Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 480/2018-T
Data da decisão: 2019-06-06  IRC  
Valor do pedido: € 24.225,43
Tema: IRC – Obrigações contabilísticas das empresas, prova do valor de aquisição.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

1. A pessoa coletiva A..., S.A., com o n.º de identificação fiscal ... (doravante designada por “Requerente”), com sede na ..., ...-... ...,  ..., apresentou, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, i.e., Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), pedido de constituição de Tribunal Arbitral, de forma a ser declarado ilegal o ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) referente ao exercício de 2016, sendo demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (“Requerida” ou “AT”).

A) Constituição do Tribunal Arbitral

2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro do tribunal singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação no dia 19 de outubro de 2018.

3. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, e mediante a comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído no dia 6 de dezembro de 2018.

B) História processual

4. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente peticiona a ilegalidade do ato de liquidação adicional de IRC de 2016, com o n.º de compensação 2018... e de juros compensatórios, no valor global de Euro 24.225,43.

5. A AT apresentou resposta, peticionando, por sua vez, a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, por não se verificar qualquer vício de violação de lei, solicitando que o ato tributário em análise, por não violar qualquer preceito legal ou constitucional, seja mantido na ordem jurídica.

6. Por despacho de 30 de maio de 2019, o Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 16.º do RJAT, decidiu, sem oposição das partes, que não se mostrava necessário promover a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, em resultado da simplicidade das questões em apreço, bem como por considerar que tinha em seu poder todos os elementos necessários para tomar uma decisão clara e imparcial.

7. Decidiu o presente Tribunal Arbitral, em conformidade com o n.º 2 do artigo 18.º do RJAT, não ser necessária a produção de alegações orais, ou a audição de testemunhas, por estarem perfeitamente definidas as posições das partes nos respetivos articulados, e fixou como prazo limite para a decisão arbitral o dia 6 de junho de 2019.

8. Em adição ao Pedido de Pronúncia Arbitral, a ora Requerente apresentou também um Requerimento, onde juntou a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 170/2018-T, a qual foi parcialmente favorável à Requerente, tendo impacto no presente Pedido, pelo que o teor deste Requerimento se encontra a ser considerado por este Tribunal Arbitral para efeitos da apreciação da causa.

9. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente para apreciar as questões indicadas (artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade plena (artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). Não ocorrem quaisquer nulidades e não foram suscitadas exceções, pelo que nada obsta ao julgamento de mérito.

10. Encontra-se, assim, o presente processo em condições de nele ser proferida a decisão final.

II. Questão a decidir

11. A questão fulcral a apreciar e decidir relativamente ao mérito da causa, tal como se retira das peças processuais das partes, é a de saber se a liquidação de IRC supracitada padece dos vícios de ilegalidade que a Requerente lhe aponta, designadamente: i) a insuficiência de fundamentação do ato de liquidação, ii) erro dos factos e de direito quanto à não-aceitação dos gastos com a depreciação de ativos fixos tangíveis e iii) desconsideração dos prejuízos fiscais relativos aos exercícios anteriores, os quais foram também contestados em sede própria.

III. Decisão da matéria de facto e sua motivação

12. Examinada a prova documental produzida, o presente tribunal julga como provados, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos:

I.             A ora Requerente exerce a sua atividade económica no âmbito da indústria de fibras de madeira, aglomerados e folheados, e a sua comercialização.

II.            No âmbito da sua atividade, a Requerente encontra-se a depreciar ativos fixos tangíveis que foram adquiridos antes de 2006, tendo destruído os documentos de suporte com eficácia externa (i.e., faturas) que suportavam a aquisição destes ativos, visto estes documentos terem mais de dez anos.

III.           Adicionalmente, em 2006, a Requerente adquiriu, em segunda mão, à empresa B..., que desenvolve a sua atividade também na indústria da madeira, produzindo hardboard e MDF, o Desfibrador L42 Sunds, o qual era utilizado pela B... no exercício da sua atividade, sendo um elemento do seu imobilizado.

IV.          Refira-se, a este respeito, que a “montagem do desfibrador L42 Sunds”, no valor de Euro 175.000, encontra-se suportada por uma fatura emitida em 2 de outubro de 2006 pela B..., contabilizada pela ora Requerente numa rúbrica de “obras em curso”, tendo transitado, em 31 de dezembro de 2015, para uma rubrica de Ativo Fixo Tangível, e iniciada a respetiva depreciação à taxa anual de 12,5%.

V.           Na sequência de outros procedimentos inspetivos que tiveram por objeto o resultado fiscal dos exercícios de 2013, 2014 e 2015, a Requerente foi alvo de uma inspeção relativamente ao exercício de 2016.

VI.          Neste contexto, através do Ofício n.º..., de 6 de março de 2018, dos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de ..., a Requerente foi notificada do projeto de relatório de inspeção tributária, o qual propunha realizar as seguintes correções em sede de IRC:

a) Correção relativa a depreciações não aceites fiscalmente;

b) Correção relativa a prejuízos fiscais de exercícios anteriores não aceites pela AT.

VII.         Em concreto, a correção relativa a depreciações não aceites fiscalmente agregava três itens distintos, a saber:

a) Depreciação de bens que, segundo a AT, não apresentam documentação de suporte ou estão suportados apenas em documento interno: no montante de Euro 8.383,70;

b) Depreciação de bens suportados em parte por documento interno: no montante de Euro 71.645,64; e,

c) Depreciação do Desfibrador L42 Sunds: no montante de Euro 21.874,99.

VIII.       Face ao teor do Projeto de Relatório, a Requerente apresentou exposição escrita, ao abrigo do Direito de Audição, à qual juntou documentos destinados a comprovar a ilegalidade da correção projetada em matéria de depreciação de bens suportados em parte por documento interno.

