DECISÃO ARBITRAL
I - RELATÓRIO
A... SGPS, S.A., com sede na ..., n.º..., ..., ...-... ... (doravante, a “Requerente” ou “A...”), com o número de identificação fiscal (“NIF”)..., veio, em 08/10/2018, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT), em conjugação com a alínea a) do artigo 99.º e com a alínea e) do n.º 1 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), aplicável por força do disposto na alínea a), do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, requerer a constituição de tribunal arbitral colectivo com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação dos actos:
- de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (doravante, “IRC”) relativo ao ano de 2015 n.º..., de 27/05/2016, do qual resultou um montante a pagar de € 1.627.434,57;
- de liquidação de IRC n.º 2016..., de 02/08/2016, relativo ao mesmo ano, do qual resultou um montante a pagar de € 4.436,23, e respectiva demonstração de liquidação de juros n.º 2016...;
- de liquidação de IRC n.º 2018..., de 30/07/2018, no qual resultou imposto a recuperar no montante de € 99.618,29, e respectiva demonstração de acerto de contas n.º 2018...;
- de indeferimento parcial da reclamação graciosa n.º ...2018..., relativa ao exercício de 2015, proferido pelo Chefe de Divisão da Divisão de Gestão e Assistência Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes em 09/07/2018, com restituição das quantias liquidadas, que pagou, acrescidas de juros indemnizatórios calculados desde esses pagamentos.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, “AT”), autora dos actos postos em crise.
O pedido de constituição do tribunal arbitral colectivo foi aceite pelo Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (doravante, “CAAD”) e notificado à Requerida em 09/10/2018.
Em 23/11/2018, a Requerente solicitou a ampliação do pedido, de modo a abranger, além dos actos inicialmente impugnados, a autoliquidação de IRC de 2015 n.º..., da qual resultou imposto a pagar no montante de € 22.050,00.
Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, por decisão do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, devidamente notificada às partes nos prazos previstos, foram designados como árbitros os signatários, que comunicaram àquele Conselho a aceitação do encargo no prazo estipulado no artigo 4.º do Código Deontológico do CAAD.
Em 30/11/2018, foram as partes notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
O tribunal arbitral colectivo ficou constituído em 20/12/2018, de acordo com a prescrição da alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção que lhe foi conferida pelo artigo 22.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro.
Notificada para responder, em 20/12/2018, a Requerida fê-lo em 04/02/2019 e juntou o processo administrativo no dia seguinte.
Defendeu-se por excepção, invocando a (parcial) incompetência do tribunal; opôs-se à ampliação do pedido; impugnando, pugnou pela improcedência da pretensão da Requerente; e, para o caso de aquela ampliação ser admitida, requereu prazo adicional para se pronunciar.
Entretanto, em 15/01/2019, a Requerente solicitara nova ampliação do pedido, desta vez atinente à liquidação adicional n.º 2018..., de 05/11/2018, à liquidação de juros compensatórios n.º 2018..., e à demonstração de acerto de contas n.º 2018..., de que resultaram € 217,47 a pagar.
Em 16/01/2019, a Requerida foi notificada para se pronunciar sobre o pedido de ampliação do objecto do processo, o que fez em 30/01/2019, opondo-se.
Em 28/02/2019, foi proferido o despacho seguinte:
“A Requerente apresentou o seu pedido inicial em 08/10/2018, dirigido contra os seguintes actos, todos relativos ao IRC do ano de 2015:
- autoliquidação nº..., de 27/05/2016 e despacho de parcial indeferimento da reclamação graciosa contra ela deduzida;
- liquidação nº 2016..., de 02/08/2016 e
- liquidação nº 2018..., de 30/07/2018.
Em 23/11/2018, antes ainda da constituição do tribunal arbitral, veio ampliar o pedido, de modo a abranger a autoliquidação nº..., relativa ao mesmo imposto e ano.
Por fim, em 15/01/2019, no decurso do prazo para a resposta da AT, veio com novo pedido de ampliação, desta vez relativo à liquidação adicional nº 2018..., de 05/11/2018, bem como a de juros compensatórios, sempre referentes ao IRC de 2015.
A AT opôs-se à ampliação do pedido.
Disse, em súmula, que tendo a Requerente apresentado uma declaração de substituição em 29/10/2018, e efectuado autoliquidação, foi na sequência que a AT procedeu, em 05/11/2018 à liquidação nº 2018... . Assim, a Requerente devia, por força do disposto no artigo 131º nº 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), ter reclamado graciosamente da referida autoliquidação, como condição para poder impugná-la contenciosamente.
Nos termos do artigo 131º nº 1 do CPPT, os actos de autoliquidação não são imediatamente impugnáveis contenciosamente, dependendo essa sua impugnabilidade de prévia reclamação graciosa.
Compreende-se que assim seja: a autoliquidação não é um acto da iniciativa da Administração Tributária, e por isso a sua correcção não deve ser submetida a juízo antes de ela se poder pronunciar, em sede de reclamação graciosa. Só com o indeferimento desta reclamação se pode dizer que a Administração faz seu o acto de (auto)liquidação praticado por outrem que não por si.
O presente caso envolve dois actos de autoliquidação:
- o nº..., de 27/05/2016, objecto de reclamação graciosa parcialmente indeferida, impugnado aquando da apresentação do pedido inicial;
- o nº..., de 29/10/2018, de que se não noticia nem vem alegada a dedução de reclamação graciosa, e que foi impugnado mediante o requerimento de ampliação do pedido de 23/11/2018.
Ora, se, quanto ao primeiro, nada obsta à sua impugnação contenciosa, porquanto a Requerente reclamou graciosamente, dando satisfação ao dispositivo do artigo 131º nº 1 do CPPT, já quanto ao segundo, sem que tenha havido reclamação graciosa, não pode admitir-se a sua impugnação judicial.
Nem a este entendimento obsta, como vem esclarecendo a jurisprudência do STA – veja-se, por todos, o mais recente acórdão, de 28/11/2018, no processo nº 367/2018 – o facto de a autoliquidação ser precedida de tomada de posição por parte da AT, seja através de acção inspectiva, seja procedendo ela própria a uma liquidação referente à situação do autoliquidante – no caso, quanto ao IRC de 2015.
