Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 47/2019-T
Data da decisão: 2019-07-31  IRS  
Valor do pedido: € 709.644,27
Tema: IRS - Cláusula geral anti-abuso. Substituição tributária. Retenção na fonte.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1. A..., S.A., pessoa colectiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º..., ...-... – ..., ..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade da liquidação de retenção na fonte de IRS e de liquidação de juros compensatórios referentes ao ano 2014, no montante global de € 709.644,27.

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

Na sequência de acção inspectiva, a Autoridade Tributária concluiu que duas transferências bancárias feitas pela Requerente para pagamento de uma factura emitida por uma terceira entidade, referente à venda de máquinas, não correspondem ao pagamento do respectivo preço, mas a um adiantamento por conta de lucros a favor de um acionista, no montante de € 2.140.000,00, pelo que deveria ter efectuado a retenção na fonte, em aplicação do disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º  e da alínea c) do n.º 1 do artigo 71.º do Código de IRS.

Deste modo, a Administração, com fundamento na falsidade da factura, terá no entender da Requerente desconsiderado o pagamento do preço pela transação comercial, qualificando esse acto como adiantamento por conta de lucros, assim aplicando efectivamente a cláusula anti-abuso a que se refere o artigo 38.º, n.º 2, da LGT, sem levar a efeito o procedimento previsto no artigo 63. º do CPPT, incorrendo assim em violação de formalidade legal.

Acrescenta ainda a Requerente que mesmo que se entenda que seria devida a retenção na fonte, a obrigação fiscal haveria de incidir directamente sobre o sócio a quem é atribuído o proveito, sendo inoponível à Requerente, enquanto substituto tributário, a desconsideração fiscal de negócios jurídicos que resultem da aplicação da cláusula geral anti-abuso.

Adianta ainda que sempre caberia ao substituto tributário o ónus de apurar se o obrigado fiscal poderia ter praticado actos abusivos que justifiquem a retenção na fonte, quando essa é uma exigência desproporcionada e inadmissível, porquanto é à Administração Tributária que cabe desencadear o procedimento próprio em vista à liquidação de impostos com base em disposição anti-abuso.

 

Defende por isso que não é legalmente possível que a Requerente, enquanto substituta tributária, venha a reaver o imposto sujeito a retenção na fonte, havendo de entender-se que a norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, quando interpretada no sentido de que são oponíveis ao substituto tributário os efeitos resultantes da aplicação da cláusula anti-abuso, é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade e do direito à propriedade (artigos 18.º, n.º 2, e 62.º, n.º 1, da Constituição).

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta que a tributação dos adiantamentos por conta de lucros previstos na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do Código IRS, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 71.º, constitui uma norma anti-abuso específica, que prevalece sobre a regra geral do artigo 38.º, n.º 2 da LGT, pelo que não tinha aplicação a disposição do artigo 63.º do CPPT.

Por outro lado, as transferências bancárias no montante de global de € 2.140.000,00 não correspondem a qualquer transacção comercial que tenha sido realizada mas a montantes que deram entrada nas contas particulares da acionista da Requerente, que, por sua vez, foram utilizados para efetuar suprimentos e aumento do capital social da empresa.

Sendo que, em qualquer caso, no entender da Requerida não houve lugar à desconsideração de qualquer negócio jurídico, mas à tributação como adiantamento por conta de lucros de uma quantia pecuniária que foi transferida para o acionista e que deveria ter sido sujeito a retenção na fonte.

Conclui no sentido da improcedência do pedido.

 

2. No seguimento do processo foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e ordenado o prosseguimento do processo para alegações por prazo sucessivo.

 

As partes não alegaram. 

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 4 de abril de 2019.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que poderão ser tidos como assentes são os seguintes.

