DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Dr. José Poças Falcão (árbitro-presidente), Dra. Filipa Barros e Prof. Doutor Luís Menezes Leitão, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 14 de Novembro de 2018, acordam no seguinte:
I – RELATÓRIO
A..., S.A. (doravante designado por Requerente), com número único de matrícula e de pessoa coletiva..., com sede na Av. ..., n.º..., em Lisboa (...-...), veio, ao abrigo dos artigos 2.º n.º 1, alínea a) e 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, previsto no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante abreviadamente designado “RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, apresentar pedido de pronúncia arbitral com vista à declaração de ilegalidade dos atos tributários de autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) relativos aos períodos de 2015/11 a 2016/12 e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2017... .
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, (doravante designada por AT).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 04-09-2018.
O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 24-10-2018, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 14-11-2018.
Devidamente notificada, a AT apresentou resposta em que defendeu a improcedência do pedido, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Por se entender que os factos relevantes para a decisão têm suporte documental bastante, foi dispensada a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT.
Foi fixado o dia 18 de Março de 2019 para a prolação da decisão final.
Para fundamentar o seu pedido alega o Requerente, em síntese, que a decisão de indeferimento da reclamação graciosa relativa à anulação dos atos de autoliquidação de IVA respeitantes aos períodos de 2015/11 a 2016/12 padece de ilegalidade, invocando para o efeito a aplicabilidade dos meios gerais de correção previstos no artigo 97.º n.º 2 do Código do IVA, afastando, por outro lado, a aplicação do mecanismo consagrado no Artigo 78.º n.º 6 de referido Código, uma vez que, não estão em causa no autos regularizações de imposto.
Com efeito, defende o Requerente que por força de um lapso de registo contabilístico e de um subsequente lapso de preenchimento das declarações periódicas, foram incluídos no campo 4 das declarações periódicas montantes correspondentes à base tributável do IVA, tendo tais montantes sido entregues nos cofres do Estado. Assim, o Requerente entregou ao Estado não só o montante correspondente ao IVA liquidado como o valor da contraprestação recebida dos respetivos clientes sobre o qual incidiu o IVA. Por conseguinte, ainda que corrigisse as faturas em apreço, nos termos propostos pela AT no âmbito do projeto de indeferimento da reclamação graciosa, a situação em análise continuaria a não ser subsumível ao regime consagrado no artigo 78.º n.º 6 do Código do IVA, por as quantias que pretende ver restituídas não assumirem a natureza jurídica de IVA.
Aplicando a regra de interpretação prevista no artigo 9.º do Código Civil (ex vi artigo 11.º n.º 1 da LGT), resulta da letra do citado preceito legal que este respeita à correção de erros materiais ou de cálculo nos registos ou nas declarações periódicas em que o sujeito passivo tenha procedido incorretamente à entrega ou dedução de IVA, o que quer dizer que, o mecanismo se destina apenas à regularização de quantias que tenham a natureza jurídica de imposto.
Não estando em causa regularizações de imposto, nem tão pouco erros materiais ou de cálculo, deverá o sujeito passivo lançar mão dos restantes meios gerais de reação, como decorre do disposto no artigo 97.º n.º 2 do Código do IVA, considerando o Requerente, que esta é a orientação interna da AT, veiculada no Ofício-Circulado n.º 30.082/2005 de 17 de Novembro.
Por conseguinte, defende o Requerente que a decisão de indeferimento da reclamação graciosa padece de vício de violação de lei por errada interpretação do disposto no artigo 78.º n.º 6 do Código do IVA.
Sendo este o contexto, o Requerente qualifica o erro incorrido na autoliquidação do IVA, como um erro de facto, ao ter laborado em erro na determinação de factos juridicamente relevantes e, consequentemente, das normas a relevar no cômputo da matéria tributável a fazer constar da declaração. Para o efeito, o Requerente apoia-se em jurisprudência anterior proferida pelo CAAD, segundo a qual se deverá distinguir entre o desfasamento da realidade representada na declaração periódica e a realidade – erro de facto ou de direito – e a ocorrência superveniente de um facto (alteração da realidade) que acarreta uma alteração do imposto a suportar ou a deduzir, sendo estas últimas situações a que a referida norma do artigo 78.º n.º 6 do Código do IVA se reporta.
Assim, a situação em apreço deverá ser qualificável como erro de facto cuja solução jurídica se encontra plasmada no artigo 16.º do Código do IVA.
Ademais refere que o alegado erro na emissão de faturas invocado pela AT na decisão de indeferimento da reclamação graciosa não altera a sua conclusão, porquanto o incumprimento das formalidades legais na emissão de faturas não implica a necessidade de regularização do IVA nos termos do artigo 78.º do Código daquele imposto e muito menos legitima a AT a não reembolsar de imediato as quantias indevidamente pagas.
Conclui referindo que, em face do quadro factual e jurídico descrito, a decisão da AT configura um enriquecimento sem causa do Estado, pois sendo vedada a possibilidade de corrigir os atos de autoliquidação de IVA, por se entender não ser o procedimento de reclamação graciosa o meio adequado, tal entendimento é suscetível de violar o princípio da efetividade consagrado na ordem jurídica europeia.
Por seu turno, a Requerida veio em resposta, defender-se por exceção e por impugnação.
No âmbito da defesa por exceção, a Requerida alega, em síntese, o seguinte:
Em primeiro lugar, a AT deduz a exceção de incompetência material do tribunal arbitral para conhecer do pedido submetido à sua apreciação, o qual tem por objeto um ato administrativo em matéria tributária que não apreciou a legalidade das autoliquidações em apreço, recusando pronunciar-se sobre o mérito da pretensão deduzida pelo então Reclamante, por entender que o peticionado tem o seu enquadramento legal na regularização facultativa prevista no nº 6 do artigo 78.º do Código do IVA. Com efeito, defende que a vinculação da administração tributária à jurisdição arbitral consta da portaria nº 112-A/2011, de 22/03, a qual exclui do âmbito desta vinculação, conforme alínea a) do seu artigo 2.º, as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigo 131.º a 133.º do CPPT.
Perante o referido quadro normativo, salienta que o artigo 97.º n.º 2 do Código do IVA prescreve a inadmissibilidade das reclamações quando fosse admissível a regularização prevista no artigo 78.º do mesmo código, como vem a ser o caso dos autos.
Não sendo, por conseguinte, de enquadrar a pretensão da Requerente na reclamação das autoliquidações previstas no artigo 131.º do CPPT, uma vez que, esse enquadramento é expressamente rejeitado pelo nº 2 do artigo 97.º do Código do IVA, em conjugação com o artigo 78.º do mesmo diploma legal.
Acresce que nos termos do artigo 2.º alínea a) da Portaria nº 112-A/2011, reclamação deduzida pela ora Requerente não é equiparável à reclamação prevista no artigo 131.º do CPPT, sendo certo que resulta da letra da lei que as pretensões submetidas à jurisdição arbitral tenham sido precedidas do recurso à via administrativa nos termos do artigo 131.º do CPPT, pretendendo o legislador referir-se à apresentação de reclamação graciosa necessária relativamente ao pedido de declaração de ilegalidade do ato de autoliquidação.
Com efeito, se o legislador não previu, no artigo 2.º da referida Portaria de vinculação, o procedimento de revisão oficiosa como equiparável ao recurso à via administrativa, maxime à reclamação graciosa, para efeitos de aceder ao pedido de pronúncia arbitral, foi, certamente, porque não o pretendeu fazer. Ora, tais considerações valem para quaisquer outros recursos à via administrativa que não consubstanciem, para o que aos autos interessa, um recurso à via administrativa nos termos do artigo 131.º do CPPT.
Conclui referindo que entendimento pugnado, de que os litígios que tenham por objeto a declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, como sucede na situação sub judice, estão excluídos da competência material dos tribunais arbitrais, se não forem precedidos de reclamação graciosa nos termos do artigo 131.º do CPPT, impõe-se por força dos princípios constitucionais do Estado de Direito e da separação dos poderes (cfr. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como do direito de acesso à justiça (artigo 20.º da CRP) e da legalidade (cf. artigos 3.º, n.º 2, 202.º e 203.º da CRP e ainda o artigo e 266.º, n.º 2, da CRP), no seu corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, que vinculam o legislador e toda a atividade da AT.