A verdade é que a Requerente apresentou, em 29/10/2018, uma declaração de substituição relativa ao IRC de 2015, e procedeu à correspondente autoliquidação. Autoliquidação essa da qual só se poderia dizer que a AT a fez sua depois de ela ter tido oportunidade de a examinar em sede de reclamação graciosa, nos termos do citado artigo 131º do CPPT. Antes disso não há, verdadeiramente, um acto administrativo, praticado pela autoridade competente, mas um acto de um contribuinte, que a AT poderá fazer seu, ou não. Aliás, no caso, vem alegado que, após a autoliquidação, a AT tomou a iniciativa de proceder a nova liquidação, o que indicia que não terá aceitado (não fez sua) a autoliquidação.
Não pode, pelo exposto, admitir-se a ampliação do pedido, no que concerne à autoliquidação nº..., de 29/10/2018, na falta de um pressuposto – reclamação graciosa – para a sua impugnação contenciosa.
Estamos, porém, perante dois pedidos de ampliação do objecto da causa.
Tratámos, até agora, do de 23/11/2018.
Importa abordar o de 15/01/2019, com o qual a Requerente quer ver sindicada a legalidade da liquidação adicional nº 2018..., de 05/11/2018, bem como a de juros compensatórios, sempre referentes ao IRC de 2015.
Quanto a estas liquidações não vale o impedimento do artigo 131º do CPPT, pois trata-se de actos da iniciativa da AT, praticados por ela e não pela contribuinte.
Por outro lado, a apreciação da legalidade desta liquidação pode ser entendida como constituindo um desenvolvimento do pedido inicial: o que importa à Requerente é ver apreciada a legalidade da definição da sua situação contributiva em sede de IRC, relativamente ao ano de 2015. E, já que a AT praticou vários actos tendentes a essa definição, cada um desses actos surge dirigido a esse mesmo propósito, inserido na mesma sequência, e há vantagem em que todos eles sejam apreciados conjuntamente, para melhor assegurar a tutela jurisdicional perseguida pela Requerente.
Afigura-se, portanto, que a ampliação requerida é admissível à luz do artigo 265º nº 2 do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi artigo 29º nº 1 alínea e) do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT).
Também o artigo 3º do dito RJAT não constitui obstáculo: admitida a ampliação do pedido, ficamos (como, aliás, já estávamos) perante uma cumulação de pedidos que à apontada norma não repugna, pois que as circunstâncias de facto a ponderar e as normas jurídicas a atender na decisão são as mesmas.
Resta apreciar a pretensão da Requerida que, na hipótese de ser autorizada ampliação do pedido, requereu o alargamento do prazo para a resposta, por trinta dias, sob invocação do artigo 569º nº 1 do CPC, neste processo aplicável subsidiariamente.
Entretanto, a Requerida já respondeu ao pedido inicialmente formulado pela Requerente.
E sendo o acto de liquidação adicional nº 2018..., de 05/11/2018, bem como a de juros compensatórios, referentes, como os demais actos aqui sindicados, ao IRC de 2015, relativamente ao qual a AT já antes liquidara, não se vê necessidade de conceder novo prazo, integral, para a resposta, que apenas carece de ser ampliada, de modo a abranger, também, a(s) liquidação(ões) de 05/11/2018 .
Assim, e em conclusão:
Indefere-se o pedido formulado pela Requerente em 23/11/2018, relativo à autoliquidação nº..., de 29/10/2018;
Defere-se o pedido formulado pela Requerente em 15/01/2019, relativo à liquidação adicional nº 2018..., de 05/11/2018, bem como a de juros compensatórios;
Fixa-se em quinze dias, contados a partir da notificação do presente despacho, o prazo para a Requerida ampliar a sua resposta, relativamente ao novo pedido agora admitido”.
Por despacho arbitral de 06/03/2019 foi marcada para o dia 25/03/2019 realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT.
Na data aprazada foram ouvidas as testemunhas apresentadas pela Requerente, decidido aproveitar-se o depoimento de B..., prestado no processo n.º 649/2016-T, fixado prazo sucessivo de dez dias para alegações escritas, e designado o dia 31/05/2019 para a decisão.
Requerente e Requerida alegaram, respectivamente em 4 e 29 de abril.
II – SANEAMENTO
O tribunal arbitral acha-se regularmente constituído.
A Requerida pretende ver declarada a incompetência do tribunal quanto à parte do pedido anulatório que já foi atendido em sede de reclamação graciosa.
Recorda “(…) que a reclamação graciosa foi alvo de deferimento parcial”. E, “Deste modo, não pode o Tribunal arbitral substituir-se à Autoridade Tributária e Aduaneira quanto à execução do julgado em sede de procedimento de reclamação graciosa, nomeadamente, quanto à parte em que ocorreu um deferimento parcial do pedido pelo próprio contribuinte. Ora, à semelhança do que sucede no processo de impugnação, estamos perante uma clara incompetência material do tribunal arbitral para se substituir à AT na execução do por ela decidido de modo favorável ao contribuinte ou, no limite, mandar executar na parte em que foi atendido pelos serviços o peticionado pela Requerente em sede de reclamação graciosa”.
Tem razão a Requerida se pretende afirmar que este tribunal não é competente para a execução de julgados.
Mas, a nosso ver, não é questão que aqui se coloque.
Antes de mais, porque não há nenhum julgado a executar. Do que se trata é, quando muito, de a AT dar cumprimento à sua própria decisão proferida em sede de reclamação graciosa.
Ora, essa decisão, na parte em que desatendeu a pretensão da Requerente, é por esta posta em causa, e a AT não questiona a competência do tribunal para a sindicar.
Acresce que, para cumprir a sua decisão proferida na reclamação graciosa, a AT empreendeu um acto de liquidação. E, para avaliar da legalidade deste acto tributário, também não é questionada a competência do tribunal.
Mas, além disso, importa atender a que, como flui do articulado inicial da Requerente, mormente dos artigos 31.º e seguintes e 50.º e seguintes, ela só impugna a decisão que recaiu sobre a reclamação graciosa na parte indeferida, “(…) que se reconduz às correcções relativas à tributação autónoma sobre os encargos com viaturas ligeiras de passageiros”. De fora deixou, claramente, as tributações autónomas sobre as despesas de representação, porquanto, nesta parte, já a AT satisfizera a sua pretensão (cfr., especificamente, o artigo 31.º do pedido inicial).
O mesmo quanto aos actos de liquidação, relativamente aos quais explica que só os impugna a todos por não saber se eles se sobrepõem ou se o posterior substitui o anterior.
