DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Rui Ferreira Rodrigues e Raquel Franco, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte:
I – RELATÓRIO
1. No dia 12 de Fevereiro de 2019, A..., UNIPESSOAL, LDA., NIPC..., com sede na ..., n.º..., ..., ..., ...-... Seixal, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação adicional de IRC n.º 2018 ..., no valor de €57.948,36 e da liquidação de juros compensatórios n.º 2019 ... no valor de €5.963,12, relativas ao ano de 2015.
2. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese:
i. Falta/insuficiência da notificação, que conduz à ineficácia dos atos de liquidação;
ii. Vício de forma por errada ou falta de fundamentação do acto de liquidação que estornou a liquidação de 2015 e operou nova liquidação de IRC e juros compensatórios;
iii. Erro nos pressupostos de facto e de direito por errónea quantificação e qualificação dos factos tributários;
iv. Caducidade do direito à liquidação.
3. No dia 12-02-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
5. Em 02-04-2019, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 23-04-2019.
7. No dia 27-05-2019, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
8. Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.
9. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, abstiveram-se as partes de o fazer.
10. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT.
11. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre proferir:
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- A Requerente é uma sociedade unipessoal por quotas que se dedica à construção de edifícios residenciais e não residenciais.
2- A Requerente foi objecto de uma acção inspectiva interna, de âmbito parcial (IRC e retenções na fonte de IRS), ao exercício de 2015, credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2018..., que teve por objecto o controlo da situação tributária, devido à inexistência de valores em numerário verificada junto da Requerente no controlo do saldo de caixa.
3- Em 01-01-2015, de acordo com a IES de 2015, a conta 11 – Caixa, apresentava um saldo devedor de €248.043,26.
4- Após ter sido notificada para o efeito, a Requerente apresentou o balancete de Abril de 2015, apresentando nessa altura a conta 11 – Caixa um saldo devedor de €166.182,01.
5- Tal como resulta dos balancetes analíticos, o saldo devedor da conta 11- Caixa era o seguinte:
• 2006 – €16.284,11;
• 2007 – €170.173,30;
• 2008 – 86.128,62;
• 2009 – €43.609,13;
• 2010 – €212.824,30;
• 2011 – €288.824,30;
• 2012 – €271.589,83;
• 2013 – €260.099,56;
• 2014 - €248.043,26.
6- Em 16-09-2015, para controlo do valor existente no saldo da conta “Caixa”, foi levada a cabo a contagem física do numerário existente em caixa, através da deslocação à sede da Requerente.
7- Naquela data não se encontrava qualquer valor em caixa.
8- Nesse contexto, foi referido pelo sócio-gerente da Requerente, que a mesma não dispunha de “caixa física, sob a forma de caixa registadora, cofre ou outra”, dado que os recebimentos da sociedade são efectuados por transferência bancária ou cheque, os quais são depositados na conta titulada pela Requerente havendo, inclusive, casos ainda que muito pontuais, em que os pagamentos são efectuados em numerário, que também são depositados na referida conta.
9- Na data da contagem física de caixa, a Requerente foi notificada para exibir o balancete mais actual e as folhas de caixa que mediaram a data do solicitado balancete e a data da contagem física de caixa.
10- Posteriormente, foi exibido o balancete de Julho de 2015, apresentando a conta 11 – Caixa um saldo devedor de €31.819,80, tendo ainda sido apresentados elementos justificativos da diminuição daquele saldo.
11- Após análise dos elementos apresentados pela Requerente, os Serviços de Inspecção Tributária consideraram que a Requerente justificou parte da diferença do saldo de caixa, correspondente ao pagamento de salários e à compra de um imóvel.
12- Quanto ao restante, consideraram os Serviços de Inspecção Tributária que o valor de €115.896,73, referente à diferença do saldo de caixa não justificado, tinha a natureza de despesas não documentadas tributadas autonomamente à taxa de 50%.