No entanto, caso assim não se entenda, a AT defende que a incompetência material do Tribunal Arbitral sempre resultará do facto da decisão impugnada não ter apreciado a legalidade dos atos de autoliquidação de imposto.
Efetivamente, o ato objecto de pronúncia arbitral consubstancia-se na decisão de recusa de apreciação do mérito da pretensão deduzida pelo então reclamante por se entender que a reclamação graciosa não é o meio legalmente admissível para o efeito. Assim, resulta forçoso concluir que não foi apreciada a legalidade de qualquer ato tributário de autoliquidação, inexistindo uma pronúncia quanto ao mérito da questão.
Ora, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, os atos administrativos em matéria tributária que não apreciem ou discutam a legalidade do ato de liquidação, não são sindicáveis através de impugnação judicial.
A AT sublinha que este entendimento é sufragado tanto pela doutrina como pela da jurisprudência do STA e do próprio CAAD, segundo a qual, não se insere no âmbito das competências arbitrais apreciar a legalidade ou ilegalidade de decisões de indeferimento de pedidos de regularização de IVA apresentados nos termos do 78.°, da LGT nem, como pede o Requerente, proferir decisões parcialmente anulatórias de autoliquidação de IVA sem precedência de apreciação da legalidade desses atos pela AT nos termos dos artigos 131.° a 133.°, do CPPT .
Conclui, que não pode o pedido arbitral ser conhecido pelo presente Tribunal, face à verificação de exceção dilatória que se traduz na incompetência do tribunal, a qual prejudica o conhecimento do mérito da causa, devendo determinar a absolvição da entidade requerida da instância, atento o disposto nos artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
No âmbito da defesa por impugnação, a Requerida alega, em síntese, o seguinte:
O Requerente pretende fazer valer o seu direito à restituição de quantias alegadamente entregues em excesso, por erro, com base em faturas que não cumprem integralmente a formalidade legal de conter explicitamente os elementos referidos nas alíneas c) e d) do n.º 5 do artigo 36.º do Código do IVA, a saber:
- o valor tributável da operação que serve de base à liquidação do imposto e,
- o montante de imposto devido pela operação tributável.
A este respeito, a AT recorda que apenas aos retalhistas é conferida, nos termos dos artigo 39.º e 40.º do Código do IVA, a possibilidade de emitirem documentos mencionando o valor da operação com inclusão do IVA, em substituição dos elementos previstos nas alíneas c) e d) do n.º 5 do artigo 36.º do Código do IVA, sendo, em regra obrigatória a repercussão do imposto, nos termos do n.º 1 do artigo 37.º do Código do IVA, com discriminação do imposto relativo à prestação de serviços realizada.
Em todo o caso, uma vez que o erro do Requerente, resulta do facto de os elementos que serviram de base para o preenchimento das declarações periódicas se encontrarem incorretamente registados na contabilidade, dever-se-á entender que o erro em questão configura um erro material ou de cálculo nos registos contabilísticos efetuados, susceptível de enquadramento no n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA.
Assim sendo, a regularização dos referidos erros é meramente facultativa, por dela resultar imposto a favor do sujeito passivo, sendo que, apenas poderia ser efectuada no prazo de dois anos, a contar do nascimento do direito à dedução, nos termos do n.º 1 do artigo 22.º e do n.º 6 do artigo 78.º, ambos do Código do IVA.
Por conseguinte, caberia ao Requerente corrigir o erro na emissão das faturas a partir das quais decorre o erro declarativo conducente ao alegado pagamento indevido de IVA, através da anulação dos respetivos documentos de suporte faturas/recibo, seguida pela emissão de notas de crédito aos clientes, e, finalmente, emissão de novas faturas que passem a conter todos os requisitos legais previstos no citado n.º 5 do artigo 36.º do Código do IVA, conforme decorre do n.º 1 do artigo 78.º do Código do IVA.
Ademais, no entender da AT, os documentos apresentados pelo Requerente, juntos aos autos, além de não serem certificados, são insuficientes para alcançar a prova pretendida, quanto ao alegado erro praticado e quanto à quantificação do mesmo.
Atento o exposto, a AT pugna pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral, uma vez que, o alegado erro praticado pelo Requerente, consubstancia um erro material ou de cálculo, de regularização facultativa no prazo de 2 anos, devendo ser afastada a possibilidade de aplicar o prazo geral de 4 anos para exercício do direito à dedução, previsto no n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA.
Atendendo a que, no caso, não se verificava qualquer das finalidades que legalmente lhe estão cometidas, e não tendo havido oposição das partes, ao abrigo do disposto nos artigos 16.º alínea c), 19.º e 29.º n.º 2 do RJAT, bem como dos princípios da economia processual e da proibição da prática de atos inúteis, a 3 de Janeiro de 2019, dispensou-se a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, tendo as partes sido notificadas para apresentação de alegações escritas, de facto e de direito, no prazo simultâneo de 20 dias.
Mais se decidiu que no mesmo prazo para apresentação de alegações poderá o Requerente exercer o contraditório em relação às exceções invocadas pela Requerida.
Em 04 de Fevereiro de 2019, o Requerente apresentou as suas alegações escritas, mantendo, na essência, os argumentos que constam do pedido de pronúncia arbitral, e procedendo à resposta às exceções invocadas pela Requerida, nos termos seguintes:
Quanto à primeira exceção, assinala que o meio utilizado pelo Requerente para sindicar o erro nos atos de autoliquidações de imposto é o correto, não existindo qualquer outro meio de reação passível de ser utilizado.
Com efeito, tendo em conta a factualidade aduzida no pedido de pronúncia arbitral, resulta que o Requerente inseriu, por lapso, no campo 4 das declarações periódicas de IVA não só o montante correspondente ao IVA, como também o montante correspondente à base tributável e que serviu à liquidação do imposto. Em resultado desse lapso, o Requerente entregou nos cofres do Estado, a título de IVA, montantes que não assumem a natureza jurídica de imposto.
Assim, contrariamente à tese defendida pela Requerida a situação em apreço não se enquadra no âmbito do regime das regularizações de IVA consagrado no artigo 78.º n.º 6 do Código do IVA, uma vez que os atos de autoliquidação consubstanciam erros de facto que contrariam as regras basilares do Código do IVA, nomeadamente artigo 16.º n.º 1 daquele diploma.
Por conseguinte, sendo ilegais os atos de autoliquidação do imposto, por contrárias às regras basilares de incidência e apuramento do IVA, bem como toda a conceção do IVA, o Requerente fez uso da reclamação graciosa, nos termos e para os efeitos do artigo 131.º do CPPT, por ser esse o meio que a lei processual dispõe para peticionar junto da AT a correção de erros desta natureza. Sendo a situação subsumível no conceito de erro de facto, e não de “erros materiais ou de cálculo” ficam afastadas as possibilidades de aplicação do mecanismo previsto no artigo 78.º n.º 6, carecendo o erro de ser corrigido pela AT através da revisão dos atos tributários desencadeada pelo mecanismo processual imposto pelo artigo 131.º do CPPT.
Baseada na doutrina e em anteriores decisões proferidas pelo Tribunal Arbitral, o Requerente reitera que o meio utlizado é o próprio, não subsistindo dúvidas quanto à competência material do Tribunal Arbitral para apreciar e declarar a ilegalidade dos atos de autoliquidação sub judice.
Com efeito, de acordo com a jurisprudência arbitral, a referência expressa ao artigo 131.º do CPPT que se faz no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) da aludida Portaria n.º 112-A/2011 não pode ter o alcance decisivo de afastar a possibilidade de apreciação de pedidos de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de correção e revisão de atos de autoliquidação. A interpretação exclusivamente baseada no teor literal não pode ter acolhimento, tendo em conta que os princípios gerais de interpretação. Assim, a obrigação de recorrer à reclamação graciosa prévia, necessária para abrir a via contenciosa de impugnação de atos de autoliquidação, prevista no n.º1 do artigo 131.º do CPPT, tem como propósito permitir à AT conhecer e pronunciar-se sobre a legalidade da situação jurídica e factual criada pelo ato. De igual modo, nos casos em que é formulado um pedido de correção ou revisão oficiosa do ato de liquidação é proporcionada à AT a oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do sujeito passivo antes de este recorrer à via jurisdicional.