Em todo o caso, não resulta, nem do articulado da Requerente, nem do pedido com que o encerra, que pretenda impugnar o segmento da decisão da reclamação graciosa que lhe foi favorável (o concernente às despesas de representação, de que resultou a anulação de € 96.475,27), nem o acto de liquidação na parte que executa essa decisão.
Nem tal faria sentido, pois nenhum interesse tinha a Requerente em obter a anulação judicial daquilo que já fora eliminado pela via administrativa; nem ao tribunal seria possível anular algo que não já existia na ordem jurídica, por força da decisão da reclamação graciosa.
Em conclusão, improcede a invocada excepção de incompetência do tribunal, que se mostra competente para decidir a pretensão da Requerente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas.
Não foram invocadas nulidades nem deduzidas outras excepções ou questões prévias impeditivas do conhecimento de mérito.
III – MATÉRIA DE FACTO
Consideram-se provados os factos seguintes:
a)
A A... é uma sociedade anónima de direito português, que tem por objecto social a gestão de participações sociais noutras sociedades, como forma indirecta de exercício de actividades económicas, actuando como Sociedade Gestora de Participações Sociais (“SGPS”).
b)
No ano de 2015, integravam o grupo da requerente, entre outras, as sociedades: C..., S.A.; D..., S.A.: E..., Lda.; F..., S.A.; G..., S.A.; e H..., S.A..
c)
Ao grupo de sociedades dominadas pela Requerente é aplicado o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (“RETGS”).
d)
Em 27/05/2016, a Requerente entregou a declaração de rendimentos de IRC Modelo 22, relativa ao período de tributação de 2015, do grupo de sociedades sujeito ao RETGS por si dominado, procedendo à autoliquidação n.º..., e ao pagamento do imposto autoliquidado no montante de € 1.627.434,57, em 31/05/2016.
e)
Em 02/08/2016, a AT procedeu à liquidação de IRC n.º..., relativa ao ano de 2015, da qual resultou um montante a pagar de € 4.436,23, e respectiva demonstração de liquidação de juros n.º 2016... .
f)
Em 21/05/2018, a Requerente reclamou graciosamente do acto de autoliquidação de IRC n.º..., de 27/05/2016, do qual resultou um montante a pagar de € 1.627.434,57, e do acto de liquidação n.º 2016..., de 02/08/2016, do qual resultou um montante a pagar de € 4.436,23, e respectiva demonstração de liquidação de juros n.º 2016... .
g)
Tal reclamação assentava em que o apuramento de imposto padecia de erros, nomeadamente quanto aos cálculos da tributação autónoma incidente sobre os encargos com viaturas ligeiras de passageiros e sobre despesas de representação.
h)
Essa reclamação foi parcialmente atendida por despacho de 09/07/2018, que deferiu a pretensão da Requerente no que toca à tributação autónoma incidente sobre despesas de representação, anulando € 96.475,27, e indeferindo-a quanto à tributação autónoma incidente sobre os encargos com viaturas ligeiras de passageiros.
i)
Em 30/07/2018, a AT emitiu a liquidação de IRC relativa a 2015 com o n.º 2018..., da qual resultou imposto a recuperar no montante de € 99.618,29, e respectiva demonstração de acerto de contas n.º 2018... .
j)
Do teor da liquidação de IRC n.º 2018..., de 30/07/2018, consta que a liquidação resulta "da decisão proferida no processo de Reclamação Graciosa com o nº ...2018...”, mediante a qual foi parcialmente deferido o pedido da Requerente, sendo anulado o montante de € 96.475,27, relativo à tributação autónoma sobre as despesas de representação.
k)
Em 05/11/2018, a AT emitiu a liquidação adicional n.º 2018..., da qual resultou imposto a pagar de € 217,47, bem como a de juros compensatórios n.º 2018... e a demonstração de acerto de contas n.º 2018... .
l)
As sociedades identificadas na antecedente alínea b) dispõem, para a sua actividade normal, de uma frota automóvel, que integra, além de outras, aproximadamente cento e vinte viaturas ligeiras de passageiros, as quais são usadas nas tarefas necessárias ao exercício da actividade dessas sociedades.
m)
Essas viaturas têm características próprias (em especial de capacidade e volumetria da bagageira), adequadas ao respectivo uso, e estão, na sua maioria, identificadas exteriormente com o logotipo dessas sociedades, excepcionando-se algumas, descaracterizadas, por conveniência do serviço em que são utilizadas.
n)
Aparcam num parque próprio, de onde só saem em serviço, mediante controle de entradas e saídas, com termo de entrega e de responsabilidade do condutor.
o)
Estas viaturas são objecto de uma gestão centralizada, em termos de logística, de utilização, de controlo de consumos e de quilometragem, bem como de segurança.
p)
A utilização para fins que não sejam exclusivamente de serviço é admitida com carácter excepcional, mediante autorização que, no ano de 2015, nunca foi deferida nem sequer requerida.
q)
Ponderando as necessidades das empresas, designadamente, as de prontidão (por exemplo, para serviços de reportagem), longa permanência em espaços exteriores (por exemplo, para a produção de novelas), assistência a equipamentos (por exemplo, antenas retransmissoras de rádio), deslocação simultânea de pessoal técnico, repórteres, membros da produção, comentadores, entrevistados, actores, etc., e equipamento técnico, a Requerente concluiu, após ponderação económica das alternativas disponíveis (transportes públicos, de aluguer, viaturas de dois lugares), que a propriedade de viaturas ligeiras de passageiros era a melhor escolha.
r)
No exercício de 2015, a despesa com todas as viaturas ligeiras de passageiros do grupo empresarial encabeçado pela Requerente, incluindo as afectas a administradores e a pessoal dirigente, ascendeu a € 2.483.328,51, sendo a respectiva tributação autónoma no montante de € 490.667,20.
s)
No mesmo ano, a despesa com as cerca de cento e vinte viaturas ligeiras de passageiros do grupo empresarial encabeçado pela Requerente que são usadas exclusivamente nas tarefas necessárias à actividade das empresas ascendeu a € 1.015.723,00.
Os factos dados por provados resultam da convicção do tribunal, assente no exame crítico dos documentos do processo, não impugnados, e na consideração dos depoimentos das testemunhas apresentadas na audiência de julgamento e no aproveitamento do depoimento gravado, colhido de anterior inquirição noutro processo, tendo todas as testemunhas deposto com isenção e mostrado ser conhecedoras dos factos.
