DECISÃO ARBITRAL
A Árbitro Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral constituído em 16.01.2019, decide nos termos e com os fundamentos que se seguem:
I – RELATÓRIO
A..., Lda., sociedade por quotas, com sede na Rua..., n.º..., sala..., ...-... Guimarães, com o número identificação de pessoa coletiva ..., doravante designada por Requerente, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral no dia 02.11.2018, o qual foi aceite e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”), na qualidade de Requerida.
A Requerente contesta a legalidade dos seguintes atos:
• Liquidações adicionais de IVA e IRC, dos períodos de 201512T e 201612T, e 2015 e 2016, respectivamente, em concreto:
- Liquidação de IVA n.º 2018..., período de 201512T, no valor de € 2.751,14;
- Liquidação de IVA n.º 2018..., período de 201612T, no valor de € 2.717,82;
- Liquidação de IRC n.º 2018..., período de 2015;
- Liquidação de IRC n.º 2018..., período de 2016.
• Indeferimentos das reclamações graciosas n.os ...2018... (IVA 201512T), ...2018... (IVA 201612T) e ...2018... (IRC 2015 e 2016).
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitra do Tribunal Arbitral Singular, a qual comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 26.12.2018, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.
Em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 16.01.2019.
No dia 20.02.2019, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
As Partes apresentaram alegações em que reiteraram os pedidos e respetivas fundamentações.
Resumo da posição da Requerente
Os atos de liquidação adicional impugnados resultaram das declarações de substituição entregues pela Requerente para correção voluntária das irregularidades/omissões detetadas no âmbito de um procedimento inspetivo.
Concluída a ação de inspeção, a Divisão de Inspeção Tributária III, da Direção de Finanças de ..., viria a propor correções à matéria coletável declarada para efeitos de IRC e de IVA, com recurso a métodos indiretos, e que resultaram na Liquidação ora em pronúncia (cfr. Relatório de Inspeção Tributária, do qual a Requerente juntou a folha de rosto como doc. n.º 3, e que integra o Processo Administrativo).
As correções propostas pelos Serviços de Inspeção, tanto em sede de IRC como de IVA, com recurso a métodos indiretos, resumem-se à atribuição de um valor decorrente das prestações de serviços obtido através da aplicação do rácio da margem bruta II, fazendo com que, para o ano de 2015, resultasse um valor estimado de € 27.347,66 e para o ano de 2016 um montante de € 28.739,31 (cfr. pág. 10 do doc. n.º 3).
O valor decorrente e atribuído pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) às prestações de serviços de cabeleireiro da Requerente deveu-se ao facto de os valores faturados não serem suficientes para pagar os gastos inerentes à atividade, bem como dos prejuízos contabilísticos elevados obtidos ao longos dos anos para o sector de atividade.
Assim, em sede de IRC, tendo a Requerente declarado como volume de negócios € 15.386,15 e € 16.922,75, para os anos de 2015 e de 2016, respetivamente, os prejuízos fiscais declarados foram corrigidos de - € 13.034,28 (2015) e de - € 12.673,37 (2016) para - € 1.072,77 (2015) e - € 856,81 (2016), o que se traduziu numa correção fiscal por parte dos serviços inspetivos da AT, para os anos de 2015 e de 2016, de € 11.759,13 e de € 10.708,49, respetivamente.
Para determinação do IVA em falta, a AT aplicou a taxa de 23% ao valor correspondente à diferença entre o valor das prestações de serviços declaradas (€ 15.386,15 «2015» e € 16.922,75 «2016») e o das prestações estimadas (€ 27.347,66 «2015» e € 28.739,31 «2016»), calculando um imposto em falta no valor de € 2.751,15 e de 2.717,81 para os anos de 2015 e de 2016, respetivamente.
