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Os árbitros Conselheira Maria Fernanda Maçãs (árbitro presidente), Dr. Ricardo Rodrigues Pereira e Dr. Hélder Faustino (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. No dia 4 de maio de 2018, a sociedade comercial A..., S. A., NIPC..., com sede na ..., ..., Lisboa (doravante, Requerente ou A...), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, abreviadamente designado RJAT), com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, com vista à pronúncia deste tribunal relativamente à:
- Declaração de ilegalidade e anulação parcial do ato de liquidação de Imposto do Selo n.º 2017..., referente ao ano de 2014, da qual resulta um montante total a pagar de € 1.091.166,48, correspondendo € 962.652,80 a imposto e € 128.513,68 a juros compensatórios; e
- Restituição do Imposto do Selo pago em excesso, no montante de € 566.066,36, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal, desde a data do pagamento do imposto até à data do seu integral reembolso.
A Requerente juntou 18 (dezoito) documentos e arrolou 3 (três) testemunhas, não tendo requerido a produção de quaisquer outros meios de prova.
É Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).
2. No essencial, a Requerente alega vício de violação de lei, por errónea interpretação e aplicação da norma constante do artigo 7.º, n.º 1, alínea g), do Código do Imposto do Selo, e a consequente anulabilidade da predita liquidação de Imposto do Selo, na parte aplicável.
2.1. Como a própria Requerente sintetizou a final, no pedido de pronúncia arbitral, a impugnação da liquidação de Imposto do Selo controvertida assenta, essencialmente, nos seguintes argumentos que passamos a citar:
“A) Atenta a factualidade e o enquadramento jurídico apresentados supra, a Requerente não pode concordar com a correção feita pela Autoridade Tributária em sede de Imposto do Selo relativo ao período de 2014, que originou a liquidação n.º 2017..., objeto do presente pedido de pronúncia arbitral.
B) Tal correção decorreu do entendimento da Autoridade Tributária de que os saldos credores entre a B... (SGPS), S.A. e a Requerente no período em análise se encontravam sujeitas e não isentas de Imposto do Selo.
C) Ora, salvo o devido respeito, a Requerente não pode concordar com a correção realizada nem com a liquidação subsequente, por entender que ficou cabalmente demonstrado que estão verificados os requisitos de aplicação da isenção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo relativamente a parte dos saldos referentes às operações financeiras supra identificadas.
D) A aplicação da referida norma de isenção de Imposto do Selo depende do preenchimento dos seguintes pressupostos:
‒ A realização das operações financeiras em benefício de sociedade com a qual se encontre em relação de domínio ou de grupo;
‒ A realização das operações financeiras por prazo não superior a um ano;
‒ A circunstância de as operações financeiras serem exclusivamente destinadas à cobertura de carências de tesouraria.
E) A Autoridade Tributária não contestou a verificação do primeiro requisito, mas considerou que não tinha sido feita prova suficiente de que as operações financeiras em causa foram realizadas no prazo máximo de um ano nem de que se destinaram exclusivamente a suprir carências de tesouraria.
F) Ora, a Requerente não pode deixar de discordar com a interpretação da norma de isenção em apreço e com a conclusão a que chega a Autoridade Tributária de que não foi demonstrada a verificação dos pressupostos da mesma.
G) Desde logo porque, face aos elementos factuais supra apresentados e aos elementos de prova juntos, a Requerente entende ter ficado inequivocamente demonstrado, quanto a parte das operações financeiras em causa, o espaço temporal que mediou entre o momento de saída de cada movimento financeiro e o movimento do respetivo retorno não foi superior a um ano.
H) De facto, de acordo com uma imputação dos movimentos financeiros de acordo com a antiguidade das dívidas, decorrente da regra supletiva do n.º 1 do artigo 784.º do Código Civil, parte das operações financeiras em causa cumpre o segundo pressuposto da isenção, que exige a realização das mesmas no prazo máximo de um ano.
I) No que diz respeito ao terceiro requisito, cumpre desde logo densificar o conceito de “carências de tesouraria”, que não é definido pela norma de isenção.
J) Conforme foi supra explicitado, de acordo com as regras de interpretação das normas fiscais, em concreto com o n.º 2 e o n.º 3 do artigo 11.º da LGT, não havendo uma definição do conceito de “carências de tesouraria” no Direito fiscal nem noutros ramos de Direito, deve atender-se à substância económica dos factos tributários.