 

A)           A Requerente foi objecto de um procedimento inspectivo externo titulado pelas Ordens de Serviço nºs 012018..., 012018... e 012018..., referente aos exercícios de 2014, 2015 e 2016, tendo em vista a verificação do cumprimento das obrigações dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários;

B)           No decurso da acção inspectiva, os Serviços de Inspeção verificaram que a Requerente se candidatou, em 2013, a um programa comunitário no âmbito do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), compreendendo um investimento de € 4.990.242,92;

C)           No âmbito do projeto coberto pelo FEDER, a Requerente contabilizou uma factura emitida pela sociedade B... respeitante a investimentos em activos fixos no montante de € 2.140.000,00;

D)           No extracto de conta corrente da Requerente consta que factura emitida pela B... foi paga através de duas transferências bancárias de € 1.140.000,00 e € 1.000.000,00, com datas de 30 e 31 de janeiro de 2014;

E)            No Relatório de Inspecção Tributária, que consta do Processo Administrativo e aqui se dá como reproduzido, conclui-se que a Requerente efectuou as duas transferências bancárias, no montante global de € 2.140.000,00, para as contas da acionista C..., tendo como suporte documental uma factura que corresponde a uma operação simulada, configurando essas transferências um adiantamento por conta dos lucros que é tributável à taxa liberatória de 28.º nos termos do artigo 5.º, n.º 2, alínea h), do Código de IRS;

F)            No mesmo Relatório, por referência à tributação da quantia pecuniária a título de adiantamento por conta dos lucros, foi proposta a liquidação de retenção na fonte, a cargo da Requerente, nos montantes parcelares de € 319.200,00 e € 280.000,00;

G)           A Autoridade Tributária emitiu o acto de liquidação de IRS – retenção na fonte n.º 2018..., no montante de € 599.200,00, relativo a 2014, e os actos de liquidação de juros compensatórios n.ºs 2018... e 2018..., nos montantes de € 59.292,49 e € 51.151,78.

 

Os factos que são dados como provados são os descritos no Relatório de Inspecção Tributária que serviram de base à correcção da liquidação adicional de imposto. A impugnante não requereu nem produziu prova documental, nem qualquer outra espécie de prova, e não logrou demonstrar que a transação comercial titulada por factura emitida pela B... corresponde à realidade e que as transferências bancárias de € 1.140.000,00 e € 1.000.000,00, registadas contabilisticamente como pagamento da factura, tenham sido efectivamente destinadas a liquidar um débito existente relativamente a essa entidade.

 

                Matéria de direito

 

Violação do procedimento específico de aplicação da cláusula geral anti-abuso

 

5. A Requerente sustenta, num primeiro momento, que a Autoridade Tributária, ao qualificar as transferências bancárias efectuadas para pagamento de factura relativa à aquisição de equipamentos como adiantamento por conta de lucros a favor de um accionista, nos termos da alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do Código IRS, aplicou, na prática, o regime da cláusula geral anti-abuso previsto no artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária (LGT), sem ter levado a efeito, concomitantemente, o procedimento específico mencionado no artigo 63. º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), incorrendo assim na violação desse dispositivo legal.

Em contraposição, a Autoridade Tributária considera que a tributação dos adiantamentos por conta de lucros a que se refere a alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do Código IRS constitui uma norma anti-abuso específica, que prevalece sobre a regra geral do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, pelo que não há que recorrer, para efeito da aplicação dessa  disposição, ao procedimento previsto no artigo 63.º do CPPT.

Numa primeira aproximação ao problema, face à matéria de facto dada como assente - que resulta exclusivamente da factualidade que veio a ser considerada pela Administração para efeito de proceder à liquidação adicional de imposto -, a questão que se coloca é a de saber se está em causa a mera simulação de negócio jurídico ou a aplicação da cláusula geral anti-abuso.

De facto, o Relatório de Inspecção Tributária dá como assente que a Requerente não efectuou qualquer aquisição de equipamentos à B... e as transferências bancárias inscritas contabilisticamente como sendo destinadas ao pagamento da factura referente a essa transacção comercial foram efectuadas para a conta bancária de um acionista, correspondendo a um adiantamento por conta dos lucros, pelo que a emissão de factura traduzir-se-ia numa operação simulada.