Desta forma, foi presumido pela AT, para efeitos de IRC e IVA, o valor das prestações de serviços, com recurso à avaliação indireta, nos termos das alíneas b) e e), do n.º 1 do artigo 87.º e a alínea a) do artigo 88.º, ambos da LGT, tendo sido determinada a matéria coletável nos termos previstos no artigo 90.º, n.º 1, alínea a) da LGT.
Apesar de não concordar com as correções, a Requerente entregou declarações de substituição onde adotou e declarou os valores resultantes da avaliação indireta realizada pela AT. Na sequência da apresentação dessas declarações, foi notificada das liquidações adicionais de IVA n.os 2018..., período de 201512T, no valor de € 2.751,14, e 2018..., período de 201612T, no valor de € 2.717,82, e das liquidações adicionais de IRC n.os 2018..., período de 2015, no valor de “0”, e 2018..., período de 2016, no valor de “0”.
De seguida, em 22 de Maio de 2018, apresentou reclamação graciosa contra as liquidações adicionais de IVA e IRC em questão, tendo sido notificada do respetivo indeferimento em 02 de Agosto de 2018.
Agora, em sede de impugnação arbitral, apresenta os seguintes fundamentos para a pretensa ilegalidade dos atos de liquidação:
- em primeiro lugar, a título de questão prévia, invoca a falta de motivos da AT para recorrer aos métodos indiretos;
- em segundo lugar, alega que estamos perante um caso em que não é necessário o recurso à avaliação indireta por não se enquadrar em nenhuma situação restrita do artigo 87.º da LGT, atendendo, nomeadamente, ao facto de: (i) a contabilidade da Requerente comprovar direta e exatamente a sua matéria coletável; (ii) a avaliação indireta surgir sempre como subsidiária à avaliação direta (cfr. artigo 85.º, n.º 1 da LGT); (iii) ninguém poder ser obrigado a pagar impostos cuja liquidação não se faça nos termos da Lei (cfr. artigo 103.º, n.º 3 da CRP); (iv) inexistir qualquer prova por parte da AT sobre a impossibilidade de reconstituição da contabilidade da Requerente (cfr. artigos 74.º, n.º 3 da LGT e 100.º, n.º 2 e 3 do CPPT).
- em terceiro lugar, entende que os serviços inspetivos fizeram errada interpretação na análise efetuada ao volume de negócios da Requerente. É referido no Relatório que o volume de negócios da Requerente tem vindo a decrescer de ano para ano, contudo, no período a que respeita a ação de inspeção, 2015 e 2016, analisados os valores declarados pela Requerente, a rubrica de prestação de serviços revelou um ligeiro aumento no ano de 2016 comparativamente com o ano de 2015 e, em contrapartida, a rubrica de outros gastos e perdas também sofreu um ligeiro aumento comparativamente com o ano de 2015, acompanhando os proveitos.
- A Requerente tem que atuar com liberdade no mercado e não cabe à administração tributária substituir-se a ela num critério de “melhor gestão”. Há muitas causas, entre elas geográficas, temporais, relativas a estratégias de implementação no mercado, entre outras, que podem justificar uma utilização de valores (de compra ou venda) divergentes dos “habituais”, sem que tal divergência justifique a avaliação indireta.
- Entende, assim, que os atos tributários em causa são inválidos por violação do disposto nos artigos 87.º, n.º 1, alíneas b) e e), 88.º, alínea a), 90.º, n.º 1, alínea a), todos da LGT, na medida em que a AT: (i) não provou a verificação dos pressupostos para lançar mão dos métodos indiretos para fixar a matéria coletável da Requerente, (ii) incorreu em erro sobre os pressupostos de facto, quando afirma que os valores faturados relativos a prestações de serviços não são suficientes para pagar os gastos inerentes à atividade, (iii) não poderia ter sido atendido apenas o critério da água e de luz, como forma de justificar o rácio da margem bruta II para o cálculo do valor das prestações de serviços estimadas, não sendo, assim, legítima a avaliação indireta que apenas determine proveitos, sem refletir sobre os custos que terão contribuído para a formação de tais proveitos; (iv) ainda que assim não fosse, a AT poderia recorrer a correções técnicas em vez dos métodos indiretos de tributação. Em consequência, entende a Requerente que não deve a matéria coletável ser fixada em € 27.347,66 para o ano de 2015 e de € 28.739,31 para o ano de 2016, por aplicação do regime previsto nos artigos 87.º, n.º 1 alíneas b) e e), 88.º, alínea a) e 90.º, n.º 1 a), todos da LGT.
