Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 543/2018-T
Data da decisão: 2019-06-06  IVA  
Valor do pedido: € 1.681.797,79
Tema: IVA – artigo 2.º, n.º 1, alínea g) – inversão do sujeito passivo – vendas locais por sujeito passivo sem sede, estabelecimento estável, ou representante fiscal, mas registado para efeitos de IVA em Portugal.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Dra. Alexandra Coelho Martins (árbitro-presidente), Dra. Catarina Belim e Dr. Leonardo Marques dos Santos (árbitros-vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 16 de janeiro de 2019, acordam no seguinte:

 

I.             RELATÓRIO

 

1.            A... GMBH, doravante designada por “Requerente”, número de pessoa coletiva e de identificação fiscal em Portugal ..., com sede em ..., ... ..., Alemanha, tendo decorrido o prazo de indeferimento tácito da Reclamação Graciosa apresentada contra o ato tributário de demonstração de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), com o n.º 2017..., referente ao período de tributação de agosto de 2016, que corrigiu imposto no valor de € 1.681.197,79, na sequência de uma inspeção a um pedido de reembolso de IVA, apresentou, em 2 de novembro de 2018, pedido de constituição de Tribunal Arbitral Coletivo, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, conjugados com o artigo 102.º, n.º 1, alínea d) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”).

 

2.            A Requerente pretende: (a) a declaração de ilegalidade, e consequente anulação, do ato tributário de demonstração de liquidação de IVA com fundamento em erro nos pressupostos, de facto e de direito, (b) a restituição do montante de IVA, de € 1.681.197,79, inscrito nas declarações periódicas referentes aos meses de maio, junho, julho e agosto de 2016 e, por fim, (c) a condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios sobre esse valor, à taxa legal, até ao reembolso integral da quantia devida.

 

3.            Invoca, para tanto, que as correções impugnadas se alicerçam numa interpretação ilegal da AT quanto ao artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do Código do IVA, com base no ponto 1 do Ofício-Circulado n.º 30073/2005, de 24 de março, da Direção de Serviços do IVA, no sentido de que um sujeito passivo que não tem sede, estabelecimento estável, domicílio ou representante fiscal em Portugal, mas com registo para efeitos de IVA no nosso país, deve liquidar IVA nas vendas localizadas em território nacional a adquirentes que sejam sujeitos passivos do imposto aqui estabelecidos e não aplicar o mecanismo de inversão do sujeito passivo previsto naquela norma. 

 

4.            De acordo com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a) e 6.º, n.º 2, alínea a) do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD, em 16 de janeiro de 2019, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.

 

6.            Notificada para o efeito, em 14 de fevereiro de 2019, a Requerida apresentou resposta, na qual invocou a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral para conhecer do pedido deduzido pela Requerente.

 

7.            No entender da Requerida, o pedido tem por objeto o ato de indeferimento (parcial) do reembolso de IVA solicitado pela Requerente na declaração periódica de agosto de 2016, o qual está fora da competência do Tribunal Arbitral, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do RJAT e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, por não traduzir um ato tributário de liquidação.

 

8.            A Requerida defendeu-se ainda por impugnação.

 

9.            Nesta sede, remete para a factualidade constante do relatório final da inspeção tributária e salienta que a Requerente liquidou IVA nos termos do artigo 1.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA nas vendas realizadas à empresa do grupo “B..., SARL”, mas que para outros clientes, igualmente sedeados em território nacional, a Requerente efetuou as vendas com aplicação da regra da inversão do sujeito passivo prevista no artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do Código do IVA (i.e., não liquidou este imposto).

 

10.          Conclui peticionando a improcedência do pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), por não provado, e a consequente absolvição da Requerida de todos os pedidos, com as legais consequências.

 

11.          A Requerente exerceu o contraditório quanto à matéria de exceção invocada pela AT, em 4 de março de 2019.

 

12.          Neste âmbito, indicou que o objeto do PPA é apenas e só o ato tributário de liquidação adicional de IVA com o n.º 2017..., referente ao período de agosto de 2016, e não o pedido de reembolso.

 

13.          Mais esclareceu que o objeto imediato do pedido apresentado é o indeferimento tácito da reclamação graciosa deduzida contra aquele ato de liquidação, sendo o objeto mediato do pedido o ato de liquidação de IVA controvertido.

 

14.          A reunião do artigo 18.º do RJAT foi dispensada, sem oposição das Partes.

 

15.          As Partes foram notificadas para apresentar alegações finais facultativas, tendo a Requerente apresentado alegações no dia 19 de março de 2019, mantendo, na essência, os argumentos que constam do PPA.

 

16.          A Requerida não procedeu à junção do processo administrativo e optou por não alegar.

 

***

 

17.          Em face do exposto, importa delimitar as principais questões decidendas.

 

18.          Em primeiro lugar, há que apreciar e decidir a questão prévia levantada pela Requerida sobre a incompetência material e consequente falta de jurisdição do Tribunal Arbitral para conhecer do pedido deduzido pela Requerente.

 

19.          Caso não proceda a exceção de incompetência material suscitada, cumpre apreciar a questão de mérito, que é estritamente de direito e se centra na aplicação do artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do Código do IVA às vendas locais, i.e., às transmissões de bens efetuadas em território português e aqui localizadas, realizadas por sujeitos passivos sem sede, estabelecimento estável, domicílio ou representante fiscal em território português, mas registados (apenas) para efeitos de IVA em Portugal.

 

II.            DA INCOMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL

 

20.          Na sequência do referido acima, a AT vem defender a incompetência material deste Tribunal invocando para tal os argumentos que seguidamente se sumariam:

a.            A Requerente, ao formular o PPA, designadamente nos artigos 18.º a 32.º da referida peça, identifica como objeto dos presentes autos o ato de indeferimento do reembolso que havia solicitado com a submissão da declaração periódica de agosto de 2016, no montante global de € 1.855.589,79.

b.            Defende a AT, que a presente instância arbitral se mostra materialmente incompetente para conhecer de tal pedido (recorrendo a diversos acórdãos para demostrar a sua posição, e.g., Acórdãos Arbitrais de 29 de janeiro de 2018, proferido no âmbito do processo n.º 137/2017-T; de 3 de outubro de 2015, proferido no âmbito do processo n.º 48/2015-T; de 4 de abril de 2014, proferido no processo n.º 238/2013-T; bem como o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (“TCA-S”) de 28 de abril de 2016, proferido no processo n.º 09286/16, e do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), de 12 de julho de 2007, proferido no processo n.º 0303/07);

c.            O direito ao reembolso de IVA não assume o carácter de um verdadeiro direito potestativo que se imponha, sem mais, de forma inelutável, a quem o deve prestar;

d.            Há um dado fundamental, que diz respeito à aferição da legitimidade do reembolso face aos sujeitos passivos do imposto e essa legitimidade só se afere, nomeadamente, em função da legitimidade do exercício do direito à dedução, para efeitos de IVA;

e.            No caso dos presentes autos, a aferição da legitimidade do reembolso foi realizada através do procedimento inspetivo, efetuado ao abrigo da ordem de serviço n.º OI2016..., tendo-se determinado pela sua ilegitimidade parcial, no montante de € 1.681.197,79;

f.             De acordo com a vontade expressa do legislador no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, a jurisdição arbitral não é competente para conhecer da pretensão da Requerente, relativamente ao pedido que formula, já que o ato de indeferimento de um pedido de reembolso não traduz um ato tributário de liquidação;

g.            Da jurisprudência nacional (nomeadamente do Acórdão do STA, de 11 de junho de 2008, lavrado no âmbito do processo n.º 0115/08 e do Acórdão lavrado pelo Pleno da Secção do Contencioso Tributário, no âmbito do processo n.º 0239/16, de 21 de fevereiro de 2018) infere-se que as decisões de pedidos de reembolsos não conhecem a natureza de atos de liquidação, sendo estranhas a estes, e só aproveitando o mesmo meio de reação por existir uma norma especial, plasmada no Código do IVA (artigo 22.º, n.º 13) que prevê que dos despachos que indeferem pedidos de reembolsos cabe impugnação judicial. Assim, a análise e decisão dos pedidos de reembolsos não comporta a apreciação da legalidade de um ato de liquidação, todavia o legislador, na sua liberdade de conformação legislativa, optou por prever como mecanismo processual a impugnação judicial;

