Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 696/2018-T
Data da decisão: 2019-07-19  IUC  
Valor do pedido: € 4.150,65
Tema: IUC – incidência subjetiva e exigibilidade do imposto.
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DECISÃO ARBITRAL

 

A Árbitro Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral constituído em 07.03.2019, decide nos termos e com os fundamentos que se seguem:

 

 

 

I – RELATÓRIO

 

A... S.A., pessoa coletiva número..., com sede no ..., ..., ..., ...-... ..., apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral no dia 28.12.2018, o qual foi aceite e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”), na qualidade de Requerida.

 

A Requerente contesta a legalidade do despacho de indeferimento parcial, datado de 28.09.2019, da Direção de Finanças de Lisboa, na parte em que indeferiu o pedido de Revisão Oficiosa apresentado contra liquidações de Imposto Único de Circulação (IUC) e juros compensatórios (JC) relativas ao ano de 2013, e liquidadas sobre os veículos cujas matrículas constam do artigo 16.º do pedido de pronúncia arbitral, no valor total de € 4.150,65, bem como a legalidade destas mesmas liquidações, pelo facto de os veículos em causa já terem sido alienados, no termo dos respetivos contratos de locação financeira, na data em que ocorreu o facto gerador do imposto.

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitra do Tribunal Arbitral Singular, a qual comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 15.02.2019, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.

 

Em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 07.03.2019.

 

No dia 16.04.2019, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

Através de despacho de 18.06.2019 – nessa data notificado às Partes -, este Tribunal comunicou às Partes a faculdade de apresentarem alegações escritas, tendo conferido à Requerente o prazo de 10 dias contados da notificação desse despacho e à Requerida o mesmo prazo contado da apresentação das alegações pela Requerente ou do termo do prazo para o efeito. Nesta data (18.07.2019) constata-se que ambos os prazos se encontram esgotados, pelo que poderá ser proferida decisão arbitral, cujo prazo termina a 07.09.2019 (prazo do qual as Partes foram advertidas em tempo oportuno, tal como, no caso apenas a Requerente, da necessidade de efetuar o pagamento da taxa de arbitragem subsequente).

 

Resumo da posição da Requerente

 

A Requerente defende que a Autoridade Tributária e Aduaneira, ao proceder às liquidações impugnadas, se baseou unicamente na informação constante do Registo Automóvel (IRN – Instituto de Registos e Notariado, e IMTT – Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres), a qual não seria atual nas datas da exigibilidade do IUC (datas de aniversário das viaturas) por as mesmas já terem sido alienadas nessas datas.

 

Contesta a falta de diligência da AT na recolha de elementos adicionais de prova – ou na sua consideração quando os mesmos lhe foram apresentados no decurso do processo administrativo – à qual estava obrigada ao abrigo do princípio do inquisitório.

 

Quanto ao argumento da AT de que a Requerente poderia ter procedido ao registo nos termos previstos no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 55/75, de 12 de fevereiro, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 20/2008, de 31 de janeiro, segundo o qual os vendedores podem promover o registo da viatura após um contrato de compra e venda, desde que, em virtude da sua atividade comercial, procedam com regularidade à transmissão da propriedade de veículos automóveis ou procedam à compra e venda de veículos para revenda, argumenta a Requerente que se trata de uma mera faculdade, não podendo ser exigido ao vendedor que efetue esse registo ou que, não o fazendo, sofra consequências negativas como a de liquidação do imposto posterior à data de venda. A obrigação de proceder ao registo cabe ao comprador do automóvel, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 8.º-B do Código de Registo Predial, aplicável por força do artigo 29.º do Código de Registo Automóvel: a faculdade conferida ao vendedor em nada altera o ónus que impende sobre o comprador.

 

Por outro lado, sustenta que a função do registo é meramente publicitária, não sendo o registo constitutivo de factos. Por isso mesmo, a presunção que dele decorre pode ser ilidida mediante prova em contrário

 

Por fim, aduz ainda o argumento de que a AT não é um terceiro para efeitos do registo, pelo que não pode invocar a falta de registo do contrato para desconsiderar os efeitos da compra e venda.