Ora, não restam dúvidas que, no caso em apreço, o Requerente apresentou reclamação graciosa contra os atos de autoliquidação de IVA, proporcionado à AT a oportunidade desta se pronunciar sobre o mérito da sua pretensão, pelo que não pode aceitar-se o impedimento de acesso à via arbitral sob pena de violação do direito de acesso à justiça e à tutela efetiva consagrado no artigo 20.º da CRP.
Em segundo lugar, arguiu a Requerida a incompetência material do Tribunal Arbitral uma vez que a decisão da AT que versou sobre a reclamação graciosa não apreciou a legalidade dos atos de autoliquidação, estando vedado o recurso à via arbitral quando o ato administrativo em matéria tributaria não aprecie o mérito da questão.
Ora, quanto a esta questão, entende o Requerente que não assiste razão à AT.
Com efeito, em causa nos presentes autos está o facto de a AT entender que a situação sub judice é subsumível ao “erro material ou de cálculo”, consagrado no artigo 78.º, n.º 6, do Código do IVA e, por esta razão, o meio adequado à pretensão do Requerente é o mecanismo de regularização do imposto consagrado naquele preceito legal, e não a reclamação graciosa.
A AT alicerça a qualificação do erro e, por conseguinte, a subsunção da situação em apreço ao disposto naquele preceito legal, na circunstância de o Requerente não ter cumprido com as formalidades legalmente previstas no artigo 36.º, n.º 5, do Código do IVA para a emissão das faturas.
Perante tais considerações, o Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral por entender que o juízo da AT enferma de errónea qualificação da situação jurídico- tributária, e, por outro lado, de errónea interpretação do mecanismo de regularização consagrado no artigo 78.º, n.º 6, do Código do IVA.
Por conseguinte, a discussão da legalidade dos atos de autoliquidação centra-se no facto de a AT entender que se trata de correções de erros materiais ou de cálculo nos registos da contabilidade, aplicando o regime jurídico previsto para a regularização do IVA, ao passo que o Requerente entende que se está perante um erro de facto e de direito, cuja solução jurídica está plasmada no artigo 16.º do Código do IVA.
Neste sentido, o ato de indeferimento da reclamação graciosa avalia a natureza do erro evidenciado pelo Requerente, tendo feito considerações na decisão de indeferimento da reclamação graciosa, em que individualiza a situação prática, analisa os factos expostos e atribui uma solução factual e jurídica diversa da solução encontrada pelo Requerente (cfr. pontos 61 a 78 da decisão de indeferimento).
Assim, a fundamentação assente na decisão de indeferimento da reclamação graciosa não se basta apenas e tão-só com a idoneidade do meio processual utilizado, antes versa sobre a qualificação da situação do ponto de vista fatual e jurídico.
Acresce que na decisão de indeferimento da reclamação graciosa, a AT acaba por admitir que a pretensão do Requerente poderia ter acolhimento se tivesse seguido o mecanismo previsto no artigo 78.º do Código do IVA, indiciando, assim, que os atos de autoliquidação são ilegais.
Em apoio da sua tese, o Requerente invoca decisões anteriores do Tribunal Arbitral, segundo as quais, em face do critério de repartição dos campos do processo de impugnação judicial e da ação administrativa, delineado pelas alíneas d) e p), do n.º 1, do artigo 97.º do CPPT, não é necessário que a apreciação da legalidade de um ato de liquidação seja o fundamento da decisão administrativa ou que no pedido formulado se peça a apreciação da legalidade de um ato de liquidação, bastando que esse ato a comporte, o que, neste contexto, significa que no ato impugnado se inclua um juízo sobre a legalidade de um ato de liquidação, mesmo que não seja a sua legalidade ou ilegalidade o fundamento da decisão.
Sem prejuízo do supra exposto, e mesmo que o Tribunal Arbitral entendesse que a decisão de indeferimento da reclamação graciosa não comporta a apreciação da legalidade dos atos de autoliquidação – o que só se concebe por mero exercício de patrocínio, sem conceder – no entender do Requerente tal não era suficiente para se julgar incompetente para apreciar o pedido de pronúncia arbitral em causa. Com efeito, e ao contrário do que defende a Requerida, mesmo que os atos administrativos em matéria tributária não apreciem a legalidade do ato de autoliquidação, podem ser sindicáveis através da arbitragem, não estando em causa, no processo arbitral, a concreta aplicação do critério de repartição dos campos do processo de impugnação judicial e da ação administrativa (como acontece por obediência às regras do artigo 97.º, n.ºs 1, alíneas d) e p) e 2 do CPPT), tendo em conta a estrutura conceptual do artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, não sendo o disposto no artigo 97.º, n.ºs 1, alíneas d) e p) e 2 do CPPT extensível às regras processuais previstas no RJAT.
Finalmente, o Requerente recorda que o meio de reação utilizado foi o expressamente indicado pela AT na decisão de indeferimento da reclamação graciosa, porquanto a admissibilidade do presente meio processual para reagir contra a decisão de indeferimento da reclamação graciosa é reconhecida pela AT na sua própria decisão.
Conclui o Requerente que não pode a AT pretender obstar ao conhecimento do mérito do pedido, escudando-se na inadequação de um meio processual cuja utilização ela própria, objetivamente, induziu, sob pena de violação do princípio da colaboração e boa-fé́ consagrado no artigo 59.º da LGT.
No que se refere aos factos objeto de impugnação, o Requerente considera os seus argumentos reforçados através da prova produzida nos autos, suportada em documentos contabilísticos idóneos e devidamente esclarecedores quanto ao erro que se pretende demonstrar.
Finalmente, contrariando a alegada insuficiência de faturas juntas aos autos, o Requerente sublinha a necessidade e adequação da realização da prova por amostragem em situações em que os montantes de comissões e o IVA liquidado constam de um número avultado de faturas que tornam quase impraticável a produção de prova física.
Em 15-02-2019 a Requerida apresentou as suas alegações tendo reiterado todos os argumentos apresentados na resposta.
II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral é materialmente competente e foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas (artigos 4º e 10º, nº 2, do mesmo diploma e artigo 1º da Portaria nº 112-A / 2011, de 22 de março). O processo não enferma de nulidades.
Não se verificam quaisquer outras circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
III. DECISÃO
1. Matéria de facto
1.1.Factos dados como provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
a) O Requerente é uma instituição financeira que exerce normal e habitualmente a atividade descrita no n.º 1, do artigo 4.º, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro;
b) O Requerente é um sujeito passivo de IVA, enquadrando-se no regime normal, com periodicidade mensal, realizando operações sujeitas a IVA;
c) Na sequência de uma revisão interna de procedimentos, o Requerente constatou que, nos períodos de 2015/11 a 2015/12 e de 2016/01 a 2016/12, entregou nos cofres do Estado os montantes de € 10.029,25 e de € 59.374,24, respetivamente, a título de IVA, quando, na verdade, tais montantes correspondem ao valor das comissões pagas pelos clientes;
d) No âmbito da sua atividade, o Requerente disponibiliza serviços relacionados com
pagamento de serviços e compras através da rede multibanco, gerida pela SIBS B..., S.A. (“SIBS”);
e) Este serviço permite aos comerciantes aderentes disponibilizarem aos seus clientes, via rede multibanco, o pagamento das faturas decorrentes da prestação de serviços e venda de bens, como sejam os provenientes das designadas “utilities” (v.g. água, eletricidade e gás), entre outros;
f) A fatura que o comerciante disponibiliza aos seus clientes contém as seguintes indicações: número da entidade, número da referência multibanco e montante a pagamento;
g) Quando um comerciante adere a este serviço, o Requerente solicita junto da SIBS a abertura de uma referência, designada por “Entidade”;
h) Para cada pagamento de compras ou serviços é disponibilizada pela SIBS uma “Referência Multibanco” que o comerciante fará constar da fatura a emitir que, por seu turno, permitirá ao cliente, conjuntamente com a indicação do número da “Entidade” e do montante a pagamento, efetuar o pagamento na rede multibanco;
i) Uma vez realizado o pagamento pelo cliente através da rede multibanco, o “Banco de Apoio” entrega ao comerciante o preço da compra do bem ou do serviço;
j) Como contrapartida pelos serviços prestados no âmbito dos pagamentos por referências multibanco, os comerciantes pagam ao Requerente uma comissão;
k) Esta comissão pode ser descontada do preço da compra do bem ou do serviço a entregar pelo Requerente ao comerciante, ou pode, ainda, ser paga posteriormente pelo comerciante, até́ ao dia 7 do mês seguinte;
l) A comissão cobrada pelo Requerente foi sujeita a IVA, à taxa legal de 23%;
m) No âmbito de uma revisão de procedimentos realizados, o Requerente constatou que por lapso, nos últimos anos, registou na rúbrica contabilística #58823 – IVA Liquidado – o valor correspondente à comissão cobrada ao comerciante;
n) Assim, na rúbrica contabilística #58823 o Requerente registou o IVA liquidado sobre a comissão, bem como o valor correspondente à própria comissão;
o) Nas faturas emitidas aos seus clientes o Requerente não segregou devidamente o valor correspondente às referidas comissões pagas pelos comerciantes, do IVA liquidado sobre essas mesmas comissões (cfr. cópia por amostragem das faturas juntas ao PPA como doc. n.º 6).
