Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 482/2018-T
Data da decisão: 2019-06-06  IRC  
Valor do pedido: € 163.530,08
Tema: IRC - SGPS. Encargos financeiros. Prestações suplementares.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1. A...- SGPS, S.A., pessoa colectiva n.º..., com sede na ...–..., ...-... ..., sociedade dominante de grupo fiscal B..., sujeito ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, bem como do acto tributário de liquidação adicional de IRC, no montante global de € 654.120,31, referentes ao ano de 2011.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Autoridade Tributária, no âmbito de um procedimento inspectivo, considerou que os encargos financeiros imputáveis a partes do capital não concorrem para a formação do lucro tributável, nos termos do artigo 32.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, e em aplicação da circular n.º 7/2004, tendo determinado a sua desconsideração para efeitos fiscais e a consequente correcção do lucro tributável.

 

Entende a Requerente, nesse contexto, que, estando em causa prestações suplementares, estas não devem ser incluídas no conceito de partes de capital a que se refere aquela  disposição, não se encontrando abrangidas pela regra de não dedutibilidade nela prevista.

 

O conceito de “partes de capital”, à luz do direito societário, corresponde a “participações sociais” e não abarca os créditos pela realização de prestações acessórias, os créditos pela realização de prestações suplementares ou similares, que têm exclusivamente na sua origem entregas em dinheiro.

 

As prestações suplementares são outras obrigações dos sócios de entradas em dinheiro para além do capital social realizadas naquelas situações em que, no momento da constituição se antevê a possibilidade de o capital se tornar insuficiente para a realização do objecto social, pelo que as perdas relativas às prestações suplementares não podem ser consideradas no cálculo das menos-valia decorrente da alienação das partes de capital, na medida em que estas não se incluem nesse conceito de “partes de capital”.

 

Basta notar que o sócio enquanto titular de parte de capital e o credor das prestações suplementares estão subordinados a um diferente regime jurídico, que, no primeiro caso, se consubstancia um conjunto de direitos (direito de voto e de obtenção dos lucros da sociedade) e obrigações (participação nas perdas e dever de realização de entradas), e, no segundo caso, se traduz num direito de crédito sobre a sociedade, sem que daí resulte qualquer consequência no que respeita à posição jurídica societária.

 

Relativamente a esta matéria, importa ainda ter presente que o “capital próprio” é um conceito contabilístico abrangente, que inclui diversas rubricas, entre as quais se encontram as “partes de capital” do sócio, o que não significa que todas as demais componentes devam ser equiparadas a capital social.

 

Mesmo no plano do direito fiscal, a lei distingue entre partes de capital e créditos por prestações suplementares, como se depreende do disposto no n.° 3 do artigo 42.º do Código do IRC, na redacção da Lei n.° 60-A/2005, de 30 de Dezembro, em que se previa que [a] diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital (…), bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”.

 

A Circular n.° 7/2004, de 30 de Março, em que se baseou o acto de liquidação adicional, na medida em que afasta a dedutibilidade de encargos financeiros é ilegal por violação do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, além de ser inconstitucional, designadamente no que se refere aos seus n.°s 7 e 8, por violação do princípio constitucional da reserva de lei da Assembleia da República para as questões de incidência em matéria de impostos, em aplicação do disposto nos artigos 103.°, n.°s 2 e 3, e 165.°, n.° 1, alínea i), da Constituição.

 

Para além disso, a fórmula contante da Circular, ao permitir uma segregação de encargos financeiros supostamente imputáveis ao financiamento do activo “partes de capital”, parte do pressuposto errado de que um passivo só pode ter como contrapartida um activo, e, nesse sentido, representa o equivalente a uma presunção inilidível no domínio do cômputo do lucro tributável, contrariando o princípio constitucional da tributação segundo o rendimento real.