- Deste modo, entende que as liquidações objeto do pedido de pronúncia arbitral são inválidas por vícios de inexistência do facto tributário, de erro de facto e de direito, da errónea quantificação da matéria coletável e ainda de vício de forma insuprível, consistente na falta de fundamentação, nos termos, entre outros, do 74.º, n.º 3, 75.º, n.º 1, 77.º, n.º 4, 85.º, 87.º, 88.º e 90.º, todos estes da LGT, 100.º, n.ºs 2 e 3 do CPPT e 103.º, n.º 3, 104.º, n.º 2, ambos da CRP, devendo, consequentemente, ser anuladas com todas as legais consequências.
Resumo da posição da AT
A AT começa por suscitar duas exceções, das quais decorreria a impossibilidade de este tribunal conhecer do mérito da causa.
A primeira das exceções diz respeito à incompetência material do tribunal arbitral e é fundamentada pela AT com recurso aos limites da vinculação da AT previstos no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de Março, cujo artigo 2.º (com a epígrafe “Objeto de Vinculação”), dispõe:
“Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo .2º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com exceção das seguintes:
(…)
Pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributária, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão.
(…)
(…).”
A AT considera que os atos submetidos à apreciação do tribunal no presente caso estão incluídos naquela limitação à vinculação da AT à jurisdição arbitral por serem “atos de liquidação em resultado da aplicação de métodos indiretos de determinação da matéria coletável, relativamente a IRC e IVA, correspondente aos exercícios de 2015 e 2016, matéria que está subtraída à competência material deste Tribunal.”
A AT considera ainda que uma interpretação contrária, no sentido de que o tribunal arbitral tem competência para decidir atos de liquidação e fixações de matéria tributável decorrentes de aplicação de métodos indiretos é inconstitucional por violação do artigo 212.º, n.º 3 da CRP e, bem assim, por violação do princípio do livre acesso aos tribunais, na vertente do direito ao duplo grau de jurisdição, decorrente dos artigos artigos 20.º e 268.º da CRP.
Em segundo lugar, a AT invoca a exceção de “impropriedade do meio processual”, por considerar que não foi cumprido o preceituado na parte final do n.º 1 do artigo 117.º do CPPT, nos termos do qual, sob a epígrafe “Impugnação com base em erro na quantificação da matéria tributável ou nos pressupostos de aplicação de métodos indiretos”, a “impugnação depende de prévia apresentação do pedido de revisão da matéria tributável”. Portanto, mesmo que a impugnação junto dos tribunais arbitrais fosse um meio processual adequado para os atos em causa, não estaria cumprido o requisito necessário para se poderem impugnar os atos, uma vez que a Requerente não cumpriu a condição necessária de acesso à impugnação – o pedido de revisão da matéria coletável previsto no artigo 91.º da LGT. A causa de pedir da Requerente assenta única e exclusivamente na ilegalidade do ato tributário, por violação do artigo 90.º, n.º 1, alínea a), da LGT e na determinação da matéria coletável por aplicação dos métodos indiretos, pelo que o recurso à impugnação teria de ser precedido de pedido de revisão da matéria coletável.
Também por este motivo, considera que deve ser absolvida da instância arbitral.