h.            Apesar de a regra geral ditar que em casos como o dos indeferimentos de pedidos de reembolsos cabe naturalmente a ação administrativa, a norma do artigo 22.º, n.º 13 do Código do IVA postula uma regra diferente, não deixando margem para dúvidas que na situação em apreço o contribuinte somente pode e deve lançar da figura da impugnação judicial;

i.             Não se subsumindo a apreciação de um reembolso  de IVA à apreciação da legalidade de um ato de liquidação, a questão trazida à presente demanda não cabe nas competências desse Tribunal, nos termos e para os efeitos do artigo 2.º, n.º 1 do RJAT e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março (Portaria de Vinculação);

j.             Em sede arbitral, não existe o recurso de direito e de facto, em regra, a interpor para o Tribunal Central Administrativo competente, dado as Partes envolvidas terem, neste ponto específico, expressamente renunciado ao auxílio dos Tribunais superiores. Contudo, tal renúncia aconteceu quanto às matérias da competência do CAAD, de onde não consta a apreciação de atos administrativos-tributários que não implicam a apreciação da legalidade da liquidação de tributos, como acontece com os indeferimentos de reembolsos. Assim, sujeitar os indeferimentos de pedidos de reembolsos à competência do CAAD, mais não é que sentenciar tais matérias à insusceptibilidade de serem revistas em 2.ª instância, através do recurso ordinário previsto no artigo 280.º do CPPT.

k.            Uma interpretação normativa contrária à ora explanada viola frontalmente o princípio do livre acesso aos tribunais, na vertente do duplo grau de decisão, decorrentes dos artigos 20.º e 268.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).

 

21.          Respondendo à matéria de exceção, a Requerente invocou, em suma, que:

a.            Os argumentos invocados pela AT não podem manifestamente proceder no caso vertente;

b.            O objeto do presente PPA é, apenas e só, o ato tributário de liquidação adicional de IVA com o n.º 2017..., referente ao período de agosto de 2016, tendo este pedido sido expresso com clareza quer no introito da peça, quer no Capítulo II, quer até no pedido final;

c.            O objeto do pedido é apenas a (i)legalidade daquele ato de liquidação, em cumprimento e em respeito, de resto, do preceituado no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT;

d.            Isso não invalida, salvo melhor opinião – e um dos Acórdãos Arbitrais referidos na Resposta da AT, in casu, no processo n.º 137/2017-T, não permite sustentar o contrário – que o Tribunal Arbitral possa, em consequência do provimento do pedido de anulação daquele ato de liquidação, condenar também a AT na restituição do montante do reembolso por si solicitado. Condenação essa que, obviamente, será apenas concretizada em sede de execução espontânea ou judicial da decisão arbitral que vier a ser proferida – em caso de deferimento do pedido;

e.            Em momento algum se incluiu no âmbito do objeto do presente pedido a apreciação daquele pedido de reembolso de IVA, pois, tal como muito bem nota a AT, essa avaliação foi feita em sede inspetiva e constitui um ato administrativo não sindicável perante os tribunais arbitrais;

f.             Subjacente à emissão do ato de liquidação de IVA em crise, esteve um procedimento inspetivo, no qual os competentes serviços da AT formularam conclusões e invocaram fundamentos que determinaram o indeferimento do pedido de reembolso, mas também, e na mesma medida, a emissão desse ato de liquidação;

g.            O Tribunal Arbitral não pode deixar de se pronunciar sobre a validade e/ou a legalidade das correções que se encontram plasmadas no Relatório de Inspeção Tributária elaborado no âmbito daquela ação inspetiva, pois as mesmas consubstanciam a própria fundamentação do ato tributário objeto do presente pedido;

h.            Não se trata de reapreciar o pedido de reembolso de IVA formulado, trata-se outrossim de se pronunciar sobre as correções efetuadas pela AT e que geraram, por um lado, o indeferimento desse pedido e, por outro lado, e no que importa para o caso vertente, a emissão de um ato de liquidação adicional de IVA, sindicável nos termos da referida norma do RJAT. Ou seja, os fundamentos invocados pela AT em sede inspetiva – ainda que os mesmos se estendam também ao próprio pedido de reembolso – terão que ser apreciados nesta sede pelo Tribunal, pois só conhecendo desses fundamentos será possível proferir uma decisão de mérito quanto ao ato de liquidação de IVA sindicado.

 

22.          Neste contexto, entende este Tribunal assistir razão à Requerente. Na verdade, sem prejuízo do efeito que uma decisão favorável possa ter relativamente ao reembolso do IVA, o que está em causa nos presentes autos é ainda a discussão de legalidade da liquidação. Assim, entende o presente coletivo que o CAAD tem competência para decidir o presente caso ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1 do RJAT.

 

23.          Repare-se que existe uma questão jurídica prévia que, não obstante ter, naturalmente, efeitos no reembolso do IVA, se assume como logicamente anterior e que respeita à necessidade, ou não, de liquidar IVA nas vendas a adquirentes residentes em território nacional.

 

24.          Esclarecida esta questão, em tese, o reembolso pode, ainda assim, ser deferido ou indeferido, nomeadamente tendo por base qualquer outro requisito do regime de reembolso.

 

25.          Salienta-se ainda, em linha com o que foi decidido no processo n.º 238/2013-T, com o qual concordamos, que o artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, autorizou o Governo a legislar “no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”.

 

26.          Sem prejuízo de o RJAT ter concretizado a mencionada autorização legislativa com um âmbito mais restrito do que o inicialmente previsto, não contemplando designadamente uma competência alternativa à da ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária, desde a sua génese, o processo arbitral tributário teve como objetivo assumir-se como um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial.

 

27.          O âmbito da jurisdição arbitral tributária está, assim, delimitado, em primeira linha, pelo disposto no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT que enuncia os critérios de repartição material da competência, abrangendo a apreciação de pretensões que se dirijam à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos.

 

28.          Ora, a AT procedeu à liquidação de IVA (cfr. Liquidação n.º 2017..., junta ao PPA como Doc. 1).

 

29.          Ou seja, face aos elementos documentais disponíveis, foi efetivamente praticado um ato de liquidação, reconduzível à previsão do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, suscetível de ser apreciada pelo presente Tribunal na medida em que se enquadra, diretamente, no âmbito das suas competências, pelo que a invocada exceção de incompetência deve ser considerada improcedente.

 

30.          Por outro lado, tem-se entendido que, quando um administrado seja induzido à utilização de um determinado meio processual por uma determinada conduta da Administração, não poderá esta pretender obstar ao conhecimento do mérito do pedido, escudando-se na inadequação do meio processual cuja utilização ela própria, objetivamente, induziu (cfr. Acórdãos do STA: da Secção do Contencioso Administrativo, de 5 de maio de 1987, processo n.º 23205, de 24 de outubro de 1996, processo n.º 39578, de 31de maio de 2005, processo n.º 46544; da Secção do Contencioso Tributário, de 9 de setembro de 2009, processo n.º 461/09; e do CAAD, de 24 de outubro de 2014, processo n.º 185/2014-T, de 6 de abril de 2017, processo n.º 240/2016-T).

 

31.          A este respeito, importa salientar que da notificação da demonstração de liquidação, resulta a possibilidade de a Requerente, querendo, poder deduzir, relativamente à “liquidação efectuada (…) no prazo de 120 dias, reclamação graciosa a apresentar no competente Serviço de Finanças, ou, no prazo de três meses, impugnação judicial a apresentar nos competentes Tribunal Tributário ou Serviço de Finanças, nos termos dos artigos 70º e 102º e seguintes do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT)”.

 

32.          Assim, assumindo-se a arbitragem tributária como uma alternativa à impugnação judicial, sobretudo quando o que está em causa é a ilegalidade de uma liquidação de IVA, considera este Tribunal não existir qualquer limitação da sua competência para decidir do presente processo.

 

33.          Neste contexto, sendo a própria Administração Tributária que na notificação identificou o ato notificado como sendo de liquidação de IVA, induzindo a Requerente à utilização de um meio processual adequado à respetiva impugnação, sempre, também por esta via, seria de julgar improcedente a exceção suscitada pela AT.

 

34.          Por último, como também foi decidido no processo n.º 660/2017-T, de 12 de março de 2019, deste Centro de Arbitragem Administrativa, em “sede de IVA, a liquidação tem por base o sistema declarativo (autoliquidação), sendo um ato complexo só plenamente entendível se considerado em sentido amplo.” ou seja “só entendível tendo em conta o «mecanismo do crédito e o encadeamento da liquidação-dedução» que, como refere Sérgio Vasques, servem para «assegurar a neutralidade típica do IVA, prevenindo o efeito cumulativo e garantindo que o imposto é suportado em definitivo pelo consumidor final»”.

