Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 357/2018-T
Data da decisão: 2019-05-24  IRS  
Valor do pedido: € 154.678,70
Tema: IRS - Cláusula geral anti-abuso - Substituição tributária - Retenção na fonte.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1. A..., Lda., com o número de pessoa colectiva..., com sede em  ... ...,  ...-... ..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do despacho do indeferimento do recurso hierárquico da liquidação de retenção na fonte de IRS referente ao ano 2011, no montante de € 140.610,00, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

Na sequência de ação inspetiva, a Autoridade Tributária, ao abrigo da cláusula geral anti-abuso, considerou ineficaz a redução de capital da sociedade Requerente e a atribuição do valor correspondente ao sócio B..., por entender que a operação se traduziu, na prática, numa distribuição de resultados gerados pela sociedade que deviam ter sido tributados como rendimentos de capitais e estavam sujeitos a retenção na fonte nos termos do artigo 98.º, n.º 1, do Código do IRS.

 

Tendo incidido sobre a sociedade Requerente a obrigação fiscal de retenção na fonte do montante de € 154.678,70, em correspondência com os rendimentos do sócio que se considera deverem ter sido sujeitos  a tributação, a Requerente assumiu a condição de substituta tributária, quando é certo que não lhe é imputada qualquer actuação abusiva que seja subsumível ao disposto no artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, nem esta disposição tem o alcance de impor obrigações fiscais acessórias a terceiros.

 

E nesse sentido a obrigação fiscal haveria de incidir directamente sobre o sócio a quem é imputada a prática de negócios que por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas tenha determinado a redução ou eliminação de impostos que seriam devidos, sendo inoponível à Requerente a desconsideração fiscal de negócios jurídicos que resultem da aplicação da cláusula geral anti-abuso.

 

De outro modo, caberia ao substituto tributário o ónus de apurar se o obrigado fiscal poderia ter praticado actos abusivos que justifiquem a retenção na fonte, quando essa é uma exigência desproporcionada e inadmissível, porquanto é à Administração Tributária que cabe desencadear o procedimento próprio previsto no artigo 63.º do Código de Procedimento e Processo Tributário em vista à liquidação de impostos com base em disposição anti-abuso.

 

Acresce que não é legalmente possível que a Requerente, enquanto substituta tributária, venha a reaver o imposto sujeito a retenção na fonte, havendo de entender-se que a norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, quando interpretada no sentido de que são oponíveis ao substituto tributário os efeitos resultantes da aplicação da cláusula anti-abuso, é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade e do direito à propriedade (artigos 18.º, n.º 2, e 62.º, n.º 1, da Constituição).

 

Não se verificam ainda os pressupostos da aplicação da cláusula geral anti-abuso, porquanto a operação de aumento de capital e a sua ulterior redução foi deliberada em assembleia geral e é válida no plano societário, competindo à Autoridade Tributária o ónus da prova de que a redução de capital social teve razões puramente financeiras e sem qualquer razão económica atendível.

 

O acto de liquidação enferma ainda de violação do disposto no artigo 15.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira por ter sido alterado o âmbito do procedimento inspectivo de parcial para geral por despacho não fundamentado e notificado à Requerente no momento da conclusão do procedimento e não durante a sua execução, como impõe aquele dispositivo.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, louvando-se nos votos de vencido apostos nos acórdãos proferidos nos Processos n.ºs 283/2014-T, 200/2014-T e 32/2015-T, sustenta que, estando em causa rendimentos da categoria E, tributáveis nos termos do n.º 1 e da alínea h) n.º 2 do artigo 5º do Código do IRS, a retenção na fonte desses rendimentos à taxa liberatória incumbe à Requerente, na qualidade de substituto tributário, conforme estipula a aliena c) do n.º 1 do artigo 71.º do mesmo Código.