Por impugnação, a AT aduz os seguintes argumentos:
- A Requerente imputa aos atos impugnados apenas vícios atinentes à aplicação de métodos indiretos, sendo que a causa de pedir assenta única e exclusivamente na ilegalidade do ato tributário, por violação do artigo 90.º, n.º 1, alínea a), da LGT e, na determinação da matéria coletável por aplicação dos métodos indiretos, nomeadamente a errónea quantificação da matéria coletável. Isto é, ainda que o pedido assente na revogação dos atos de indeferimento das reclamações graciosas que mantiveram as liquidações sub juditio, a causa de pedir assenta exclusivamente em vícios decorrentes da aplicação de métodos indiretos.
- Em momento algum a Requerente arguiu a ilegalidade da liquidação que não assente na aplicação e quantificação do recurso a métodos indiretos, isto é, a Requerente não assacou quaisquer vícios próprios às liquidações, que não vícios assentes na aplicação e quantificação do recurso a métodos indiretos.
- Sem conceder, impugna especificadamente, por não provados, por não serem verdade ou por totalmente irrelevantes para a decisão da causa os pontos 17 e 22 a final do pedido de pronúncia arbitral, dando ainda por integralmente reproduzida, por razões de economia processual, a fundamentação ínsita no processo administrativo e vertida em sede inspetiva e graciosa.
Pelas razões expostas, a AT conclui pela improcedência do pedido arbitral.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1, do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, conforme previsto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03.
A ação é tempestiva e o processo não enferma de nulidades.
Sobre a cumulação de pedidos, este Tribunal entende que a pronúncia arbitral sobre a legalidade dos atos de liquidação de IVA dos períodos de 201512T e 201612T, e de IRC dos anos de 2015 e 2016, é admissível, uma vez que as circunstâncias de facto são as mesmas e que está em causa a interpretação e aplicação dos mesmos princípios e regras de direito, pelo que, nos termos do disposto no artigo 3.º do RJAT, se admite a cumulação de pedidos.
Exceção de incompetência material invocada pela AT
Antes de se avançar, cumpre analisar a exceção de incompetência material do tribunal invocada pela AT. Uma vez que já ficaram sintetizadas supra as razões nas quais a AT fundamenta esta exceção, importa agora sintetizar a argumentação utilizada pela Requerida para as contrariar.
A Requerente começa por salientar que não estão em causa liquidações adicionais decorrentes da ação de inspeção tributária à Requerente, mas antes decorrentes de regularizações voluntárias resultantes efetuadas pela Requerente através das declarações de substituição que entregou. Assim, a pretensão de tutela arbitral não tem por objeto o ato de determinação da matéria coletável ou tributável, que no caso nem sequer existiu, mas o ato tributário de liquidação, que constitui a decisão final do procedimento tributário.
Por este motivo, entende que o Tribunal se deverá julgar competente, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de Março.
Quanto à exceção de impropriedade do meio processual, a Requerente contradiz a Requerida dizendo que os atos de liquidação em crise (objeto mediato da presente ação) resultaram das declarações de substituição entregues pela Requerente, não sendo por isso esta uma impugnação com base em erro na quantificação da matéria tributável ou nos pressupostos de aplicação de métodos indiretos, pelo que a impugnação não depende da prévia apresentação de pedido de revisão da matéria tributável.
Está em causa o disposto no n.º 1 do art. 2.º do RJAT e do art. 2.º, alínea b), da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março. Com efeito, este último diploma, que determina o âmbito da vinculação da AT à jurisdição arbitral, exceciona da competência do tribunal arbitral as “… pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão”.
O pedido que foi submetido a este tribunal visa a obtenção de uma decisão que declare a ilegalidade dos atos de liquidação de IRC e de IVA relativos aos exercícios de 2008 e 2009. As liquidações adicionais em causa foram emitidas na sequência de declarações de substituição apresentadas pela Requerente após um procedimento inspetivo em que os serviços da AT entenderam existir fundamentos para a determinação da matéria coletável da Requerente por métodos indiretos.