IX.          Em resultado do exercício do Direito de Audição, veio a AT, no Relatório de Inspeção, corrigir parte da sua correção, declarando, não obstante, que "Verificando-se que parte dos valores do ativo fixo tangível ainda subsistem sem apoio em documento aceite fiscalmente, corrigimos a depreciação do período de Euro 71.645,64 para o montante de Euro 24.198,19”.

X.            A presente correção resultou na emissão da liquidação adicional de IRC com o n.º de compensação 2018... e de juros compensatórios, no valor global de Euro 24.225,43, relativamente às quais a Requerente, com vista a contestar a sua legalidade em sede arbitral, prestou garantia idónea para o efeito.

XI.          Inconformada com estas liquidações, a Requerente encontra-se, presentemente, a solicitar ao presente Tribunal Arbitral que se decida pela ilegalidade da liquidação adicional de IRC supra referida, e, consequentemente, que lhe seja restituída qualquer quantia indevidamente retida ou paga, bem como os custos de garantia indevida.

13. A convicção do presente tribunal sobre os factos dados como provados resultou dos documentos anexados aos autos e constantes do pedido e das alegações, não impugnadas, das partes, conforme se especifica nos pontos da matéria de facto acima enunciados.

14. Não existe factualidade relevante para a decisão da causa dada como não provada.

IV. Do Direito

A) Quadro jurídico

15. Dado que a questão jurídica a decidir no presente processo exige que se interpretem os textos legais pertinentes, importa, em primeiro lugar, elencar as normas que compõem o quadro jurídico relevante, à data da ocorrência dos factos.

16. Neste sentido, a atentando à temática do presente caso, cumpre atentar na redação do artigo 23.º do Código do IRC, o qual dispunha, à data dos factos, o seguinte:

“1 - Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC. (…)

3 - Os gastos dedutíveis nos termos dos números anteriores devem estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito. 

4 - No caso de gastos incorridos ou suportados pelo sujeito passivo com a aquisição de bens ou serviços, o documento comprovativo a que se refere o número anterior deve conter, pelo menos, os seguintes elementos:

a) Nome ou denominação social do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário;

b) Números de identificação fiscal do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário, sempre que se tratem de entidades com residência ou estabelecimento estável no território nacional;

c) Quantidade e denominação usual dos bens adquiridos ou dos serviços prestados;

d) Valor da contraprestação, designadamente o preço;

e) Data em que os bens foram adquiridos ou em que os serviços foram realizados. (…)

6 - Quando o fornecedor dos bens ou prestador dos serviços esteja obrigado à emissão de fatura ou documento legalmente equiparado nos termos do Código do IVA, o documento comprovativo das aquisições de bens ou serviços previsto no n.º 4 deve obrigatoriamente assumir essa forma.” (sublinhado nosso).

17. Efetivamente, a questão controvertida do presente caso, conforme disporemos adiante, prender-se-á, sobretudo, em decidir se os gastos incorridos com as depreciações de ativos fixos tangíveis cumprem os requisitos necessários para serem dedutíveis, para efeitos de IRC, à luz do artigo 23.º do Código do IRC, visto que a Requerente não apresentou a respetiva documentação de suporte, ou apenas apresentou documentação interna relativamente à aquisição destes ativos.

18. Por assumir particular relevância para o caso em questão, cumpre ainda analisar o n.º 4 do artigo 123.º do Código do IRC, o qual dispunha, à data dos factos, sobre as obrigações contabilísticas das empresas, que “Os livros, registos contabilísticos e respetivos documentos de suporte devem ser conservados em boa ordem durante o prazo de 10 anos”.

19. Mantendo este enquadramento legislativo em mente, debruçar-nos-emos agora sobre os argumentos apresentados pelas Partes.

B) Argumentos das Partes

20. No presente pedido de pronúncia arbitral vem a Requerente alegar, em suma, que a liquidação de IRC que se pretende agora anular padece de ilegalidade, por três fundamentos distintos:

i) insuficiência de fundamentação do ato de liquidação;

ii) erro dos factos e de direito quanto à não-aceitação dos gastos com a depreciação de ativos fixos tangíveis; e

iii) desconsideração dos prejuízos fiscais relativos aos exercícios anteriores, os quais foram também contestados em sede própria.

21. No que concerne ao primeiro argumento apresentado – a insuficiência de fundamentação do ato de liquidação – a Requerente argui que, relativamente às depreciações de bens cuja aquisição se encontrava suportada, em parte, por um documento interno, a AT aceitou apenas parte dos montantes relativamente aos quais a Requerente apresentou documentação justificativa em sede de Direito Audição,

22. Não tendo, contudo, apresentado qualquer fundamentação que permitisse discernir o critério utilizado para a aceitação de determinados documentos como válidos, e outros não.

23. Sustentando a sua posição neste sentido, a Requerente cita ainda ampla doutrina e jurisprudência, tanto administrativa como arbitral, que vem concretizar qual a fundamentação que deverá ser considerada como “suficiente” para dar cumprimento à imposição legal do dever de fundamentação dos atos de liquidação que recai sobre a AT,

24. Concluindo, na sua análise, que o ato de liquidação que lhe foi notificado padece de ilegalidade por insuficiência de fundamentação.

25. Subsidiariamente, argumenta a Requerente que, relativamente às correções que incidiram sobre os montantes das depreciações dos bens, a presente liquidação é ilegal ao não aceitar estes gastos, para efeitos fiscais.

26. Neste contexto, a Requerente divide a sua argumentação face às três correções distintas efetuadas pela AT, designadamente:

a) Depreciação de bens que, segundo a AT, não apresentam documentação de suporte ou estão suportados apenas em documento interno: no montante de Euro 8.383,70;

b) Depreciação de bens suportados em parte por documento interno: no montante de Euro 24.198,19; e,

c) Depreciação do Desfibrador L42 Sunds: no montante de Euro 21.874,99.