Nada mais se provou com interesse para a decisão da causa, considerando que a questão decidenda se restringe às tributações autónomas incidentes sobre os encargos com viaturas ligeiras de passageiros.
IV – MATÉRIA DE DIREITO
A. Das tributações autónomas dos encargos com viaturas ligeiras
1. Relativamente à questão substancial da tributação autónoma sobre os encargos suportados com viaturas ligeiras de passageiros, seguiremos de perto o conteúdo dos acórdãos proferidos nos Processos n.ºs 628/2014-T, 649/2016-T e 285/2017-T do CAAD, com os quais nos identificamos.
2. Ora, a este respeito, alega a Requerente, em suma, que a liquidação de tributação autónoma respeitante aos encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, prevista no n.º 3 do artigo 88.º do CIRC é ilegal, já que, na sua opinião, as tributações autónomas são normas de incidência tributária assentes em presunções, que no seu entender, e nos termos do disposto no artigo 73.º da LGT, são ilidíveis, cabendo ao sujeito passivo o ónus de comprovar empresarialidade da despesa.
3. Em sentido contrário, a Requerida alega, em suma, que o artigo 88.º não estabelece presunções legais (isto é, ilações que a lei retira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, tal como prevê o artigo. 349.º do Código Civil).
4. Assentemos que se trata essencialmente de optar por uma de duas linhas de interpretação do regime legal aplicável:
a) Aquela que entende que a letra da lei e a própria ratio legis vedam qualquer exclusão de tributação autónoma relativamente a encargos com viaturas daquele tipo que não esteja prevista literalmente no artigo 88.º do Código do IRC, e, nomeadamente, qualquer exclusão assente na afectação exclusivamente empresarial daquelas viaturas;
b) Aquela que entende que a afectação exclusivamente empresarial das viaturas, uma vez comprovada, afasta a tributação autónoma, porque esta se destina apenas a incidir: seja em situações de uso “misto” das viaturas; seja em situações em que, na ausência de comprovação daquela afectação empresarial exclusiva, possa presumir-se (e deva presumir-se, para prevenir e dissuadir abusos) que, atenta a natureza das referidas viaturas, elas são susceptíveis de um uso “misto”, ou seja, tanto empresarial quanto particular.
5. Comecemos por atentar nos números relevantes do artigo 88.º do Código do IRC, na redacção em vigor no período em causa. Ora, durante o exercício de 2015, o artigo 88.º teve duas redações. Uma até 4 de Janeiro de 2015 e outra a partir de 5 de Janeiro de 2015, que permaneceu em vigor até ao final do exercício. Na parte que ora nos interessa, ou seja, os n.ºs 3 a 6, do artigo 88.º, as alterações entre as duas redações vigentes em 2015 não são muito relevantes para a decisão do presente caso e circunscrevem-se ao corpo do número 3. Em todo o caso, transcrevemos abaixo ambas as redações:
O n.º 3 do artigo 88.º do Código do IRC, em vigor entre 21 de Janeiro de 2014 e 4 de Janeiro de 2015, dispunha que:
“São tributados autonomamente os encargos efetuados ou suportados por sujeitos passivos que não beneficiem de isenções subjetivas e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos ou motociclos, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia elétrica, às seguintes taxas:”.
Os n.ºs 3 a 6 do artigo 88.º do Código do IRC, em vigor a partir de 5 de Janeiro de 2015, estabeleciam que:
“São tributados autonomamente os encargos efetuados ou suportados por sujeitos passivos que não beneficiem de isenções subjetivas e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, viaturas ligeiras de mercadorias referidas na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto sobre Veículos, motos ou motociclos, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia elétrica, às seguintes taxas:
a) 10 % no caso de viaturas com um custo de aquisição inferior a € 25 000;
b) 27,5 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a € 25 000 e inferior a € 35 000;
c) 35 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a € 35 000.
4 -...
5 - Consideram-se encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, nomeadamente, as reintegrações, rendas ou alugueres, seguros, despesas com manutenção e conservação, combustíveis e impostos incidentes sobre a sua posse ou utilização.
6 - Excluem-se do disposto no n.º 3 os encargos relacionados com:
a) Viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, afetos à exploração de serviço público de transportes, destinados a serem alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo; e
b) Viaturas automóveis relativamente às quais tenha sido celebrado o acordo previsto no n.º 9) da alínea b) do n.º 3 do artigo 2.º do Código do IRS”.
6. Estabelece o ponto 9) da alínea b) do n.º 3 do artigo 2.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante, “Código do IRS”), na redacção em vigor a partir de 2015:
“3 - Consideram-se ainda rendimentos do trabalho dependente: b) As remunerações acessórias, nelas se compreendendo todos os direitos, benefícios ou regalias não incluídos na remuneração principal que sejam auferidos devido à prestação de trabalho ou em conexão com esta e constituam para o respectivo beneficiário uma vantagem económica, designadamente: 9) Os resultantes da utilização pessoal pelo trabalhador ou membro de órgão social de viatura automóvel que gere encargos para a entidade patronal, quando exista acordo escrito entre o trabalhador ou membro do órgão social e a entidade patronal sobre a imputação àquele da referida viatura automóvel;”.
7. Trata-se, nesta norma do Código do IRS, da matéria de tributação daquilo que se designa por “benefícios marginais” (“fringe benefits” ou “employee benefits”).
8. Ora, quando se fala em tributações autónomas, como é o caso, é conveniente desde logo ter presente que está em causa um conjunto de situações díspares, que abrangerão, pelo menos, três tipos distintos, a saber:
a) Tributação autónoma de determinados rendimentos (ex.: n.º 6 do artigo 73.º dp Código do IRS);
b) Tributação autónoma de determinados encargos dedutíveis (ex.: n.ºs 3 do artigo 88.º do Código do IRC);
c) Tributação autónoma de outros encargos independentemente da respectiva dedutibilidade (ex.: n.ºs 1 e 2 do artigo 88.º do Código do IRC).
9. Esta precisão torna-se importante porquanto se entende que, atenta a disparidade e heterogeneidade das situações sujeitas a tributações autónomas, será nesta sede não só desnecessário, mas, até, contraproducente, o esforço de sintetizar e procurar uma natureza jurídica própria e unitária, comum a todas aquelas situações.
10. A natureza das específicas tributações autónomas em questão nos autos tem sido objecto de ampla discussão na doutrina e jurisprudência recentes.