 

Resumo da posição da AT

 

A AT começa por referir que cabia à Requerente demonstrar ter dado cumprimento à obrigação acessória imposta pelo artigo 19.º do CIUC, nos termos do qual “«para efeitos do artigo 3.º do presente código (…), ficam as entidades que procedam à locação financeira, locação operacional ou ao aluguer de longa duração de veículos obrigadas a fornecer à Direção-Geral dos Impostos os dados relativos à identificação dos utilizadores dos veículos locados.» Defende, assim, que se a Requerente pretende ilidir a presunção do artigo 3.º do CIUC, então teria que ter cumprido o disposto no artigo 19.º do CIUC. Não o tendo feito, não pode ilidir a presunção.

 

Entende ainda, genericamente, que o entendimento propugnado pela Requerente decorre de uma enviesada leitura da letra da lei e da adoção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC.

 

Sobre a jurisprudência invocada pela Requerente, a AT salienta que a mesma não tem valor de precedente vinculativo, mas meramente um valor persuasivo. Por outro lado, salienta que a jurisprudência mais recente dos tribunais arbitrais junto do CAAD tem seguido orientação diversa, citando exemplificativamente os processos n.º 126/2014-T e n.º 220/2014-T

 

A AT defende ainda o seguinte:

- Quanto às liquidações referentes a veículos alineados antes da exigibilidade do imposto, o entendimento propugnado pela Requerente incorre não só de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adoção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC.

- O legislador tributário, ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC, estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

- Note-se que o legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados. Em contrapartida, o normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do artigo 3.º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, entre muitos outros. Pelo que, se se entendesse que ao usar a expressão “considera-se” o legislador fiscal teria consagrado uma presunção, praticamente todas as normas de incidência em sede de IRC seriam afastadas precisamente porque a contabilidade prescreve soluções diferentes das do CIRC, sendo exatamente o fim do legislador afastar tais regras contabilísticas.

- Também o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio na lei. Mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afeta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, nos termos estabelecidos no CIUC (que no caso em apreço constitui lei especial, a qual, nos termos gerais de direito derroga a norma geral), o legislador tributário quis intencional e expressamente que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.

- À luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela Requerente no sentido de que o sujeito passivo do imposto é o proprietário efetivo, independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade, é manifestamente errada. E é uma interpretação errada na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no CIUC que constitui prova clara de que aquilo que o legislador fiscal pretendeu foi criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel. E isto precisamente porque o novo regime de tributação do IUC veio alterar de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando a ser sujeitos passivos do imposto os proprietários constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública. 

- Quanto aos documentos juntos aos autos pela Requerente para prova do peticionado, a Requerida impugna as segundas vias de notas de débito e assinala o facto de não terem sido juntas faturas das vendas alegadas, nem tão-pouco recibos ou cheques como prova de pagamento do preço. Nota também que nas notas de débito consta no canto inferior esquerdo “Documento válido como Recibo após comprovativo de boa cobrança”, o que não permite concluir pelo pagamento da importância que consta na mesma. As segundas vias de notas de débito juntas são documentos unilaterais e internos, pelo que, sustenta a Requerida, não são idóneas e suficientes para prova da transmissão de propriedade, nem tão pouco provam a celebração de um contrato sinalagmático como a compra e venda. As notas de débito não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte dos pretensos adquirentes.

 

Pelas razões expostas, a AT conclui pela improcedência do pedido arbitral.

 

II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1, do RJAT.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, conforme previsto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03.

 

A ação é tempestiva e o processo não enferma de nulidades.