 

 

Conclui no sentido da procedência do pedido arbitral, mediante a declaração de ilegalidade do indeferimento do pedido de revisão oficiosa e da liquidação oficiosa de IRC, com fundamento em violação de lei e inconstitucionalidade.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, invoca a excepção dilatória da incompetência do tribunal arbitral, porquanto o pedido de revisão oficiosa que constitui objecto do processo foi considerado extemporâneo por não ter sido apresentado no prazo da reclamação graciosa (120 dias), não beneficiando o requerente do prazo mais amplo de 4 anos por se não verificar a ilegalidade acto tributário.

Nesse sentido, a decisão de indeferimento do pedido de revisão, assentando na  intempestividade do pedido, não se pronunciou sobre o mérito do acto de liquidação, tratando-se de um acto administrativo que não é passível de impugnação judicial, pelo que o meio processual adequado para reagir contra o indeferimento do pedido de revisão é a acção administrativa especial a intentar perante os tributários tributários.

Por impugnação, a Autoridade Tributária alega que os dados constantes do pedido arbitral quanto ao cálculo dos saldos dos passivos remunerados não correspondem aos que foram coligidos no âmbito do procedimento inspectivo, sendo que a aplicação da Circular n.º 7/2004 decorre da impossibilidade de determinar em concreto as participações sociais em causa, competindo à Requerente comprovar especificadamente os financiamentos obtidos e os correspondentes encargos financeiros.

No que concerne à alegada exclusão das prestações suplementares, é entendimento da Requerida que, para efeitos do disposto no artigo 32.º, n.º 2, do EBF, se subsumem ao conceito de partes de capital não só das participações sociais mas também outras componentes do capital próprio que desempenhem as funções de capital social, como se verifica com os aumentos de capital, as prestações suplementares e as prestações acessórias.

Efectivamente, como resulta desse preceito, as SGPS estão isentas da tributação das mais-valias na alienação de partes de capital, desde que detidas por período não inferior a um ano, mas não podem deduzir fiscalmente os encargos financeiros que suportam para a aquisição dessas mesmas participações, e, em consequência, os encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital não concorrem para a formação do lucro tributável, compreendendo-se que o propósito do legislador foi obstar que as SGPS acumulassem dois benefícios.

Assim sendo, a desconsideração dos encargos financeiros deve operar de imediato, não dependendo da alienação das participações sociais e da realização de mais-valias, o que implica não considerar ab initio os custos financeiros incorridos com a aquisição de participações sociais que possam vir a beneficiar da exclusão de tributação prevista no n.º 2 do artigo 32º do EBF.

Acresce que a Circular n.º 7/2004, ao afastar a dedutibilidade dos encargos financeiros incorridos com financiamentos ligados à aquisição das participações sociais, limitou-se a interpretar a lei, no seu contexto literal, esclarecendo dúvidas quanto ao regime fiscal aplicável às SGPS, e não estabelece quaisquer novas normas de incidência a que pudesse ser imputável o vício de inconstitucionalidade.

A norma do artigo 32.º, n.º 2 do EBF, quando interpretada no sentido apontado pela Requerente, é inconstitucional por violação do princípio da reserva de lei da Assembleia da República, previsto nos artigos 103.º, n.º 2 e 3, e 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição.

Conclui no sentido da verificação da excepção dilatória da incompetência do tribunal e da improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

2. No seguimento do processo foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e ordenado o prosseguimento do processo para alegações por prazo sucessivo.

 

Em alegações, a Requerente respondeu à excepção dilatória suscitada pela Autoridade Tributária, dizendo que a proposta de indeferimento do pedido de revisão oficiosa sobre a qual recaiu o despacho de concordância da Directora de Finanças de ..., apreciou a legalidade do acto tributário em causa, concluindo expressamente pela inexistência de erro imputável aos serviços, pelo que não pode deixar de considerar-se que a decisão se pronunciou sobre a legalidade do acto tributário, sendo a impugnação judicial o meio processual adequado para a apreciação da questão.

 

Quanto ao fundo da causa, as partes mantiveram as suas anteriores posições. 