 

Nesse sentido aponta o artigo 38.º, n.º 2, da LGT que, ao referir que a tributação se efectua de acordo com as normas aplicáveis na ausência dos meios artificiosos utilizados - não se produzindo as vantagens fiscais que tivessem sido obtidas - impõe necessariamente a retenção na fonte ao sujeito sujeito passivo ao qual tenha sido imposta essa obrigação fiscal. Assim como o artigo 20.º da LGT, que permite que a prestação tributária seja exigida a pessoa diferente do contribuinte e efectivada através do mecanismo da retenção na fonte do imposto devido, o que significa que o instituto da substituição tributária não implica a existência de capacidade contributiva na esfera do substituto.

 

No tocante ao vício procedimental suscitado, a Autoridade Tributária alega que o procedimento de inspecção é passível de prorrogação nos termos do n.º 3 do art.º 36º do RCPITA nas situações tributárias de especial complexidade, e, no caso, a Requerente foi notificada da prorrogação através do ofício datado de 25 de março de 2014  e o facto de a alteração do âmbito da acção de inspecção ter ocorrido na data da conclusão do procedimento não diminui os seus direitos de defesa.

 

Conclui no sentido da improcedência do pedido.

 

2. No seguimento do processo foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e ordenado o prosseguimento do processo para alegações por prazo sucessivo.

 

Em alegações, a Requerente manteve a sua anterior posição. A Requerida não contra-alegou. 

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 2 de outubro de 2018.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que poderão ser tidos como assentes são os seguintes.

 

A)           A Requerente foi objecto de um procedimento inspectivo externo titulado pela Ordem de Serviço nº OI2013..., emitida pela Direcção de Finanças de ...;

B)           O procedimento teve início em 5 de Novembro de 2013, com termo previsto para 1 de Abril de 2014, e foi prorrogado pelo prazo de três meses, por despacho do Director de Finanças de ... de 25 de março de 2014, notificado à Requerente para o seu domicílio fiscal e cujo expediente foi devolvido;

C)           Através de nota de diligência notificada à Requerente em 8 de Abril de 2014, o âmbito do procedimento inspectivo foi alterado para geral com fundamento na especial complexidade da situação tributária resultante da aplicação da cláusula geral anti-abuso;

D)           A data previsível para o termo do procedimento recaía em 5 de Agosto de 2014;

E)            A Requerente foi notificada para exercer o direito de audição relativamente ao projecto de Relatório de Inspecção Tributária por ofício datado de 11 de Abril de 2014, não tendo exercido o direito;

F)            As propostas de correcção do Relatório de Inspecção Tributária foram submetidas à apreciação do Director-Geral da Autoridade Tributária, por despacho do Director de Finanças, em substituição, de 28 de Maio de 2014;

G)           O Relatório de Inspecção Tributária, na sua versão final, obteve a concordância do Director-Geral da Autoridade Tributária, por despacho de 15 de Julho de 2014;

H)           Em 14 de Agosto de 2015, a Requerente interpôs recurso hierárquico da decisão de reclamação graciosa deduzida contra o acto de liquidação, que foi indeferido por despacho do Director de Finanças de ..., praticado com delegação de competências, notificado à Requerente por ofício datado de 18 de Abril de 2018;

I)             No dia 31 de janeiro de 2011, a Requerente constitui reservas livres (conta 5524) no valor de € 831.584,71, por transferência de reservas legais (conta 551), no montante de € 250.570,44 e de resultados transitados (conta 56), no total de € 581.014,27;

J)            Em 30 de março desse ano, foram aprovadas as contas de 2010 e tomada decisão de transferência do lucro para resultados transitados.