27. Como tal, no que concerne às correções de depreciações de bens cuja aquisição não se encontra suportada por qualquer documento, vem a Requerente alegar que “parte dos elementos do ativo a que respeitam tais correções são anteriores a 2006, i.e., respeitam a aquisições/produção de ativos ocorridas em períodos de tributação relativamente aos quais a Requerente já não detinha, nem tinha obrigação legal de deter, documentação adicional” (cfr. artigo 50.º do Pedido de Pronúncia Arbitral).

28. Sobre esta matéria, alega a Requerente que, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 123.º do Código do IRC, não subsistia a obrigação de conservar os documentos de suporte dos ativos adquiridos antes do ano de 2006, visto que a referida disposição legal estabelece um prazo de dez anos para este arquivo.

29. A Requerente argui, ainda a este respeito, que não pode a AT manter uma correção que assenta na “condenação ou censura a uma atuação amplamente permitida por lei – entre outras, por razões de economia de custos administrativos – e até pela mesma induzida, dada a fixação do referido prazo.” (cfr. artigo 62.º do Pedido de Pronúncia Arbitral).

30. Pelo que “A (suposta) fundamentação da AT reside tão-somente na errónea convicção de que, não tendo sido conservado um documento (que a lei não exige que se conservasse), se encontra habilitada a desconsiderar a realidade dos factos (amplamente demonstrada pela constatação material da existência e utilização do bem e da reiterada inscrição do mesmo nos mapas de amortização e depreciação) e a presumir artificialmente a ausência de um gasto que efetivamente foi incorrido.” (cfr. artigo 94.º do Pedido de Pronúncia Arbitral).

31. Adicionalmente, a Requerente alega que todos os mapas apresentados se encontram devidamente suportados por documentos internos intitulados MAC (“Manutenção Assistida por Computador”) que, no entanto, a AT considera que não comprovam adequadamente os correspondentes gastos.

32. Posição esta, desde já, com que a Requerente discorda veementemente, até porque entende que a documentação apresentada contém as principais características das operações efetuadas, e, mais, a documentação externa que comprovaria os gastos tinha uma antiguidade superior a 10 anos e, como tal, não tinha obrigação de ser conservada, pelos motivos expostos supra.

33. Relativamente à correção efetuada aos gastos referentes à depreciação do Desfibrador L42, e uma vez que foi disponibilizada a respetiva fatura da aquisição deste equipamento à AT, tendo a Requerida oportunidade de verificar que este equipamento existia nas instalações da Requerente, não entende a Requerente porque é que não deverá ser aceite o gasto com a sua depreciação.

34. Neste contexto, explicita a Requerente que a fatura não contém qualquer referência à B..., ou ao número de série do equipamento, por este não ter sido produzido pela B..., uma vez que estava em causa a alienação de um seu ativo fixo tangível em segunda mão.

35. Adicionalmente, insurge-se a Requerente contra a possibilidade de desconsiderar os gastos com a depreciação de um ativo que nunca fora depreciado, meramente por questões temporais (uma vez que fora adquirido em 2006, mas apenas iniciaria a sua depreciação em 2015), visto que esta desconsideração violaria os princípios constitucionais da justiça, proporcionalidade e imparcialidade a que a AT se encontra adstrita.

36. Por fim, a Requerente sublinha que é ilegal a correção referente à dedutibilidade dos prejuízos fiscais de exercícios anteriores, sendo que esta correção tem por base as correções ao resultado fiscal dos exercícios de 2013, 2014 e 2015, as quais foram também contestadas em sede própria.

37. Efetivamente, no que respeita ao exercício de 2013, já é conhecida a Decisão preferida pelo Tribunal Arbitral, em sede do processo n.º 170/2018-T, a qual julgou parcialmente procedente o Pedido de Pronúncia Arbitral da ora Requerente, no valor de Euro 653.022,84.

38. Por seu turno, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta, na qual se endereçou aos argumentos apresentados pela ora Requerente da seguinte forma:

39. No que concerne ao vício alegado de insuficiência de fundamentação, a Requerida propugna que decorre do Pedido de Pronúncia Arbitral que a Requerente apreendeu o conteúdo do ato, visto que “rebate, ponto por ponto, toda a argumentação expendida no relatório.” (Artigo 11.º da Resposta).

40.  Ainda a este respeito, alega a Requerida que “Ao contrário do que afirma a Requerente, os Serviços de Inspeção tiveram o cuidado de responder de modo casuístico, individualizando cada uma das correções, e escorando a decisão final do RIT com recurso à argumentação jurídica e contabilística que sob o seu ponto de vista se afiguravam adequadas.” (Artigo 30.º da Resposta),

41. Tendo justificado a manutenção parcial da correção relativa às depreciações de bens cuja aquisição se encontrava suportada, em parte, por um documento interno, porquanto “a questão premente assenta no facto do SP não ter facultado os documentos comprovativos de aquisição de materiais e de serviços associados a parte do valor dos itens supra referidos, juntando apenas cópia do documento interno como foi referido em projeto de relatório.” (Artigo 34.º da Resposta).

42. Por sua vez, no que concerne às correções que incidiram sobre os montantes das depreciações dos bens, também a Requerida opta por dividir a sua argumentação nos três fundamentos distintos para estas correções.

43. Neste contexto, no que concerne às correções de depreciações de bens cuja aquisição não se encontra suportada por qualquer documento, vem a Requerida arguir que “Face à  lei, são dois os requisitos para que os gastos da empresa sejam dedutíveis do ponto de vista fiscal: 1) que sejam comprovados com documentos emitidos nos termos legais; 2) e que sejam indispensáveis para a realização dos proveitos, independentemente da aquisição/produção dos ativos ter decorrido há mais de 10 anos.” (Artigo 50.º da Resposta).

44. Mais, alega que “Observado o artigo 23º do CIRC, verifica-se que as condições de aceitação do gasto no período não comportam qualquer elemento temporal ou qualquer remissão para o artigo 123º, ambos do CIRC.” (Artigo 51.º da Resposta).