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 6 de Dezembro de 2018.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

3. Os factos relevantes para a decisão da causa que poderão ser tidos como assentes são os seguintes.

 

A) A Requerente é uma Sociedade Gestora de Participações Sociais e a sociedade dominante de grupo fiscal B..., sujeito ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades previsto no artigo 69.° e seguintes do Código do IRC;

 

B) Em cumprimento das ordens de serviço n.ºs OI 2015..., OI 2015... e OI 2015...foi objecto de um procedimento inspectivo de âmbito parcial, em sede de IRC, incidente sobre os exercícios de 2011, 2012 e 2013;

 

C) Na sequência do procedimento inspectivo, foram determinadas correcções em IRC que originaram um aumento da base tributável do Grupo Fiscal no montante de € 654.120,31, relativamente ao exercício de 2011;

 

D) Segundo o Relatório da Inspecção Tributária, as correcções resultaram da desconsideração fiscal de encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital por se entender, em aplicação da Circular n.º 7/2004, que esses encargos se encontravam abrangidos pelo disposto no artigo 32.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais;

 

E) Na sequência do despacho de concordância do chefe de divisão da Direcção de Finanças de Lisboa, foi emitida a liquidação de IRC n.° 2016..., notificada à requerente em 12 de Maio de 2016;

 

F) A Requerente deduziu um pedido de revisão oficiosa da liquidação em 2 de Março de 2018;

 

G) Os serviços formularam uma proposta de indeferimento liminar do pedido de revisão oficiosa com base nas seguintes conclusões: 1 – o pedido de revisão tributário é extemporâneo, por não ter sido apresentado nos prazos de reclamação graciosa, que é de 120 dias contados do término do prazo do pagamento voluntário – conjugação dos artigo 78.º/1 da LGT e artigos 70.º/1 e 102.º/1 do CPPT; 2 - Não beneficia da convolação em prazo de 4 anos para a sua apresentação, por não se verificar  a ilegalidade do acto tributário imputável aos serviços que acturam em cumprimento de informação vinculativa – conjugação dos artigos 68.º-A/1 e 78.º/1 in fine LGT;

 

H) A proposta obteve a concordância da Directora de Finanças de..., por despacho de 25 de junho de 2018.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta.

 

Matéria de direito

 

Incompetência do tribunal arbitral

 

5.  A Autoridade Tributária invoca a incompetência material do tribunal arbitral com base no entendimento de que o pedido incide sobre a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa deduzido contra o acto de liquidação, e essa decisão não se pronunciou sobre o mérito da questão porquanto determinou o indeferimento liminar do pedido com fundamento em intempestividade. Nesse contexto, o meio processual adequado seria a acção administrativa especial, em aplicação do disposto no artigo 97.º, n.º 2, do CPPT, para cuja apreciação o tribunal arbitral é incompetente à luz do disposto no artigo 2.º do RJAT.

 

               

Tal como vem colocada, a questão prende-se com a distinção, no âmbito do processo judicial tributário, entre a impugnação judicial e o recurso contencioso segundo a nomenclatura que resulta do artigo 97.º do CPPT.

 

Nos termos do artigo 95.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária “o interessado tem o direito de impugnar ou recorrer de todo o acto lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos segundo as formas de processo prescritas na lei”. Por sua vez, o artigo 97.º, n.º 1, do CPPT distingue entre a impugnação judicial e o recurso contencioso de acordo com o objecto do processo, considerando impugnáveis “os actos administrativos em matéria tributária que comportem a apreciação da legalidade do acto de liquidação” (alínea d)), e recorríveis “os actos administrativos em matéria tributária, que não comportem a apreciação da legalidade do acto de liquidação” (alínea p)).

 

Entretanto, o n.º 2 desse artigo 97.º esclarece que recurso contencioso dos actos administrativos em matéria tributária que não comportem apreciação da legalidade do acto de liquidação é regulado pelas normas sobre processo nos tribunais administrativos, o que remete para o disposto no artigo 191.º do CPTA. Determina este preceito que “as remissões que, em lei especial, são feitas para o regime do recurso contencioso de anulação de atos administrativos consideram-se feitas para o regime da ação administrativa”, o que significa que a remissão efectuada pelo artigo 97.º, n.º 1, alínea p), do CPPT se considera agora feita para a forma de processo que lhe corresponde no CPTA. O que conduziria, em tese geral, a considerar aplicável a acção de condenação à prática de acto devido quando estivesse em causa a omissão ou recusa da prática de acto administrativo.