 

35.          Acrescenta ainda o referido Acórdão, com relevância para os presentes autos, que decorre, “da estrutura do próprio CIVA, estarmos perante uma noção ampla de liquidação, a qual abrange as deduções e as regularizações de imposto (artigos 19.º a 26.º do CIVA), bem como liquidações administrativas decorrentes de atos de fiscalização e determinação oficiosa do imposto (Capítulo VI do CIVA).

182. É assim o caso das liquidações adicionais reguladas pelo art.º 87.º do CIVA, relativo ao «momento e modalidades do exercício do direito à dedução». No n.º 1 deste artigo, estipula-se que, sem prejuízo do caso das liquidações com base em presunções e métodos indiretos, a efetuar nos termos da LGT, a AT «procede à retificação das declarações dos sujeitos passivos, quando fundamentadamente considere que nelas figure um imposto inferior ou uma dedução superior aos devidos, liquidando adicionalmente a diferença».

183. E no nº 5 deste mesmo artigo, diz-se que se «passados 12 meses relativos ao período em que se iniciou o excesso, persistir crédito a favor do sujeito passivo superior a € 250, este pode solicitar o seu reembolso». Este surge assim, ao lado da dedução por subtração e do reporte, como modalidade de exercício do direito à dedução e, consequentemente, pode ser visto como elemento integrante da própria liquidação de imposto, distinguindo-se claramente de formas de devolução do imposto, como, vg., a restituição do IVA já pago aos partidos políticos ou à Igreja.

184. É nesse o sentido que deve entender-se a posição de José Xavier de Basto e Gonçalo Avelãs Nunes, quando afirmam que «um reembolso contestado pela administração fiscal em tudo equivale a uma liquidação de imposto e os meios de reagir contra esse ato da administração, que nega ou revoga um reembolso, são idênticos aos que a lei põe à disposição dos contribuintes para anular, no todo ou em parte, a liquidação do imposto.»

185. De facto estamos, nestes casos, perante uma simples mudança da forma da liquidação: uma autoliquidação converte-se em liquidação administrativa adicional. O facto de, no plano contabilístico, tal facto se pressupor um acerto de contas não altera a natureza jurídica do ato.

186. Assim, os documentos emanados da AT e notificados à Requerente dando conta da "demonstração de liquidação do IVA", do "número liquidação" e da "data liquidação" são, no plano jurídico, pertinentes e corretas”.

 

36.          Desta feita, também por força da latitude que preside ao entendimento do que se assume como uma liquidação para efeitos de IVA, se deve considerar que o recurso, nos presentes autos, à jurisdição arbitral, não merece censura, julgando-se improcedente a exceção de incompetência material invocada pela Requerida.

 

III.          SANEAMENTO

 

37.          O Tribunal é competente.

 

38.          O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado a partir dos factos previstos no artigo 102.º n.º 1, alínea d) do CPPT.

 

39.          O processo não enferma de vícios que o invalidem na totalidade.

 

40.          As partes têm personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se legítimas.

 

IV.          MATÉRIA DE FACTO

 

A.           Factos provados

 

41.          Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que o Tribunal julga provados:

a.            A Requerente é uma sociedade comercial alemã que se encontra registada em Portugal apenas para efeitos de IVA, desde 20 de setembro de 2012, e está enquadrada no regime normal mensal (cfr. cadastro fiscal junto pela Requerente como Doc. 3 do PPA e página 5 do Relatório Final de Inspeção junto como Doc. 5 do PPA, doravante, “Relatório de Inspeção”).

b.            A Requerente prossegue a atividade principal de “Comércio por grosso não especializado” – CAE 46900 e a atividade secundária de “Comércio por grosso de alimentos para animais” – CAE 46211 (cfr. Doc. 3 do PPA e página 5 do Relatório de Inspeção).

c.            A Requerente não é residente, nem tem sede, estabelecimento estável ou representante nomeado em Portugal (cfr. Doc. 3 do PPA e página 5 do Relatório de Inspeção).

d.            A Requerente adquire, em Portugal, cereais provenientes de outros Estados-Membros da União Europeia, por via de aquisições intracomunitárias, e também de países terceiros, por via de importações (cfr. página 5 do Relatório de Inspeção).

e.            Subsequentemente, a Requerente vende os referidos cereais a clientes estabelecidos em Portugal (vendas domésticas) (cfr. página 5 do Relatório de Inspeção).

f.             A Requerente não liquidou IVA nas vendas locais efetuadas a clientes estabelecidos em Portugal, por aplicação do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do Código do IVA (cfr. artigo 15.º do PPA e pontos 3.1 e 3.2 do Relatório de Inspeção).

g.            Nos períodos de maio a agosto de 2016, a Requerente efetuou vendas à empresa C..., SA “C...” – NIF ... – sem liquidação de IVA, com a menção de “Autoliquidação”, por aplicação do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do Código do IVA (cfr. ponto 3.1., alínea b) da página 6 e ponto 3.2, alínea g) da página 7 do Relatório de Inspeção).

h.            A “C...” perante esses documentos, procedeu à autoliquidação e dedução do IVA (cfr. ponto 3.2, alínea g) da página 7 do Relatório de Inspeção).

i.             A Requerente emitiu faturas à empresa B... SARL – NIF ... com liquidação de IVA à taxa normal (cfr. ponto 3.2, alínea g) da página 8 do Relatório de Inspeção, não contradito pela Requerente).

j.             A empresa B... SARL, é uma empresa estabelecida na Suíça, sem sede ou estabelecimento estável em Portugal, com o número de IVA suíço CHE ... e registo (apenas para efeitos) de IVA em Portugal, sob o número PT ... (cfr. ponto 3.2., alínea g), páginas 7 e 8 do Relatório de Inspeção).

k.            Por ter acumulado crédito de IVA nos períodos entre 2015/06 e 2016/08, a Requerente solicitou, com referência ao período de agosto de 2016, o reembolso de IVA em crédito (a seu favor) no valor de € 1.855.589,79 (cfr. página 5 do Relatório de Inspeção).

l.             Na sequência do pedido de reembolso, a Requerente foi objeto de uma ação de inspeção em IVA cujo objeto foi a análise do pedido de reembolso solicitado, realizada pelos Serviços de Inspeção Tributária sob a Ordem de Serviço n.º OI2016... (cfr. página 5 do Relatório de Inspeção).

m.          A Requerente foi notificada do Projeto de Relatório de Inspeção, que se converteu em definitivo, tendo sido realizadas correções de IVA pelos Serviços de Inspeção Tributária à Requerente no valor global de € 1.681.197,79, por alegada falta de liquidação deste imposto nos períodos de maio, junho, julho e agosto de 2016 (cfr. ponto IV da página 9 do Relatório de Inspeção), com os fundamentos que se transcrevem:

“[…]

3.1. Descrição dos factos

Da análise efetuada às declarações e documentos exibidos pelo sujeito passivo, salientamos os seguintes pontos:

a)            As operações ativas, até setembro/2015 reportam-se a vendas no mercado nacional e como tal sujeitas a IVA ao abrigo do artigo 1º do CIVA. Durante os meses de outubro/2015 a maio/2016 a empresa não declarou quaisquer movimentos tanto de operações ativas. De maio a agosto de 2016 foram declaradas operações ativas no mercado interno, sem liquidação de IVA, com a menção de «Autoliquidação»

b)           De junho a setembro de 2015 o sujeito passivo faturou essencialmente á empresa «C... SA – NIF ...», cereais com liquidação de IVA á taxa reduzida. A partir de maio/ 2016 as vendas para a empresa «C... », efetuadas pela «A... », foram sem liquidação de IVA, com a menção de «Autoliquidação». Questionado o sujeito passivo quanto ao motivo da isenção, este respondeu que foi aplicado o estabelecido na alínea g) do nº 1 do artigo 2º do CIVA.

c)            No que concerne às operações passivas, os montantes inscritos no campo 21 reportam-se maioritariamente a importações de cereais, ficando armazenado nos silos da «D... SA» na ... ou no ... . Consequentemente, foi liquidado imposto na Alfândega de entrada em território Nacional, imposto este que confere direito à dedução.