p) Assim, das faturas respeitantes às comissões cobradas aos clientes, emitidas pela Requerente constam os seguintes elementos:
- Número da fatura/recibo;
- Mês de referência;
- Código de cliente;
- Código de entidade multibanco;
- NIF;
- Designação social do cliente e respetiva morada;
- Data, descritivo, quantidade e importância total da operação;
- Menção de IVA incluído à taxa legal de 23%;
- Data da emissão do documento.
(cfr. doc. n.º 6 junto com o PPA).
q) O erro na emissão das faturas de não segregação do IVA liquidado relativamente ao valor da comissão originou um erro no preenchimento das declarações periódicas de IVA (cfr. doc. n.º 1 junto com o Pedido de Pronúncia Arbitral (doravante PPA).
r) No preenchimento do campo 4 (Imposto a favor do Estado) das declarações periódicas de IVA referentes aos períodos de 2015/11 a 2016/12, o Requerente relevou, entre outros, o saldo da rúbrica contabilística #58823, (cfr. tabela que se junta com o PPA como documento n.º 2, contendo a decomposição das rúbricas contabilísticas e respetivos saldos, bem como dos correspondentes balancetes e do extrato de conta, juntas como doc.s n.º 3 e n.º 4, respetivamente);
s) O saldo da rúbrica contabilística #58823 incluía, não apenas o montante correspondente ao IVA liquidado, como também o montante correspondente à comissão cobrada ao comerciante, (cfr. lançamentos do balancete e extrato de conta juntos com o PPA como docs. n.º 3 e n.º 4, bem como informação constante da tabela com os meios de pagamento, junta ao PPA como doc. n.º 5);
t) As faturas emitidas aos clientes pelo Requerente devidamente assinaladas na tabela de meios de pagamento, evidenciam que foi relevado na rúbrica contabilística #58823 o valor da comissão cobrada, acrescida do IVA liquidado à taxa de 23%, (cfr. tabela de meios de pagamento junta ao PPA como doc. n.º 5 e cópia por amostragem de faturas juntas ao PPA como doc. n.º 6).
u) O montante identificado nas faturas como “Importância” devida, i.e. como comissão, foi integralmente registado na rúbrica contabilística do IVA liquidado que, por sua vez, foi inscrito no campo 4 da declaração periódica como IVA a favor do Estado e entregue nos cofres do Estado (cfr. documentos juntos com o PPA n.ºs 2, 3, 4, 5 e 6);
v) O erro nos registos contabilísticos e subsequente erro no preenchimento das declarações periódicas de IVA, conduziu a que o Requerente entregasse como imposto a favor do Estado o montante da contraprestação por si recebida, no valor total de € 69.403,49 (cfr. doc. n.º 1 que se junta com o PPA);
w) Tendo em vista reagir contra o erro de preenchimento das declarações periódicas de IVA e convicto das ilegalidades dos atos de autoliquidação o Requerente apresentou reclamação graciosa contra tais atos de autoliquidação (cfr. doc. n.º 7 junto com o PPA);
x) Em 12-04-2018, através do ofício n.º..., da Divisão de Gestão e Assistência Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, o Requerente foi notificado do projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada, (cfr. doc. n.º 8 que se junta com o PPA);
y) No projeto de decisão, a AT propõe o indeferimento da reclamação graciosa por entender, em síntese o seguinte:
“39. Pelo que, para corrigir o erro na emissão da fatura a partir do qual decorre o erro declarativo conducente ao alegado pagamento indevido de IVA, a Reclamante deve proceder (nos casos em que ainda esteja a decorrer o prazo para o efeito) à anulação dos respetivos documentos de suporte – “faturas/recibo” através da emissão de notas de crédito aos respetivos clientes,
40. procedendo, de seguida, à emissão de novas faturas que passem a conter todos os requisitos legais previstos no já citado n.º 5 do artigo 36.º do CIVA, conforme decorre da norma prevista no n.º 1 do artigo 78.º do CIVA (...)
41. Note-se que tais regularizações não constituem uma obrigatoriedade antes assumindo uma mera faculdade concedida aos sujeitos passivos. Porém, o exercício pleno dessa prerrogativa, encontra-se condicionado pela verificação da prerrogativa imposta pelo n.º 5 do mesmo artigo (...)
44. Consequentemente, a par da regularização de IVA efetuada a favor do sujeito passivo (transmitente ou prestador), nos casos em que o adquirente já tenha procedido ao registo contabilístico, este último, por sua vez, fica obrigado a corrigir a dedução de IVA, inicialmente efetuada, procedendo à regularização a favor do Estado do correspondente montante de imposto, até ao fim do período seguinte ao da receção do documento retificativo. (...)
46. Por outro lado, uma vez que estamos perante uma situação suscetível de aplicação do mecanismo de regularização de IVA no quadro normativo disposto no artigo 78.º, à luz do qual se impõe avaliar a forma de efetuar as regularizações de IVA que a Requerente pretende alcançar, nesta sede, importa referir que o erro material ou de cálculo acima referido, afasta, por completo, a possibilidade de aplicar o prazo geral de quatro anos para o exercício do direito à dedução previsto no n.º 2 do artigo 98.º do CIVA.
47. Porquanto – como veremos – por um lado, não estamos perante a ausência de normas legais especialmente aplicáveis às regularizações de IVA decorrentes de erros materiais ou de cálculo que justifique a aplicação do prazo geral de quatro anos. (...)
52. De acordo com o entendimento firmado, esse prazo limite apenas se aplica, dado o seu carácter geral, quando não exista norma de carácter especial que fixe um prazo limite inferior ou superior, sob pena destas normas ficarem despojadas de conteúdo prático, pois se assim não fosse sempre se aplicaria o prazo de quatro anos previsto no artigo 98.º do CIVA. O que como resulta do exposto não é o caso. (...)
54. Neste sentido, atendendo a que na data em que apresentou a petição, os atos tributários de autoliquidação ora em apreço e que constituem o seu objeto eram ainda suscetíveis de correção nos termos do artigo 78.º do CIVA, pelo que, o presente procedimento administrativo de reclamação não poder ser admitido, por força do disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 97.º do CIVA.
55. Do mesmo modo que, também em relação a alguns dos períodos de 2016 contestados, à data da elaboração da presente informação, encontra-se ainda em curso esse prazo de 2 anos para a regularização da operação, razão pela qual se reitera que, tal como resulta da primeira parte do n.º 2 do artigo 97.º, para proceder à correção pretendida, o A... deve recorrer ao mecanismo de regularização previsto no n.º 6 do artigo 78.º do CIVA, sendo por esse motivo manifestamente impossível admitir a sua pretensão nesta sede.