 

Quanto à cumulação de pedidos efetuada pela Requerente, considerando a existência de uma relação direta entre as liquidações tributárias cuja legalidade é questionada no presente processo, nada obsta à apreciação conjunta dos atos tributários em causa, dado que, em face do que vem alegado e da documentação junta, se constata que, no essencial, a eventual procedência do pedido depende das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação das normas legais relativas à incidência subjetiva do IUC. Assim, estará em causa essencialmente a apreciação das mesmas circunstâncias de facto e a aplicação das mesmas normas legais acerca da incidência subjetiva do IUC, sendo legal a cumulação de pedidos, nos termos do artigo 3.º do RJAT e 104.º do CPPT.

 

 

III. FUNDAMENTAÇÃO

 

A. MATÉRIA DE FACTO

 

A.1. Factos provados

 

  1. A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de locação financeira automóvel.

 

  1. No âmbito da sua atividade, detém, por curtos períodos de tempo, veículos automóveis em seu nome.

 

  1. No final dos contratos de locação financeira que celebra, os locatários têm a possibilidade de adquirir a fatura e exercem frequentemente essa faculdade.

 

  1. Após o termo de tais contratos, a B... procede à transmissão da propriedade das viaturas aos correspondentes locatários ou a terceiros, por um valor residual.

 

  1. A Requerida liquidou IUC relativo ao ano de 2013 sobre vários veículos automóveis que foram detidos pela Requerente.

 

  1. A Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa das liquidações impugnadas a 14.10.2016;

 

  1. O pedido foi parcialmente indeferido por despacho notificado à Requerente a 03.10.2018.

 

  1. Os veículos que deram origem a liquidações de IUC em causa neste processo e que constam da listagem reproduzida no artigo 16.º da petição inicial já tinham sido alienados pela Requerente na data em que ocorreu o facto gerador.

 

A.2. Factos não provados

Com relevo para a decisão não existem factos alegados que devam considerar-se não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), e 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção da árbitra fundou-se nas posições assumidas pelas partes nas respetivas peças processuais e na análise crítica da prova documental junta aos autos.

 

B. DO DIREITO

 

A questão de fundo em causa nos presentes autos consiste em saber se os factos alegados e a prova sobre eles realizada pela Requerente consubstanciam motivos de exclusão de incidência subjetiva de imposto e se, em consequência, se deve considerar que os atos impugnados enfermam de erro sobre os pressupostos do facto tributário, o que consubstanciaria um vício de violação de lei determinante da respetiva anulação, com as consequências legais de restituição do imposto e juros pagos indevidamente.

 

A Requerente fundamenta o seu pedido no argumento de não se encontrarem preenchidos os pressupostos de incidência subjetiva previstos no artigo 3.º do CIUC porque, nas datas da exigibilidade do IUC respeitante às viaturas em causa, já não era a proprietária dos veículos em questão, por já os ter vendido a anteriores locatários.

 

Invoca o disposto no artigo 3.º do CIUC, nos termos do qual os responsáveis pelo pagamento do IUC são os proprietários dos veículos à data da exigibilidade do IUC, ou seja, na data da matrícula ou nas datas de aniversário em relação à data da matrícula (n.º 1 do artigo 3.º do CIUC), e ainda os “(…) locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação” na mesma data, uma vez que estes são equiparados aos proprietários dos automóveis (n.º 2 do artigo 3.º do mesmo diploma legal).

 

Sustenta que as vendas das viaturas ocorreram na data da emissão das notas de débito que constam de pp. 25 a 138 do processo administrativo (PA).

 

Alega a Requerente que os veículos sobre os quais incide o IUC já tinham sido alienados na data em que o facto gerador do imposto se verificou, pretendendo provar tais factos através das notas de débito que juntou ao pedido de revisão oficiosa e que constam do PA oportunamente remetido pela Requerida aos presentes autos.

 

Entende a AT que estes documentos não são aptos a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, por não revelarem uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte dos pretensos adquirentes.

 

A Requerente invoca o disposto no artigo 3.º do CIUC, o qual, em seu entender, estabelece uma presunção implícita de propriedade dos veículos a favor de quem os mesmos se encontrem registados, presunção essa que, por força da aplicação da regra geral prevista no artigo 73.º da Lei Geral Tributária, é ilidível mediante prova em contrário. Já para a Requerida, o artigo 3.º do CIUC não estabelece qualquer presunção implícita, mas uma verdadeira ficção legal, inilidível.