45. Propugna a Requerida, ainda sobre este tema, que, ainda que o n.º 4 do artigo 123.º do Código do IRC indique como limite para conservação da contabilidade e documentos de suporte o prazo de 10 anos, isso não equivale a dizer que ope legis a partir desse momento toda e qualquer correção aritmética tenha que ser sustentada pela AT, dispensando os contribuintes de provarem com documentos a veracidade dos gastos em que incorreram e os rendimentos auferidos.

46. A este respeito, a ora Requerida urge ao presente Tribunal Arbitral que decida pela inconstitucionalidade da interpretação normativa do n.º 4 do artigo 123.º do Código do IRC, por violação do alínea g) do n.º 2 do artigo 23.º do mesmo Código e dos princípios da capacidade contributiva e da igualdade, no seu corolário do princípio do rendimento real das empresas, previsto no artigo 104.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), “quando interpretada no sentido de que o contribuinte se encontra desonerado de conservar a contabilidade e os documentos de suporte, na sua posse por tempo superior a 10 anos, que respeitem aos valores de aquisição de bens geradores de gastos, ainda em depreciação, que concorrem para o apuramento do lucro tributável, quando esses custos são alvo de escrutínio em sede de inspeção tributária a um determinado exercício da atividade económica empresarial dentro do prazo dos 4 anos da caducidade, nos termos do disposto no artigo 45.º, n.º 1 da LGT”. (Artigo 91.º da Resposta).

47. Mais, solicita ainda a Requerida que seja julgada inconstitucional “a interpretação normativa do artigo 123.º, n.º 4 do CIRC, por violação do artigo 74.º da LGT e dos princípios da capacidade contributiva e da igualdade, no seu corolário do princípio do rendimento real das empresas, previsto no artigo 104.º, n.º 2 da CRP, quanto interpretada no sentido de que, ultrapassados os 10 anos de boa conservação da contabilidade e de documentos de suporte exigíveis aos contribuintes pelos artigo 123.º, n.º 4 do CIRC, é à Autoridade Tributária quem cabe provar, na situação aqui em apreço, o valor do custo de aquisição dos bens que constituem os ativos fixos tangíveis da empresa”. (Artigo 93.º da Resposta).

48. Relativamente à apresentação por parte da ora Requerente dos documentos internos para justificação dos gastos, é inflexível a Requerida no seu argumento de que os documentos MAC não são idóneos a comprovar os respetivos gastos nos termos do disposto no artigo 23.º do Código do IRC, uma vez que não são documentos externos, não identificando as principais características das operações efetuadas.

49. No que concerne à terceira correção aritmética, relativa aos gastos com a depreciação do Desfibrador L42, alega a AT que não é possível afirmar que o equipamento em funcionamento nas instalações da Requerente corresponde ao que consta na fatura disponibilizada, visto que não esta não menciona o número de série do equipamento.

50. Com efeito, a Requerida propugna que teve o cuidado de colocar em prática os princípios do inquisitório e da participação, ao notificar a Requerente para que apresentasse um documento em que atestasse a sua propriedade sobre o equipamento, à parte da fatura de 2006, o que não aconteceu,

51. Pelo que, cabia à Requerente o ónus de comprovar que o equipamento Desfibrador L42 em funcionamento em 2015 era o mesmo adquirido à B... em 2006, o que não logrou fazer.

52. Por fim, conclui a Requerida que o ato de liquidação adicional, em crise nestes autos, não enferma de qualquer vício que ponha em causa a sua legalidade e validade.

C) Apreciação do tribunal

53. A título preliminar, refira-se que o presente Tribunal Arbitral se irá endereçar às questões levantadas pela ora Requerente relativamente à legalidade do ato de liquidação pela ordem que elas foram suscitadas no Pedido de Pronúncia Arbitral, estando prejudicado o conhecimento do mérito das razões invocadas para a ilegalidade face à não aceitação das depreciações dos bens, caso proceda o fundamento de ilegalidade formal por insuficiência de fundamentação do ato liquidado.

54. A respeito da alegada insuficiência de fundamentação do ato liquidado, cumpre ressalvar que, conforme decorre dos factos supra descritos, os Serviços de Inspeção da AT foram particularmente diligentes na redação do Relatório de Inspeção, tendo individualizado cada uma das correções em causa, com recurso à argumentação jurídica e contabilística que, sob o seu ponto de vista, se afiguravam adequadas.

55. No que concerne ao ponto controvertido, aos olhos da ora Requerente, quanto à alegada impossibilidade de discernir os argumentos que permitiram à AT aceitar apenas parte dos montantes relativamente aos quais a Requerente apresentou documentação justificativa em sede de Direito Audição, cumpre tomar posição.

56. Neste contexto, o presente Tribunal Arbitral verificou, através da leitura cuidada do Relatório de Inspeção, que os Serviços de Inspeção apenas não aceitaram as depreciações de bens cuja aquisição se encontrava suportada, em parte, por um documento interno.

57. Refira-se, a este respeito, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) tem uniformemente vindo a entender que a fundamentação do ato é um conceito relativo que varia conforme o tipo de ato e as circunstâncias do caso concreto, sendo que a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal compreender o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do ato, ou seja, quando o destinatário possa conhecer as razões que levaram o autor do ato a decidir daquela maneira e não outra.

58. Neste contexto, e visto que, tanto quanto podemos apurar, a Requerente apreendeu corretamente o motivo que levou a AT a não aceitar determinados documentos apresentados como justificativos dos gastos com depreciações – visto ter discursado a fundo relativamente à validade dos documentos internos que apresentou nesta sede – entendemos que a fundamentação do ato de liquidação em análise se mostrou adequada e suficiente.