11. Enquanto uma corrente tem olhado para as mesmas como um imposto sobre a despesa, que tributaria determinados tipos de gastos, de uma forma totalmente desligada do rendimento, em termos de haver mesmo quem sustente que as mesmas constituem um tributo próprio, que apenas casualmente estaria integrado nos Códigos do IRS e do IRC.
12. Não obstante, tem obtido acolhimento recorrente na jurisprudência do CAAD (e.g., decisões dos processos n.ºs 187/2013-T, 209/2013-T, 246/2013-T, 260/2013-T, 292-2013T, 37/2014-T, 94/2014-T e 242/2014-T), o entendimento de que as tributações autónomas sobre encargos dedutíveis, como as que estão em causa nos presentes autos, integram, ainda, o regime dos impostos regulados pelos códigos onde se integram, visando, ainda que de uma forma enrevesada, o rendimento tributado por aqueles.
13. Naturalmente que quem considere as tributações autónomas que ora nos ocupam um tributo directamente incidente sobre a despesa, concluirá que a norma sob interpretação, na redacção vigente à data do facto tributário, não integrará qualquer presunção ou ficção, formulando, directamente, o objecto da sua incidência – a despesa.
14. Não se considera, todavia, que seja esse o entendimento mais correcto, entendendo-se, antes, que as tributações autónomas incidem sobre o rendimento das pessoas singulares e das pessoas colectivas, e não sobre o consumo ou a despesa, pois não apresentam as principais características desta forma de tributação, e enquadrando-se numa problemática da tributação dos rendimentos relativamente à qual o legislador entendeu actuar a dois níveis (separada ou simultaneamente): não aceitar a dedutibilidade de alguns gastos, na totalidade ou parcialmente e/ou tributá-los autonomamente.
15. Neste quadro, as tributações autónomas ora em questão nos autos integrarão, para além do mais, o elenco de normas antiabuso específicas.
16. Ou seja, nos casos a que se reportam as tributações autónomas suportadas pela Requerente nos autos, o legislador podia ter optado por vedar pura e simplesmente a dedutibilidade dos gastos, ou condicionando-a nos termos que entendesse adequados.
17. Em vez disso, optou o legislador por não ir tão longe, permitindo-se a dedutibilidade dos encargos em causa, contra o pagamento imediato de uma parte do lucro tributável que, presente ou futuramente, irá ser afetado por tal dedução.
18. O que vem de se dizer tem, deste modo, subjacente a constatação de que as tributações autónomas, incluindo aquelas em questão nos autos, devem grande parte da sua razão de ser à circunstância de que será, objetivamente, inviável a tributação integral numa base rigorosa, em sede de IRS, nos potenciais beneficiários dos gastos sujeitos àquelas (o que equivaleria a uma tributação dos fringe benefits como foi concebida e aplicada na Austrália e na Nova Zelândia).
19. Não se ignora assim que as tributações autónomas do tipo que aqui nos ocupa têm uma vertente dirigida diretamente para o rendimento de pessoas singulares. Tal como têm, de resto, uma vertente sancionatória – no sentido de impositiva de um tratamento desfavorável – relativamente ao tipo de despesas que as desencadeiam. Contudo, estas vertentes não esvaziam, nem, muito menos, impossibilitam, uma outra vertente, igualmente (senão mais) relevante, indissociavelmente interligada com o rendimento, no caso, das pessoas coletivas.
20. Entende-se, então, que, por via das imposições em causa, também se visa, pelo menos na mesma medida, disciplinar a utilização pelas empresas de gastos que podem ser necessários, numa parte, à prossecução da atividade normal, mas que – tendo por base um juízo de normalidade – também podem gerar benefícios às pessoas singulares que acabam por deles fruir a título particular e não profissional.
21. Assim:
a) a tributação autónoma só faz sentido porque os custos/gastos relevam como componentes negativas do lucro tributável do IRC. É isso que motiva os sujeitos passivos do IRC a relevar um valor tão elevado quanto possível desses gastos para diminuir a matéria tributável do IRC, a coleta e, consequentemente, o imposto a pagar;
b) trata-se, em geral, de modelar o sistema fiscal de modo a que este revele um certo equilíbrio tendo em vista uma melhor repartição da carga tributária efetiva entre contribuintes e tipos de rendimento;
c) considera-se desfavoravelmente determinados gastos em que, reconhecidamente, não é fácil determinar a medida exacta da componente que corresponde a consumo privado, e relativamente aos quais é conhecida a prática geral de abuso na sua relevação.
22. Melhor ou pior, as tributações autónomas ora em causa deverão ser assim entendidas como uma forma de obstar a determinadas actuações abusivas, que o “normal” funcionamento do sistema de tributação era incapaz de impedir, sendo que outras formas de combater tais actuações, incluindo formas mais gravosas para o contribuinte, eram possíveis.
23. Este carácter antiabuso das tributações autónomas ora em causa será não só coerente com a sua natureza “anti-sistémica” (como acontece com todas as normas do género), como com uma natureza presuntiva, apontada quer pelo Professor Saldanha Sanches quer pela jurisprudência que, amiúde, o cita.
24. Sob o prisma que vem de se expor, as tributações autónomas em análise terão então materialmente subjacente uma presunção de empresarialidade “parcial” das despesas sobre que incidem, em função da supra apontada circunstância de tais despesas se situarem numa linha cinzenta que separa aquilo que é despesa empresarial, produtiva, daquilo que é despesa privada, de consumo, sendo que, notoriamente, em muitos casos, a despesa terá efetivamente na realidade uma dupla natureza (em parte empresarial, em parte particular).
25. Confrontado com tal dificuldade, o legislador, em lugar de simplesmente afastar a sua dedutibilidade, ou inverter o ónus da prova da empresarialidade das despesas em questão (impondo, por exemplo, a demonstração de que “não têm um carácter anormal ou um montante exagerado”, como faz, por exemplo, no n.º 8 do artigo 88.º do Código do IRC), optou por consagrar o regime actualmente vigente, que, não obstante, tem precisamente o mesmo fundamento, a mesma finalidade, e o mesmo tipo de resultado, que outras formas utilizadas noutras situações típicas do regime (no caso) do IRC.
26. Assim, do facto conhecido que é a realização de determinado tipo de gastos, o legislador tira ou ficciona facto desconhecido, que é a aferição do grau de afectação empresarial do produto de tais gastos.