56. Nessa medida, ao invés do pretendido pelo Reclamante, nesta sede, de ver reconhecido o direito de regularizar, a seu favor, o IVA alegadamente liquidado em excesso, na sequência de erro na emissão das faturas, bem como no erro material ou de cálculo detetado nos registos contabilísticos correspondentes a partir dos quais procedeu ao preenchimento das declarações periódicas em causa, impõe-se como único mecanismo de regularização aplicável, o especialmente previsto na parte final do n.º 6 do artigo 78.º do CIVA, de acordo com o qual, a regularização em causa teria que ser efetuada no prazo de dois anos contados “(...) a partir do nascimento do respetivo direito nos termos do n.º 1 do artigo 22.º do CIVA (...)”.
z) Em 02-05-2018, o Requerente exerceu o seu direito de audição prévia manifestando uma vez mais a sua discordância com o enquadramento proposto no projeto de decisão da AT, supra explicitado (cfr. doc. n.º 9 junto com o PPA);
aa) Em 09-05-2018, através de ofício n.º ... da Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, o Requerente foi notificado da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, na qual a AT manteve a posição vertida no Projeto de Decisão (cfr. decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa junto com o PPA como doc. nº 10);
bb) No dia 03-09-2018 deu entrada o pedido de constituição de Tribunal Arbitral (cfr. requerimento electrónico junto ao CAAD).
1.2. Factos dados como não provados
De entre os alegados, relevantes para a decisão, nenhum ficou por provar.
1.3. Fundamentação da matéria de facto
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (artigos 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário – CPPT- e 607.º n.º 3 do Código de Processo Civil – CPC -, aplicáveis ex vi artigo 29.º, nº 1, alªs. a) e e) do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da (s) questão (ões) de direito (cfr. anterior artigo 511º, nº 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596º, aplicável ex vi artigo 29º, nº 1, al. e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 10º, nº 7 do CPPT, a prova documental e o processo administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no acórdão do TCA-Sul de 26-06- 2014, proferido no processo 07148/131, “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Em especial, os factos dados como provados supra identificados nas alíneas c) a bb) tiveram em conta o disposto nos articulados das partes bem como nos documentos juntos pela Requerente, o Relatório de Inspeção Tributária e a documentação constante do PA.
Assim, considerando os factos supra elencados, e sem prejuízo da análise prévia das exceções de incompetência material invocadas pela AT, entende-se que a matéria principal em discussão se circunscreve a uma questão de direito essencial: aferir da legalidade da decisão da AT ao considerar que o erro invocado pelo Requerente consubstanciado na entrega de valores em excesso a título de imposto, valores esses que constituem o pagamento de uma contraprestação, configura um “erro material ou de cálculo”, apenas corrigível no prazo de 2 anos, de acordo com o mecanismo previsto no artigo 78.º n.º 6 do Código do IVA, ou, se, pelo contrário, tal erro deverá ser enquadrável como erro de facto ou de direito, nos termos previstos no artigo 98.º, n.º 2 do Código do IVA, passível de correção no prazo de 4 anos, conforme defende o Requerente.
2. Do Direito
2.1. Questões prévias
A título prévio importa começar por analisar das exceções de incompetência material do Tribunal Arbitral arguidas pela AT.
2.2. Da incompetência material
Argui a Requerida a incompetência material deste tribunal, na medida em que no seu entendimento, a alínea a), do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, exclui do âmbito dessa vinculação as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação que não tenham sido precedidas de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do CPPT, “Não sendo (...) de enquadrar a pretensão da Requerente na reclamação das autoliquidações previstas no art. 131.º do CPPT uma vez que esse enquadramento é expressamente rejeitado pelo n.º 2 do art. 97.º do CIVA, em conjugação com o art. 78.º do mesmo diploma legal.” (vide ponto 19 da Resposta). Nesta ótica, considera que, mesmo equiparando a “reclamação deduzida pela ora Requerente à reclamação prevista no art. 131.o do CPPT, tal equiparação está legalmente vedada em sede arbitral”, porquanto o artigo 2.º, alínea a), da aludida Portaria apenas contempla expressamente o meio consagrado no artigo 131.º do CPPT, atento o elemento literal e por conseguinte inelutável, do artigo 2.º, da alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011.
Assim, entende a AT, face a este normativo, que o mesmo deve ser entendido na sua literalidade, proscrevendo do âmbito da jurisdição arbitral tributária as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação que não tenham sido precedidas de reclamação nos termos das referidas normas do CPPT.
Toda a argumentação da AT na matéria, contudo, acaba por se reconduzir a sustentar que foi intenção do legislador restringir a competência da jurisdição arbitral tributária, no que ao conhecimento de ilegalidades de atos de autoliquidação diz respeito, unicamente às situações em que exista uma reclamação apresentada nos termos dos artigos 131.º a 133.º do CPPT, porquanto é isso que estabelece expressamente o texto da norma interpretada.
Ressalvado o respeito devido, não se descortina, de entre as razões oferecidas pela AT, uma razão substancial que explique a racionalidade do entendimento que sustenta. Efetivamente, não se descortina qualquer razão substancial – e a AT nada apresenta nesse sentido – para que, atentos os condicionalismos e especificidades próprios de cada um dos meios graciosos em causa, nos mesmos termos em que os tribunais tributários estão vinculados, não seja cognoscível em sede arbitral a legalidade dos atos de autoliquidação.
Por outro lado, mesmo uma leitura literalística da norma em questão, desde que devidamente contextualizada, não conduz inexoravelmente ao resultado defendido pela AT nos autos.
Com efeito, a expressão empregue por tal norma é paralela à própria norma do artigo 131.º n.º1 do CPPT, o que deverá ser compreendido como uma concretização da assumida, e pacificamente reconhecida, intenção legislativa de que o processo arbitral tributário constitua um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial.
A norma da alínea a) do artigo 2.º da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, deverá também ser entendida como explicando-se pela circunstância de, na sua ausência – e face ao teor do artigo 2.º do RJAT – se perfilar como possível a impugnação direta de atos de autoliquidação, sem precedência de pronúncia administrativa prévia. Ou seja: tendo em conta que face ao RJAT não se configurava como necessária qualquer intervenção administrativa prévia à impugnação arbitral de uma autoliquidação, o teor da Portaria deve ser interpretado como equiparando – nesta matéria – o processo arbitral tributário ao processo de impugnação judicial e não, como decorreria da posição sustentada pela AT, passar do 80 para o 8, pegando numa impugnabilidade mais ampla do que a possível no âmbito dos Tribunais Tributários, e transmutando-a numa mais restrita.
Assim, razão alguma se vê – e, uma vez mais, nenhum subsídio a AT dá nesse sentido – para que se interprete de forma diferente uma e outra norma, tanto mais que a letra da norma da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, acaba por ser menos restritiva que a do CPPT, na medida em que não integra a expressão “obrigatoriamente”, nem se refere a “reclamação graciosa” mas antes a “via administrativa”. Daí que seja possível uma leitura da própria letra da lei que se contenha no sentido de que apenas está afastado do âmbito da jurisdição arbitral tributária o conhecimento de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa em termos compatíveis com os artigos 131.º a 133.º do CPPT.
Esta é, por conseguinte, a leitura que se subscreve, na sequência do Acórdão proferido no processo n.º 48/2012T do CAAD, e jurisprudência arbitral subsequente, entendimento igualmente acompanhado pela doutrina , não se deslindando, na medida em que interpretação efetuada se contenha na letra da lei, que daí possa decorrer a violação de qualquer preceito constitucional, maxime, dos indicados artigos 2.º, 3.º, n.º 2, 20.º, 111.º, 202.º, 203.º e 266.º, n.º 2, todos da CRP.
