os rendimentos manifestados pelos contribuintes “correspond[i]am ao rendimento tributável realmente auferido”.[cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional (plenário) n.º 494/2009 de 29-09-2009, processo n.º 150/12].

O citado Acórdão n.º 494/2009 do Tribunal Constitucional identifica múltiplos trabalhos científicos que se pronunciaram no mesmo sentido, como é o caso de TERESA GIL (cfr. ob. e loc. cit.), que deu conta das circunstâncias que rodearam a introdução do PEC, designadamente das dificuldades na aplicação do princípio da tributação pelo lucro real, constatadas face à “divergência que existe entre os lucros efectivamente obtidos e aqueles que são declarados pelas empresas e, portanto, objecto de tributação”.

Como se tem dito, e neste passo, fazemos nossas a síntese invocada na referida Decisão Arbitral, em que o regime actual do PEC é assim caracterizado por (i) ter ligação indissociável à luta contra a evasão e fraude fiscais; (ii) ter sido introduzido no CIRC em março de 1998, antes das taxas de tributação autónoma que só passaram a fazer parte da sua sistemática na reforma de 2000-2001; (iii) na concepção do PEC previu-se a sua dedução à colecta na liquidação do IRC calculado sobre o rendimento real; (iv) a recuperação do crédito resultante do PEC está subordinada a condições de obtenção de rácios de rentabilidade próprios das empresas do sector de actividade em que se inserem ou à justificação da situação de crédito por ação de inspeção feita a pedido do sujeito passivo (artigo 87.º, n.º 3 do Código do IRC).

Questão subsequente é a de saber se estas razões especiais são de molde a permitir que se deduza à colecta das tributações autónomas quer benefícios fiscais a que o sujeito passivo tenha direito, quer o próprio PEC. Quanto às primeiras já nos pronunciamos supra no sentido de tal impossibilidade. Quanto ao PEC o facto é que ele não é mais do que um pagamento por conta do IRC que será (presumivelmente) devido a final pelo sujeito passivo, ainda que com algumas caraterísticas especiais. E, logo assim, ele é IRC para todos os efeitos legais havendo, todavia, regras especiais para a sua devolução.

Ao contrário das tributações autónomas, que são colecta devida em razão de comportamentos que a lei deseja desincentivar e, por isso, penalizam a relevação de certos gastos pelas razões indicadas, no PEC do que se trata é de garantir que seja adiantado a título de IRC e sem prejuízo da sua dedução à colecta geral do imposto, apurada por efeito da operação de liquidação stricto sensu, certa medida do imposto.

Ora, como bem se refere na Decisão Arbitral Processo n.º 13/2015-T, “o PEC passou a fazer parte do sistema do IRC cuja liquidação foi concebida para apurar o imposto directamente incidente sobre o rendimento declarado. Quando haja lugar a prejuízo fiscal o sujeito passivo tem ainda assim que suportar o PEC; essa foi aliás a razão da sua introdução. Se determinada empresa tiver sucessivamente prejuízos fiscais, suportará sistematicamente imposto, pois o sistema duvida da sua possibilidade de funcionamento em situação permanentemente deficitária, exigindo-lhe que satisfaça provisoriamente (por conta), determinado valor. Poderá reembolsá-lo se provar que essa situação é comum no seu setor de actividade ou se a AT verificar a regularidade das suas declarações. Este foi o equilíbrio que o CIRC exigiu para manter um sistema baseado nas declarações feitas pelos contribuintes.”.

Já o imposto resultante da tributação autónoma fundamenta-se tão só na perseguição à evasão fiscal por transferência de rendimento e tem o efeito dissuasor e compensatório. Se se permitir a dedução do PEC à colecta resultante da tributação autónoma, gorar-se-ão os propósitos do sistema em que a norma do artigo 83.º, n.º 2, alínea e) do Código do IRC se insere, pois o produto do pagamento especial por conta que deveria manter-se “estacionado” na titularidade da AT será afectado à extinção da dívida do sujeito passivo resultante das tributações autónomas, aligeirando assim a pretendida pressão para evitar a evasão fiscal “declarativa”. Existe efectivamente um conflito inconciliável entre a ratio do PEC – o combate à evasão ou a pressão para correcção das declarações – e a afetação dos seus créditos à satisfação de outras obrigações que não sejam as que resultam do apuramento do IRC calculado sobre o resultado tributável.