 

Havendo de notar-se que, com a revisão de 2015, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, as pretensões materiais deduzidas em juízo que se reportam à prática ou omissão de ato administrativo ou à prática ou omissão de norma administrativa - que anteriormente correspondiam à forma da ação administrativa especial - seguem agora o regime da acção administrativa como única forma de processo declarativo aplicável quando não estejam em causa processos urgentes (cfr. artigo 37.º).

 

A utilização da acção administrativa, em aplicação do artigo 97.º, n.º 1, alínea p), e por efeito da remissão constante do disposto no n.º 2 desse artigo, prende-se, portanto, com a caracterização da questão tributária que está em causa, e terá lugar quando a questão não comporte apreciação da legalidade do acto de liquidação.

 

Ora, a Requerente, inequivocamente, deduziu um pedido de constituição de tribunal arbitral para a apreciação da legalidade de um acto de liquidação adicional de IRC e, precedentemente, deduziu um pedido de revisão oficiosa contra o mesmo acto de liquidação, visando obter a sua anulação pela via administrativa.

 

O efeito útil e relevante do indeferimento do pedido de revisão oficiosa traduz-se na manutenção na ordem jurídica do acto tributário de liquidação, pelo que é esse mesmo indeferimento que torna justificável e necessário o recurso à jurisdição arbitral visto não ter sido possível obter a anulação administrativa ainda na fase pré-judicial. A decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa constitui, neste contexto, o objecto mediato do pedido e tem em vista assegurar a eliminação da ordem jurídica dessa decisão caso se venha a concluir pela ilegalidade do acto tributário de liquidação.

 

Ainda que assim se não entendesse, não pode deixar de reconhecer-se – tal como se decidiu, em situação similar, no acórdão do STA de 14 de Maio de 2015 (Processo n.º 01958/13) - que a decisão de indeferimento, tendo manifestado concordância com a proposta formulada pelos serviços, assenta em dois diferentes fundamentos: por um lado, considerou-se que o pedido de revisão é extemporâneo por não ter sido apresentado dentro do prazo de reclamação graciosa; por outro lado, entendeu-se não se ter verificado a ilegalidade do acto tributário por erro imputável aos serviços para efeito de poder ser admitida a revisão oficiosa no prazo mais amplo de quatro anos a que se refere a segunda parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT.

 

E, nesse sentido, a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, por efeito de um dos fundamentos invocados, comporta a apreciação da legalidade de um acto de liquidação e cabe no âmbito de aplicação do artigo 97.º, n.º 1, alínea d), do CPPT.

 

Nestes termos, a invocada exceção da incompetência do tribunal arbitral mostra-se ser improcedente.

 

Questão de fundo

 

6. A questão que está em debate respeita a saber se os encargos financeiros suportados com a realização de prestações acessórias sujeitas ao regime de prestações suplementares devem ser imputadas como referentes a “partes de capital” para efeito do disposto no artigo 32.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF).

 

Dispõe este preceito que “[A]s mais-valias e as menos valias realizadas pelas SGPS, pelas SCR e pelos ICR de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim os encargos financeiros suportados com a sua aquisição não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades.” A questão que assim se coloca relaciona-se com a qualificação das prestações suplementares como “partes do capital”, visto que só na hipótese afirmativa é possível considerar que os encargos financeiros em causa não concorrem para a formação do lucro tributável e não poderão, por isso, ser considerados para efeitos fiscais.

 

Interessa começar por convocar, a este propósito, as regras gerais da interpretação das leis fiscais que resultam do artigo 11.º da LGT, e especificamente o que consta dos seus n.ºs 1 e 2:

1 -Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que às mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”.

2 - Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei.