Adicionalmente, a título de exceção, invoca a Requerida a incompetência material do presente Tribunal Arbitral por entender que a decisão da administração tributária que versou sobre a reclamação graciosa não apreciou a legalidade dos atos de autoliquidação em apreço, considerando que “(...) o acto objecto de pronúncia arbitral consubstancia-se na decisão de recusa de apreciação do mérito da pretensão deduzida pela então reclamante por entender que a reclamação graciosa não é o meio legalmente admissível para o efeito.” (vide ponto 47 da Resposta). Desta forma, entende a Requerida que a decisão de indeferimento da reclamação graciosa não pode ser sindicável através de impugnação judicial, nos termos previstos na alínea a), do n.º 1, do artigo 97.º do CPPT e do artigo 2.º do RJAT, por não versar sobre a legalidade dos atos de autoliquidação aqui em apreço.
Sempre ressalvado o devido respeito, entende-se não assistir razão à Requerida
Assim, ainda na tese da Requerida, estaremos “perante um ato administrativo em matéria tributária que, por não apreciar ou discutir a legalidade do acto de liquidação, não pode ser sindicável através de impugnação judicial, nos termos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT e do artigo 2.º do RJAT”, pelo que considerando “que não se insere no âmbito das competências arbitrais apreciar a legalidade ou ilegalidade de decisões de indeferimento de pedidos de regularização de IVA apresentados nos termos do 78°, da LGT, nem como pede a Requerente, proferir decisões parcialmente anulatórias de autoliquidações de IVA sem precedência da apreciação da legalidade desses atos pela Administração Fiscal nos termos dos artigos 131.º a 133.º do CPPT ”, se verificará a arguida exceção.
Ora, por um lado é claro já desde a reclamação graciosa, para o Tribunal e para qualquer destinatário médio, que a Requerente almeja a anulação parcial dos seus atos de autoliquidação de IVA relativos aos períodos compreendidos entre Novembro de 2015 e Dezembro de 2016, atos esses que, de resto, são do conhecimento e estão na posse da Requerida, e que tal pretensão se fundamenta na errada entrega em excesso de imposto devido ao errado registo contabilísticos do valor da operação com IVA incluído, fundando-se ainda, a presente ação arbitral, na alegada ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa apresentada relativa aos atos de autoliquidação, por errada aplicação do prazo a que alude o n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA.
Por um lado, é evidente para este Tribunal que a discussão da legalidade dos atos de autoliquidação centra-se no facto de AT entender que se trata de correções de erros materiais ou de cálculo nos registos da contabilidade do Requerente, aplicando o regime jurídico previsto para a regularização do IVA, ao passo que o Requerente entende que se está perante um erro de facto e de direito, cuja solução jurídica se encontra plasmada no artigo 16.º do Código do IVA.
Por outro lado, e ao contrário do que a Requerida alega, o ato de indeferimento da reclamação graciosa procede à qualificação do erro evidenciado pelo Requerente, tendo, inclusivamente, sido concedida uma solução factual e jurídica diferente da solução oferecida pelo Requerente.
Com efeito, considera a AT que “Contrariamente ao alegado pela Reclamante em sede de direito de audição, a análise efetuada, nos termos constantes do ponto V. da presente Informação, demonstra, de forma inequívoca, que a alegada entrega de imposto em excesso decorre de erro material ou de cálculo no apuramento do imposto liquidado em cada um dos períodos (...) Isto é, no caso em apreço, estão efetivamente em causa erros materiais ou de cálculo incorridos pelo sujeito passivo na entrega do imposto apurado a favor do Estado, cujos montantes de IVA foram inscritos pelo sujeito passivo nas respectivas declarações periódicas, sendo que, a correção dos mesmos apenas poderá́ ser efetuada em obediência ao mecanismo de regularização previsto, concretamente no n.º 6 do artigo 78.º do CIVA (...)”
Resulta, pois, evidente que na decisão de indeferimento da reclamação graciosa, a AT considera ilegais os atos de autoliquidação em apreço, e consequentemente inadmissível a devolução dos montantes de imposto entregues em excesso pelo Requerente, por subsumir o erro dos atos de autoliquidação a um “erro material ou de cálculo no apuramento do imposto”, e, neste contexto, considerar excedido o prazo previsto no artigo 78.º n.º 6 do Código do IVA.
Conforme se escreveu no Acórdão do CAAD proferido no processo n.º 117/2013-T , “embora a parte decisória do acto de indeferimento do pedido de revisão do acto de autoliquidação não se pronuncie sobre a legalidade deste, acaba por se admitir, na fundamentação, que a pretensão da ora Requerente poderia ter acolhimento se tivesse sido formulada dentro do prazo previsto no artigo 78.º, n.º 6, do CIVA, o que tem ínsito que o acto de autoliquidação é ilegal.”
Daí que, dúvidas não persistam de que na decisão de indeferimento da reclamação graciosa se conheceu, efetivamente, da legalidade dos atos de autoliquidação de IVA do Requerente, em causa no presente processo.
Em suma, não se verifica o vício de incompetência material imputado pela Requerida, em qualquer das vertentes invocadas, o que se declara, julgando-se improcedente a alegada exceção.
2.3. Do fundo da causa
a) Questão a decidir
A situação em causa nos presentes autos, que se apresenta a decisão é nos seus contornos essenciais de simples definição.
O Requerente, nos períodos entre 2015/11 a 2016/12, entregou por lapso, nos cofres do Estado importâncias que não têm a natureza jurídica de imposto, ao inscrever no campo 4 das declarações periódicas de IVA (Imposto a Favor do Estado), não só o montante correspondente ao IVA liquidado sobre as comissões cobradas aos seus clientes, como também o valor da própria comissão.
Neste sentido, o Requerente entregou ao Estado a soma do montante correspondente ao IVA com o montante correspondente à base tributável que serviu à liquidação do referido imposto.
É importante salientar que Requerente e Requerida são consensuais em atribuir o sobredito lapso no preenchimento das declarações periódicas de IVA ao facto de as faturas emitidas pelo Requerente não cumprirem integralmente a formalidade legal de evidenciar de forma explícita e autonomizada, os elementos referidos nas alíneas c) e d) do artigo 36.º n.º 5 do Código do IVA, designadamente, o valor tributável da operação que serve de base à liquidação de imposto, bem como o montante de imposto devido pela operação tributável.
Por conseguinte, a dissensão entre as partes reside na qualificação do tipo de erro e no procedimento de restituição dos montantes indevidamente entregues ao Estado.
Em relação à natureza do erro, a AT qualifica-o como erro material ou de cálculo, suscetível de enquadramento no n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA. Quanto ao procedimento de restituição, a AT entende que a situação se reconduz a uma regularização de imposto e que para corrigir o erro na emissão da fatura, a partir do qual decorre o erro declarativo conducente ao pagamento indevido de IVA, o Requerente deve proceder à anulação dos respetivos documentos de suporte – faturas /recibo – através da emissão de notas de crédito aos respetivos clientes, procedendo de seguida à emissão de novas faturas que passem a conter todos os requisitos legais previstos no n.º 5 do artigo 36.º do Código do IVA, portanto, seguindo o procedimento previsto no n.º 1 do artigo 78.º do referido Código.
Ora, segundo a tese do Requerente, foram entregues nos cofres do Estado importâncias que não assumem a natureza jurídica de imposto, sendo que tal lapso no preenchimento das declarações periódicas e consequente entrega do valor da contraprestação pelos serviços prestados, para além do próprio IVA, configura antes um erro de facto ou de direito ao qual o mecanismo consagrado no artigo 78.º n.º 6 do Código do IVA, não pode ser aplicável, uma vez que, não está em causa a regularização de qualquer imposto.
A Requerente considera, assim, que o erro cometido nos presentes autos configura um erro na autoliquidação de imposto, sendo aplicáveis os meios gerais de reação previstos no artigo 97.º n.º 2 do Código do IVA, e o prazo geral de 4 anos que resulta do n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA.
Nestes termos, a questão a apreciar consiste em saber se é correta a posição assumida pelo Requerente que sustenta a possibilidade de poder obter, durante um período de 4 anos, a restituição de quantias indevidamente computadas e entregues ao Estado, a título de imposto, através de uma leitura conjugada do disposto nos artigos 16.º n.º 1, 97.º n.º 2 e 98.º n.º 2, todos do Código do IVA.
Vejamos, então.
b) Enquadramento legal e jurisprudencial
Dispõe o artigo 98.º do Código do IVA o seguinte:
“1 - Quando, por motivos imputáveis aos serviços, tenha sido liquidado imposto superior ao devido, procede-se à revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º da lei geral tributária.