59. Ressalve-se ainda que, na hipótese da ora Requerente não compreender, efetivamente, a liquidação emitida (o que este Tribunal Arbitral não se encontra a assumir, visto que toda a peça produzida nos autos parece indicar o contrário), sempre poderia ter requerido, através dos meios administrativos para o efeito, a notificação dos requisitos que tenham sido omitidos ou a passagem de certidão que os contenha, isenta de qualquer pagamento.

60. Esta é a faculdade concedida aos contribuintes, nomeadamente no artigo 37.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), quando a notificação rececionada lesa de insuficiência fundamentação.

61.  Não o tendo feito, não pode proceder o argumento suscitado pela Requerente de insuficiência fundamentação do ato de liquidação presentemente impugnado.

62. Não procedendo o vício formal suscitado pela Requerente, cabe ao presente Tribunal Arbitral julgar da conformidade da presente liquidação de IRC com as disposições legais aplicáveis da ordem jurídica portuguesa.

63. Neste contexto, aos olhos deste Tribunal Arbitral, a questão decidenda prende-se com saber se deverão ser aceites como gastos dedutíveis, para efeitos de IRC, os gastos incorridos com a depreciação de ativos fixos tangíveis cuja documentação de suporte foi destruída, por ter sido emitida há mais de 10 anos, ou ter sido apresentada meramente documentação interna como justificação destes gastos.

64. Cumpre, em primeiro lugar, fazer uma análise crítica do teor dos n.ºs 4 e 6 do artigo 23.º do Código do IRC, os quais, à data dos factos, vêm estatuir a obrigatoriedade dos gastos incorridos por uma determinada empresa serem suportados através de um documento idóneo.

65. Efetivamente, e conforme propugna a Requerida, nada neste artigo remete para o n.º 4 do artigo 123.º do Código do IRC, relativamente às obrigações contabilísticas das empresas.

66. Contudo, não pode o presente Tribunal Arbitral deixar de fazer uma interpretação sistemática de todo o Código do IRC, entendendo que tal seria a intenção do legislador.

Ora,

67. A interpretação sistemática de uma determinada norma analisa a relação entre as normas jurídicas entre si.

68. Efetivamente, pressupondo que o ordenamento é um todo unitário, sem incompatibilidades, esta interpretação permite escolher o significado da norma que seja coerente com o conjunto, impedindo que as normas jurídicas sejam interpretadas de modo isolado.

69. Neste contexto, apesar de não ser feita expressa remissão no artigo 23.º do Código do IRC para as obrigações contabilísticas das empresas, também nada é dito no artigo que permita derrogar a disposição presente no n.º 4 do artigo 123.º do mesmo Código.

Senão vejamos,

70. O artigo 23.º do Código do IRC estatui que, no caso de gastos incorridos ou suportados pelo sujeito passivo com a aquisição de bens ou serviços, a sua aceitação depende da existência de um documento comprovativo que, sempre que seja exigível, deverá reunir as condições de uma fatura.

71. No entanto, o artigo nada dispõe relativamente à obrigação que impende sobre o contribuinte de manter estes documentos comprovativos durante determinado período de tempo.

72. Efetivamente, o único artigo que dispõe sobre esta matéria é o artigo 123.º, no seu n.º 4, o qual previa, à data dos factos, que o contribuinte deve conservar os livros, registos contabilísticos e respetivos documentos de suporte em boa ordem durante o prazo de 10 anos.

Ora,

73. Daqui resulta que o legislador pretendeu limitar no tempo a obrigação de manter os registos contabilísticos e respetiva documentação de suporte por um prazo que lhe pareceu razoável (i.e, 10 anos), desonerando o contribuinte dos custos administrativos de manter um grande volume de documentação durante um período despropositado de tempo.

74. Como tal, não pode a AT concluir que o contribuinte não fez a prova dos elementos que compõem o respetivo valor de aquisição dos ativos em depreciação em 2016, visto estes terem sido adquiridos há mais de 10 anos e conforme concluímos supra, a Requerente não era obrigada a guardar os elementos da sua contabilidade por um período superior.

75. Neste sentido propugna o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 0244/06 de 8/11/2006, o qual dispõe, sobre a matéria controvertida dos autos que:

“Ora, daqui resulta que da não apresentação de tais elementos, solicitados à recorrente depois de decorrido o prazo de dez anos, em que era obrigado a guardá-los, não pode a Administração Fiscal concluir que o contribuinte não fez a prova dos elementos que compõem o respetivo valor de aquisição, designadamente daqueles que sejam diferentes do preço propriamente dito.

Pelo que, constando da contabilidade da impugnante, há mais de dez anos, um valor do custo de aquisição dos imóveis em causa, cabe à Administração Fiscal a prova de que esse valor não é correto.

Deste modo e uma vez que a Administração Fiscal não fez a demonstração da incorreção da fixação do valor contabilístico da aquisição, não é legítimo vir agora, decorrido que está aquele prazo de dez anos, exigir do contribuinte a prova do mesmo.” (sublinhado nosso).

76. Também a Decisão preferida pelo Tribunal Arbitral, em sede do processo n.º 170/2018-T, acolheu este entendimento, deliberando que “A Requerente defende que não era obrigada a deter documentação com antiguidade superior a 10 anos, por força do disposto no artigo 123.º, n.ºs 4 e 5, do CIRC, em sintonia com o artigo 40.º do Código Comercial”.

77. Tendo em consideração a jurisprudência supra exposta, não pode o presente Tribunal Arbitral senão concordar com a posição sufragada pela Requerente, entendendo que não subsistia a obrigação de conservar os documentos de suporte por período superior a 10 anos, independentemente dos mesmos suportarem os valores de aquisição de ativos que se encontram em depreciação.