 

De onde resulta que, embora a regra seja a de os termos utilizados nas normas fiscais deverem ser interpretados com o mesmo alcance que têm noutros ramos do direito, excepciona-se o caso em que decorra diretamente da lei fiscal que o termo é aí utilizado com um sentido diferente daquele que normalmente possui noutros lugares paralelos.

 

Neste plano, importa ter presente a caracterização própria das prestações suplementares a que fazem referência os artigos 209.º a 2013.º do Código das Sociedades Comerciais.

 

Se o contrato de sociedade assim o permitir, podem os sócios deliberar que lhes sejam exigidas prestações suplementares, fixando o contrato o montante global das prestações suplementares, os sócios que ficam obrigados a efectuar tais prestações e o critério de repartição das prestações suplementares entre os sócios a elas obrigados. As prestações suplementares têm sempre dinheiro por objecto (pelo que não podem ser efectuadas em espécie) e não vencem juros (artigo 210.º).

 

As prestações suplementares podem ser restituídas se assim for deliberado pelos sócios e desde que a situação líquida não fique inferior à soma do capital e da reserva legal e o respectivo sócio já tenha liberado a sua quota (artigo 213º).

 

O que poderá dizer-se é que as prestações suplementares são entradas em dinheiro com vista a reforçar o património da sociedade, eventualmente para cobrir perdas que se verifiquem, correspondendo a um reforço monetário que acresce ao capital, embora se não enquadre na estrita acepção do capital, nem se encontrem subordinadas ao respectivo regime jurídico.  

 

As prestações suplementares constituem assim um possível meio de financiamento das sociedades por quotas e, embora sejam tidas, à face do Plano Oficial de Contabilidade, como uma modalidade de capital próprio – tal como o capital social – têm uma natureza económica e jurídica diversa do capital social. Por um lado, os sócios poderão reaver as prestações suplementares dentro do condicionalismo do artigo 213.º do CSC, ao passo que a redução do capital social para libertação a favor dos sócios do que exceder as necessidades da sociedade está sujeito a requisitos mais exigentes, mormente por via da prévia autorização judicial, registo e publicação da deliberação social e formalização por escritura pública (artigos 85.º, n.º 1, e 95.º, n.ºs 1, 2 e 4, do CSC). Por outro lado, a participação social, nas suas diferentes designações de parte, quota ou acção para os diversos tipos societários, constituindo uma fracção do capital social, representa a posição jurídica do sócio, com os correspondentes direitos e obrigações de índole geral e associativa, como seja o direito de quinhoar nos lucros, de participar nas deliberações sociais, de obter informações respeitantes à actividade social e de ser designado para os órgãos sociais e também a obrigação de entrada e participar nas perdas (sobre todos estes aspectos, cfr. PINTO FURTADO, Curso do Direito das Sociedades, 4.ª edição, Coimbra, págs. 219 e 320-321; COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, vol II, 6.ª edição, Coimbra, págs. 215 e 313 a 317; Rui Pinto Duarte, “Suprimentos, Prestações Acessórias e Prestações Suplementares – notas e questões”, in Problemas do Direito das Sociedades, Coimbra, págs.275 a 277).

 

Assim sendo, no plano do direito das sociedades, o conceito de “partes de capital” corresponde a participações no capital social e não se confunde com os créditos ou a expectativa de reembolso originados pela realização de prestações suplementares.

   

E no mesmo sentido aponta a evolução legislativa operada no domínio fiscal.

 

Na redacção introduzida pela Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, o artigo 42.º do Código do IRC (entretanto renumerado como artigo 45.º), referindo-se aos encargos não dedutíveis para efeitos fiscais, passou a dispor no seu n.º 3 o seguinte: “A diferença negativa entre as mais valias e as menos valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do valor”. O inciso “ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares” - que não constava da versão originária da norma - revela que, mesmo para o legislador fiscal, são distintos os conceitos de partes de capital e prestações suplementares, sendo que o conceito de “partes de capital”, no contexto literal da norma,  é necessariamente mais restrito o que o de “capital próprio”, visto que englobará para além de partes do capital outras componentes do capital próprio .