K)           Por deliberação da Assembleia Geral de 2 de Agosto de 2011, a Requerente aprovou o aumento do capital social da sociedade de € 5.000,00 para € 800.000,00, mediante a incorporação de reservas livres, com o aumento proporcional das quotas existentes, que passaram a ficar assim estabelecidas: B..., 91%, € 717.272,00; C..., 9%, € 72.728,99;

L)            Por deliberação da Assembleia Geral de 30 de Novembro de 2011, a Requerente aprovou a redução do capital social de € 800.000,00 para €146.000,00 e a libertação do excesso de capital, por redução da quota pertencente a B..., no valor de € 654.000,00;

M)          A quota pertencente a B... passou a apresentar o valor nominal de €73.272,00;

N)           Em 31 de Dezembro de 2011 foi efectuado o lançamento contabilístico da importância de € 654.000,00 correspondente à redução de quota e efectuado o pagamento em numerário ao sócio B...;

O)           No Relatório de Inspecção Tributária, que consta do Processo Administrativo e aqui se dá como reproduzido, considerou-se, com base no procedimento de aplicação da cláusula geral anti-abuso, que a operação de aumento de capital social seguida de redução do capital e libertação de excesso de capital, mediante a redução  da quota do sócio, teve uma finalidade puramente financeira de distribuição de lucros, visando evitar a sujeição  a tributação em sede de IRS;

P)           No mesmo Relatório foi proposta a tributação em IRS do montante de € 654.000,00 como rendimentos de capitais – Categoria E, nos termos da alínea h) do n.º 2 artigo 5.º do Código do IRS, com  sujeição a retenção na fonte à taxa liberatória de 21,5%, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 71.º do Código do IRS;

Q)           A obrigação fiscal de retenção na fonte foi imposta à Requerente por ter sido a entidade que colocou os rendimentos à disposição do sócio e a quem incumbia a retenção no momento do pagamento, nos termos do artigo 98.º, n.º 1, do Código do IRS;

R)           A Autoridade Tributária emitiu o acto de liquidação de IRS – retenção na fonte n.º 2014..., relativa a 2011, no valor de € 154.678,70.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta.

 

                Matéria de direito

 

Cláusula geral anti-abuso

 

5. A questão que se coloca, num primeiro momento, é a de saber se a ineficácia de negócios jurídicos realizados por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, em aplicação da cláusula geral anti-abuso, se torna oponível às entidades que, por efeito do mecanismo de substituição tributária, se encontram normalmente vinculadas a proceder à retenção na fonte do imposto que fosse devido.

 

A Administração Tributária, partindo do disposto no artigo 20.º da Lei Geral Tributária (LGT), que permite que a prestação tributária seja exigida a pessoa diferente do contribuinte através do mecanismo da retenção na fonte, e do artigo 38.º, n.º 2, da mesma Lei, que manda efectuar a tributação de acordo com as normas aplicáveis se não tivessem sido utilizados os meios artificiosos, sustenta que a desconsideração fiscal dos negócios realizados tem como necessária consequência a reposição do regime legal que seria aplicável face à prática jurídica comum, implicando a responsabilização do substituto tributário mediante a retenção na fonte.

 

A Requerente contrapõe que a ineficácia dos actos praticados por efeito da aplicação da cláusula anti-abuso não pode repercutir-se na relação com o substituto tributário, pelo que o imposto que for devido terá de ser directamente exigido ao contribuinte que é o destinatário do comando jurídico contido na norma anti-abuso.

 

No caso, está em causa a declaração de ineficácia para efeitos fiscais da operação de redução do capital social e a liberação do capital excedente a favor de um dos sócios, que a Administração Tributária entendeu corresponder a uma efectiva distribuição de lucros que se encontravam sujeitos a tributação como rendimentos de capitais nos termos do artigo 5.º, n.º 2, alínea h), do Código do IRS e que seriam objecto, nos termos gerais, de retenção na fonte por parte da entidade que colocou os rendimentos à disposição do sujeito passivo.

 

6. Para dilucidar a questão que está em debate justifica-se descrever, ainda que em termos sucintos, o regime da cláusula geral anti-abuso, da substituição tributária e da retenção na fonte.

 

A citada disposição do artigo 38.º, n.º 2, da LGT declara como “ineficazes, no âmbito tributário, os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”. E, nesse caso, determina que a tributação se efectue de acordo com as normas que seriam aplicáveis se esses meios não tivessem sido utilizados, não se produzindo as vantagens fiscais que se pretendia obter.