78. De facto, e não obstante compreender a posição da Requerida, no sentido em que, na falta dos respetivos documentos de suporte, será particularmente árduo comprovar que um determinado valor de aquisição de um ativo que se encontra a ser depreciado não corresponde ao correto,

79. Entende o presente Tribunal que os contribuintes não podem ser penalizados por atuarem em conformidade com a lei, ao destruir, de boa-fé, documentos no arquivo com mais de 10 anos,

80. Ainda por mais tendo a AT disposto de amplas oportunidades para solicitar estes documentos em exercícios anteriores.

Ora,

81. Atendendo ao supra exposto, o presente Tribunal Arbitral entende que deverão ser aceites os gastos com as depreciações dos ativos em que a documentação de suporte não foi apresentada pela Requerente, por já ter sido emitida há mais de 10 anos.

82. O presente entendimento deverá igualmente ser aplicado à correção de Euro 24.198,19, relativamente às depreciações de bens suportados em parte por documento interno.

83. Efetivamente, de acordo com a redação do artigo 23.º do Código do IRC, os gastos incorridos por uma determinada empresa devem ser suportados através de um documento idóneo, o qual, no caso de ser emitido por sujeitos passivos de IVA, deverá ser uma fatura, cumprindo, assim, com todos os requisitos formais para o efeito.

84. Neste contexto, um documento interno não deveria, em princípio, ser aceite, para efeitos fiscais, para comprovar os gastos incorridos por uma determinada empresa.

85. Não obstante, verificou o presente Tribunal Arbitral que os gastos suportados com os documentos internos MAC correspondiam também a bens adquiridos antes de 2006, cujos documentos externos de suporte tinham já sido destruídos.

Pelo que,

86. Atendendo ao facto de, conforme já concluído, a Requerente não tinha a obrigação de conservar estes documentos de suporte durante mais de 10 anos, a presente correção não deverá ser mantida na ordem jurídica.

87. Cumpre, ainda a este respeito, endereçar-nos às questões de constitucionalidade suscitadas pela Requerida.

88. Neste contexto, valerá a pena recordar que as matérias relativamente às quais os Tribunais Arbitrais estão autorizados a pronunciaram-se encontram-se listadas no artigo 2.º do RJAT.

89. A este respeito, o Tribunal Arbitral tem competência para apreciar a legalidade de atos de liquidação, conforme resulta da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.

90. Não obstante, o que a Requerida se encontra a peticionar ao presente Tribunal Arbitral é fundamentalmente distinto, solicitando que seja considerada inconstitucional a interpretação normativa do n.º 4 do artigo 123.º do Código do IRC, por violação da alínea g) do n.º 2 do artigo 23.º do mesmo Código e dos princípios da capacidade contributiva e da igualdade, no seu corolário do princípio do rendimento real das empresas, previsto no artigo 104.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), “quando interpretada no sentido de que o contribuinte se encontra desonerado de conservar a contabilidade e os documentos de suporte, na sua posse por tempo superior a 10 anos, que respeitem aos valores de aquisição de bens geradores de gastos, ainda em depreciação, que concorrem para o apuramento do lucro tributável, quando esses custos são alvo de escrutínio em sede de inspeção tributária a um determinado exercício da atividade económica empresarial dentro do prazo dos 4 anos da caducidade, nos termos do disposto no artigo 45.º, n.º 1 da LGT”.

91. Mais, solicita ainda a Requerida que seja julgada inconstitucional “a interpretação normativa do artigo 123.º, n.º 4 do CIRC, por violação do artigo 74.º da LGT e dos princípios da capacidade contributiva e da igualdade, no seu corolário do princípio do rendimento real das empresas, previsto no artigo 104.º, n.º 2 da CRP, quanto interpretada no sentido de que, ultrapassados os 10 anos de boa conservação da contabilidade e de documentos de suporte exigíveis aos contribuintes pelos artigo 123.º, n.º 4 do CIRC, é à Autoridade Tributária quem cabe provar, na situação aqui em apreço, o valor do custo de aquisição dos bens que constituem os ativos fixos tangíveis da empresa”.

92. Ora, o juízo de inconstitucionalidade de uma determinada interpretação de um preceito normativo já não se trata de uma questão de inconstitucionalidade concreta, aplicável a determinada liquidação, mas sim de inconstitucionalidade abstrata.

93. Como tal, não tem o presente Tribunal Arbitral competência para se pronunciar relativamente às questões suscitadas, sendo que este tipo de juízo apenas deverá ser solicitado ao Douto Tribunal Constitucional, do qual caberá recurso da presente Decisão Arbitral, caso a Requerida assim o pretenda.

94. Ainda a respeito das correções relativas às depreciações, cumpre ao presente Tribunal Arbitral tomar posição relativamente aos gastos incorridos com as depreciações do equipamento Desfibrador L42.

95. A este respeito, alega a Requerida que não lhe foi possível determinar se o equipamento que se encontra a ser depreciado, e o qual está nas instalações da Requerente, é o titulado pela fatura emitida pela B... em 2006, visto faltarem nessa fatura alguns elementos que permitiriam identificar o equipamento, como o número de série.

96. A este respeito, cumpre atentar no artigo 74.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), o qual versa sobre a matéria do ónus da prova.

97. A regra geral do ónus da prova, expressa no referido artigo, faz recair a obrigação de comprovar os factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes sobre quem os invoque.

98. Neste contexto, a Requerente, notificada para o efeito em sede de inspeção, fez prova de que o equipamento Desfibrador L42 havia sido adquirido à B... em 2006, tendo apenas iniciado a sua depreciação em 2015, apresentando, para o efeito, documentos comprovativos das suas alegações e indicando, inclusivamente, o equipamento em questão nas suas instalações.

99. Ora, cabia agora à AT invocar factos capazes de abalar a presunção legal de veracidade das declarações dos contribuintes e dos dados constantes da sua contabilidade.

100. Tal é, aliás, o entendimento que emana da interpretação da alínea a) do n.º 2 do artigo 75.º da LGT, a qual faz cair a presunção de veracidade que geralmente se verifica nas declarações dos contribuintes perante indícios fundados de que as mesmas não refletem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo.