3.2- Conferências (Testes e Cruzamentos Informação)

Foram desenvolvidas diversas diligências no sentido de validar o montante de reembolso de IVA em análise, tendo para tal solicitado mapas de apoio ao preenchimento das declarações periódicas, bem como, cópia dos documentos de suporte dos movimentos a que se referem as operações ativas e passivas declaradas pelo sujeito passivo, das quais damos conta seguidamente:

a)            O cereal proveniente de países terceiros, entra em território nacional via marítima, sendo descarregado diretamente para silos, de onde sai progressivamente para os clientes finais (empresas nacionais), permanecendo em território nacional.

d)           Da análise comparativa por navios, entre compras (importações) e vendas, podemos constatar que as toneladas compradas foram totalmente vendidas em Portugal e os valores unitários de compra são (na sua maioria) iguais ou inferiores aos vendidos.

e)           Salientamos as exceções detetadas em dois navios (...e o...), em que a importação teve por base faturas em dólares emitidas com o NIF da B... na Suíça (...) para a A... Germany, sem NIF. Estes cereais foram desalfandegados em Portugal pela A... com o NIF Português..., tendo sido liquidado o correspondente IVA, pela Alfandega competente. Nestes dois casos, constatámos que os valores unitários de compra foram superiores aos de venda, conforme ilustrado no quadro seguinte:

Navio: ...

Importação                       

Data

aceitação            Quantidade        Valor Unit           Base

tributavel            IVA                        Diferencial

29-07-2015         63.799,429          187,51   11.963.011,04    717.780,66          Deduzido           

Venda                 

Data factura       Quantidade        Valor Unit           Base

tributavel            IVA                       

Diversas              63.633,414          169,50   10.785.863,67    647.151,82          Liquidado           

                                                                                              -70.628,84

 

Navio: ...

Importação                       

Data

aceitação            Quantidade        Valor Unit           Base

tributavel            IVA                        Diferencial

17-08-2016         31.744,230          425,624                13.511.114,51    810.666,87          Deduzido           

Venda                 

Data factura       Quantidade        Valor Unit           Base

tributavel            IVA                       

18-08-2016         31.744,230          406,325                12.898.459,32    773.907,56          Liquidado           

                                                                                              -36.759,31

 

Da análise efetuada, constatamos que as faturas de compra/importação foram emitidas em USD tendo sido utilizado o câmbio do dia para conversão em euros. A quando da venda, no que concerne ao navio «...» as vendas foram para a empresa «C... SA», tendo sido efetuadas a valor unitário inferior ao de aquisição. Em relação ao navio «...», a venda foi efetuada no dia seguinte ao da importação, para a B... – NIF..., tendo a fatura sido emitida em USD, e em que o câmbio do dia de emissão da fatura, era inferior ao do dia da aceitação da importação, tendo provocado um diferencial no valor unitário, na sequência de diferenças cambiais.

Este diferencial justifica em parte o apuramento de crédito de imposto em alguns períodos.

f)            Foram efetuados cruzamentos de informação com as empresas/entidades que direta ou indiretamente, se encontram envolvidas na atividade da empresa em Portugal, como se descreve seguidamente:

- A empresa detentora dos silos –D..., SA – NIF...: apurou-se que a gestão dos conteúdos dos silos é da competência das empresas que contratam o aluguer, no caso em apreço as empresas B... SARL na Suíça (NIF CH...) e A... na Alemanha (NIF DE...), para as quais foram emitidas pela «D... », faturas de serviços de descarga dos navios para os silos. Esta faturação encontra-se isenta nos termos da alínea p) do artigo 14º do CIVA, uma vez que estamos perante prestações de serviços conexas com transmissões de bens apresentados na alfândega e colocados em depósitos provisórios alíneas b) i e c) do artigo 15º do CIVA. A «D...», consta da lista de armazéns de depósito temporário autorizados.

Assim, concluímos que, o aluguer em Portugal, dos silos para armazenamento temporário dos cereais, foi efetuado pelas empresas B... na Suíça e na Alemanha, utilizando os respetivos NIF’s dos países de origem. Deste modo não são gasto do NIF português..., o que justifica a ausência deste tipo de gastos no sujeito passivo em análise.

- Cliente –D..., SA – NIF...: as faturas recebidas e contabilizadas reportam-se a fornecimentos de cereais, transportados dos silos na ... até às instalações da «D... »,em território nacional, tratando portanto de operações internas. Até setembro/2015, as faturas possuíam tributação em IVA á taxa normal, nos termos do artigo 1º do CIVA. De outubro/2015 a abril/2016 não foram efetuadas operações, por conseguinte, não existiu faturação entre as duas empresas (informação confirmada com recurso á aplicação E-factura). De maio a dezembro/2016 as transações, com a A…, encontram-se suportadas por faturas sem liquidação de IVA e com a menção de «IVA autoliquidação». A«D...» perante esses documentos, procedeu á liquidação e dedução do IVA.

Esta situação levanta algumas questões, que serão abordadas no ponto 3.3 desta informação.

- Cliente –B...– NIF...: as faturas recebidas e registadas, possuem IVA á taxa normal, e constam das declarações periódicas da empresa. Salientamos que este NIF corresponde ao registo de IVA em Portugal da empresa Suíça com o mesmo nome, não possuindo em Portugal estabelecimento estável, tendo nomeado representante em sede de IVA e IRC.

Salientamos as relações especiais entre as duas empresas, emitente e adquirente. Segundo informação obtida junto do representante da B... em Portugal, não existem comprovativos financeiros das operações comerciais entre estas entidades por se tratarem de empresas do mesmo grupo.

Deste cruzamento, não resultaram situações anómalas formais, tendo as faturas sido registadas em ambas as empresas, e que esses bens foram comercializados em território nacional.

- Importações: junto da DSAFA – Direção Serviços Antifraude Aduaneira, foi recolhida informação no sentido de validar as importações registadas pelo sujeito passivo e cujo IVA foi deduzido nas respetivas DP’s. Após conferência, constatou-se que as importações efetuadas pelo NIF..., constam das DP’s entregues pelo sujeito passivo, fazendo parte do imposto dedutível no campo 21 – existências.

- Testes de coerência: cruzaram-se quantidades adquiridas/importadas e armazenadas nos silos, com as vendidas. Constatamos que nos items selecionados não foram detetadas diferenças dignas de nota. Salientamos que todos os bens importados foram vendidos no mercado nacional.

3.3- Fundamentos e correções

Do exposto nos pontos anteriores salientamos o fato das vendas terem sido totalmente efetuadas no mercado nacional, no entanto o sujeito passivo sujeitou umas faturas a IVA, enquanto que outras foram consideradas não sujeitas por aplicação do disposto no artigo 2º nº 1 alínea g) do CIVA. Ficou demonstrado nos pontos anteriores que os bens foram importados, e posteriormente vendidos no território nacional a empresas Nacionais. Assim todas as operações ativas efetuadas e declaradas pela empresa A... NIF..., foram no mercado nacional e sujeitas a imposto nos termos do artigo 1º do CIVA.

O sujeito passivo colocado perante esta situação, prestou os seguintes esclarecimentos;

«…a A... GmbH registo de IVA em Portugal aplicou o disposto no artigo 2.º, número 1, alínea g) do Código do IVA às operações ativas realizadas em Portugal, ou seja, nas transmissões de bens localizadas neste território.

Com efeito, a referida norma refere que são sujeitos passivos do IVA «As pessoas singulares ou coletivas referidas na alínea a), que sejam adquirentes em transmissões de bens ou prestações de serviços efetuadas no território nacional por sujeitos passivos que aqui não tenham sede, estabelecimento estável ou domicílio nem disponham de representante nos termos do artigo 30.º»

Ou seja, o artigo 2.º, número 1, alínea g) do Código do IVA consagra uma regra de inversão do sujeito passivo nas operações realizadas em Portugal por entidades que não tenham sede, estabelecimento estável ou domicílio em Portugal nem disponham de representante. De notar que a A... GmbH registo de IVA em Portugal não dispõe de sede, estabelecimento estável ou domicílio neste território nem nomeou representante fiscal…»

Sobre esta matéria, cabe-nos citar o ofício circulado 30073/2005 da DSIVA, que no que concerne à alínea g) do nº 1 do artigo 2º do CIVA diz que. E passamos a citar «as pessoas singulares ou coletivas referidas na alínea a), que sejam adquirentes em transmissões de bens ou prestações de serviços efetuadas no território nacional por sujeitos passivos que aqui não tenham sede, estabelecimento estável ou domicílio nem disponham de representante nos termos do artigo 30.º

No entanto, não obstante a inexistência de sede, estabelecimento estável ou domicílio, os sujeitos passivos não residentes estarão adstritos ao cumprimento das obrigações decorrentes do CIVA, caso aqui possuam um registo para efeitos de IVA, independentemente da possibilidade que lhe é dada de proceder à nomeação de um representante, sujeito passivo do imposto sobre o valor acrescentado no território nacional, munido de procuração com poderes bastantes.