 

Segundo assinala SÉRGIO VASQUES, a claúsula geral anti-abuso consagrada na LGT é composta de três elementos essenciais. “Em primeiro lugar exige-se a prática de acto ou negócio artificioso ou fraudulento e que exprima abuso das formas jurídicas, no sentido de estarmos perante esquemas negociais que ocultem os seus verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum. Em segundo lugar, exige-se o objectivo único ou principal de através desses esquemas negociais obter uma vantagem fiscal, qualquer que seja a sua natureza, com a marginalização evidente de objectivos económicos reais. Em terceiro lugar, exige-se que da lei resulte com clareza a intenção de tributar os bens em causa, nos mesmos termos em que estes seriam tributados se tivesse o contribuinte recorrido às formas jurídicas e práticas negociais mais comuns” (Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2018, pág. 369).

 

O sentido geral da norma é, nestes termos, o de permitir a desqualificação para efeitos fiscais de um qualquer acto ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte com o único, ou principal, objectivo de obtenção de uma vantagem fiscal, que possa consubstanciar uma fraude à lei fiscal. O efeito jurídico que resulta do funcionamento da cláusula anti-abuso é o de considerar os actos como praticados de acordo com o padrão normal do comércio jurídico para obter o mesmo resultado económico, determinando-se a obrigação tributária em função dos actos equivalentes que pudessem ser praticados.

 

Por sua vez, a substituição tributária, a que se refere o artigo 20.º da LGT, pressupõe a deslocação da obrigação tributária do contribuinte directo – que se encontra abrangido pelas normas de incidência do imposto - para um terceiro que é devedor dos rendimentos sujeitos a tributação e a quem incumbe a dedução de uma parcela desses rendimentos aquando do seu pagamento para entrega ao Estado. Como resulta do n.º 2 do artigo 20.º, “a substituição tributária é efectivada através do mecanismo de retenção na fonte do imposto devido” e a responsabilidade do substituto tributário – como especifica o artigo 28.º - traduz-se na obrigação de dedução das importâncias que estiverem sujeitas a retenção e da sua entrega nos cofres do Estado que, uma vez satisfeita, desonera o substituído do pagamento dessas importâncias.

 

Como explicita SALDANHA SANCHES, a substituição tributária por meio da retenção na fonte do rendimento explica-se por razões de natureza essencialmente prática, visando assegurar através de um meio seguro a cobrança do imposto e, simultaneamente, aproximar temporalmente o momento da verificação do facto tributário – que se traduz no pagamento dos rendimentos sujeitos a imposto – e o cumprimento da dívida tributária. Deste modo, a retenção do rendimento, pelo devedor, vai servir para o pagamento de uma parte da dívida fiscal, se for um pagamento por conta de uma obrigação fiscal futura (como sucede nas retenções feitas sobre rendimentos do trabalho) ou da sua totalidade (como sucede no caso de retenções feitas, a título definitivo, através da aplicação das taxas liberatórias que oneram os rendimentos de capitais) (Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 269).

 

Por seu lado, o mecanismo da retenção na fonte encontra-se regulado, em  termos gerais, no artigo 98.º do Código do IRS, consignando-se aí que, nos casos em que haja lugar à retenção de imposto no momento do pagamento de rendimentos do trabalho dependente, as entidades devedoras dos rendimentos sujeitos a retenção são obrigadas, no acto do pagamento do vencimento, a deduzir as importâncias correspondentes à aplicação das taxas de tributação que se encontram previstas para essa categoria de rendimentos (n.º 1), havendo lugar à entrega até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram deduzidas as quantias retidas (n.º 3).

 

Tratando-se de rendimentos de capitais, a retenção é definitiva, nos termos do disposto no artigo 71.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS, sendo o substituído apenas subsidiariamente responsável pela não retenção ou entrega do imposto (artigo 28.º, n.º 3, da LGT).