27. E será este facto desconhecido que desencadeia e justifica a tributação autónoma em questão no presente processo.
28. Com efeito, foi por assumir que as despesas sobre que incide aquela tributação autónoma têm, por norma, uma afectação mista, havendo, por isso, um benefício injustificado na sua dedução integral, que o legislador começou, numa primeira fase, por limitar a percentagem daquelas que admitia como dedutível.
29. Ulteriormente, por razões que pouco importarão ao caso, mas que passarão por constrangimentos de ordem orçamental, por um lado, e pela necessidade de assegurar a tributação de eventuais benefícios que particulares pudessem retirar daquelas despesas, o legislador adoptou o actual modelo de tributação autónoma das despesas que ora nos ocupam.
30. Mas tal, não excluiu, antes complementou, aquela primitiva motivação de tributar, adequadamente, o rendimento das pessoas colectivas, distorcido pela dedução de despesas, que o legislador presume de afectação não totalmente empresarial.
31. Ou seja, as finalidades orçamentais e, eventualmente, de tributação de fringe benefits, que possam assistir ao regime actual da tributação autónoma que nos ocupa, não excluem, antes assentam, na referida presunção de “empresarialidade parcial” das despesas sobre que recaem (e, complementarmente, na distorção da tributação do rendimento das pessoas colectivas daí decorrente).
32. Importa clarificar que, sem prejuízo de não estarmos perante uma verdadeira presunção, em sentido técnico-jurídico, nos termos do artigo 349.º do Código Civil, a realidade que ora abordamos não merece tratamento diferente.
33. Face à conclusão que vem de se operar, cumpre então apurar se a ficção que se identificou, é, ou não, susceptível de ser ilidida.
34. A este propósito, dispõe o n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil que:
“2 - As presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos em que a lei o proibir.”.
35. Em coerência, dispõe o artigo 73.º da Lei Geral Tributária (doravante, “LGT”):
“As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.”.
36. Face ao quadro legal apontado, haverá que concluir que a ficção de “empresarialidade parcial” em questão, deverá, em coerência, considerar-se como abrangida pela possibilidade de ilisão genericamente consagrada no n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil e artigo 73.º da LGT, quer pelo contribuinte, quer pela Administração Tributária e Aduaneira, o que se afigura, de resto, conforme a uma proporcional e adequada distribuição do ónus probatório, na medida em que incidindo as tributações autónomas em causa sobre despesas de empresarialidade à partida não evidente, será o contribuinte quem estará melhor posicionado para demonstrar que tal requisito se verifica em concreto.
37. Por seu lado, a própria Administração Tributária e Aduaneira, se assim o entender e considerar que o caso justifica o inerente dispêndio de meios, poderá sempre demonstrar que, relativamente às despesas em questão, e ainda que sobre elas tenha incidido tributação autónoma, não se verifica o requisito geral do artigo 23.º do Código do IRC, designadamente a sua indispensabilidade para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora.
38. Assim, e em suma, as tributações autónomas cujo encargo pretende a Requerente ver subtraídas ao seu lucro tributável, poderão ser encaradas como uma norma antiabuso, em que o legislador propõe ao contribuinte uma de três alternativas, a saber:
a) não deduzir o gasto;
b) deduzir, mas pagar a tributação autónoma, dispensando-se, quer a si quer à Administração Tributária e Aduaneira, de discutir a questão da empresarialidade da despesa;
c) provar a empresarialidade integral da despesa e deduzi-la integralmente, não suportando a tributação autónoma.
39. Neste sentido se pronunciou, igualmente, o Tribunal Central Administrativo Sul, no processo 1294/14.0BELRS, de 03/08/2018, referindo que:
“(…) 3) Através das normas sobre tributação autónoma, o legislador propõe ao contribuinte uma de três alternativas, a saber:
a) não deduzir a despesa;
b) deduzir mas pagar a tributação autónoma, dispensando-se, quer a si quer à Administração Tributária de discutir a questão da empresarialidade da despesa;
c) provar a empresarialidade integral da despesa, e deduzi-la integralmente, não suportando a tributação autónoma.
4) O reconhecimento da natureza presuntiva das normas em apreço constitui uma salvaguarda da não inconstitucionalidade das mesmas”.
40. O reconhecimento desta natureza presuntiva ou presuntiva das tributações autónomas em causa nos autos, nos termos acima expostos, será, para além de tudo o mais, uma salvaguarda da sua constitucionalidade, na medida em que estará garantida quer a possibilidade da respetiva dedução integral pelo contribuinte, quer a sua não dedução, consoante o lado para o qual a presunção que lhes está subjacente seja, concretamente e em cada caso, infirmada, assim se assegurando, devidamente, a conformidade do regime legal em questão com os princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva, que seriam desnecessária (e, ocasionalmente, como é o caso, desproporcionalmente) truncados, pela estatuição de uma presunção inilidível da parcialidade da afectação empresarial das despesas em questão.
41. O artigo 88.º do Código do IRC servirá, assim, para cortar o “nó górdio” daquelas situações indefinidas, ou não documentadas, em que o uso privado possa ocorrer de forma tão relevante que venha a constituir situações parcialmente equivalentes a “benefícios marginais” de colaboradores da empresa, sem que possa fazer-se prova bastante, seja dessa situação, seja da situação oposta – da situação em que tal uso privado esteja excluído pelas circunstâncias de utilização dos veículos ou pelas características desses veículos.
42. Equivale isto a dizer que a prova de que existiu um uso exclusivamente empresarial, ou seja, um uso nem “misto” nem “exclusivamente privado”, mormente a prova de que as viaturas não eram, pela sua natureza nem pelas circunstâncias da sua utilização efectiva, susceptíveis de tal utilização “mista” ou “exclusivamente privada”, bastará para afastar a tributação autónoma das despesas relativas a esse tipo de uso.
43. Essa prova deve ser subordinada ao objectivo tributário dos impostos sobre o rendimento, em cujos Códigos o regime das tributações autónomas se integra totalmente (não havendo hoje dúvidas de que tal tributação não é um imposto distinto do IRC, mas um mero adicional deste).
44. Ou seja, o “uso exclusivamente empresarial”, cuja existência deverá apurar-se, terá de consistir na inequívoca afectação dos veículos, pelas suas características ou pela sua utilização efectiva, às actividades que constituem o objecto do sujeito passivo, i.e., às actividades que geram o seu rendimento tributável.
45. Aqui chegados, torna-se necessário, então, aferir se, em concreto, a ficção da norma do n.º 3 do artigo 88.º do Código do IRC vigente à data do facto tributário, acima determinada, foi, ou não, ilidida.