Nestes casos, ficam nomeadamente sujeitos ao cumprimento das obrigações do Código do IVA, designadamente as de liquidação e pagamento do imposto devido pelas operações realizadas no território nacional ficando esvaziada de conteúdo a disposição contida na alínea g) do nº 1 do artigo 2º do CIVA.»

Assim, o sujeito passivo A...– NIF..., efetuou no período em análise unicamente operações ativas sujeitas a IVA de acordo com a alínea a) do nº 1 do artigo 1º do CIVA, não tendo aplicação a alínea g) do nº 1 do artigo 2º do CIVA, e consequente regra de inversão efetuada pelo sujeito passivo.

IV-Resumo Propostas

Pelo exposto concluímos que foram praticadas incorreções por incumprimento das normas estabelecidas na alínea a) do nº 1 do artigo 1º do CIVA, conjugado com o Ofício Circulado 30073/2005 da DSIVA.

Assim, passamos a decompor as situações em que não foi efetuada a liquidação de IVA, de acordo com o descrito anteriormente:

Mês       Base Tributável IVA (6%)

Maio     6.636.936,85      

Junho   6.641.277,19      

Julho     7.764.939,70      

Agosto 6.976.809,46      

                28.019.963,20    1.681.197,79

 

Consequentemente, apurou-se o montante de 1.681.197,79 € referente falta de liquidação de IVA.

De acordo com o exposto propõe-se a correção do montante de 1.681.197,79€ €, referente á falta de liquidação de imposto nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 1º do CIVA, da qual resulta o indeferimento parcial do pedido de reembolso de IVA supracitado.

V- Direito de Audição

A empresa foi notificada para exercer o Direito de Audição por carta registada datada de 2017/07/27 […].

Não tendo sido exercido pelo sujeito passivo o direito de audição prévia consignado na citada legislação, mantêm-se as correções propostas no capítulo anterior […].”

n.            Foi emitida pela Área de Cobrança do IVA a demonstração de liquidação de IVA com o número de liquidação n.º 2017..., relativa ao período de agosto de 2016, na qual é corrigido, a favor do Estado, IVA na importância de € 1.681.197,79, com o teor: “Fundamentação - liquidação adicional feita com base em correção efetuada pelos Serviços de Inspeção Tributária” (cfr. Doc. 1 junto com o PPA).

o.            A Requerente apresentou, em 18 de maio de 2018, Reclamação Graciosa contra o ato de liquidação de IVA aqui em causa (cfr. Doc. 2 do PPA).

p.            Em 2 de novembro de 2018, a Requerente, em discordância com o supra identificado ato de liquidação de IVA, apresentou no CAAD o pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo que deu origem ao presente processo.

q.            Até à data da submissão do pedido arbitral, a Reclamação Graciosa não havia sido decidida (cfr. artigo 32.º do PPA, não contradito pela AT).

 

B.            Factos não provados

 

a.            Os períodos a que se referem as faturas emitidas pela Requerente à B... SARL, com liquidação de IVA à taxa normal.

b.            Com relevo para a decisão não existe outra factualidade alegada que não tenha sido considerada provada.

 

C.            Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

42.          A factualidade provada teve por base a análise crítica dos documentos acima discriminados e não impugnados pelas partes, bem como a posição por estas assumida em relação aos factos. 

 

V.           DO MÉRITO

 

A.              Delimitação da questão decidenda

 

 

43.          A questão fundamental a apreciar prende-se com a incidência subjetiva de IVA em transmissões de bens localizadas em Portugal, realizadas por sujeitos passivos apenas com registo de IVA em Portugal, i.e., sem sede, estabelecimento estável, domicílio ou representante fiscal neste país, a adquirentes que sejam sujeitos passivos deste imposto.

 

44.          Segundo a posição da Requerente, neste caso, é aplicável a regra da inversão do sujeito passivo, por aplicação do artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do Código do IVA, o que significa que a liquidação e entrega do imposto ao Estado cabe ao adquirente, por via do mecanismo da autoliquidação, também denominado “reverse charge”.

 

45.          Para a Requerida, é aplicável a regra geral de liquidação do imposto pelo fornecedor dos bens ou prestador de serviços, constante do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA, cabendo assim ao respetivo fornecedor ou prestador a liquidação e entrega do imposto ao Estado.

 

B.               Da legalidade da liquidação de IVA

QUADRO NORMATIVO NACIONAL E EUROPEU

 

46.          A disciplina cuja aplicação se discute na presente ação arbitral foi introduzida em Portugal, no Código do IVA, com a aprovação do Decreto-Lei n.º 179/2002, de 3 de agosto, na sequência da Lei de autorização legislativa n.º 16–A/2002, de 31 de maio, nos seguintes moldes:

“Artigo 15.º da Lei n.º 16–A/2002, de 31 de maio

Transposição da Diretiva n.º 2000/65/CE, do Conselho, de 17 de outubro

Fica o Governo autorizado a transpor para a ordem jurídica nacional a Diretiva n.º 2000/65/CE, do Conselho de 17 de outubro, que altera a Diretiva n.º 77/388/CEE, no que diz respeito à determinação do devedor do IVA.

 

Artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 179/2002, de 3 de agosto

Alterações ao Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado

Os artigos 2.º, 7.º, 26.º, 29.º e 70.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 394–B/84, de 26 de dezembro, passam a ter a seguinte redação:

«Artigo 2.º

1 – São sujeitos passivos do imposto:

[…]

g) As pessoas singulares ou coletivas referidas na alínea a), que sejam adquirentes em transmissões de bens ou prestações de serviços efetuadas no território nacional por sujeitos passivos que aqui não tenham sede, estabelecimento estável ou domicílio nem disponham de representante nos termos do artigo 29.º [hoje, artigo 30.º].

 

Este regime veio introduzir uma exceção à regra geral que se extrai do cotejo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 29.º, n.º 1 do Código do IVA, segundo a qual o IVA deve ser liquidado pelo transmitente dos bens ou prestador dos serviços:

“Artigo 2.º do Código do IVA

Incidência subjectiva

1 – São sujeitos passivos do imposto:

a)            As pessoas singulares ou coletivas que, de um modo independente e com carácter de habitualidade, exerçam atividades de produção, comércio ou prestação de serviços, incluindo as atividades extrativas, agrícolas e as das profissões livres, e, bem assim, as que, do mesmo modo independente, pratiquem uma só operação tributável, desde que essa operação seja conexa com o exercício das referidas atividades, onde quer que este ocorra, ou quando, independentemente dessa conexão, tal operação preencha os pressupostos de incidência real do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) ou do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC); [Redação dada pelo artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 186/2009, de 12 de agosto, em vigor a partir de 1 de janeiro de 2010]”

 

Artigo 29.º do Código do IVA

Obrigações em geral

1 – Para além da obrigação do pagamento do imposto, os sujeitos passivos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º devem, sem prejuízo do previsto em disposições especiais:

a)            […]

b)           Emitir obrigatoriamente uma fatura por cada transmissão de bens ou prestação de serviços, tal como vêm definidas nos artigos 3.º e 4.º, independentemente da qualidade do adquirente dos bens ou destinatário dos serviços, ainda que estes não a solicitem, bem como pelos pagamentos que lhes sejam efetuados antes da data da transmissão de bens ou da prestação de serviços;

c)            Enviar mensalmente uma declaração relativa às operações efetuadas no exercício da sua atividade no decurso do segundo mês precedente, com a indicação do imposto devido ou do crédito existente e dos elementos que serviram de base ao respetivo cálculo; […]”. 