 

7. Resulta de todas as precedentes considerações, que a cláusula geral anti-abuso se destina a eliminar as vantagens fiscais ilegítimas obtidas na esfera jurídica pelo contribuinte através de actos ou negócios abusivos praticados com o intuito de obviar ao pagamento do imposto que seria devido caso se tivesse recorrido às formas negociais comuns.  

 

A aplicação da cláusula anti-abuso depende, por outro lado, de uma apreciação casuística, havendo que ponderar a actuação concreta imputável ao sujeito passivo em função das circunstâncias de facto que possam ser tidos como assentes (cfr. acórdão do TCA Sul de 15 de fevereiro de 2011, Processo n.º 04255/10, e acórdão arbitral proferido no Processo n.º 377/2014).

No caso vertente, a vantagem fiscal ilícita que justificou a aplicação da disposição anti-abuso traduziu-se na evitação de pagamento de imposto relativamente à distribuição de lucros a um dos sócios, que, normalmente, seria objecto de tributação como rendimentos de capitais, nos termos da alínea h) do n.º 2 artigo 5.º do Código do IRS, e que foi alcançada através de um conjunto sucessivo de operações societárias que se encontram assim descritas.

 

Em 31 de janeiro de 2011, através de um lançamento interno com o n.º..., foram constituídas reservas livres no valor de € 831.584,71, por transferência de reservas legais no montante de € 250.570,44 e de resultados transitados no total de € 581.014,27.

 

Em 30 de março seguinte, foram aprovadas as contas de 2010 e tomada decisão de transferência do lucro para resultados transitados.

 

Em 2 de agosto de 2011, a sociedade procedeu a um aumento de capital de € 5000 para € 800 000 através da incorporação de reservas livres, com o aumento proporcional das quotas existentes nos seguintes termos: B..., 91%, € 717.272,00; C..., 9%, € 72.728,99.

 

Em 30 de novembro de 2011, a A..., Lda.  decide, em assembleia geral dos dois únicos sócios, reduzir o capital social de € 800.000,00 para € 146.000,00 e libertar o excesso de capital, no valor de € 654.000,00, por redução da quota pertencente a B... que passa a apresentar o valor nominal de € 73.272,00.

 

Em 31 de Dezembro de 2011, na sequência da redução de capital social, foi efectuado o pagamento em numerário ao sócio B..., no montante de € 654.000,00.

 

A redução do capital social foi alegadamente efectuada para libertar a sociedade de excesso de capital, implicando a neutralização, em parte substancial, do aumento de capital que havia sido realizado cerca de quatro meses antes. Por outro lado, a atribuição a um dos sócios do montante decorrente da redução de capital teve a consequência prática de afastar a tributação em IRS como rendimentos de capitais.

 

Assistiu-se, nestes termos, a uma série de transações por passos (“step transaction”) com um efeito consequencial elisivo que pode ser evidenciada pela seguinte representação gráfica:

 

 

 

 8. A referência a atos ou negócios jurídicos que podem ser tidos como ineficazes por aplicação da cláusula anti-abuso deve ser entendida em sentido amplo, abrangendo quaisquer esquemas negociais que possam considerar-se finalisticamente relacionados e que, por ausência de racionalidade económica, devam ser tidos como visando obviar ao pagamento do imposto que normalmente seria devido. Ademais, as formas negociais que tenham sido utilizadas devem ser aferidas em termos objetivos, a partir da substância económica das transações segundo um padrão de razoabilidade económica e comercial

 

Não podendo perder-se de vista que o sentido geral da Diretiva Antielisião Fiscal (UE) 2016/1164 do Conselho, de 12 de julho de 2016, que sugere que uma montagem (ou série de montagens) será considerada como não genuína na medida em que não coloque em prática um propósito comercial válido baseado em razões que reflitam a realidade económica.