13- Através do Ofício n.º..., de 28-11-2018, a Requerente foi notificada do projecto de relatório de inspecção e para, querendo, exercer direito de audição nos termos do artigo 60.º da LGT e artigo 60.º do RCPIT.
14- A Requerente exerceu o direito de audição, invocando, em síntese, o seguinte:
15- Através do Ofício n.º..., de 27-12-2018, a Requerente foi notificada do Relatório Final de Inspecção.
16- Do relatório de inspecção tributária constava o seguinte:
17- Em 31-12-2018, a Requerente foi notificada, mediante ofício n.º ... de 27-12-2018, expedido sob o registo RF...PT do acto de liquidação adicional de IRC n.º 2018..., no valor de €57.948,36 e da liquidação de juros compensatórios n.º 2019 ... no valor de €5.963,12.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DO DIREITO
A Requerente começa o seu petitório requerendo que se considerem as liquidações controvertidas ilegais, porquanto não há facto tributário a sujeitar a efeito impositivo em 2015 que possa ser objecto de tributação autónoma em sede de IRC.
Como primeiro pedido subsidiário, argui a Requerente a fundada dúvida sobre em que exercício foi percebido o suposto rendimento consubstanciado nas disponibilidades de caixa que foram retiradas de caixa, requerendo a aplicação do art.º 100.º do CPPT, com a consequente anulação dos actos tributários aqui sindicados.
Vejamos.
*
Em causa nos presentes autos está a aplicação do art.º 88.º/1 do CIRC aplicável (redacção de 2015), que dispõe que:
“As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A.”.
Conforme resulta expressamente do RIT, as correcções operadas pela AT, e ora sindicadas, tiveram a sua origem no desfasamento entre o valor contabilizado pela Requerente na Conta 11 – Caixa, e a verificação física operada pela AT, a 16-09-2015, que constatou a inexistência de qualquer valor em numerário, em caixa.
Notificada para o efeito, foi pela Requerente exibido o balancete de Julho de 2015, apresentando aí conta caixa um saldo devedor de € 31.819,00, inferior ao saldo constante do balancete de Abril de 2015 (€166.182,01) e foram ainda apresentados elementos correspondentes a esta diminuição que foram alvo de análise pela AT, que considerou que apenas parte da evolução do saldo da conta 11 - Caixa foi justificada pelo sujeito passivo, no valor de € 50.285,28 e que, portanto, apesar de aquela apresentar um saldo devedor de € 31.819.80, à data de 31-07-2015, o seu valor deveria ser de €115.896,73.
Concluiu, assim, a AT que “não tendo existido qualquer valor em numerário aquando da contagem e não tendo sido comprovada a restituição de empréstimos aos sócios, considera-se que a verba de €115.896,73, referente à inexistência do “saldo de caixa” configura a natureza de despesas não documentadas, tributadas autonomamente à taxa de 50%, nos termos da alínea a) do art° 88° do código do IRC, sendo de acrescer o imposto em falta no montante de € 57.948,36”.
A primeira questão que se coloca, é a de saber se estas circunstâncias comprovam a ocorrência de despesas não documentadas, ou não.
Conforme tem sido jurisprudência recorrente em situações com semelhança à que ora nos ocupa, dever-se-á ter por suficientemente indiciada a ocorrência de despesas, que não estão documentalmente comprovadas, no que diz respeito ao “respectivos beneficiários, (...) natureza, origem e finalidade de tais encargos.” .
A Requerente não alega ou sustenta, por qualquer forma, que os fluxos contabilizados como entradas no Caixa, não ocorreram na realidade, nem que existiram saídas, não contabilizadas, com beneficiários, natureza, origem e finalidade identificáveis.
Deste modo, e face ao exposto, não se tem dúvidas que a contabilidade da Requerente, não obstante a sua incorrecção e falta de fidedignidade, evidencia, com consistência suficiente, ao ser conjugada com a constatação de inexistência de qualquer caixa, a ocorrência de despesas não documentadas.