Embora o pedido de pronúncia arbitral tenha sido apresentado na sequência do indeferimento das reclamações graciosas apresentadas (atos de segundo grau), o que verdadeiramente está em causa são as liquidações adicionais de imposto, cujo pedido de anulação a Requerente fundamenta em razões que se relacionam com a processo de determinação indireta da matéria coletável que precedeu a apresentação de declarações de substituição.
O artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril (Orçamento do Estado para 2010), autorizou o Governo a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, de modo a que o processo arbitral tributário constituísse um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária.
A autorização legislativa consagrada no artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, veio a ser concretizada através da aprovação do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT).
A redação atualmente em vigor do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT (cuja epígrafe é “Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável”) é a seguinte:
“1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais; (…)”.
Dado o carácter voluntário da sujeição à jurisdição arbitral, o n.º 1 do artigo 4.º do RJAT determina que:
“1 — A vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.”
Tal vinculação concretizou-se com a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, cujo artigo 2.º (cuja epígrafe é “Objeto de Vinculação”), dispõe como segue:
“Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com exceção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
b) Pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indiretos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.”
(sublinhado nosso)
Importa, assim, aferir se a matéria em litígio se encontra abrangida por esta exclusão, sendo de relembrar que a Requerente pretende, em última análise, a apreciação dos atos de liquidação de IRC e de IVA decorrentes, ainda que indiretamente, da aplicação de métodos indiretos de determinação da matéria tributável.
A Requerente pretende a anulação das liquidações adicionais de imposto, com fundamento na ilegalidade da decisão da reclamação graciosa e em ilegalidades várias do procedimento de revisão (incluindo a falta de pressupostos para a aplicação de métodos indiretos e a errónea quantificação da matéria tributável e, consequentemente, do imposto).
É um facto que o faz impugnando liquidações adicionais emitidas na sequência de declarações de substituição por si mesma apresentadas – o que, a seu ver, consubstanciaria uma interposição de atos entre a avaliação indireta e a presente impugnação que justificaria a não aplicação da alínea b) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011.
Contudo, é também um facto que os atos de liquidação adicional impugnados são indissociáveis da avaliação indireta da matéria tributável feita durante o procedimento inspetivo – sendo, aliás, essa mesma avaliação indireta o denominador comum de todos os atos sub judice. Isso mesmo fica demonstrado, também, pelo facto de todos os argumentos invocados pela Requerente para justificar o pedido de anulação dos atos de liquidação adicional serem referentes à avaliação indireta. Não existe, aliás, um único argumento que seja autónomo da avaliação indireta e atinente apenas aos atos de liquidação adicional propriamente ditos – o que, de resto, tendo em conta que os atos de liquidação adicional procedem de declarações de substituição apresentadas pela própria Requerente – se justificaria apenas em casos muito limitados.
Neste sentido se pronunciou já o Tribunal Arbitral, no Acórdão proferido no Processo n.º 17/2012-T, no qual pode ler-se:
“Os actos de liquidação de impostos definem de forma unilateral e autoritária a prestação tributária dos contribuintes, consubstanciando actos administrativos impositivos com efeitos externos.
Enquanto acto administrativo, a liquidação tributária partilha das características dos actos administrativos em geral.
A liquidação, em sentido estrito, é a última fase do procedimento administrativo de liquidação tributária, regulado nos artigos 59.º a 64.º do CPPT, constituído por uma série de actos destinados a obter um resultado jurídico final, o montante de imposto a entregar nos cofres do Estado.
Portanto, a liquidação hoc sensu é a fase que se traduz na aplicação da taxa de imposto à matéria colectável já determinada, não sendo os actos preparatórios autonomamente impugnáveis, podendo sim ser postos em causa quando da impugnação do acto definitivo, final, em obediência ao princípio da impugnação unitária expresso no artigo 54.º do CPPT.”