 

 No caso, importa reter que estamos perante uma sociedade constituída por dois sócios, que são cônjuges entre si, que compõem a assembleia geral e são os únicos gerentes, o que, desde logo, pressupõe um esbatimento entre os direitos associativos gerais que formam a posição jurídica dos sócios, como o direito aos lucros e o direito de participação nas deliberações da sociedade, e o interesse societário que constitui o substrato da organização empresarial enquanto entidade independente.

 

Acresce que as operações de modificação do capital social levadas a efeito não revelam um objectivo suficientemente definido e justificado do ponto de vista financeiro.

 

Por um lado, a Requerente transformou as reservas legais, constituídas por fundos que se destinariam a habilitar  a sociedade a satisfazer eventuais encargos futuros sem necessidade de recurso ao capital - e que a lei fixa num montante não inferior à vigésima parte dos lucros de cada exercício, até representar a quinta parte do capital social -, em reservas livres, cuja constituição apenas se torna justificável num quadro de gestão prudencial. Sendo certo que a reserva legal é de constituição obrigatória (artigo 218.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais) e apenas deve ser utilizada para cobrir prejuízos que não possam ser satisfeitos por outras reservas, para cobrir parte dos prejuízos transitados do exercício anterior que não possam ser satisfeitos pelo lucro do exercício actual ou por outras reservas ou para incorporação no capital (artigo 296.º do CSC). Por essa via, a Requerente veio permitir, em violação do disposto nesse artigo 296.º, que os fundos que deveriam constituir a reserva legal pudessem ser desafectados por deliberação da assembleia geral.

 

Por outro lado, a Requerente procedeu a um incremento do património social através da incorporação dos fundos que passaram a integrar as reservas livres (antes consignados à reserva legal), gerando o consequente aumento proporcional das quotas de cada um dos sócios. E, num curto espaço de tempo, reverteu em parte essa modificação do contrato de sociedade, mediante a redução da participação social de um dos sócios e a libertação dessa verba a seu favor.

 

Como se sabe, a redução do capital social pode ser motivada por o seu valor se ter tornado exuberante relativamente ao objecto social e haver interesse nessa redução para libertar uma parte do capital para outras aplicações úteis ou para compensar perdas no património sem necessidade de recurso a novas entradas (cfr. PINTO FURTADO, Curso de Direito das Sociedades, 4.ª edição, Coimbra, pág. 525). E, no caso, a justificação dada perante a Administração Tributária para a redução foi justamente a de se ter verificado um excesso de capital. O que sucede é que o alegado excesso de capital está associado ao aumento do capital que havia sido recentemente deliberado, e, por outro lado, a libertação de capital daí resultante não teve outra aplicação que não fosse a atribuição em numerário ao sócio que viu reduzida a sua quota, sem que se descortine nessa operação qualquer outro efeito relevante que se relacione com a actividade empresarial.

 

Alega a Requerente que as modificações do capital social foram deliberadas pela assembleia geral e mantêm validade no plano societário. Mas o certo é que a deliberação da sociedade relativa ao aumento ou redução do capital é um necessário pressuposto da modificação contratual, a qual deverá mencionar a modalidade e o montante do aumento do capital e o montante nominal das novas participações e, no caso da redução, a sua finalidade em vista a indicar se se destina à cobertura de prejuízos, à libertação de excesso de capital ou a outra finalidade especial (artigos 85.º, 86.º e 94.º do CSC).  

 

Não basta, por conseguinte, a mera precedência de deliberação da sociedade para assegurar as alterações não correspondem a um meio artificioso destinado a obviar ao pagamento dos impostos, tanto mais que – como se deixou dito – a assembleia geral é constituída por dois sócios, casados entre si, e teve como resultado o favorecimento de um dos sócios mediante a atribuição da verba correspondente à redução de quota.