101. Aqui chegados, cumpre ao presente Tribunal Arbitral tomar uma posição, designadamente ao decidir se os indícios suscitados pela Requerida em sede de inspeção são, ou não, suficientes para se subsumirem ao conceito de “indícios fundados”, para efeitos do artigo 75.º da LGT já citado.

102. Neste contexto, o presente Tribunal analisou cuidadosamente os elementos probatórios levantados pela AT em sede de inspeção, e constatou que não foi suscitado pela Requerida qualquer elemento que permitisse abalar a presunção de veracidade das declarações da Requerente,

103. Sendo meramente arguido que é “estranho” que a Requerente não dispusesse de mais elementos de prova de aquisição do equipamento, e que apenas tivesse começado a depreciá-lo 9 anos depois da sua aquisição.

Ora,

104. Tal é manifestamente insuficiente para abalar a presunção de veracidade das declarações da Requerente e, como tal, entende o presente Tribunal Arbitral que esta correção deverá ser anulada.

105. Por fim, resta ainda ao presente Tribunal Arbitral pronunciar-se relativamente à desconsideração dos prejuízos fiscais relativos aos exercícios anteriores, os quais foram também contestados em sede própria.

106. Neste contexto, no seguimento da publicação da Decisão Arbitral n.º 170/2018-T, a qual julgou parcialmente procedente o Pedido de Pronúncia Arbitral da ora Requerente, no valor de Euro 653.022,84, entende o presente Tribunal Arbitral que deverá ser reposta a legalidade, através da atualização dos prejuízos fiscais dedutíveis no exercício de 2016.

Assim sendo,

107. Procede integralmente o pedido de anulação do ato de liquidação supra referido, procedendo também, consequentemente, o pedido de condenação da Requerida ao pagamento de custas e demais encargos com o processo.

V. Decisão

108. Termos em que decide este Tribunal Arbitral:

A) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, declarar ilegal e anular o ato de liquidação de IRC mencionado supra, por referência a 2016, do qual resultou imposto a pagar no montante de Euro 24.225,43;

B) Determinar o reembolso da quantia paga pelo Requerente até à data, se existente; e,

C) Condenar a Requerida nas custas do processo.

VI. Valor do processo

109. Em termos gerais, as regras relativas à fixação do valor da causa nos processos tributários encontram-se atualmente no artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”). Em geral, existe uma dicotomia entre a impugnação da liquidação, em que relevaria a importância cuja anulação se pretende [alínea a)] e quando seja impugnado o ato de fixação da matéria coletável, em que se consideraria o valor contestado [alínea b)].

110. Ora, nos casos de fixação da matéria coletável constata-se que, para efeitos de determinação do valor da causa, podem estar em discussão as mesmas correções fiscais, em termos quantitativos, mas um diferente valor da causa – com impacto, por exemplo, na determinação da alçada nos tribunais ou de cálculo de custas em processos de arbitragem.

111. De facto, veja-se as situações em que a AT possa proceder a avultadas correções à matéria coletável, sem que tais correções originem qualquer imposto a pagar, considerando, por exemplo, a existência de prejuízos fiscais reportáveis. Nestas circunstâncias, o valor da causa corresponderia, portanto, ao valor das próprias correções impugnadas. 

112. Por outro lado, numa situação em que a AT proceda a correções idênticas à matéria coletável mas, desta feita, porque o contribuinte não tinha prejuízos fiscais reportáveis, era gerada uma liquidação de imposto a pagar, então, e embora, reitere-se, estivesse em causa a mesma quantificação da matéria coletável, o valor da causa corresponderia ao valor da liquidação – o qual, como é facilmente percetível, seria muitíssimo inferior ao valor das correções que a geraram.

113. Nesse caso, o tribunal seria chamado a sindicar a legalidade das mesmas correções, eventualmente decorrentes de um semelhante procedimento inspetivo, mas o valor da ação seria diametralmente diferente. 

114. A este respeito, reconhece-se, ainda assim, a eventual justificação para este enquadramento distinto no caso em que não exista qualquer liquidação e, portanto, inexiste um impacto financeiro imediato, enquanto no outro caso existe um impacto (negativo) imediato por impor o pagamento de um montante (ou prestação de garantia) que poderá nunca se vir a verificar no primeiro caso, justificando-se, em parte, por exemplo, a redução das custas (por via de um valor da causa inferior) quando se trate da contestação a uma liquidação.

115. Contudo, o princípio enunciado supra não se pode sobrepor àquilo que é o princípio básico de igualdade, constitucionalmente consagrado.

116. A este respeito, veja-se o entendimento de Professor Doutor Jorge Lopes de Sousa :

“Nos casos em que é impugnado diretamente o ato de fixação da matéria coletável, referido na alínea b) do n.º 1 do artigo 97º-A, o benefício que se pretende obter não é equivalente ao “valor contestado”, adotado como critério de fixação do valor, mas sim ao imposto que deixaria de ser cobrado com a alteração do valor da matéria coletável contestado, que será sempre muito menor que aquele.”.

117. Daí que, como refere o mesmo autor, “(…) em coerência com a opção legislativa subjacente à fixação do valor prevista na alínea a), deveria, nestas situações de impugnação de ato de fixação de matéria coletável, optar-se pela fixação do valor da ação em função do valor do imposto que estaria conexionado com a matéria coletável contestada.”

118. Assim, conclui, “Podem colocar-se, aqui, problemas de compatibilidade deste critério com o princípio constitucional da igualdade, já que a impugnação judicial de atos de fixação da matéria coletável em que está em causa a contestação de valor idêntico terá valor diferente para efeitos de tributação em custas, conforme seja ou não praticado um ato de liquidação, podendo suceder mesmo que a uma mais ampla impugnação corresponda menor valor da ação. É, assim, de aventar a inconstitucionalidade material do critério utilizado na alínea b), à face do princípio constitucional da Igualdade (art. 13º da CRP).” 