 

47.          O regime especial que ficou consagrado na alínea g) deste artigo 2.º, n.º 1, alarga o âmbito de incidência subjetiva, conforme refere o preâmbulo do citado Decreto-Lei n.º 179/2002, de 3 de agosto, “tornando sujeito passivo do imposto o próprio adquirente dos bens ou dos serviços, quando este, dispondo de sede, estabelecimento estável ou domicílio no território nacional, efetue no exercício de uma atividade sujeita a imposto, ainda que dele isenta, aquisições de bens ou serviços no território nacional a entidades não residentes, que nele não disponham de estabelecimento estável, nem tenham procedido à nomeação de representante fiscal”.

 

48.          É sabido que o IVA é um imposto harmonizado pelo direito europeu, sendo o Código do IVA português( ) o resultado da transposição da chamada “Sexta Diretiva”, vigente à data da adesão de Portugal à, então, Comunidade Económica Europeia. A Sexta Diretiva foi revogada e substituída pela atual “Diretiva IVA”( ), em vigor desde 1 de janeiro de 2007, sem que, contudo, esta última, tenha introduzido alterações significativas, razão pela qual ficou conhecida por “Recast Directive” ou Diretiva de Reformulação, limitando-se, em geral, à reorganização sistemática das normas.

 

49.          Interessa salientar que o direito europeu, quer na Sexta Diretiva, quer na Diretiva IVA, procede a uma distinção relevante, não transposta pelo legislador doméstico, que separa o conceito de sujeito passivo do de devedor do imposto e que, porventura, pode auxiliar na compreensão das questões suscitadas.

 

50.          No primeiro caso, trata-se da pessoa que reveste as propriedades que determinam a incidência subjetiva de IVA, independentemente da entidade sobre quem impende o dever de liquidação e pagamento do imposto, que pode ser distinta. A noção de sujeito passivo é recortada como “qualquer pessoa que exerça, de modo independente e em qualquer lugar, uma actividade económica, seja qual for o fim ou o resultado dessa actividade” (cfr. artigo 9.º, n.º 1 da Diretiva IVA, equivalente ao artigo 4.º, n.º 1 da Sexta Diretiva, correspondente ao artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA).

 

51.          Já o devedor do imposto é caracterizado como a pessoa sobre a qual recai a obrigação de liquidação e pagamento do IVA. A regra geral, de que o artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Código do IVA faz eco, é a da coincidência entre o sujeito passivo – que transmite os bens e/ou presta os serviços – e o devedor do imposto. Assim, o IVA é devido pelos sujeitos passivos que efetuem as transmissões de bens ou prestações de serviços, conforme estabelecido pelo artigo 193.º da Diretiva IVA (antes artigo 21.º, n.º 1, alínea a) I parte da Sexta Diretiva), “com exceção dos casos em que o imposto é devido por outra pessoa, nos termos dos artigos 194.º a 199.º e 202.º”. 

 

52.          Quando a referida coincidência entre o sujeito passivo transmitente/prestador dos bens/serviços e o devedor do IVA (este último, o obrigado tributário adstrito à sua liquidação e pagamento) não ocorre, estamos no domínio das exceções à regra geral aplicável às operações internas, materializadas na adoção do regime de inversão do sujeito passivo ou “reverse charge”.  Neste caso, passa a ser atribuída ao adquirente a obrigação de (auto)liquidação e pagamento do imposto que, em regra, seria do transmitente/prestador, num fenómeno de substituição tributária específico do IVA. Esta inversão pressupõe ou requer que o adquirente também seja um sujeito passivo do imposto, (numa simplificação anglo-saxónica, “Business to Business” – B2B), não operando quando este não revista essa qualidade (“Business to Consumer” – B2C).

 

53.          Uma ressalva para circunscrever o que acima vem referido às operações internas. Com efeito, no caso das operações transfronteiriças, desde 1993 para as operações intracomunitárias de bens, e 2010 para as prestações de serviços (“Pacote IVA”), o regime-regra B2C é o da inversão do sujeito passivo, com autoliquidação pelo adquirente.

 

54.          Contudo, como acima salientado, no regime interno do IVA, a inversão do sujeito passivo é conformada como uma exceção à regra-geral e a sua aplicação é facultativa por parte dos Estados-Membros, conforme postula o artigo 194.º da Diretiva IVA, em moldes semelhantes ao que já dispunha o seu antecessor, o artigo 21.º, n.º 1, alínea a), II parte da Sexta Diretiva:

“Artigo 194.º da Diretiva IVA

1.            Quando as entregas de bens ou prestações de serviços tributáveis forem efetuadas por sujeitos passivos que não se encontrem estabelecidos no Estado-Membro em que o IVA é devido, os Estados-Membros podem estabelecer que o devedor do imposto é o destinatário da entrega de bens ou da prestação de serviços.

2.            Os Estados-Membros determinam as condições de aplicação do disposto no n.º 1.”.

 

55.          Concede-se, assim, aos Estados-Membros a prerrogativa de escolherem outro “devedor do imposto”, quando se verifiquem duas condições cumulativas. A primeira é que as operações sejam efetuadas por sujeitos passivos que não se encontrem estabelecidos no Estado-Membro onde a operação é localizada e, em consequência, o IVA devido (de acordo com os critérios de incidência espacial e de competência tributária dos Estados-Membros). A segunda é que o devedor do imposto seja o destinatário (adquirente) dessas operações.

 

56.          Como atrás referido, idêntico regime resultava já do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), II parte da Sexta Diretiva, na redação vigente à data da alteração do artigo 2.º, n.º 1 do Código do IVA, quando foi introduzida a respetiva alínea g), em apreciação. Dispunha aquela norma comunitária, sob a epígrafe “Devedor do imposto à Fazenda Pública”, que: “[n]o caso de as entregas de bens ou prestações de serviços tributáveis serem efetuadas por um sujeito passivo que não se encontre estabelecido no território do país, os Estados-Membros podem prever, nas condições por eles fixadas, que o devedor do imposto é o destinatário das entregas de bens ou prestações de serviços tributáveis;” [artigo 28.º–G da Sexta Diretiva, com as alterações introduzidas pela Diretiva n.º 2000/65/CE, do Conselho, de 17 de outubro de 2000( ) que alterou a determinação do devedor do IVA].

 

57.          Deste modo, com a introdução da alínea g) ao n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, concretizada em 2002, o legislador nacional exerceu expressamente a liberdade de escolha – conferida pelo direito europeu – de selecionar um “devedor do imposto” distinto do sujeito passivo transmitente dos bens (ou prestador dos serviços). Pretende com isto dizer-se que se tratou de uma opção expressa do legislador nacional e não de um regime imperativo predeterminado de fonte europeia.

 

58.          Esta liberdade de escolha tem limitações que a própria Diretiva IVA enuncia e que importa escrutinar, sem prejuízo da modelação pelo direito interno de condições não reguladas pelo direito europeu. Com efeito, por um lado, o mecanismo de inversão do sujeito passivo será aplicável se (e apenas se) o sujeito passivo fornecedor dos bens não se encontrar estabelecido em Portugal, país onde as operações de transmissão de bens em análise nos presentes autos arbitrais são localizadas; e, por outro lado, o “devedor do imposto” tem de ser o destinatário (adquirente) dos bens.

 

59.          Afigura-se que o regime de inversão do sujeito passivo estabelecido no artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do Código do IVA respeita tais parâmetros. Com efeito, a sua aplicação é determinada quando as transmissões de bens (ou prestações de serviços) sejam efetuadas (leia-se, localizadas) em território nacional por “sujeitos passivos que aqui não tenham sede, estabelecimento estável ou domicílio, nem disponham de representante” e designa como devedor do IVA os adquirentes que sejam sujeitos passivos deste imposto.

 

60.          De notar que, de acordo com o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 179/2002, de 3 de agosto, o legislador português pretendeu que a regra da inversão do sujeito passivo apenas se aplicasse quando o adquirente, sujeito passivo, tivesse sede, estabelecimento estável ou domicílio no território nacional. Esta restrição, no entanto, não ficou refletida na letra da lei, que não distingue entre adquirentes estabelecidos e não estabelecidos, parecendo viabilizar a interpretação de que abrange qualquer adquirente sujeito passivo de IVA – i.e., que se dedique ao exercício de uma atividade económica – independentemente do seu local de estabelecimento. Tal solução encerra, porém, dificuldades práticas significativas que nos conduzem a uma interpretação distinta que não interessa aqui aprofundar, pois a liquidação de IVA impugnada apenas tem por objeto transmissões de bens efetuadas a adquirentes estabelecidos em Portugal.