2 - Sem prejuízo de disposições especiais, o direito à dedução ou ao reembolso do imposto entregue em excesso só pode ser exercido até ao decurso de quatro anos após o nascimento do direito à dedução ou pagamento em excesso do imposto, respectivamente.
3 - Não se procede à anulação de qualquer liquidação quando o seu valor seja inferior ao limite previsto no n.º 4 do artigo 94.º”.
Por seu turno, dispõe o artigo 97.º 2 do Código do IVA o seguinte:
“(...)
2 - Os recursos hierárquicos, as reclamações e as impugnações não são admitidos se as liquidações forem ainda susceptíveis de correcção nos termos do artigo 78.º ou se não tiver sido entregue a declaração periódica cuja falta originou a liquidação prevista no artigo 88.º”
Por sua vez, dispõe o artigo 16.º n.º 1 do Código do IVA o seguinte:
“Valor tributável nas operações internas
1 - Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 10, o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro. (Redacção dada pelo artigo 119.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro)”.
Finalmente, o artigo 78.º n.º 1 e 6 do mesmo Código refere, para além do mais, o seguinte:
“Regularizações
1 - As disposições dos artigos 36.º e seguintes devem ser observadas sempre que, emitida a fatura, o valor tributável de uma operação ou o respetivo imposto venham a sofrer retificação por qualquer motivo. (Redação do D.L. nº 197/2012, de 24 de agosto, com entrada em vigor em 1 de janeiro de 2013).
(...)
6 - A correcção de erros materiais ou de cálculo no registo a que se referem os artigos 44.º a 51.º e 65.º, nas declarações mencionadas no artigo 41.º e nas guias ou declarações mencionadas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 67.º é facultativa quando resultar imposto a favor do sujeito passivo, mas só pode ser efectuada no prazo de dois anos, que, no caso do exercício do direito à dedução, é contado a partir do nascimento do respectivo direito nos termos do n.º 1 do artigo 22.º, sendo obrigatória quando resulte imposto a favor do Estado.”
Ora, como resulta das normas transcritas havendo necessidade de retificar a liquidação de imposto incorretamente realizada em resultado de uma liquidação superior à devida, a lei permite, dependendo da qualificação do erro que motivou a liquidação (ou a dedução inferior à devida), que tal situação possa ser corrigida nos seguintes termos:
a) Tratando-se de erro material ou cálculo a autoliquidação do IVA incorretamente realizada pode ser objeto de correção no prazo de 2 anos contados a partir da data de pagamento em excesso do imposto, nos termos do artigo 78.º n.º 6 do Código do IVA;
b) Tratando-se de erro de direito ou de enquadramento a autoliquidação do IVA incorretamente realizada pode ser objeto de correção no prazo de 4 anos contados a partir data de pagamento em excesso do imposto, nos termos do artigo 98.º n.º 2 do Código do IVA;
No âmbito da delimitação dos campos de atuação do erro material ou cálculo e do erro de enquadramento ou de direito, a doutrina e a jurisprudência têm vindo a pronunciar-se largamente na concretização casuística das situações a que se poderão reconduzir cada um dos supra referidos erros.
Nas palavras de Alexandra Martins e Pedro Moreira, o artigo 78.º n.º 6 do Código do IVA pretende visar “única e exclusivamente, os lapsos calami na transposição de elementos das faturas para a contabilidade e desta para as declarações periódicas de IVA”. Por sua vez, Afonso Arnaldo e Tiago Albuquerque Dias associam os erros materiais ou de cálculo àqueles previstos nos artigo 95.º-A do CPPT, 249.º do Código Civil e 614.º n.º 1 do Código do Processo Civil reconduzindo-os “às situações em que o sujeito passivo se equivoca na materialização dos atos de dedução ou liquidação, nomeadamente, por lapso, na transcrição de valores ou por razões aritméticas i.e., em ambas as situações erros menores e evidentes.”
Acresce que de acordo com a doutrina administrativa são considerados erros materiais ou de cálculo “aqueles que resultam de erros internos da empresa que não têm qualquer interferência na esfera de terceiros. Normalmente consistem em erros na transcrição das facturas para os registos ou dos registos para a declaração periódica não compreendendo os que estão assinalados no ponto 8” da mesma instrução administrativa que identifica situações a que não são aplicáveis os mecanismos do artigo 78.º do Código do IVA, esclarecendo que esses erros devem ser regularizados “ao abrigo dos artigos 23.º, 24.º 24.º-A, e 25 do CIVA”.
Relativamente a esta matéria são inúmeras as decisões arbitrais do CAAD , havendo ainda alguma jurisprudência dos tribunais administrativos e fiscais superiores. Considerou-se num acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul que o erro material previsto no n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA, é um erro no preenchimento dos campos da declaração periódica.
Por seu turno, com pertinência para o caso controvertido, afirma o Supremo Tribunal Administrativo (STA), no âmbito de um processo no qual se analisava a questão do prazo aplicável para reclamar o IVA entregue em excesso pelo contribuinte, que tudo estava em saber se, no caso concreto em apreço, a questão controvertida diz respeito a meros erros materiais ou de cálculo previstos no artigo 78.º nº 6 do Código do IVA ou a erros de direito, previstos no artigo 98º, nº 2 do Código do IVA. A este respeito, o STA reconduziu a caracterização dos erros materiais ou de cálculo às situações previstas nos artigo 95.º-A, n.º 2, do CPPT ou seja “erros materiais ou manifestos os que resultarem do funcionamento anómalo dos sistema informáticos da administração tributária, bem como as situações inequívocas de erro de cálculo, de escrita, de inexatidão ou lapso.”
Assim, segundo a referida jurisprudência, importa questionar, perante o caso concreto, se o erro resultou de uma mera operação mecânica (erros de transcrição ou de registo na declaração periódica) ou se o erro deriva de uma operação não mecânica, das que implicam a interpretação da lei para a determinação do IVA devido. Em caso de erro de direito na declaração periódica, não subsumível portanto, no regime especial previsto n.º 6 do artigo 78.º, entende o STA que o sujeito passivo dispõe de um prazo geral de 4 anos para reclamar do valor de imposto entregue em excesso, conforme resulta do n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA.
Ainda propósito do alcance a conferir à regra prevista n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA, a jurisprudência tem entendido que a mesma “não tem o alcance de atribuir ao sujeito passivo a liberdade de escolher qualquer momento dentro desse período para efectuar a dedução, mas sim de fixar um limite máximo que não pode ser excedido” , entendendo-se que deve ser articulada com as demais previsões de regularização de imposto, na medida que as mesmas configuram disposições especiais que se sobrepõem à limitação temporal máxima.
Por conseguinte, sempre que o Código do IVA determine um prazo especial para a regularização do imposto, e a situação concreta seja subsumível a esse prazo especial – por exemplo, a erros materiais ou de cálculo – o prazo geral de 4 anos não seria aplicável.
c) Subsunção ao caso concreto
Conforme referido, a razão de ser da dissidência entre as partes reside no facto da AT entender que o erro incorrido pelo Requerente configura um erro material ou de cálculo, sujeito ao procedimento de regularização previsto no artigo 78.º n.º 6 do Código do IVA e condicionado ao limite temporal de dois anos, não aceitando, no caso em apreço, a reclamação da autoliquidação apresentada pelo contribuinte, nos termos do artigo 97.º n.º 2 do referido Código nem o recurso ao mecanismo constante do artigo 98.º n.º 2 do mesmo Código.
Ora, ressalvado o devido respeito não se subscreve a tese da AT.
Uma análise mais detalhada às circunstâncias do caso, tal como resultam do probatório, permite verificar que o sujeito passivo por ter enquadrado incorretamente as suas operações ativas do ponto de vista contabilístico, passou a liquidar a título de imposto devido o próprio valor da contraprestação.
Acresce, igualmente do probatório, que se é certo que o sujeito passivo entregou ao Estado imposto em excesso, a verdade é que não o liquidou em excesso aos seus clientes, não havendo portanto lugar à devolução de imposto a quem o suportou.