46. Tudo está em apurar se existiam critérios de aferição, pela própria empresa, de tal uso “exclusivamente empresarial” dos veículos – e, no caso de existirem esses critérios, se está comprovada a observância deles em termos que possam incutir, no julgador, a convicção de que esses critérios eram genuínos, e que existia um interesse proeminente e inequívoco da empresa, na adstrição à conduta dos seus agentes a esse uso “exclusivamente empresarial”.
47. Uma observância que, no caso, se traduzirá na evidência de que algumas características das viaturas dificultavam um uso não “exclusivamente empresarial” (a sua identificação exterior com logotipos empresariais, por exemplo), ou de que estava montado um sistema de monitorização multidimensional do uso regular e adequado dos veículos (por exemplo, gestão central da frota, registos de movimentos, facturação de despesas, deslocações coordenadas de grupos de veículos a reclamar sincronização horária, escalas de utilização indiciadoras de deslocações curtas e frequentes na rotina diária, ou seja, de um emprego “intensivo” desses factores de produção).
48. Se porventura esses critérios não existirem – ou, existindo, não houver comprovação razoável da sua observância em termos do funcionamento tendencialmente optimizador e maximizador da empresa –, então não restará senão admitir-se, não obstante a propriedade empresarial desses activos, a possibilidade de um uso “misto”, tanto particular como empresarial, em concorrência um com o outro na utilização de cada veículo, dadas as aptidões para tal uso que decorrem da sua natureza de viatura ligeira de passageiros “de gama baixa”.
49. E é nesse caso, e só nesse caso, que se justificará o corte do “nó górdio” da indefinição (com o seu potencial abusivo) através do emprego da espada “ad hoc” da tributação autónoma.
50. A tributação autónoma incidirá assim supletivamente, na ausência de prova, seja de uso “exclusivamente particular”, seja de uso “exclusivamente empresarial” – embora não se possa excluir que o próprio sujeito passivo tome a iniciativa de fazer prova de um uso “misto” ou “não-exclusivo”, convocando directamente a aplicação da tributação autónoma.
51. Mas a possibilidade de uma prova que afaste o regime supletivo é essencial para que uma tributação que não é – nem podia sê-lo sem lesão ao sistema, sem ilegalidade ou sem inconstitucionalidade – uma tributação sobre a despesa, possa coadunar-se com os princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva.
52. Por outro lado, porque é dessa indefinição do uso efectivo que se trata na fundamentação do recurso à tributação autónoma, não pode, nem deve confundir-se a correspondente prova da “empresarialidade exclusiva” com uma outra prova, a da “essencialidade” de gastos e perdas que é reclamada pelo artigo 23.º do Código do IRC, e que diz respeito, numa outra dimensão mais ampla, à determinação do lucro tributável do sujeito passivo.
53. De tudo o que precede, e do confronto com a matéria de facto que demos por provada, decorre a conclusão de que a Requerente fez prova bastante de que os encargos com as viaturas ligeiras de passageiros que estão em causa nos presentes autos não deviam ter sido sujeitos a tributação autónoma, porque essas viaturas foram, dentro dos mais estritos critérios razoavelmente exigíveis, objecto de uma utilização exclusivamente empresarial.
54. O que ficou provado, e aqui releva, é que, quanto ao grupo de viaturas que a Requerente escolheu como idóneas para ilustrarem esse uso “exclusivamente empresarial”, elas estavam sujeitas a condições várias que inviabilizavam um uso particular que conflituasse com o uso empresarial: fosse pela sua identificação, fosse pelas suas características, fosse pela sua utilização conjunta em actividades coordenadas, fosse até pela sua relativa escassez face às solicitações operacionais, fosse ainda por uma combinação, em proporções diferentes, de várias destas condições.
55. Ficou provado, no caso, que se tratava de genuínas “viaturas de serviço”, indispensáveis para o funcionamento eficiente das empresas – e que, portanto, por implicação directa, qualquer uso que não fosse “exclusivamente empresarial” interferiria sensivelmente nessa eficiência, na optimização do funcionamento das empresas, na maximização do seu rendimento e do seu lucro.
56. Daí decorre, na mais elementar lógica, que o uso particular de viaturas destinadas a um uso exclusivamente empresarial, na medida em que rivalizasse com este, interferisse neste, o limitasse, se traduziria em prejuízos para as próprias empresas que sempre excederiam, em muito, qualquer valor que, com um tal emprego, se procurasse recuperar em termos de “planeamento fiscal”.
57. Nada, no que ficou provado, demonstra que, na óptica da própria Requerente, o sistema efectivamente montado de acompanhamento e monitorização da utilização “exclusivamente empresarial” das viaturas em apreço tenha trazido prejuízo ao seu funcionamento – sem excluirmos que isso possa ter acontecido com outras viaturas que não estas, de entre aquelas que a Requerente optou por deixar fora dos presentes autos.
58. Não se afigura curial que, ao invés, se possa exigir a uma empresa um tipo de monitorização que excede os critérios empresariais normais, e menos ainda que se requeira dela um “standard” de prova que, de tão onerosa, converteria tal prova em impossível ou em “diabólica”.
59. Conclui-se que a Requerente fez a prova possível, e logo a prova exigível dado o próprio escopo normativo “anti-abuso”, quanto ao uso “exclusivamente empresarial” das viaturas em apreço; e que, feita essa prova, daí decorre, de acordo com a linha interpretativa dominante (e, cremos, a única compatível com a legalidade e com a não-inconstitucionalidade das tributações autónomas), a não-sujeição dos correspondentes encargos ao regime das tributações autónomas previstas, à data dos factos, no artigo 88.º do Código do IRC.
60. Neste contexto, conclui-se, então, que será de considerar ilidida a ficção do artigo 81.º, n.º 3 do Código do IRC na redacção vigente à data do facto tributário, pelo que, demonstrando-se que os veículos a que se reportam as despesas sobre as quais incidiu a tributação autónoma em questão no presente processo arbitral têm uma afectação 100% empresarial, não deverão as mesmas ser objecto de incidência daquela tributação.
61. Face ao exposto, deverá a presente acção arbitral ser julgada procedente e, consequentemente, a liquidação objecto do presente processo ser anulada, nos termos peticionados.