K) Ora, a Autoridade Tributária considera que estamos perante uma situação de carência de tesouraria quando as Necessidades de Fundo de Maneio são superiores ao Fundo de Maneio, ou seja, quando os fundos de curto prazo disponíveis numa empresa sejam insuficientes para fazer face às obrigações com referência ao mesmo horizonte temporal.
L) Contudo, tal entendimento é demasiado redutor e restritivo. Senão vejamos,
M) A Requerente reconhece que existem várias perspetivas na literatura económico-financeira para definir o conceito de “carências de tesouraria”, mas considera que apresentou elementos probatórios suficientes para demonstrar que, independentemente dessas variações conceptuais, demonstrou que as operações financeiras em causa foram realizadas exclusivamente para suprir carências de tesouraria da B... .
N) Note-se que, a abrangência do conceito de carência de tesouraria neste caso deve ter em consideração o escopo de atividade da B..., que é uma SGPS.
O) Crendo ter sucedido em comprovar a existência de efetivas carências de tesouraria ao nível da B... e que as operações financeiras efetuadas por si em favor da referida entidade se destinaram exclusivamente a cobrir as mesmas, a Requerente entende que se encontram reunidas as condições necessárias para efeitos de aplicação da isenção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo.
P) Com efeito, atendendo a todo o enquadramento factual e jurídico apresentado supra, a ora Requerente considera que estão inequivocamente verificados os pressupostos da referida isenção de Imposto do Selo relativamente a parte das operações que foram objeto de correção por parte da Autoridade Tributária, em concreto quanto a operações a que corresponde o montante de imposto a pagar de € 566.127,83, valor esse que se peticiona no presente pedido.”
2.2. A Requerente remata da seguinte forma o pedido de pronúncia arbitral:
“Termos em que, face aos fundamentos supra expostos, se requer que V. Ex.ª se digne:
i) Dar como provada a presente ação arbitral e, consequentemente, anular parcialmente a nota de liquidação acima identificada, por padecer de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, devido à errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 7.º, n.º 1, alínea g) do Código do Imposto do Selo;
ii) Em consequência da anulação da liquidação de Imposto de Selo supra identificada, proferir decisão a ordenar o reembolso do montante de € 566.066,36, relativo ao Imposto do Selo respeitante ao período de 2014, indevidamente pago pela Requerente;
iii) Proferir decisão a ordenar o pagamento dos juros indemnizatórios que se mostrem devidos nos termos do artigo 43.º da LGT e do artigo 61.º do CPPT, em resultado dos prejuízos causados pelo pagamento voluntário da liquidação de Imposto do Selo supra identificada.”
3. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação à AT, em 10 de maio de 2018.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do Tribunal Arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
4.1. Em 25 de junho de 2018, as Partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
4.2. Assim, em conformidade com o preceituado do artigo 11.º, n.º 1, na alínea c) do RJAT, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 16 de julho de 2018.
5. No dia 20 de setembro de 2018, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual impugnou, especificadamente, os argumentos aduzidos pela Requerente, tendo concluído pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido.
5.1. No essencial e também de forma breve, importa respigar os argumentos mais relevantes em que a Requerida alicerçou a sua Resposta:
Para que se pudesse aplicar a isenção de Imposto do Selo prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea g), do CIS, impunha-se não só o preenchimento do pressuposto subjetivo (existência de determinado tipo de relação entre as entidades envolvidas), o qual não é impugnado por nenhuma das partes nos autos, mas também dos pressupostos temporal (prazo não superior a um ano) e finalístico (finalidade exclusiva da cobertura de carências de tesouraria), cuja demonstração a Requerente não logrou efetuar quer no decorrer da ação inspetiva, quer neste processo.
No tocante ao requisito temporal, a Requerente não conseguiu fazer prova, relativamente a cada influxo financeiro e ao respetivo exfluxo, do período de tempo que mediou entre estes, isto é, se entre o momento da entrada de cada movimento financeiro na sociedade, alegadamente, carenciada de financiamento, e o momento do respetivo retorno à entidade financiadora não foi ultrapassado o prazo previsto no artigo 7.º, n.º 1, alínea g), do CIS.
Porquanto, relativamente ao requisito do prazo, em especial em situações de duração indefinida como sucede na situação sub judice, há que apurar relativamente a cada operação financeira, tanto a data da utilização do crédito como a sua data de reembolso; em termos práticos, por cada influxo financeiro terá de existir o correspondente exfluxo, sendo que este deverá ser realizado no prazo máximo de um ano para que este pressuposto da isenção se mostre verificado.