 

À data dos factos geradores do imposto liquidado através das liquidações impugnadas, o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC estabelecia que:

“São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.” 

 

A questão que se discute a propósito desta norma é a seguinte: deverá entender-se que o legislador utilizou a palavra “considerando-se” como poderia ter utilizado a palavra “presumindo-se” ou, pelo contrário, que o legislador quis estabelecer uma ficção legal, vedando a possibilidade de se realizar prova em contrário?

 

Nos termos do disposto no artigo 349.º do Código Civil, “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.” Por outro lado, o n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil esclarece que as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, salvo nos casos em que a lei o proibir.

 

No que diz respeito às presunções de incidência tributária, determina o artigo 73.º da Lei Geral Tributária que estas admitem sempre prova em contrário.

 

As “ficções legais” consistem, diferentemente, “num processo jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir consequências jurídicas”.

 

Ora, contrariamente ao que defende a Requerida, a análise do elemento literal, bem como dos elementos histórico e teleológico presentes na norma em questão conduzem à conclusão de que o legislador não pretendeu estabelecer qualquer ficção legal mas apenas e só uma presunção, ilidível mediante prova em contrário nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 73.º da Lei Geral Tributária. Tratando-se a norma de incidência prevista no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC de uma norma de incidência tributária, outro entendimento seria claramente contrário aos princípios que regem a relação jurídica fiscal.

 

Quanto ao elemento histórico, importa referir que o CIUC teve a sua génese na criação, através do DL 599/72, de 30 de Dezembro, do imposto sobre veículos, o qual já consagrava expressamente que o imposto era devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas em nome de quem os mesmos se encontram matriculados ou registados . Por outro lado, o artigo 2.º do Regulamento dos Impostos de Circulação e de Camionagem (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 116/94) estabelecia que: “são sujeitos passivos do imposto de circulação e do imposto de camionagem os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou coletivas em nome das quais os mesmos se encontram registados”. 

 

É certo que, no CIUC, o legislador substituiu a expressão “presumindo-se” pela expressão “considerando-se”, o que, na perspetiva da Requerida, traduziu a consagração de uma ficção legal, inilidível. Não consideramos, no entanto, que assim seja. A mudança de verbo não consubstancia uma alteração de fundo na norma de incidência, que, a nosso ver, continua a estabelecer uma presunção ilidível mediante prova em contrário – em conformidade, aliás, com o disposto no artigo 73.º da LGT.

 

Como afirmam DIOGO LEITE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES E JORGE LOPES DE SOUSA, na anotação ao n.º 3 do artigo 73.º da LGT, “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objetiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”.

 

Em suma, em matéria de incidência tributária, as presunções podem ser reveladas pela expressão “presume-se” ou por expressão semelhante. A título de exemplo, refere JORGE LOPES DE SOUSA que no artigo 40.º, n.º 1, do CIRS, se utiliza a expressão “presume-se”, ao passo que no artigo 46.º, n.º 2 do mesmo Código se faz uso da expressão “considera-se”, não havendo qualquer diferença entre uma e outra expressão, ambas significando, afinal, o mesmo: uma presunção legal.

 

Quanto ao elemento teleológico, importa referir que o princípio estruturante da reforma da tributação automóvel é justamente o da incidência da tributação sobre o verdadeiro utilizador do veículo, não se coadunando este princípio com a leitura “cega” da letra da lei, que poderia levar, afinal, a tributar quem não fosse proprietário e, dessa forma, quem não fosse o sujeito causador do “custo ambiental e viário” provocado pelo veículo, a que alude o artigo 1.º do CIUC.