62. Tendo em conta que consta da resposta da AT a tabelar alegação de que “não deve ser admitida à Requerente a ambicionada prova da alegada empresarialidade integral, sob pena de violação do princípio da legalidade tributária, na vertente da generalidade e abstracção que permitem e potenciam a igualdade dos contribuintes perante a lei fiscal, e portanto, sob pena de violação do princípio da igualdade fiscal, os quais decorrem do disposto no art. 13º e no art. 103º da CRP”, desde já se consigna que se considera que a mesma não formula qualquer questão concreta de constitucionalidade que gere para este Tribunal uma obrigação de pronúncia, na medida em que se trata de uma mera formulação genérica de um suposto entendimento não concretizado, onde não se indica, para além do mais, qual a específica norma ou segmento normativo a cuja interpretação se refere (sendo que a inserção sistemática parece sugerir tratar-se da norma onde o Requerente funda o pedido de juros indemnizatórios), nem como, em que medida e porquê a suposta interpretação apresentada pela Requerente viola cada uma das normas constitucionais que arrola.
B. Do reembolso dos montantes pagos e dos juros indemnizatórios
63. Além do exposto acima, a Requerente peticiona igualmente o reembolso da quantia paga com juros indemnizatórios desde a data do pagamento até ao integral reembolso do referido montante.
64. Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existira se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.
65. Por conseguinte, e conforme o estatuído no artigo 100.º da LGT aplicável ex vi alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.
66. Assim, e não obstante as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT utilizarem a expressão “declaração de ilegalidade” para delinear o âmbito material de competência dos tribunais arbitrais, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreende no seu escopo os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários.
67. Com efeito, é esta a interpretação que melhor se coaduna com o propósito subjacente à criação dos tribunais arbitrais em matéria tributária, i.e., que estes constituíssem um meio alternativo de resolução de litígios e, por conseguinte, alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária.
68. Saliente-se que apesar de o processo de impugnação judicial consubstanciar um contencioso de mera anulação de atos tributários, é admissível a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, conforme o preceituado no n.º 1 do artigo 43.º da LGT.
69. Nos termos do artigo anteriormente mencionado: “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” (negritos e sublinhados nossos).
70. Mais ainda, decorre do próprio n.º 5 do artigo 24.º do RJAT que “[é] devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
71. Neste sentido, o Conselheiro JORGE LOPES DE SOUSA refere que: “[o]ra, apesar de o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação (artigos 99º e 124º do CPPT), pode nele ser proferida condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida. Na verdade, apesar de não existir qualquer norma expressa nesse sentido, tem-se vindo pacificamente a entender nos tribunais tributários, desde a entrada em vigor dos códigos da reforma fiscal de 1958-1965, que pode ser cumulado em processo de impugnação judicial pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios com o pedido de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência do ato, por nesses códigos se referir que o direito a juros indemnizatórios surge quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, a administração seja convencida de que houve erro de facto imputável aos serviços.», acrescentado o mesmo autor que «[…]particularmente em processos que estavam pendentes nos tribunais tributários há mais de dois anos e em que os contribuintes utilizaram a faculdade prevista no artigo 30º do RJAT, não seria razoável entender que podiam ser apreciadas pelos tribunais arbitrais apenas as questões da legalidade dos atos de liquidação impugnados nos processos de impugnação judicial e não também a apreciação dos pedidos de condenação em juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida, o que se reconduziria a que o processo de impugnação judicial tivesse de se manter, necessariamente com suspensão da instância até transitar em julgado a decisão arbitral, apenas para apreciar estes pedidos indemnizatórios, cuja apreciação depende da decisão sobre a legalidade dos atos de liquidação.» (Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, Guia da Arbitragem Tributária – Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Coimbra: Almedina, 2017, pp. 95 e 97).
72. No que concerne ao âmbito das decisões arbitrais, os tribunais arbitrais em funcionamento no CAAD não se têm acanhado na condenação ao pagamento de juros indemnizatórios (neste sentido, e a título de exemplo, os processos n.ºs 680/2016-T, 321/2014-T, 12/2013-T, 39/2012-T ou 22/2012-T).
73. Em suma, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios calculados à taxa legal e pagos nos termos do n.º 1 do artigo 43.º e n.º 10 do artigo 35.º da LGT, bem como do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT, dos n.ºs 3 e 4 do artigo 61.º do CPPT e do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril, relativamente à liquidação que é anulada, desde a data em que foi efetuado o pagamento do imposto respetivo.
V – DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, anular o acto tributário de autoliquidação de IRC respeitante ao exercício de 2015 da Requerente, na parte correspondente à tributação autónoma incidente sobre os encargos com viaturas, no valor de €172.433,69, bem como o acto de decisão da reclamação graciosa que sobre o mesmo incidiu, na parte respeitante às tributações autónomas sobre os encargos com viaturas ligeiras de passageiros; e ainda, nessa mesma parte, os actos de liquidação n.º 2016 …, de 02/08/2016, e respectiva demonstração de liquidação de juros n.º 2016 …, de liquidação n.º 2018 …, de 30/07/2018, de liquidação adicional n.º 2018 …, de 05/11/2018, e de juros compensatórios n.º 2018 ….
b) Condenar a AT no pagamento de juros indemnizatórios à Requerente.
VI - VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em €172.433,69, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária. Computa-se em a taxa de justiça em €3.672,00, a cargo da Requerida AT.
Notifique-se.
Lisboa, 30 de Maio de 2019.
Os árbitros,
(José Baeta de Queiroz)
(Leonardo Marques dos Santos - vencido)
(Regina de Almeida Monteiro)
Voto de Vencido
Não votei favoravelmente a decisão já que a interpretação que faço do artigo 88.º, n.º 3 do Código do IRC não coincide totalmente com a perfilhada pelos demais Árbitros.
Com efeito, entendo que, sem prejuízo de o artigo 88.º, n.º 3 do Código do IRC se basear num juízo presuntivo, este não estabelece uma presunção ou ficção a que possa ser aplicado o artigo 73.º, da LGT (sobre a distinção entre presunção e juízo presuntivo ver João Sérgio Ribeiro, Tributação Presuntiva do Rendimento, um Contributo para Reequacionar os Métodos Indirectos de Determinação da Matéria Tributável, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 42-44, Sérgio Vasques, “IVA, Direito à Dedução e Presunções Tributárias: a Jurisprudência do CAAD, in Sérgio Vasques (Coord.) Cadernos do IVA 2017, Coimbra: Almedina, 2017).
(Leonardo Marques dos Santos)