 

Como se esclareceu no acórdão proferido no Processo n.º 264/2016-T, essa alteração legislativa teve em vista explicitar que as prestações suplementares, para efeitos de IRC, se enquadram entre as “outras componentes do capital próprio” e não nas “partes de capital”, sendo que essa delimitação conceitual também se reflecte no âmbito aplicativo do artigo 32.º, n.º 2, do EBF. Com efeito, esta norma pretende afastar em relação às SGPS o regime geral que decorre da falada norma do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC quanto à dedutibilidade de variações patrimoniais negativas relativas a “partes de capital”, pelo que o conceito de “partes de capital” que consta da norma de excepção não pode deixar de corresponder àquele que é utilizado na norma geral, só assim se podendo compreender o alcance do efeito restritivo que se teve em vista obter por via do Estatuto dos Benefícios Fiscais.

 

Por outro lado, importa fazer notar que o artigo 32.º, n.º 2, do EBF, tendo sido reformulado pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, já depois da alteração introduzida pela Lei n.º 60-A/2005 no artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, não acompanhou a distinção aí efectuada entre partes de capital e prestações suplementares, mantendo referência apenas às «partes de capital» sem qualquer alusão às «outras componentes do capital próprio» a que alude aquele outro preceito do Código do IRC.

 

De facto, o artigo 32.º, n.º 2, do EBF estabelecia um regime especial para as SGPS, que se traduzia na irrelevância para a formação do lucro tributável das mais-valias e menos-valias realizadas de partes de capital detidas há pelo menos um ano, acompanhada do não concurso para a formação do lucro tributável dos encargos financeiros suportados com a sua aquisição. Ao estabelecer que não concorrem para a formação do lucro tributável os “encargos financeiros suportados com a sua aquisição” - reportando-se às partes de capital – haverá concluir-se – como também se ponderou no acórdão proferido no Processo n.º 23/2018-T - que tão só os encargos financeiros que estejam conexionados com a aquisição de participações sociais são abrangidos pela não dedutibilidade para efeitos fiscais.

 

Essa mesma interpretação surge corroborada pelo Relatório do Orçamento do Estado para 2003, que justifica a alteração introdução no artigo 32.º, n.º 2, do EBF, introduzida pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, como uma das medidas de alargamento da base tributável e moralização do comportamento fiscal dos contribuintes, esclarecendo que se pretende estabelecer “a desconsideração da dedutibilidade, para efeitos de determinação do lucro tributável, dos encargos de natureza financeira directamente associados à aquisição de partes sociais por parte das SGPS” (disponível em http://www.dgo.pt/politicaorcamental/OrcamentodeEstado/2003/Proposta).

 

Na mesma linha de entendimento, MANUEL ANSELMO TORRES refere o seguinte:

 

“As prestações suplementares não constituem “partes de capital” porquanto não são suscetíveis de transmissão autónoma da participação social a que respeitam, conforme ficou acima demonstrado. Tanto é reconhecido pela própria lei fiscal, ao referir-se às prestações suplementares como “outras componentes do capital próprio” por oposição a “partes de capital” (CIRC 45.3). (…) 

Não se diga que, por a prestação suplementar não vencer qualquer juro (por natureza), não seriam dedutíveis os juros em que os próprios sócios incorressem para financiar o respectivo valor perante terceiros (cf. CIRC 23). Embora não vençam juros, as prestações suplementares são entradas suscetíveis ou potenciadoras de uma outra remuneração, quer através dos lucros distribuídos, quer através de mais-valias futuras. As prestações suplementares poderão igualmente servir para evitar perdas sociais que, a ocorrerem, se traduziriam em perdas fiscais dos sócios. Como tal, os juros incorridos pelo sócio para financiar a realização de prestações suplementares podem configurar um custo indispensável à manutenção da fonte produtora de rendimentos tributáveis da sociedade. (…)

Há, no entanto, que distinguir entre o custo de aquisição de partes de capital que inclua o valor das prestações sociais que lhe são inerentes, e o custo de realização de prestações suplementares realizadas pelo titular das partes de capital que (…) não constituem elas próprias novas partes de capital. A alienação de partes de capital é susceptível de gerar mais-valias ou menos-valias influenciadas pelas prestações suplementares que lhe são inerentes. Mas as prestações suplementares realizadas pelo titular das partes de capital não constituem um custo de aquisição das mesmas, mas apenas um reforço dos capitais próprios da sociedade participada, que deve por isso ser relevado numa conta de investimentos financeiros autónoma.