Não obstante, enquanto tributação em sede de IRC, a aplicação da tributação autónoma em questão está sujeita às normas próprias daquele tributo, que não sejam incompatíveis com a sua natureza, designadamente e no que ao caso importa, no que diz respeito às regras relativas à especialização dos exercícios e periodização do lucro tributável, conforme decorre, para além do mais, dos artigos 8.º e 18.º do CIRC, com as necessárias adaptações, derivadas da circunstância de a tributação autónoma em questão, conforme jurisprudência reiterada quer do Supremo Tribunal Administrativo, quer do Tribunal Constitucional, se estar perante um tipo de tributação que tem subjacente um facto tributário instantâneo e de natureza financeira.
Neste contexto, tem sido entendido que:
- “13. No regime de tributação autónoma o imposto incide sobre cada despesa efectuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a mesma tributação autónoma apurada de forma independente do I.R.C. que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.
14. Na tributação autónoma em I.R.C., o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo. Esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso). Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no acto de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efectuar no fim de um determinado período tributário).” ;
- “7) Já o reconhecimento de uma despesa como não documentada, em ordem a sujeitá-la a tributação autónoma enquanto tal, não poderá prescindir da demonstração da efectiva ocorrência da mesma.
8) Cabe à AT, enquanto fundamentação formal do acto de liquidação, a invocação do preenchimento dos concretos pressupostos legais de que depende o seu direito à liquidação, com elementos claros, suficientes e congruentes, de molde a permitir ao administrado ajuizar da correcção/legalidade da mesma.”.
Deste modo, para que uma concreta tributação autónoma do género daquela que ora nos ocupa seja legalmente aplicável, para além da demonstração – feita, no caso, como se viu – da ocorrência de despesas não documentadas, torna-se necessário demonstrar a respectiva quantificação, bem como que as mesmas ocorreram no exercício a que se reporta a correspondente liquidação, ou seja, e no caso, no exercício de 2015.
Neste sentido, entendeu-se já no acórdão arbitral proferido no processo 287/2017-T do CAAD, que “só as despesas efectuadas n[um] período de tributação podem ser tributadas com referência a esse exercício.”.
Assim, e em suma, a legal aplicação do artigo 88.º/1 do CIRC pressupõe a demonstração de:
i. ocorrência de despesas não documentadas;
ii. num determinado exercício; e
iii. num determinado montante.
No que diz respeito à ocorrência de despesas não documentadas, como se viu já, verifica-se que a AT reuniu indícios consistentes da respectiva ocorrência.
Não obstante, a consistência desses indícios não abrange o concreto montante de despesa ou despesas ocorridas no ano de 2015.
Nesta matéria, alega a Requerente que as mesas ocorreram em exercícios anteriores, sendo que, face aos factos apurados não é possível a este Tribunal concluir que assim não seja.
Ora, como a Requerente salienta, nos termos do artigo 74.º da LGT “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”.
No caso, pretendendo a AT aplicar a tributação invocando o disposto no artigo 88.º/1 do CIRC, é àquela Autoridade que assiste o ónus de demonstrar os respectivos factos constitutivos incluindo, no que para o caso interessa, a ocorrência de despesas indocumentadas no exercício de 2015, e o respectivo montante.
A este propósito, cumpre notar que os movimentos contabilísticos onde a AT assentou a sua actuação, e que se revelam não estar devidamente sustentados em documentação de suporte, não incorporam em si qualquer registo de uma concreta despesa (ou despesas), ou seja, a transferência de disponibilidades patrimoniais da Requerente para terceiros, pelo que não se está perante um caso em que há um registo contabilístico directo de uma despesa indocumentada, mas perante registos que não têm suporte material e documental e que, por isso, indiciam a ocorrência prévia de despesas indocumentadas e não contabilizadas.