 

ANÁLISE CONCRETA: PRIMEIRA CONDIÇÃO - SUJEITOS PASSIVOS QUE NÃO TENHAM SEDE OU ESTABELECIMENTO ESTÁVEL, NEM DISPONHAM DE REPRESENTANTE

 

61.          A Requerente é uma sociedade de direito alemão que se dedica a uma atividade comercial, com inequívoca dimensão económica, sendo, portanto, enquadrável, como sujeito passivo de IVA. Resulta do quadro factológico que a Requerente não dispõe de sede, estabelecimento estável ou representante nomeado em Portugal. Obteve, no entanto, um número de identificação fiscal, apenas para efeitos de IVA, ou seja, encontra-se registada em território nacional para efeitos deste imposto.

 

62.          No âmbito das prestações de serviços, em que a localização dos sujeitos passivos é também fundamental para determinar a própria incidência espacial e tributação das operações (no caso que nos ocupa, de transmissões de bens, esse critério releva apenas para a determinação do devedor do imposto), o Regulamento de Execução (UE) n.º 282/2011 do Conselho, de 15 de março de 2011 (“Regulamento”), JO n.º L 269/44, de 23 de março de 2011, veio clarificar que o facto de um sujeito passivo dispor de um número de identificação de IVA não é em si mesmo suficiente para se considerar que dispõe de um estabelecimento estável (artigo 11.º, n.º 3 do Regulamento).

 

63.          Na aceção do IVA, um estabelecimento implica um grau suficiente de permanência e uma estrutura adequada, em termos de recursos humanos e técnicos (artigo 11.º, n.ºs 1 e 2 do Regulamento). Ora, não se alcança qualquer razão para que, no âmbito de operações de transmissão de bens, como se verifica na situação vertente, estes conceitos apresentem outro recorte ou devam ser interpretados de forma distinta.

 

64.          É assente que a Requerente dispõe de um “mero registo de IVA” em Portugal e não se encontra estabelecida neste Estado-Membro. Nestes termos, preenche os pressupostos de aplicação do regime de “reverse-charge” nas operações ativas – transmissões de bens – que efetua a outros sujeitos passivos de IVA em território nacional. Dito de outro modo, a regra de inversão do sujeito passivo é aplicável independentemente de o transmitente dos bens (ou prestador dos serviços, se for o caso) ter um “registo de IVA” em Portugal. Tanto pode ser um sujeito passivo registado, como não registado, desde que não esteja estabelecido no território nacional, nem aqui tenha designado representante.

 

65.          Com efeito, o artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do Código do IVA determina como condição negativa do regime de inversão do sujeito passivo, que o fornecedor tenha sede, estabelecimento ou representante local, não fazendo qualquer referência ao registo de IVA. Por outro lado, a fonte normativa de direito europeu, o artigo 194.º da Diretiva IVA também apela ao conceito de estabelecimento, que é, como vimos acima, inconfundível com o de registo de IVA.

 

66.          Por outro lado, o registo de IVA é uma figura que existe desde 1993, tendo surgido com a implementação do regime intracomunitário de bens, pelo que em 2002 não constituía novidade suscetível de fundar uma incompletude não intencional do plano do legislador.

 

67.          A Requerida preconiza, no Relatório de Inspeção acima reproduzido, que a Requerente não pode aplicar a regra da inversão prevista no artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do Código do IVA, com amparo no Ofício-circulado n.º 30073/2005, da DSIVA, uma vez que, ainda que não tenha sede, estabelecimento estável ou representante fiscal em Portugal, possui um registo de IVA neste país, devendo assim liquidar imposto nos termos do artigo 1.º, n.º 1, alínea a) do citado Código “não tendo aplicação a alínea g) do nº 1 do artigo 2º do CIVA, e consequente regra de inversão efetuada pelo sujeito passivo”.

 

68.          Considera este Tribunal que tal entendimento não só não tem correspondência com a letra da lei, como viola o seu espírito.

 

69.          Em primeiro lugar, a condição de a alínea g), do n.º 1, do artigo 2.º do Código do IVA apenas ser aplicável nos casos em que os transmitentes de bens ou prestadores de serviços não possuem registo de IVA em Portugal, não resulta minimamente da littera legis – princípio basilar de interpretação jurídica, de harmonia com os artigos 9.º, n.º 1 do Código Civil e 11.º da Lei Geral Tributária (“LGT”). O legislador português, no âmbito da prerrogativa que lhe foi dada pelo artigo 21.º, n.º 1, alínea a) da então Sexta Diretiva (e agora artigo 194.º da Diretiva IVA), poderia ter imposto tal condição, o que não fez.

 

70.          Em segundo lugar, nos termos do disposto no artigo 11.º, n.º 1 da LGT, em conjugação com o artigo 9.º do Código Civil, a interpretação da lei deve reconstituir, a partir dos textos, o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 

 

71.          Neste contexto, importa ter em conta as finalidades de um tal regime de exceção, que se desvia do paradigma de cobrança do IVA, imposto alicerçado num modelo originário de pré-financiamento (liquidação e cobrança pelo transmitente) e não de autoliquidação. BEN TERRA chega a considerar assinalável que esta “exceção” se tenha mantido, após as preocupações manifestadas pela Comissão Europeia ainda nos anos 90 – B.J.M. Terra et al., Commentary – A Guide to the Recast VAT Directive (IBFD 2017), p. 3049.

 

72.          Conforme salientado no Considerando 1 da Diretiva n.º 2000/65/CE do Conselho( ), cuja transposição originou o artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do Código do IVA, para além do objetivo de simplificação das obrigações dos sujeitos passivos de menor dimensão, dispensando-os em múltiplos casos da obrigação de registo em IVA noutros Estados-Membros onde não se encontram estabelecidos, a inversão do sujeito passivo constitui um importante mecanismo antifraude e visa a cobrança fiável e correta do IVA por parte dos sujeitos passivos adquirentes de bens e serviços em Portugal – no fundo, combater possíveis situações de fraude e evasão fiscal( ).

 

73.          Em setores sensíveis à fraude ao IVA, como a construção civil ou os desperdícios, resíduos e sucatas recicláveis, o legislador português optou por aplicar o mecanismo de inversão do sujeito passivo. Na fraude carrossel interagem sujeitos passivos estabelecidos em diversos Estados-Membros, pelo que se afigura que o “reverse charge” da alínea g) do n.º 1 do artigo 2.º do Código, aqui em apreciação, é uma opção legislativa com marcada finalidade antiabuso.

 

74.          Se se entendesse como a AT, bastava ao sujeito passivo não estabelecido registar-se para efeitos de IVA em Portugal para contornar o regime de inversão do sujeito passivo, com o que se frustraria a ratio legis e sairia favorecida a fraude. Nota-se que a inversão não traduz uma menor receita para o Estado, operando apenas uma modificação subjetiva do devedor, sendo que, no caso dos autos, os adquirentes da Requerente procederam à autoliquidação do IVA, pelo que não se suscita qualquer diminuição da receita fiscal. 

 

75.          Em terceiro lugar, se a alínea g) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA não condiciona a inversão ao facto de o transmitente dos bens ou prestador dos serviços ter (ou não) registo de IVA em Portugal, não cabe à AT introduzir esta restrição, fora da reserva de lei constitucionalmente exigida para a criação de impostos (cfr. artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP) e em clara violação do princípio da legalidade (cfr. artigo 103.º, n.º 2 da CRP).

 

76.          Em quarto lugar, a regra de inversão é uma lex specialis em relação à regra geral de liquidação do IVA pelo transmitente dos bens e prestador dos serviços, pelo que, dentro do seu âmbito de aplicação, prevalece sobre o regime-regra.

 

77.          Em quinto lugar, convém esclarecer que as medidas de simplificação em causa apenas se aplicam em operações realizadas com adquirentes sujeitos passivos de IVA, i.e., B2B, não sendo, no entanto, retirada a obrigação de registo no nosso país e de liquidação do imposto quando o mesmo operador efetua, em simultâneo, vendas locais a particulares ou a não sujeitos passivos de IVA, i.e., vendas B2C.

 

78.          O que equivale a dizer que coexistem, para sujeitos passivos não estabelecidos e sem representante fiscal em Portugal, mas com registo de IVA no nosso país, situações de liquidação de imposto a par de situações em que se aplica a regra de inversão do sujeito passivo.

 

79.          Neste contexto, cabe realçar que o entendimento veiculado pela AT no Ofício-Circulado n.º 30073/2005, ao determinar, de forma imperativa, a liquidação de IVA por parte dos “meros registos de IVA”, parece querer equiparar um “mero registo de IVA em Portugal” a um estabelecimento, para efeitos IVA, no nosso país( ).