Assim, os argumentos apresentados pela Requerente nesta sede como prova (parcial) de que as operações não excedem o prazo de um ano não podem ser atendidos, uma vez que a explicação avançada continua a ponderar saldos de uma forma global; ou seja, não permitem verificar se os montantes concretamente mutuados em cada operação financeira concretamente realizada foram pagos antes de decorrido um ano sobre o seu empréstimo.
Relativamente ao requisito finalístico, os elementos que a Requerente apresenta não permitem de todo concluir sobre a situação de tesouraria da B... aquando da disponibilização de fundos pela Requerente, ou, quando muito, permitem verificar que os movimentos financeiros ocorridos não o foram num quadro de carência de tesouraria daquela.
Não obstante o CIS não definir o conceito de “carências de tesouraria”, é comummente aceite que as mesmas existem quando os fundos de curto prazo disponíveis numa empresa (ativos) são insuficientes para fazer face aos compromissos/obrigações (passivo) com terceiros por referência ao mesmo horizonte temporal, ou seja, quando o Fundo de Maneio existente é inferior às Necessidades de Fundo de Maneio.
A noção de operações de tesouraria associa-se, desta forma, a aplicações financeiras de curto prazo, podendo estas ser definidas como as saídas de fundos por aplicação de excedentes de tesouraria e as entradas de fundos, visando a cobertura da diferença negativa entre as necessidades resultantes da atividade da empresa face à sua responsabilidade junto de terceiros e os recursos aptos ao financiamento dessa atividade.
Para além disso, as carências de tesouraria, forçosamente definidas como necessidades pontuais que uma certa entidade enfrenta para fazer face aos pagamentos que tem de efetuar, são, por regra, certas quanto ao seu montante e determináveis quanto ao seu período, isto é, a entidade que pontualmente enfrente estas carências conhece o montante de que necessita e o tempo durante o qual tem de supri-las, não usando esta estratégia de uma forma reiterada, entendida como prática usual.
Pelo que, não pode senão concluir-se que a Requerente propugna no pedido arbitral um âmbito extravasante ao significado de carência de tesouraria referido, alterando-lhe a sua configuração, de forma a abarcar situações excluídas desta realidade.
Com efeito, não estão abrangidas pelo conceito de carências financeiras as que resultam do facto de a B... estar disposta a ajudar financeiramente uma sua participada, sendo que é exatamente esta situação que gera o saldo negativo apurado pela B... . Porquanto, nesta situação não se está perante um facto gerador de carências de tesouraria, uma vez que esta apenas se verifica quanto a pagamentos correntes fruto da responsabilidade assumida para com terceiros; diferentemente, nos financiamentos concedidos, o que está em causa é a disponibilização de fundos a terceiros, situação bem distinta daquela. Sendo o contrário, aliás, um contrassenso, pois implica que uma entidade que tem carências de tesouraria esteja a ceder a outras entidades fundos de que não dispõe.
Em suma, a Requerente deveria ter demonstrado que cada um dos referidos fluxos financeiros se destinou exclusivamente a ultrapassar carências de tesouraria da sociedade beneficiária, o que não logrou fazer.
5.2. A Requerida não requereu a produção de prova e procedeu à junção do processo administrativo (doravante, PA) aos autos.
6. Por despacho de 8 de outubro de 2018, foram as Partes notificadas da designação da data para a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e para a inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente.
7. No dia 13 de novembro de 2018, teve lugar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT – na qual foi tratado o que consta da respetiva ata que aqui se dá por inteiramente reproduzida e fixado o dia 15 de janeiro de 2019 como data limite para a prolação da decisão arbitral –, tendo-se, ainda, procedido à produção de prova testemunhal.
8. Ambas as Partes apresentaram alegações escritas, nas quais reiteraram as posições anteriormente assumidas nos respetivos articulados.
II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades, não tendo sido invocadas quaisquer exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1. DE FACTO
§1. FACTOS PROVADOS
Consideram-se provados os seguintes factos:
a) A Requerente é uma sociedade comercial, constituída em 2 de agosto de 1991, que tem por objeto as atividades de comércio e indústria de géneros alimentícios e de todo o tipo de artigos compreendidos no ramo de hipermercado e supermercado, incluindo a venda de medicamentos não sujeitos a receita médica, e exploração de postos de abastecimento de combustíveis, compra, venda, compra para revenda, construção, locação, exploração e administração de imóveis destinados à instalação de hipermercados, supermercados, centros comerciais, postos de abastecimento de combustíveis, bem como de imóveis destinados a escritório e habitação. [cf. documentos n.ºs 2 e 4 anexos à P.I. e PA]
b) Em 31.12.2014, o capital da Requerente, no valor de € 77.500.000,00 euros, representado por 15.500.000 ações com o valor nominal de 5,00 euros cada, era detido em 99,99997% pela B..., SGPS, S. A. (doravante, B...), NIPC...– empresa que domina as sociedades operacionais do Grupo C... em Portugal, apoiando as respetivas atividades e, quando necessário, financiando-as – e em 0,00003% pela D..., S. A., NIPC ... . [cf. documentos n.ºs 2 e 4 anexos à P.I., PA e depoimentos das testemunhas E..., F... e G...]