 

Subsistem, em todo este contexto, factos indiciários suficientes para considerar que o conjunto articulado de operações, não tendo tido um objectivo que se torne justificável no plano da racionalidade económica e da actividade empresarial, teve o único propósito de obstar à tributação em sede de IRS dos rendimentos de capitais, havendo fundamento bastante para a declaração de ineficácia dos negócios jurídicos em aplicação da cláusula geral anti-abuso a que se refere o artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

 

9. Não obsta a essa consequência a circunstância de a correcção da situação tributária ter sido efectuada por via da retenção na fonte por parte da entidade devedora dos rendimentos sujeitos a tributação. Como resulta ainda do artigo 38.º, n.º 2, da LGT a cláusula anti-abuso tem em vista assegurar que a tributação se efectue de acordo com as normas que seriam aplicáveis na ausência dos meios artificiosos ou fraudulentos de modo a eliminar as vantagens fiscais que se pretendia alcançar pela utilização desses meios. 

 

A ineficácia dos negócios jurídicos realizados – constituindo o mecanismo pelo qual se pretende impedir a obtenção da vantagem indevida – determina a reposição da situação jurídica tributária, implicando que o pagamento do imposto devido se efectue por intermédio do substituto tributário, em aplicação do disposto no artigo 28.º da LGT.

 

Como se deixou já esclarecido, a substituição tributária constitui um meio prático de assegurar a cobrança do imposto, pretendendo-se que a entidade devedora dos rendimentos deduza as importâncias que forem devidas no momento em que coloca os rendimentos à disposição do sujeito passivo e que ulteriormente as entregue nos cofres do Estado por conta do imposto que vier a ser apurado afinal. No caso dos rendimentos de capitais a que são aplicáveis taxas liberatórias, a retenção é efectuada a título definitivo, na medida em que visa o pagamento da totalidade do imposto, e nessa hipótese o substituído é apenas subsidiariamente responsável pela não retenção ou entrega do imposto, cabendo a responsabilidade primária ao substituto (artigo 28.º, n.º 3, da LGT).

 

Não há aqui uma qualquer obrigação acessória que seja imposta ao substituto tributário por efeito da aplicação da disposição anti-abuso, nem é imposto ao substituto um qualquer ónus de averiguação a eventual existência de actos ou negócios abusivos por parte dos sujeitos passivos relativamente aos quais subsista a obrigação de retenção na fonte. A retenção na fonte insere-se na relação jurídica tributária material e verifica-se por imposição da lei (artigo 20.º da LGT), sendo que o substituto se considera, para todos os efeitos fiscais, como devedor principal do imposto (artigo 21.º do Código do IRS).

 

Havendo lugar à aplicação da cláusula anti-abuso, a exigência de retenção na fonte surge como necessária decorrência da declaração de ineficácia dos negócios jurídicos realizados com abuso das formas jurídicas e por efeito da reconstituição da situação que existiria se o sujeito passivo tivesse agido em condições de normalidade.

 

Questões de constitucionalidade

 

10. Neste enquadramento, torna-se também claro que não ocorre a invocada violação do princípio da proporcionalidade e do direito à propriedade.

 

Como se deixou esclarecido, a ineficácia dos negócios jurídicos por efeito da aplicação da cláusula anti-abuso, importando a reposição da obrigação fiscal de retenção na fonte por parte do substituto tributário, recoloca o substituto na situação que existiria se não tivessem sido realizadas essas operações, tudo se passando como se houvesse lugar ab initio ao pagamento de rendimentos de capitais sujeitos a tributação em IRS e relativamente aos quais se tornava exigível a retenção na fonte.

 

Não é a aplicação da cláusula anti-abuso que agrava a posição jurídica da Requerente ou impõe o desembolso de importâncias pelas quais não possa ser considerada responsável. As entidades devedoras dos rendimentos sujeitos a tributação sempre seriam obrigadas a deduzir as importâncias correspondentes à aplicação das taxas de tributação que se encontram previstas para essa categoria de rendimentos, no momento em que os tivesse colocado à disposição do sujeito passivo. Essa obrigação fiscal não passa a assumir uma diferente natureza jurídica apenas porque a retenção da fonte opera na sequência do procedimento inspectivo que culminou com a declaração de ineficácia dos negócios tidos como artificiosos ou fraudulentos.