 

Assim, quanto à incidência subjetiva do imposto, é de concluir que não se verificam alterações relativamente à situação anteriormente em vigor no âmbito do Imposto Municipal sobre Veículos, Imposto de circulação e Imposto de Camionagem, como aliás é amplamente reconhecido pela doutrina, continuando a valer uma presunção ilidível nesta matéria. Este entendimento é, ainda, o único que se afigura adequado e conforme ao princípio da verdade material e da justiça, subjacentes às relações fiscais, com o objetivo de tributar o real e efetivo proprietário e não aquele que, por circunstâncias de diversa natureza, não passa, por vezes, de um aparente e falso proprietário, por constar do registo automóvel. 

 

Nesta conformidade, considerando os elementos de interpretação da lei referidos, somos conduzidos à conclusão de que a expressão “considerando-se” tem exatamente o mesmo sentido que a expressão “presumindo-se”, devendo, desta forma, entender-se que o artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, consagra uma verdadeira presunção de propriedade e não qualquer ficção, sendo, por isso, tal presunção ilidível. Por ser assim, tem de se permitir ao titular inscrito no registo automóvel a possibilidade de apresentar elementos probatórios bastantes para a demonstração de que o efetivo proprietário é, afinal, pessoa diferente da que consta do registo.

 

Cumpre ainda atender, na presente análise, ao valor jurídico do registo automóvel. Assim, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 1.º do DL 54/75, de 12 de Fevereiro, que instituiu o Registo da Propriedade Automóvel, “o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. Acrescenta ainda o artigo 7.º do Código do Registo Predial que “o registo definitivo constituiu presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”. O registo de propriedade automóvel não tem, portanto, natureza constitutiva, mas meramente declarativa, permitindo apenas a inscrição no registo presumir a existência do direito e a sua titularidade. Logo, a presunção resultante do registo pode ser ilidida mediante prova em contrário. E isto é assim justamente porque, nos termos do disposto no artigo 408.º do Código Civil, salvas as exceções previstas na lei, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, não ficando a sua validade dependente da inscrição no registo.

 

Em suma, o registo automóvel, na economia do CIUC, representa mera presunção ilidível dos sujeitos passivos do imposto. No caso de um contrato de compra e venda de um veículo automóvel, não prevendo a lei qualquer exceção para o mesmo, o contrato tem eficácia real, passando o adquirente a ser o seu proprietário, independentemente do registo; do mesmo modo, o titular inscrito no registo deixará de ser o proprietário, pese embora ainda possa constar, por algum tempo ou mesmo muito, do registo como tal.

 

De notar ainda que as transmissões efetuadas são oponíveis à Requerida, apesar do disposto no n.º 1 do artigo 5.º do Código do Registo Predial, que dispõe: “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros quando registados.” A noção de terceiros para efeitos de registo está consagrada no n.º 4 do mesmo artigo 5.º: terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si, o que, manifestamente não é o caso da AT. Assim, a AT não é terceiro para efeitos de registo.

 

Em consequência do que antecede, o proprietário registado de um automóvel pode fazer prova, para efeitos de tributação em sede de IUC, de que já não é o proprietário efetivo do veículo em causa, nomeadamente por ter procedido à respetiva venda. Para tanto, importa ter-se presente que estamos perante contratos de compra e venda que, sendo relativos a coisas móveis e não estando sujeitos a quaisquer formalismos especiais nos termos do artigo 219.º do Código Civil, operam a correspondente transferência de direitos reais nos termos do n.º 1 do artigo 408.º do mesmo código.

 

A questão que se segue diz respeito à prova. Quanto ao ónus da prova, não restam dúvidas de que cabe ao sujeito passivo apresentar meios idóneos para promover a prova necessária ao afastamento da presunção. Cabe-lhe a “prova do contrário”, ou seja, a prova de que não era o proprietário à data do facto tributário. Por outro lado, importa clarificar através de que meios é que o proprietário poderá alcançar esse objetivo, sendo aqui que se torna relevante a questão, suscitada pela Requerida, da idoneidade das notas de débito apresentadas pela Requerente enquanto meio de prova da venda dos veículos.