A doutrina tem distinguido entre a simulação e a cláusula geral anti-abuso. Em caso de simulação de negócio jurídico, a tributação recai sobre o negócio real e não sobre o negócio jurídico simulado, e depende de decisão judicial de nulidade quando o negócio conste de escritura pública. Ao contrário, a cláusula geral anti-abuso incide sobre um negócio verdadeiro mas que é realizado em vista a obter artificiosamente uma vantagem fiscal para o contribuinte, caso em que o negócio é tributado como se o contribuinte tivesse optado pela forma que seria normalmente adoptada no comércio jurídico para obter o mesmo resultado económico. Em resumo, num caso existe uma divergência intencional entre a vontade e a declaração, combinada entre o declarante e o declaratário, destinada a enganar terceiros; noutro caso, existe um negócio real (e não aparente) que através de um meio fraudulento visa atingir de um modo fiscalmente menos oneroso o mesmo efeito económico ou um efeito económico aproximado àquele que seria alcançado pela via normal (GUSTAVO COURINHA,  A Cláusula Geral Anti-abuso no Direito Tributário: Contributos para a sua Compreensão, Coimbra, 2009, págs. 79 e segs.).

No caso vertente, não parece que estejamos perante uma simulação.

O que o Relatório da Inspecção Tributária considera é que a transação comercial com a empresa B... não chegou a realizar-se e os lançamentos contabilísticos supostamente destinados à liquidação do preço da transação correspondem a transferências bancárias a favor de um acionista que, por isso, devem ser qualificadas como adiantamentos por conta dos lucros.

Não existe, neste conspecto, um qualquer vício de vontade que possa afectar um negócio jurídico que tenha sido celebrado entre a Requerente e uma terceira entidade, e que possa traduzir-se numa divergência entre a vontade real e a vontade declarada assente num acordo simulatório entre as partes (cfr. artigo 240.º do Código Civil). Na verdade, o que a Autoridade Tributária assevera é que não foi realizado nenhum negócio e simplesmente ocorreu uma inexactidão na escrita inscrevendo-se falsamente como pagamentos de factura referente a uma transação comercial importâncias que correspondem a lucros colocados à disposição dos accionistas.

Também não parece que as circunstâncias do caso se reconduzam à aplicação da cláusula geral anti-abuso.

O artigo 38.º, n.º 2, da LGT declarava à data dos factos como “ineficazes, no âmbito tributário, os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”. E, nesse caso, determina que a tributação se efectue de acordo com as normas que seriam aplicáveis se esses meios não tivessem sido utilizados, não se produzindo as vantagens fiscais que se pretendia obter.

 

Segundo assinala SÉRGIO VASQUES, a cláusula geral anti-abuso consagrada na LGT é composta de três elementos essenciais. “Em primeiro lugar exige-se a prática de acto ou negócio artificioso ou fraudulento e que exprima abuso das formas jurídicas, no sentido de estarmos perante esquemas negociais que ocultem os seus verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum. Em segundo lugar, exige-se o objectivo único ou principal de através desses esquemas negociais obter uma vantagem fiscal, qualquer que seja a sua natureza, com a marginalização evidente de objectivos económicos reais. Em terceiro lugar, exige-se que da lei resulte com clareza a intenção de tributar os bens em causa, nos mesmos termos em que estes seriam tributados se tivesse o contribuinte recorrido às formas jurídicas e práticas negociais mais comuns” (Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2018, pág. 369).

 

O sentido geral da norma é, nestes termos, o de permitir a desqualificação para efeitos fiscais de um qualquer acto ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte com o único ou principal objectivo de obtenção de uma vantagem fiscal, que possa consubstanciar uma fraude à lei fiscal. O efeito jurídico que resulta do funcionamento da cláusula anti-abuso é o de considerar os actos como praticados de acordo com o padrão normal do comércio jurídico para obter o mesmo resultado económico, determinando-se a obrigação tributária em função dos actos equivalentes que pudessem ser praticados.

 

Ora, nada permite considerar que o contribuinte tenha pretendido substituir uma situação de facto tributável por uma outra que, gerando as mesmas consequências práticas e económicas, possa produzir uma vantagem fiscal. De facto, não se descortina, na situação do caso, que o sujeito passivo tenha praticado um acto ou negócio jurídico dirigido à obtenção de uma vantagem fiscal que, em aplicação da cláusula geral anti-abuso, possa ser reconfigurado como um outro acto ou negócio jurídico que seria normalmente praticado para atingir o mesmo resultado económico.