Não obstante, não é possível, julga-se, extrair de tais movimentos contabilísticos o momento em que as despesas indiciadas ocorreram, sendo que, à míngua destes elementos, não é possível concluir, para lá de qualquer dúvida razoável, que, e em que dias, naquele exercício de 2015, hajam ocorrido despesas correspondentes ao valor assumido pela AT como base para a liquidação de tributações autónomas, ora em crise.
Assim, e desde logo, como se apontou já e é consensual, não se poderá deixar de ter presente que as tributações autónomas têm subjacente factos tributários de natureza instantânea.
Daí não decorre, necessariamente, que para aplicar aquele tipo de tributação a AT tenha, forçosamente, de demonstrar a sua ocorrência num determinado dia – o que de resto poderá ser extremamente difícil, atenta a necessária ausência de documentação – mas não poderá prescindir da demonstração, para lá de qualquer dúvida razoável, da sua ocorrência, no montante considerado, dentro de um período temporal definido, que se situe dentro do exercício económico a que se reporta a liquidação operada.
Ora, no caso, isso não acontece.
Com efeito, a AT situa a ocorrência das despesas que sujeitou a tributação autónoma, no valor que considerou, entre 30 de Abril de 2015 e 16 de Setembro de 2015.
Todavia, tal entendimento, funda-se na existência, naquela primeira data, do valor contabilizado pela Requerente na Conta 11 – Caixa, corrigido pelos elementos reportados a 31-07-2015, apresentados pela Requerente e aceites pela AT.
Dito de outro modo, e essencialmente, funda-se a correcção ora em crise na credibilidade da contabilidade da Requerente, no que diz às inscrições na Conta 11 – Caixa, a 30-04-2015.
Ora, essa credibilidade está, no presente caso, infirmada, desde logo pelo próprio RIT.
Efectivamente, o que se verifica é que o conteúdo da Conta 11 – Caixa, não tinha a mínima correspondência com a realidade a 16-09-2015, e que não tinha, igualmente, mesmo face aos elementos contabilizados pela Requerente e aceites pela AT, correspondência com a realidade a 31-07-2015.
De resto, não se compreende a limitação da aferição da veracidade das inscrições contabilísticas na Conta 11 – Caixa da Requerente, ao período entre 30-04-2015 e 31-07-2015, quando a AT poderia, seguindo o mesmo modus operandi, fazer tal aferição a partir de anos anteriores.
Por outro lado, a evolução dos saldos da Conta 11 – Caixa da Requerente, de que dá conta o facto provado sob o ponto 5 da matéria de facto, indicia igualmente a falta de credibilidade de tais inscrições, dada a anormalidade da evolução dos saldos inscritos.
Deste modo, não é possível, julga-se, para lá de qualquer dúvida razoável, ter como assente que as despesas não documentadas incorridas pela Requerente, e consideradas pela AT, tenham ocorrido entre 30-04-2015 e 16-09-2015, uma vez que, como se escreveu no já citado Acórdão arbitral proferido no processo 287/2017-T, “essa conclusão só poderia basear-se numa presunção de correspondência da contabilidade à realidade que, neste caso, foi ilidida”.
Não se acolhe, assim, o alegado pela Requerida, segundo a qual “O ónus de prova de que o dinheiro já lá não constava anteriormente, conforme foi alegado pela Requerente, incidia precisamente sobre si, o que não preencheu.”.
Tal alegação só seria de acolher se a AT tivesse reunido indícios suficientes de que em 30-04-2015 o montante considerado pela AT estava na disponibilidade da Requerente. Ora, esses indícios consistem, unicamente, em elementos da contabilidade da Requerente, que não apresentam qualquer credibilidade, não sendo lícito à AT, sem justificação, considerar até determinado período, arbitrariamente fixado, fiável a contabilidade da Requerente, e não fiável, a partir de outro.