Pela mesma razão, os gastos de financiamento das prestações suplementares realizadas pelo titular das partes de capital não constituem um encargo financeiro suportado com a sua aquisição, pelo que não estão excluídos do concurso para a formação do lucro tributável designadamente das sociedades gestoras de participações sociais, nos termos do n.º 2 do art. 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais.” (“Prestações suplementares, seu regime comercial, contabilístico e tributário”, Estudos em Memória do Prof. Doutor Saldanha Sanches, Vol. IV, AA. VV., Coimbra Editora, 2011, págs. 916-918).   

 

Havendo de reconhecer-se, à luz de tudo o que vem exposto, que a norma do artigo 32.º, n.º 2, do EBF não se refere a encargos financeiros suportados com prestações suplementares, tem aplicação o regime geral de dedutibilidade de gastos que resulta do artigo 23.º do Código de IRC.

 

Esta norma, sob a epígrafe “Gastos e perdas”, na parte que interessa considerar, dispunha o seguinte:

 

1 – Consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente:

(…)

c) De natureza financeira, tais como juros de capitais alheios aplicados na exploração, descontos, ágios, transferências, diferenças de câmbio, gastos com operações de crédito, cobrança de dívidas e emissão de obrigações e outros títulos, prémios de reembolso e os resultantes da aplicação do método do juro efetivo aos instrumentos financeiros valorizados pelo custo amortizado;

(…).

 

Na linha do que tem sido entendido pelo STA (acórdãos do STA de 28 de Fevereiro de 2018, Processo n.º 01206/17, e de 21 de Fevereiro de 2018, Processo n.º 0473/13) e como tem sido sublinhado pela jurisprudência arbitral, “não se pode afirmar que os custos financeiros suportados com a realização de prestação suplementares, sejam dispensáveis à manutenção da fonte produtiva. A este respeito, (…) parece claro que, estando em causa uma sociedade gestora de participações sociais, cuja actividade, pela própria natureza consiste na valorização das participações sociais por si detidas, a dotação de uma sociedade participada dos capitais próprios, ao permitir que esta melhor e mais eficientemente exerça a respectiva actividade, com o consequente aumento do lucro, é um acto idóneo à manutenção e valorização da fonte produtiva da sociedade gestora (cfr., entre outros, acórdão proferido no Processo n.º 80/2013-T).

 

 Nesse mesmo sentido se pronunciou o acórdão proferido no Processo n.º 222/2017-T, entre as mesmas partes e referente ao exercício de 2012 e 2013, e mais recentemente, em situação similar, no acórdão proferido no Processo n.º 385/2018-T.

 

Nestes termos, conclui-se que as correções efetuadas pela Autoridade Tributária, referente ao exercício de 2011, enfermam de vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de direito, radicado na errada interpretação e aplicação do artigo 23.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRC e do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, o que justifica a anulação do ato tributário de liquidação adicional de IRC e a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.

 

Resta considerar que, estando em causa a mera interpretação da lei por um órgão jurisdicional, no exercício da sua competência própria, não ocorre qualquer violação do princípio da reserva da competência legislativa da Assembleia da República.

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide:

 

a)            Pronunciar-se pela competência do tribunal arbitral para conhecer do pedido;

b)           Julgar procedente o pedido arbitral e anular a liquidação adicional de IRC n.° 2016..., n.º 2017..., referente ao ano de 2011, bem como a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 654.120,31, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 9.792,00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 6 de junho de 2019

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

Pedro Galego

 

O Árbitro vogal

José Nunes Barata