O que está em causa – se bem se entende – é uma adulteração da contabilidade do sujeito passivo que efectuou falsamente lançamentos contabilísticos para pagamentos de dívidas a terceiros como forma de ocultar a transferência de rendimentos de capital aos associados.

Neste contexto, a questão reconduz-se a um problema de ónus da prova.

 

Nos termos do artigo 74.º, n.º 1, da LGT cabe à Administração Tributária a prova dos factos constitutivos da existência e quantificação do facto tributário, que, no caso, se traduz da tributação de certas importâncias a título de adiantamento por conta dos lucros. Por outro lado, nos termos do artigo 75.º dessa Lei, presumem-se verdadeiros e de boa fé as declarações dos contribuintes, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita (n.º 1), presunção essa que cessa, designadamente quando “as declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados que não reflectem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo” (n.º 2, alínea a)).

 

Por efeito desta última disposição, cabe à Administração fazer a prova da ilisão da presunção de veracidade dos elementos contabilísticos, demonstrando fundamentadamente que a contabilidade do sujeito passivo contém inexactidões e que elas podem constituir indícios bastantes da existência do facto tributário que é sujeito a imposto. E um exemplo paradigmático de um vício material que afasta a presunção é o facto de a contabilidade incluir facturas que não correspondem a operações reais (SERENA CABRITA NETO/CARLA CASTELO TRINDADE, Contencioso Tributário, vol. I, Coimbra, 2017, págs. 645-646).

 

Tendo a Autoridade Tributária demonstrado, no procedimento inspectivo, que as facturas não correspondem a operações reais, cabe ao contribuinte – tal como se considerou no acórdão do TCA Norte de 26 de Novembro de 2015 (Processo n.º 00115/04) – fazer a prova do contrário, isto é, apresentar elementos probatórios que revelem que a transação comercial existiu e não há nenhum vício material ou formal que afecte os elementos resultantes da declaração que tenha sido apresentada para efeitos fiscais.

 

Ora, no caso vertente, resulta do Relatório de Inspecção Tributária que o sujeito passivo efectuou, em 2013, um lançamento contabilístico de factura a favor da  empresa B..., no montante de € 2.140.000,00, que foi registada a débito na “conta 433315 – activos tangíveis – equipamento básico – aquisições”, e, por referência a essa factura, inscreveu no extracto da conta corrente do fornecedor dois pagamentos por transferência bancária, nos montantes parcelares de € 1.140.000 e € 1.000.000,00, com datas de 30 e 31 de Janeiro de 2014.  No entanto, através da análise de diversos dados contabilísticos, no mesmo Relatório constatou-se que as transferências, nos indicados montantes de € 1.140.000,00 e € 1.000.000,00, tiveram como destino a conta bancária da acionista C... . Foram entretanto recolhidas declarações ao presidente do Conselho de Administração da Requerente, no âmbito do procedimento inspectivo, onde se refere que as máquinas supostamente tituladas pela factura emitida a favor da B... foram adquiridas à A..., S. A. (actualmente denominada D...), no âmbito do projeto comunitário subsidiado pela FEDER e que não houve qualquer transação comercial com aquela outra empresa.

 

No Relatório de Inspecção Tributária concluiu-se que a factura emitida pela B... não corresponde a uma operação real e as importâncias supostamente destinadas ao seu pagamento ingressaram na conta bancária da acionista C... .

 

Deste modo, a Autoridade Tributária efectuou a prova da inexactidão da contabilidade, afastando a presunção de veracidade estabelecida no n.º 1 do artigo 75.º da LGT, e coligiu indícios fundados de um facto tributário sujeito a imposto, caracterizado como adiantamento por conta dos lucros.

 

Acresce que, no processo arbitral, a Requerente não requereu nem produziu prova documental ou de qualquer outra natureza, não logrando demonstrar – por ausência de prova - que a factura em causa corresponde a uma operação  realmente efectuada pelo seu emitente e que os movimentos contabilísticos de pagamento se destinaram a liquidar a dívida resultante dessa transação.

 

Tendo a Autoridade Tributária ilidido a presunção da veracidade dos elementos contabilísticos apresentados pela Requerente, não há motivo para pôr em causa a legalidade da correção da matéria tributável impugnada.