Em termos práticos a possibilidade de dedução do PEC às tributações autónomas implicaria que mesmo que determinada empresa estivesse eternamente em situação de prejuízo, nenhum imposto sobre o seu rendimento real teria que suportar, enquanto aplicasse o PEC à satisfação das tributações autónomas. Para mais as próprias tributações autónomas (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 617/2012, citado) perderiam o seu carácter anti-

-abuso, passando a confundir-se afinal com o imposto calculado sobre o lucro tributável. Ora não são esses os objectivos do sistema de tributação do rendimento das pessoas coletivas e a melhor interpretação da norma contida no artigo 83.º, n.º 2, alínea e) do Código do IRC não é essa decididamente aquela que permite deduzir os pagamentos especiais por conta à colecta resultante da aplicação das taxas de tributação autónoma.

Em suma, ponderáveis razões, derivadas das finalidades que se pretenderam alcançar legislativamente com a criação do PEC, justificam uma interpretação restritiva dos artigos 90.º, n.º 1, e 93.º, n.º 3, do Código do IRC, em especial da referência que neste último se faz «ao montante apurado na declaração a que se refere o artigo 120.º do CIRC».

De realçar que este entendimento da Jurisprudência arbitral se encontra, mais uma vez, em sintonia com o novo n.º 21 do artigo 88.º do Código do IRC aditado, como vimos, pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, ao estabelecer que ao montante apurado das tributações autónomas não são «efectuadas quaisquer deduções».

Também, neste caso, o legislador se limitou a acolher, clarificando-a, uma solução que os tribunais, com o recurso às regras vigentes e por aplicação dos critérios de hermenêutica jurídica, estavam em condições de extrair do regime a aplicar, o que se limitou a fazer este colectivo, no caso dos autos.

Com efeito, embora o artigo 135.º atribua, como já ficou dito, natureza interpretativa ao n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, o que conjugado com o artigo 13.º do Código Civil conduz à sua aplicação retroativa, como ficou demonstrado da argumentação exposta acima, a solução encontrada por este Tribunal Arbitral não necessitou de fazer aplicação deste novo preceito.

No mesmo sentido vai a Decisão Arbitral n.º 673/2015-T atrás citada, onde a este propósito se concluiu igualmente, entre o mais, que a solução já resultava do teor literal do artigo 93.º, n.º 1, do Código do IRC, “(…) sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei, já que a interpretação restritiva é admissível quando haja razões ponderosas para concluir que o alcance do texto legal atraiçoa o pensamento legislativo ou é necessário optimizar a harmonização de interesses conflituantes que duas normas visam tutelar.”.

Apreciados os factos e a pretensão da Requerente no sentido de ver deduzida à parte da colecta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma do PEC efectuado em sede de IRC, à luz de tudo quanto vem exposto, tal pretensão não pode deixar de improceder.

 

IV - DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

 

a)            Julgar improcedente o pedido de declaração de ilegalidade e anulação do acto de indeferimento da reclamação graciosa mencionada e que recusou a anulação da autoliquidação de IRC relativa ao exercício de 2015;

b)           Julgar improcedente o pedido de declaração de ilegalidade dessa autoliquidação na parte correspondente a montantes de € 20.204,94;

c)            Julgar prejudicado o pedido de reconhecimento do direito da Requerente ao reembolso desses montantes e, bem assim, o direito a juros indemnizatórios.

 

V - VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 20.204,94 (vinte mil, duzentos e quatro euros e noventa e quatro cêntimos), nos termos do disposto nos artigos 299.º, n.º 1 e 259.º, n.º 1, do CPC, aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, e, bem assim, do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VI - CUSTAS

Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 1.224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), a cargo da Requerente.

 

Notifique-se.

Lisboa, 30 de Setembro de 2019

 

O árbitro,

 

(Hélder Faustino)