 

Nos termos do disposto nos artigos 219.º e 408.º, n.º 1, do Código Civil, os contratos de compra e venda de automóveis têm uma base consensual e não estão sujeitos a formalismos especiais. Por outro lado, a propriedade de veículos automóveis está sujeita a registo obrigatório (cfr. o artigo 5.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12/2). A obrigação de proceder ao registo recai sobre o comprador - o sujeito ativo do facto sujeito a registo (cfr. o artigo 8.º-B, n.º 1, do Código do Registo Predial, aplicável ao Registo Automóvel por força do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12/2, conjugado com o artigo 5.º, n.º 1, alínea a), deste último diploma). Contudo, o Regulamento do Registo Automóvel contém um regime especial, em vigor desde 2008, para entidades que, em virtude da sua atividade comercial, procedam com regularidade à transmissão da propriedade de veículos automóveis. Segundo esse regime, que se encontra estabelecido no artigo 25.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 55/75, de 12/2 (na redação do Decreto-Lei n.º 20/2008, de 31/1), o registo pode ser promovido pelo vendedor, mediante um requerimento subscrito apenas por si próprio.

 

O afastamento da presunção legal resultante do registo obedece à regra constante do artigo 347.º, do CC, nos termos do qual a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objeto. O que significa que não basta à parte contrária opor a mera contraprova - a qual se destina a lançar a dúvida sobre os factos (cfr. o artigo 346.º, do CC) – ela tem de demostrar que não é verdadeiro o facto presumido, de forma que não reste qualquer incerteza de que os factos resultantes da presunção não são reais.

 

A fatura é um documento contabilístico elaborado internamente numa empresa e que se destina à contraparte numa transmissão de bens ou prestação de serviços, mas que também serve para outros efeitos, nomeadamente, junto da AT, para efeitos de liquidação de impostos. Portanto, a menos que se demonstre a sua falsidade, as faturas presumem-se válidas para todos os efeitos legais. Por sua vez, também a nota de débito consiste no documento em que o emitente comunica ao destinatário que este lhe deve determinado montante pecuniário. Ambos os documentos surgem na fase de liquidação da importância a pagar pelo comprador e que nem sempre coincide com o pagamento efetivo, muitas vezes antecedendo-o. Assim, embora não façam prova do pagamento efetivo do preço pelo mesmo comprador, constituem prova da transação que o justifica, ou seja, da compra e venda efetuada.

 

Nestes termos, os documentos juntos aos autos – e que serviram de base à matéria de facto provada – constituem um meio próprio para ilidir a presunção de incidência subjetiva do IUC em que se fundamentam as liquidações tributárias cuja anulação é peticionada nestes autos. Além disso, gozam da presunção de veracidade que lhes é conferida pelo artigo 75.º, n.º 1 da LGT, tendo, assim, idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que suportou as liquidações efetuadas com base no registo automóvel. Conclui-se, portanto, que a Requerente não era realmente proprietária dos veículos a que respeitam as liquidações em apreço, por ter transferido, à data em que era devido o respetivo IUC, a propriedade dos veículos, nos termos previstos na lei civil.

 

Em consequência, as liquidações impugnadas, assim como o despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, afiguram-se ilegais, padecem do vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito subjacentes, pelo que se impõe a sua anulação e, consequentemente, a restituição à Requerente, pela Autoridade Tributária e Aduaneira, das respetivas importâncias pagas indevidamente, como consta dos documentos juntos aos autos.

 

IV – DECISÃO

 

Termos em que este Tribunal Arbitral decide:

 

  1. Julgar procedente o pedido arbitral de anulação dos atos tributários supra identificados, relativos a IUC liquidado com referência ao ano de 2013, no valor total de € 4.150,65;
  2. Julgar procedente o pedido de anulação do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa datado de 28.09.2019;
  3. Determinar a restituição à Requerente do montante de imposto indevidamente pago.

 

V – Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 4.150,65, (quatro mil cento e cinquenta euros e sessenta e cinco cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VI – Custas

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a suportar pela Requerida.

 

Lisboa, 19 de julho de 2019

 

A Árbitra

 

 

(Raquel Franco)