Note-se que no caso apreço a correção dos registos contabilísticos pode ser realizada de forma interna e sem interferência na esfera de terceiros, pois ainda que as faturas tenham sido emitidas sem conter explicitamente os elementos referidos nas alíneas c) e d) do artigo 36.º do Código do IVA, aos clientes do Requerente foi repercutido o exato montante do IVA que lhes cabia suportar, liquidado à taxa geral aplicável de 23%.
Desta forma, não pode ser imputado ao Requerente um erro material ou de cálculo visto que o mesmo não errou nenhuma conta, não cometeu qualquer erro de simpatia ou lapso material, nem tão-pouco adotou um comportamento intempestivo, fraudulento ou, por qualquer razão, censurável a esse nível.
Não houve sequer risco de perda de receita fiscal face à liquidação do correspondente imposto à taxa máxima aplicável. O que ocorreu foi que o Requerente através de uma análise interna aos seus procedimentos se consciencializou que havia laborado em erro sobre factos determinantes relativos aos pressupostos de tributação das suas operações ativas, designadamente, para efeitos da aplicação do disposto no artigo 16.º do Código do IVA.
Com efeito, o erro-vício referido pelo Requerente, resultou da inclusão no saldo da rúbrica contabilística #58823, não apenas do montante correspondente ao IVA liquidado, como também do montante correspondente à comissão cobrada aos seus clientes. Assim sendo, entende-se que o erro em causa releva diretamente do plano do enquadramento contabilístico reflectido sobre o plano do enquadramento jurídico da operação, maxime da qualificação de determinados montantes – no que ao valor tributável das operações respeita – e em consequência, dos valores que devem ser reportados pelos sujeitos passivos enquanto prestações de serviços e aqueles que devem ser reportados como imposto a entregar ao Estado.
Nesta medida, a entrega ao Estado do valor da contraprestação, não se inscreve num mero lapso de escrita ou num erro aritmético que deu lugar ao preenchimento de um valor de imposto diferente do que se pretendia. O erro na autoliquidação cometido pelo Requerente resulta assim de um erro no processo de formação da vontade, suscitando, ademais, um problema, de ordem substancial, relativo à falta de adesão das autoliquidações apresentadas em relação ao valor tributável das operações efetivamente realizadas pelo Requerente, em violação do disposto no artigo 16.º n.º 1 do Código do IVA.
Não colhe pois, nem se aceita o argumento da aplicação do prazo especial de 2 anos previsto no artigo 78.º n.º 6 do Código do IVA, decorrente da qualificação do erro em causa, como erro material de cálculo, fazendo depender o reembolso das quantias indevidamente entregues ao Estado da emissão de notas de crédito aos respetivos clientes e emissão de novas faturas, desta feita observando os requisitos do artigo 36.º do Código do IVA, in casu, contendo a segregação do valor tributável e do imposto relativo à prestação de serviços realizada.
A propósito do alcance a conferir ao cumprimento dos requisitos formais das faturas, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem vindo a desvalorizar o peso de tais requisitos na emissão das faturas “quando as autoridades dispõem de todas as informações necessárias para verificar se os requisitos substantivos relativos aos exercício desse direito se encontram satisfeitos”. Se é certo que esta jurisprudência foi emanada no âmbito do direito à dedução, preconiza-se aqui um princípio de que a essencialidade do cumprimento de certos requisitos formais na emissão das faturas impostos pelas administrações fiscais deve responder ao princípio da proporcionalidade tendo em atenção os fins de combate à fuga e fraude fiscal visados pelas referidas exigências.
Ora, no caso concreto, utilizando argumentos de natureza puramente formal, a AT pretender apoderar-se de quantias que assumem a natureza jurídica de contraprestação, ainda que tenham sido mencionadas, por erro, nas declarações periódicas como assumindo a natureza jurídica de “imposto”.
Nesta medida, e uma vez que AT não coloca em causa a substância das operações subjacentes, nem apresenta elementos de prova alternativos que contrariem o cômputo dos montantes apurados e entregues em excesso, estaria a obter um enriquecimento sem causa, na exata medida dos valores autoliquidados pelo Requerente que não constituem IVA. Acresce referir que a devolução ao sujeito passivo das quantias indevidamente entregues, e na medida em que se trate do valor da contraprestação, não implica que se desfaça o circuito de liquidação, nem o valor pago e eventualmente deduzido pelo cliente sofrem qualquer alteração.
Ora, se de acordo com o artigo 16.º do Código do IVA e com o artigo 73.º da Diretiva IVA , o valor tributável é constituído pela contrapartida económica efetivamente recebida, a AT recebeu indevidamente um montante de imposto superior ao que foi liquidado pelo sujeito passivo , sendo, porquanto, de aceitar a correção da situação vertente, nos termos e prazo a que alude o n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA, o qual se encontra aliás, em consonância com as regras gerais de caducidade dos impostos, vertidas na LGT, que naturalmente ressalva as disposições especiais de que é exemplo o n.º 6 do artigo 78.º do mesmo Código, para a situação específica aí prevista, que conforme se vem referindo, não está em causa nos presentes autos.
2.4 Juros indemnizatórios
No pedido de pronúncia arbitral, o Requerente peticiona o reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
Nos termos do artigo 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT resulta que “a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária […]: a) restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito;”.
Ora, o artigo 100.º da LGT – Efeitos de decisão favorável ao sujeito passivo - determina que a “administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.
Não obstante, o âmbito material do RJAT não prever, expressamente, decisões condenatórias, uma vez que o artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT refere somente “declaração de ilegalidade”, a jurisprudência do CAAD entende que se integra na competência dos tribunais arbitrais a apreciação de pedidos de condenação no pagamento de juros indemnizatórios.
Com efeito, tratando-se o recurso à arbitragem de uma via alternativa de resolução de litígios, nomeadamente alternativa em relação à impugnação judicial, salienta-se que sendo admissível na impugnação judicial peticionar juros indemnizatórios e, consequentemente, condenar a AT no seu pagamento, nada leva a que não seja possível condenar em sede de arbitral.
O artigo 43.º, n.º 3 alínea c) da LGT dispõe que são devidos juros indemnizatórios “quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”.
Mais ainda, resulta do artigo 24.º, n.º 5 do RJAT o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios quando preceitua que é “devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.”
No caso em apreço, houve um erro no ato de liquidação na medida em que não se teve em conta o direito do sujeito passivo a recuperar as quantias indevidamente entregues ao Estado, a título de imposto, erro esse que é imputável aos serviços resultando, inclusivamente, do indeferimento de uma reclamação graciosa.
Assim, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação de IVA, a AT deverá restituir os montantes indevidamente pagos pelo Requerente no montante de €69.403,49, acrescidos de juros indemnizatórios em observância do preceituado no artigo 100.º da LGT, e do disposto no artigo 43.º n.º 3 alínea c) da LGT.
Ora, no caso vertente, atendendo a que a iniciativa de revisão do Requerente, consubstanciada na apresentação da reclamação graciosa, teve lugar em 29-12-2017, o termo inicial da contagem dos juros indemnizatórios verificar-se-á em 29-12-2018, terminando a contagem de juros na data de emissão da nota de crédito referente ao imposto indevido.
3. Decisão
Termos em que se acorda neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar improcedentes as exceções de incompetência do tribunal arbitral;
b) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e anular os atos de autoliquidação de IVA respeitantes aos períodos de 2015/11 a 2016/12, e bem assim,
c) Anular a decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada;
d) Julgar procedente o pedido de restituição da importância paga, acrescida de juros indemnizatórios.
4. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €69.403,49 (sessenta e nove mil, quatrocentos e três euros e quarenta e nove cêntimos).
5. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €2.448,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas no Processo de Arbitragem Tributária, a cargo da AT.
Notifique.
Lisboa e CAAD, 3 de Abril de 2019
O Tribunal Arbitral Coletivo
José Poças Falcão
Luís Menezes Leitão
(Vencido, dado que teria absolvido a Requerida do pedido, em conformidade com a decisão tomada no processo 309/2015-T, que subscrevi).
Filipa Barros