 

80.          Equivalência que não tem, contudo, qualquer base fáctico-legal, como acima referido. Pelo contrário, é assumido por ambas as partes que a Requerente não dispõe de um estabelecimento estável no nosso país.

 

81.          Na verdade, para a qualificação de uma dada realidade como estabelecimento estável na aceção do IVA, é necessária a demonstração, em Portugal, de um “qualquer estabelecimento, diferente da sede da atividade económica (…) caraterizado por um grau suficiente de permanência e uma estrutura adequada, em termos de recursos humanos e técnicos, que lhe permitam receber e utilizar os serviços que são prestados para as necessidades próprias desse estabelecimento”( - ).

SEGUNDA CONDIÇÃO – O ADQUIRENTE É O “DEVEDOR DO IVA”

 

82.          A segunda condição de aplicabilidade do regime de inversão também se encontra satisfeita na situação concreta, atento o facto de terem sido os clientes portugueses da Requerente – os adquirentes dos bens – a assumirem o cumprimento das obrigações declarativas e prestativas de IVA associadas às transmissões de bens realizadas pela Requerente, procedendo à devida autoliquidação do imposto.

SOBRE O OFÍCIO-CIRCULADO N.º 30073/2005

 

83.          Em sexto lugar, cabe salientar que o Relatório de Inspeção baseia a liquidação de IVA aqui contestada em orientações administrativas veiculadas pelo Ofício-Circulado n.º 30073/2005.

 

84.          Como esclarece CASALTA NABAIS (Direito Fiscal, 6.ª ed., Almedina, pág. 197) no que é hoje jurisprudência assente( ): “as chamadas orientações administrativas, tradicionalmente apresentadas nas mais diversas formas como instruções, circulares, ofícios-circulares, ofícios-circulados, despachos normativos, regulamentos, pareceres, etc.” constituem “regulamentos internos que, por terem como destinatário apenas a administração tributária, só esta lhes deve obediência, sendo, pois, obrigatórios apenas para os órgãos situados hierarquicamente abaixo do órgão autor dos mesmos. Por isso não são vinculativos nem para os particulares nem para os tribunais. E isto quer sejam regulamentos organizatórios, que definem regras aplicáveis ao funcionamento interno da administração tributária, criando métodos de trabalho ou modos de atuação, quer sejam regulamentos interpretativos, que procedem à interpretação de preceitos legais (ou regulamentares). É certo que eles densificam, explicitam ou desenvolvem os preceitos legais, definindo previamente o conteúdo dos atos a praticar pela administração tributária aquando da sua aplicação. Mas isso não os converte em padrão de validade dos atos que suportam. Na verdade, a aferição da legalidade dos atos da administração tributária deve ser efetuada através do confronto direto com a correspondente norma legal e não com o regulamento interno, que se interpôs entre a norma e o ato”.

 

85.          Resulta do confronto direto entre o teor do Ofício-Circulado n.º 30073/2005 e a norma constante do artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do Código do IVA, que o primeiro materializa uma regulação inovatória em matéria de incidência fiscal, desprovida de suporte legal, para além de esvaziar de conteúdo a aplicação da regra de inversão do sujeito passivo quando os transmitentes de bens ou prestadores de serviços possuam um “mero registo de IVA” em Portugal.

 

86.          Conclui-se, pois, pelas razões expostas, que este Ofício-Circulado, não só carece de força vinculativa heterónoma para a Requerente e para este Tribunal, como é ilegal por vício de violação de lei.

 

87.          A circunstância de a AT ficar vinculada às orientações genéricas constantes do Ofício-Circulado n.º 30073/2005, nos termos do n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT, não transforma o seu conteúdo em norma com eficácia externa, tanto mais quando o mesmo está em violação da lei.

 

88.          Em sétimo e último lugar, uma referência para indicar que a interpretação adotada pela AT é apontada na doutrina como isolada de entre os Estados-Membros que optaram por transpor a prerrogativa concedida pelo atual artigo 194.º da Diretiva IVA, como é o caso de Espanha e França, conforme assinala AFONSO ARNALDO (in op. cit. nota de rodapé 6).

EM SÍNTESE,

 

89.          Conclui-se que a Requerente, ao aplicar a regra de inversão do sujeito passivo nas vendas locais (transmissões de bens) a clientes estabelecidos em território nacional, não lhes liquidando IVA, mais não fez do que aplicar a lei e respeitar a vontade do legislador.

 

90.          O facto de a Requerente ter liquidado IVA em vendas locais realizadas à empresa B... SARL – NIF..., não é inconsistente com o anteriormente referido, pois neste caso, ao contrário dos demais, o adquirente é uma entidade não estabelecida em Portugal, numa interpretação conforme ao preâmbulo do Decreto-Lei n.º 179/2002, de 3 de agosto.

 

91.          Acresce que a circunstância de a Requerente dispor de um “registo de IVA” em Portugal, não afasta a aplicação do regime de inversão do sujeito passivo previsto no artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do Código do IVA, regra que coexiste com as situações em que é devida a aplicação da alínea a), do n.º 1, do mesmo artigo, sempre que se verifiquem os pressupostos de aplicação desta.

 

92.          Deste modo, o ato de liquidação de IVA impugnado nestes autos arbitrais e, bem assim, o indeferimento silente da Reclamação Graciosa contra aquele deduzida enfermam de erro nos pressupostos de facto e de direito, sendo ilegais e anuláveis, de acordo com o disposto no artigo 163.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT.

 

 

C.               Restituição do montante de IVA de € 1.681.197,79 e juros indemnizatórios

 

93.          A Requerente pede que a AT seja condenada à restituição do montante de IVA de € 1.681.197,79 e ao pagamento de juros indemnizatórios incidentes sobre esse valor.

94.          Nos termos do artigo 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, em linha com o artigo 100.º da LGT, a decisão arbitral a favor do sujeito passivo tem por efeito restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado.

95.          O artigo 24.º, n.º 5 do RJAT ao dispor que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, permite o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral, nos termos dos artigos 43.º e 100.º da LGT, aplicáveis ex vi artigo 29.º do RJAT.

96.          O direito a juros indemnizatórios depende de um conjunto de pressupostos constitutivos, sendo imprescindível que a Requerente tenha suportado o “pagamento” do imposto relativamente ao qual reclama a contagem de juros. Na situação concreta, o “pagamento” da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, ocorreu quando da compensação do crédito de IVA com o valor do imposto indevidamente liquidado, pelo exato valor da compensação (coincidente com o da liquidação).

97.          Estando em causa a errada interpretação e aplicação pela Requerida de normas de incidência tributária ficou demonstrado que os atos tributários padecem de erros de facto e de direito imputáveis à AT, que não deveria ter procedido à liquidação do IVA em causa.

98.          Da aplicação das regras supra ao caso concreto, resulta que a anulação do ato tributário ilegal deve ter por consequência a restituição do valor ilegalmente liquidado à Requerente (de € 1.681.197,79) e o pagamento de juros indemnizatórios sobre esse valor, nos termos dos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT( ), pelo que procede o pedido de condenação da AT à restituição do IVA e ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

VI.          DECISÃO

 

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, decide este Tribunal Arbitral Coletivo:

a)            Julgar improcedente a exceção de incompetência material suscitada pela AT;

b)           Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação:

i.             Do ato silente de indeferimento da reclamação graciosa acima identificado;

ii.            Da liquidação de IVA n.º 2017..., relativa ao período de tributação 16/08, no valor de € 1.681.197,79,

 tudo com as legais consequências, nomeadamente:

c)            De condenação da Requerida nas custas do processo;

d)           De restituição, pela Requerida à Requerente, do montante de IVA de € 1.681.197,79;

e)           De condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios devidos sobre essa quantia, contados até ao processamento da respetiva nota de crédito, calculados nos termos do disposto nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

 

* * *

 

VII.         VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 1.681.197,79 (valor da liquidação de IVA), de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (“CPC”), este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

VIII.       CUSTAS

 

O montante das Custas é fixado em € 22.338,00, a cargo da Requerida, nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT e do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

 

Notifique.

 

Lisboa, 6 de junho de 2019

 

 

Os Árbitros,

 

 

(Alexandra Coelho Martins)

(Catarina Belim)

(Leonardo Marques dos Santos)