119. Em face do contexto supra, e fruto, desde logo, da introdução (ainda recente) da arbitragem tributária no meio jurídico português, é essencial ao bom funcionamento deste mecanismo uma abordagem prudente na análise destas questões perante a eventualidade de um erro de julgamento lesivo do interesse de qualquer uma das partes, posteriormente sujeito às reduzidas possibilidades de impugnação e recurso das decisões arbitrais.

120. Neste contexto, existem múltiplas referências no artigo 5.º do RJAT ao “valor do pedido”, ainda que não exista nenhuma indicação sobre a forma de o determinar. 

121. Neste contexto, refira-se a alínea e) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, em que se faz referência à “indicação do valor da utilidade económica do pedido”, como um dos requisitos do pedido de constituição do tribunal arbitral a apresentar pela Requerente.

122. De facto, o RJAT transfere para a Requerente a responsabilidade pela definição inicial do valor da utilidade económica do pedido, ainda que, naturalmente, sujeita a apreciação pelo tribunal, como se verifica no caso em apreço.

123. Neste contexto, não se vislumbra qualquer outra conclusão possível que não seja que a referência do artigo 10.º não é mais do que uma definição (ainda que apenas ligeiramente) mais detalhada do conceito do valor do pedido constante do artigo 5.º.

124. A este respeito, e conforme desenvolvido em doutas decisões arbitrais (veja-se, a título de exemplo, a decisão proferida no âmbito do processo n.º 151/2013-T) a legislação subsidiária em relação ao RJAT para este efeito é o CPPT em que se encontram, no artigo 97.º-A, as regras expressas para a determinação do valor da causa, potencialmente aplicáveis a todas as situações referidas no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT. 

125. De facto, apesar do Regulamento de Custas da Arbitragem Tributária também conter normas sobre a determinação do valor da causa, aplicáveis para efeitos de custas, não é de supor que se deva recorrer àquele documento para aferir os métodos de determinação dos valores dos litígios, desde logo pela sua introdução posterior à publicação do todo o RJAT.

126. Em regresso ao caso concreto, resultando a liquidação que consubstancia o valor da causa proposto pela Requerente e com o acordo da Requerida, apenas do montante a pagar em sede de IRC, considera o Tribunal Arbitral que é extremamente importante, também, salientar o impacto dos prejuízos fiscais dedutíveis aqui em causa.

127. Com efeito, e fruto do contexto descrito, entende o presente Tribunal Arbitral que a consideração do valor a pagar de uma liquidação adicional de IRC, a qual decorreu de uma errada contabilização dos prejuízos fiscais dedutíveis disponíveis da esfera da Requerente, suscita fundadas dúvidas no sentido de garantir o necessário equilíbrio na definição do valor da utilidade económica do presente pedido de pronúncia arbitral. 

128. De facto, a jurisprudência e doutrina produzida sobre esta matéria admite os desafios associados à interpretação desta temática, decorrente das várias fontes de direito disponíveis, nem sempre coerentes entre si e que dificultam a aplicação de uma abordagem sistemática, simples e clara à determinação do valor relevante, desde logo para determinar a utilidade económica do pedido. 

129. A título de exemplo, veja-se um cenário em que a potencial correção fosse de dezenas de milhões de euros, ainda que a liquidação espelhasse um valor a pagar de apenas € 100 (fruto, por exemplo, da correção de tributações autónomas), pelo que não se comprovando um valor de utilidade económica distinto, resultaria daí potencialmente um valor do pedido equivalente ao valor a pagar, sendo o processo analisado por um árbitro singular (não tendo existido opção em contrário), com claros prejuízos em todos mecanismos de proteção dos direitos e garantias das partes envolvidas.

130. Com efeito, e salientando-se a necessidade de utilizar o mecanismo da arbitragem tributária de forma conscienciosa, prudente e responsável, afigura-se ao Tribunal Arbitral que o valor do pedido, relevante para efeitos da aplicação do artigo 5.º do RJAT, não pode corresponder, neste caso, ao valor da liquidação paga pela Requerente no montante de Euro 24.225,43 quando existem correções objeto de contestação no total de Euro 244.760,13, correspondentes, designadamente a:

a) correções referentes a depreciações, no montante de Euro 54.456,88; e,

b) a correções referentes à dedução de prejuízos fiscais de anos anteriores, no montante de Euro 190.303,25

131. A este respeito, saliente-se ainda a necessidade de aferir a utilidade económica de um determinado pedido não com base no seu mero efeito imediato (que poderá ser muito reduzido ou mesmo inexistente), mas considerando, igualmente, o seu potencial impacto futuro.

132. Neste contexto, reconhece o presente tribunal a escassa doutrina e jurisprudência sobre o conceito da utilidade económica do pedido relevante para o presente efeito, reconhecendo que, em determinadas situações, tal possa ser suscetível de divergência de posição.

133. Não obstante, conforme amplamente discutido anteriormente, considera o presente tribunal que a interpretação literal do valor da nota de liquidação de um imposto para a determinação do valor do pedido suscitaria graves questões de iniquidade.

134. Neste contexto, e por forma a não esvaziar de sentido o disposto no artigo 5.º e 10.º do RJAT no que se refere ao valor do pedido (entenda-se, utilidade económica do pedido), considera o tribunal que deverá ser considerado o montante de Euro 52.218,50, correspondente ao impacto, em sede de IRC, do somatório das correções propostas pela Requerida em sede de inspeção tributária e objeto de contestação neste pedido de pronúncia arbitral, considerando uma taxa de 22,5% (21% de IRC e 1,5% de derrama municipal) ao montante relativo às depreciações, e uma taxa de 21% de IRC relativamente ao valor decorrente dos prejuízos fiscais disponíveis para dedução.

VII. Custas

135. De harmonia com o disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.142,00, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida, dada a procedência integral do pedido.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, CAAD, 6 de junho de 2019

 

O Árbitro

 

 (Sérgio Santos Pereira)