Sobre a vinculação da Administração Tributária à arbitragem tributária, refere o Ilustre Conselheiro Jorge Lopes de Sousa no Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 2013, a páginas 138-139:
““Embora a alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT inclua nas competências dos tribunais arbitrais a declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável e determinação da matéria colectável em que foram utilizados métodos indirectos, a Administração Tributária afastou essa possibilidade ao excluir expressamente da sua vinculação aqueles tribunais as «pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributária, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão» – alínea b) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
Se, eventualmente, esta restrição à vinculação vier a ser eliminada, é de notar que no n.º 5 do artigo 86.º da LGT se impõe, como condição da impugnação judicial da impugnação (…).”
Ora, se a Administração Tributária não se encontra vinculada à arbitragem tributária nesta matéria – como entendemos ser o caso, o Tribunal não pode pronunciar-se sobre os atos decorrentes da aplicação de métodos indiretos, nem mesmo quando entre o procedimento de determinação da matéria coletável por métodos indiretos e a impugnação dos atos de liquidação adicional dele consequentes se interpõem declarações de substituição apresentadas pela própria Impugnante. Parece-nos, assim, que esta situação se enquadra na previsão da norma resultante da alínea b) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. Entendê-la de outro modo consubstanciaria uma interpretação inconsistente e incongruente com as normas atrás citadas e que determinam o âmbito da competência dos tribunais arbitrais que funcionam junto do CAAD.
Neste sentido se pronunciou o Tribunal Arbitral, no Acórdão proferido no Processo n.º 17/2012-T, no qual pode ler-se:
“A quantificação da matéria tributável por métodos indirectos constitui o objecto da decisão do procedimento de revisão que está excluída da jurisdição arbitral tributária, nos termos da alínea b) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-B/2011, de 22 de Março.
O acto de liquidação de imposto corporiza tal decisão, concretizando-a, e não pode ser objecto de apreciação individualizada, pois não reveste autonomia relativamente àquela. Aliás tal apreciação, a ser admitida (o que, reitera-se, não é o caso), teria de ficar restrita a vícios formais relativos à liquidação, pois quanto à matéria substantiva e à sua fundamentação, na medida em que está vertida integralmente na decisão do procedimento de revisão, cujo conhecimento é subtraído à jurisdição arbitral, estaria a mesma necessariamente fora do âmbito desta jurisdição.
(…)
“Na verdade, a falta de vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira ao tribunal arbitral traduz-se na imediata impossibilidade da eficácia subjectiva de um julgado que, se fosse proferido por este tribunal nas matérias excluídas, não produziria quaisquer efeitos sobre a parte que haveria de o executar, consubstanciando, portanto, falta de jurisdição, a qual é delimitada em função da matéria e, portanto, consubstancia a incompetência material deste tribunal.
É, pois, para nós inequívoco, que a falta de jurisdição do tribunal para dirimir o litígio configura efectivamente a excepção dilatória de incompetência e não qualquer outra, fazendo-se, atenta a natureza arbitral do tribunal, uma leitura integrada do nº1 do artigo 2º do RJAT, com o nº 1 do seu artigo 4º e, ainda, com o mencionado artigo 2º da Portaria de Vinculação acima transcritos”.
Face ao exposto, conclui-se pela procedência da exceção de incompetência material suscitada pela Requerida, a qual obsta ao conhecimento do mérito do pedido e conduz à absolvição da Requerida da instância – e, assim, sendo, fica prejudicada a apreciação da segunda exceção invocada pela AT, relativa à impropriedade do meio processual.
IV – DECISÃO
Termos em que este Tribunal Arbitral decide:
(i) Julgar procedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal arbitral, em razão da matéria;
(ii) Absolver a Requerida da instância, ficando, assim, prejudicada a apreciação do mérito da causa;
(iii) Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.
V – Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 27.936,58 (vinte e sete mil e novecentos e trinta e seis euros e cinquenta e oito cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VI – Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.530,00 (mil, quinhentos e trinta euros) nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a suportar pela Requerente.
Lisboa, 07 de julho de 2019
A Árbitro
(Raquel Franco)