 

Inoponibilidade do acto de liquidação ao substituto tributário

6. A Requerente alega ainda que a reconfiguração jurídico-fiscal da operação não pode determinar a imposição de obrigações fiscais acessórias a terceiros, tal como seja a retenção na fonte do imposto que deveria ser pago pelo obrigado principal, pelo que, a ser devida a retenção na fonte, a obrigação fiscal haveria de incidir directamente sobre o sócio a quem é imputado o adiantamento a título de lucros.

 

De outro modo - afirma -, caberia ao substituto tributário o ónus de apurar se o obrigado fiscal poderia ter praticado actos abusivos que justifiquem a retenção na fonte, quando essa é uma exigência desproporcionada e inadmissível, porquanto é à Administração Tributária que cabe desencadear o procedimento inspectivo próprio em vista à liquidação adicional de impostos.

 

E acrescenta que não é legalmente possível que a Requerente, enquanto substituta tributária, venha a reaver o imposto sujeito a retenção na fonte, havendo de entender-se que a norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, quando interpretada no sentido de que são oponíveis ao substituto tributário os efeitos resultantes da reconfiguração do negócio é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade e do direito à propriedade (artigos 18.º, n.º 2, e 62.º, n.º 1, da Constituição).

 

Deve começar por dizer-se que não está aqui em causa – como se deixou esclarecido - a aplicação da cláusula geral anti-abuso, pelo que a arguição de inconstitucionalidade tem de ser entendida como reportada às normas que permitem a retenção na fonte relativamente a rendimentos de capitais.

 

Segundo o disposto no artigo 5.º, n.º 1, alínea h), do Código do IRC, os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos associados ou titulares e os adiantamentos por conta de lucros (com exclusão daqueles que são objecto de imputação especial aos sócios ou membros de entidades abrangidas pelo regime de transparência fiscal) constituem facto gerador de rendimentos de capitais e são sujeitos a tributação. Por outro lado, os rendimentos de capitais obtidos em território português estão sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, à taxa liberatória de 28 % (artigo 71.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRS).

 

Como resulta do n.º 2 do artigo 20.º da LGT, o mecanismo de retenção na fonte do imposto devido constitui uma forma de substituição tributária. A substituição tributária, a que se refere esse preceito, pressupõe a deslocação da obrigação tributária do contribuinte directo - que se encontra abrangido pelas normas de incidência do imposto - para um terceiro que é devedor dos rendimentos sujeitos a tributação e a quem incumbe a dedução de uma parcela desses rendimentos aquando do seu pagamento para entrega ao Estado. A responsabilidade do substituto tributário – como especifica o artigo 28.º - traduz-se na obrigação de dedução das importâncias que estiverem sujeitas a retenção e da sua entrega nos cofres do Estado que, uma vez satisfeita, desonera o substituído do pagamento dessas importâncias.

 

Como explicita SALDANHA SANCHES, a substituição tributária por meio da retenção na fonte do rendimento explica-se por razões de natureza essencialmente prática, visando assegurar através de um meio seguro a cobrança do imposto e, simultaneamente, aproximar temporalmente o momento da verificação do facto tributário – que se traduz no pagamento dos rendimentos sujeitos a imposto – e o cumprimento da dívida tributária. Deste modo, a retenção do rendimento, pelo devedor, vai servir para o pagamento de uma parte da dívida fiscal, se for um pagamento por conta de uma obrigação fiscal futura (como sucede nas retenções feitas sobre rendimentos do trabalho) ou da sua totalidade (como sucede no caso de retenções feitas, a título definitivo, através da aplicação das taxas liberatórias que oneram os rendimentos de capitais) (Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 269).

 

Por seu lado, o mecanismo da retenção na fonte encontra-se regulado, em  termos gerais, no artigo 98.º do Código do IRS, consignando-se aí que, nos casos em que haja lugar à retenção de imposto no momento do pagamento de rendimentos do trabalho dependente, as entidades devedoras dos rendimentos sujeitos a retenção são obrigadas, no acto do pagamento do vencimento, a deduzir as importâncias correspondentes à aplicação das taxas de tributação que se encontram previstas para essa categoria de rendimentos (n.º 1), havendo lugar à entrega até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram deduzidas as quantias retidas (n.º 3). Tratando-se de rendimentos de capitais, a retenção é definitiva, nos termos do disposto no artigo 71.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS, sendo o substituído apenas subsidiariamente responsável pela não retenção ou entrega do imposto (artigo 28.º, n.º 3, da LGT).