Não tem qualquer sustentação, igualmente, o alegado pela Requerida, segundo a qual se estaria “perante um facto tributário instantâneo, o qual não pode lógica e legalmente, reportar-se a outra data que não a da comprovação da sua realização, que foi na data da contagem do saldo de caixa”, não só porquanto, como se viu, o que resulta do RIT é a consideração da ocorrência das despesas no período entre 30-04-2015 e 16-09-2015, como ainda porquanto seria pouco credível, à falta de mais elementos, que uma despesa avultada como a do montante considerado sujeito a tributação autónoma, tivesse sido feita, por coincidência, no dia em que a Requerida foi sujeita a uma contagem física do caixa, quando já estava sujeita a um procedimento inspectivo...
Não será consistente, também, o argumento da Requerida de que “Seria subversivo e passível de perverter a estabilidade processual e as regras basilares do ónus probatório dar vazão aos intentos da ora Requerente, isto é, permitir-lhe beneficiar da falta de comprovação de que os movimentos foram efectuados antes de 2015, e exigindo-se à AT o ónus de prova que nem a própria Requerente consegue cumprir”.
Efectivamente, o que está em causa é, face à constatação de uma determinada realidade de facto, a AT ter optado por uma forma de tributação que lhe impõe determinados ónus probatórios, que não pode transferir para o sujeito passivo. Estando previstos legalmente outros meios para reagir legalmente à situação constatada, designadamente, e no limite, a tributação por métodos indirectos.
Por fim e no que diz respeito à jurisprudência arbitral invocada pela Requerida, não se julga a mesma transferível para o presente caso.
Assim, o Acórdão arbitral proferido no processo arbitral 3/2017-T do CAAD não diz respeito a tributações autónomas, mas a distribuição ou adiantamentos por conta de lucros.
No que diz respeito ao Acórdão proferido no processo arbitral 256/2018-T do CAAD, a “discordância da Requerente prende-se com a causa da saída e com o seu caráter não documentado”, quando o que está em causa no presente caso é o momento da ocorrência da saída ou saídas de disponibilidades monetárias.
Já no processo arbitral 256/2018-T do CAAD, exarou-se, como aqui, que “Defende ainda a Requerente que o reconhecimento de uma despesa como não documentada não poderá prescindir da demonstração da efectiva ocorrência da mesma (como se entendeu no acórdão arbitral de 28-05-2014, proferido no processo n.º 20/2014-T). Afigura-se que o que defende a Requerente, na linha da jurisprudência citada e que aqui se adopta, é correcto e não é sequer contrariado pela Autoridade Tributária e Aduaneira na sua Resposta, pelo que se tem como processualmente assente.” .
No mais, no caso em referência, ao contrário do presente, estavam em causa despesas contabilizadas mas não documentadas, o que não ocorre no presente caso, onde as despesas sujeitas a tributação autónoma pela AT não constam da contabilidade da Requerente, não estando ali, também, em causa, a definição do momento da ocorrência da despesa, mas unicamente a sua quantificação.
Deste modo, dispõe o art.º 100.º/1 do CPPT que “Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado.”
Assim, e face às regras do ónus da prova, bem como ao disposto no referido artigo 100.º/1 do CPPT, atenta a fundada dúvida na quantificação do facto tributária operada pela AT, haverá que concluir pela verificação do arguido erro nos pressupostos de facto, e consequente erro de direito, com a consequente anulação das liquidações de tributação autónoma e juros compensatórios sub iudice.
Face ao decidido fica prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas pela Requerente.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
a) Anular o acto de liquidação adicional de IRC (tributações autónomas) n.º 2018..., no valor de €57.948,36 e da liquidação de juros compensatórios n.º 2019... no valor de €5.963,12, relativas ao ano de 2015; e
b) Condenar a Requerida nas custas do processo, no montante abaixo fixado.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 63.911,47, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.448,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela AT, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 24 de Setembro de 2019
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho)
O Árbitro Vogal
(Rui Ferreira Rodrigues)
A Árbitro Vogal
(Raquel Franco)