 

No que respeita à adequação do meio usado para a prossecução dos fins que são visados pela lei, sublinha-se que o princípio da idoneidade ou da aptidão significa que as medidas legislativas devem ser aptas a realizar o fim prosseguido ou contribuir para o alcançar. No entanto, “o controlo da idoneidade ou adequação da medida, enquanto vertente do princípio da proporcionalidade, refere-se exclusivamente à aptidão objetiva e formal de um meio para realizar um fim e não a qualquer avaliação substancial da bondade intrínseca ou da oportunidade da medida. Ou seja, uma medida é idónea quando é útil para a consecução de um fim, quando permite a aproximação do resultado pretendido, quaisquer que sejam a medida e o fim e independentemente dos méritos correspondentes. E, assim, a medida só será suscetível de ser invalidada por inidoneidade ou inaptidão quando os seus efeitos sejam ou venham a revelar-se indiferentes, inócuos ou até negativos tomando como referência a aproximação do fim visado” (neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 188/2009).

 

E, por outro lado, também não se descortina, nem a Requerente esclarece, em que termos é a que a oponibilidade ao substituto tributário da desconsideração de efeitos ficais por aplicação da disposição anti-abuso afecta os subprincípios da necessidade e da proporcionalidade em sentido restrito.

 

Vícios de procedimento

 

11. A Requerente alega ainda que o acto de liquidação enferma de violação do disposto no artigo 15.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira por ter sido alterado o âmbito do procedimento inspectivo de parcial para geral por despacho não fundamentado e notificado à Requerente no momento da conclusão do procedimento e não durante a sua execução.

 

O referido preceito dispõe o seguinte:

 

“Os fins, o âmbito e a extensão do procedimento de inspecção podem ser alterados durante a sua execução mediante despacho fundamentado da entidade que o tiver ordenado, devendo ser notificado à entidade inspeccionada.”

 

Resulta da matéria de facto dada como assente que o procedimento inspectivo teve início em 5 de Novembro de 2013, tendo sido o respectivo prazo prorrogado por três meses, por despacho do Director de Finanças de ..., de 25 de março de 2014. A Requerente foi notificada para exercer o direito de audição relativamente ao projecto de Relatório de Inspecção Tributária por ofício datado de 11 de Abril de 2014, e a versão final do Relatório foi aprovado por despacho do Director-Geral da Autoridade Tributária, de 15 de Julho de 2014.

 

Constata-se ainda, através do processo administrativo e do documento n.º 2 junto ao pedido, que o âmbito do procedimento inspectivo foi alterado para geral com fundamento na especial complexidade da situação tributária resultante da aplicação da cláusula geral anti-abuso e a alteração notificada em 8 de Abril de 2014.

 

Cabe reconhecer, nestes termos, que não só a decisão de alteração do âmbito do procedimento se encontra suficientemente fundamentada e se torna perceptível para qualquer destinatário normal, como também a sua notificação à interessada, em 8 de Abril de 2014, ocorreu ainda no decurso do procedimento e ainda antes de lhe ter sido dada oportunidade de exercer o direito de audição relativamente ao projecto de Relatório de Inspecção Tributária.

 

Não se verificam, por conseguinte, os invocados vícios procedimentais. 

 

Juros indemnizatórios

 

12. Sendo de julgar improcedente o pedido principal de declaração de ilegalidade do acto tributário de retenção na fonte e da decisão de indeferimento do recurso hierárquico, fica necessariamente prejudicado o pedido de pagamento de juros indemnizatórios.

 

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide:

 

a)            Julgar improcedente o pedido arbitral e manter a decisão de indeferimento do recurso hierárquico;

b)           Julgar prejudicado o pedido de pagamento de juros indemnizatórios.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 154.678,70, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 3.672,00, que fica a cargo da Requerente.

 

Notifique.

 

Lisboa, 24 de maio de 2019

  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

Manuel Alberto Soares

 

O Árbitro vogal

Jónatas Machado