 

Ora, tendo havido lugar à correcção da matéria colectável por efeito do procedimento inspectivo, com a consequente emissão de um acto de liquidação adicional de imposto, tudo se passa como se essa liquidação tivesse resultado dos rendimentos originariamente declarados pelo contribuinte, não havendo nenhuma razão para deixar de aplicar as regras gerais em matéria de substituição tributária e retenção na fonte. Ou seja, se o accionista tivesse declarado as importâncias que foram transferidas para a sua conta como adiantamento por conta dos lucros, a Requerente teria de levar a efeito a retenção na fonte, nos termos do artigo 71.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRS. E se a liquidação de imposto resulta, nos mesmos exactos termos, da correcção resultante da acção inspectiva, por identidade de razão, a entidade que colocou à disposição do accionista as importâncias que geraram a tributação está sujeita ao mesmo dever de retenção na fonte. Não se trata de uma nova obrigação fiscal ou de uma obrigação fiscal que não resulte directamente da lei, mas da mesma obrigação que já incidia sobre o substituto tributário e que apenas se tornou efectiva por efeito da correcção da matéria tributável na sequência da acção inspectiva.

 

Questões de constitucionalidade

 

9. Neste enquadramento, torna-se também claro que não ocorre a invocada violação do princípio da proporcionalidade e do direito à propriedade.

 

Como se deixou dito, a desconsideração do negócio jurídico titulado por factura que se entendeu não ter correspondência com a realidade, importando a reposição da obrigação fiscal de retenção na fonte por parte do substituto tributário, recoloca o substituto na situação que existiria se não tivessem sido realizada essa operação, tudo se passando como se houvesse lugar ab initio ao pagamento de rendimentos de capitais sujeitos a tributação em IRS e relativamente aos quais se tornava exigível a retenção na fonte.

 

As entidades devedoras dos rendimentos sujeitos a tributação sempre seriam obrigadas a deduzir as importâncias correspondentes à aplicação das taxas de tributação que se encontram previstas para essa categoria de rendimentos, no momento em que os tivesse colocado à disposição do sujeito passivo. Essa obrigação fiscal não passa a assumir uma diferente natureza jurídica apenas porque a retenção da fonte opera na sequência do procedimento inspectivo que culminou com a declaração de ineficácia do negócio.

 

No que respeita à adequação do meio usado para a prossecução dos fins que são visados pela lei, sublinha-se que o princípio da idoneidade ou da aptidão significa que as medidas legislativas devem ser aptas a realizar o fim prosseguido ou contribuir para o alcançar. No entanto, “o controlo da idoneidade ou adequação da medida, enquanto vertente do princípio da proporcionalidade, refere-se exclusivamente à aptidão objetiva e formal de um meio para realizar um fim e não a qualquer avaliação substancial da bondade intrínseca ou da oportunidade da medida. Ou seja, uma medida é idónea quando é útil para a consecução de um fim, quando permite a aproximação do resultado pretendido, quaisquer que sejam a medida e o fim e independentemente dos méritos correspondentes. E, assim, a medida só será suscetível de ser invalidada por inidoneidade ou inaptidão quando os seus efeitos sejam ou venham a revelar-se indiferentes, inócuos ou até negativos tomando como referência a aproximação do fim visado” (neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 188/2009).

 

E, por outro lado, também não se descortina, nem a Requerente esclarece, em que termos é a que a oponibilidade ao substituto tributário da desconsideração de efeitos fiscais de uma operação que se entende não ter sido efectivamente realizada afecta os subprincípios da necessidade e da proporcionalidade em sentido restrito.

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide julgar totalmente improcedente o pedido arbitral.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 1.709.664,27, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 10.404,27, que fica a cargo da Requerente.

 

Notifique.

 

Lisboa, 31 de Julho de 2019

  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

Carla Castelo Trindade

 

O Árbitro vogal

Amândio Silva