c) A Requerente está inserida no Grupo C... que optou pela aplicação do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS) e no qual é sociedade dominante a H..., S. A. (doravante, H...), NIPC... . [cf. documentos n.ºs 2 e 4 anexos à P.I. e PA]
d) Em cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI2017... emitida pela Unidade dos Grandes Contribuintes em 20.10.2017, a Requerente foi submetida a uma ação inspetiva interna, de âmbito parcial, incidente sobre o período de 2014 e que teve por objeto o apuramento e a liquidação do Imposto do Selo em falta sobre as operações financeiras realizadas entre a Requerente e suas entidades relacionadas que revestem a natureza de crédito em conta corrente. [cf. documentos n.ºs 2 e 4 anexos à P.I. e PA]
e) Nessa sequência, foi elaborado o respetivo Projeto de Relatório de Inspeção Tributária, que aqui se dá por inteiramente reproduzido, no qual foram vertidas as seguintes conclusões da ação inspetiva [cf. documento n.º 2 anexo à P.I. e PA]:
“Do procedimento de inspeção interno efetuado (…), com referência ao período de tributação de 2014, resultou uma correção em sede de Imposto do Selo (IS), no montante de 978.972,24 euros, a seguir apresentada.
(…)
Correção em sede de Imposto do Selo – IS
Movimentos financeiros a favor da B... (SGPS), S. A.
No período de tributação de 2014, detetou-se a existência de movimentos financeiros a favor da B... (SGPS), S. A. (doravante B...), correspondentes a concessões de fundos, no montante global de 145.037.399,66 euros, os quais estão sujeitos a Imposto do Selo (IS) conforme resulta da conjugação do n.º 1 do art. 1.º do Código do IS (CIS) com a verba 12.1.4 da Tabela Geral do IS (TGIS).
A obrigação de liquidar o imposto e entregá-lo nos cofres do Estado recai sobre a entidade concedente do crédito, no caso a A... (sujeito passivo do imposto), de acordo com o estatuído na al. b) do n.º 1 do art. 2.º, conjugada com os arts. 23.º e 41.º, todos do CIS, e o encargo do imposto recai sobre o utilizador do crédito, no caso a B..., nos termos da al. f) do n.º 3 do art. 3.º do mesmo diploma.
Atendendo a que, da análise dos elementos apresentados pelo sujeito passivo, não ficou comprovado que estivessem cumpridas cumulativamente as condições de isenção previstas na al. g) do n.º 1 do art. 76.º do CIS, com destaque para a que exige que a B... se encontre numa situação de carência de tesouraria (sendo essa a finalidade exclusiva dos fundos concedidos), as operações financeiras em apreço não podem beneficiar dela.
Estando delimitada a incidência do imposto e não existindo qualquer isenção prevista para estas operações, a A... deveria ter liquidado o IS devido sobre as mesmas, o que não fez, razão pela qual se procede agora ao apuramento e liquidação do imposto em falta, no montante de 978.972,24 euros (…).”
f) A Requerente foi notificada, através do ofício n.º..., de 09.11.2017, dos Serviços de Inspeção Tributária/Unidade dos Grandes Contribuintes, do predito Projeto de Relatório de Inspeção Tributária e para, querendo, exercer o direito de audição. [cf. documento n.º 2 anexo à P.I. e PA]
g) A Requerente exerceu o aludido direito de audição, nos termos vertidos no documento n.º 3 anexo ao pedido de pronúncia arbitral e que aqui se dá por inteiramente reproduzido, tendo nuclearmente procurado demonstrar:
- a existência de saldos que não constituíam operações financeiras sujeitas a Imposto do Selo, respeitando a obrigações tributárias em sede de IRC cumpridas pela H..., enquanto sociedade dominante do RETGS, mas imputáveis à Requerente por corresponderem a parte do imposto que lhe é imputável, solicitando, portanto, a desconsideração dos mesmos da base tributável considerada pelos Serviços de Inspeção Tributária para efeitos de sujeição a Imposto do Selo; e
- a aplicação da isenção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, relativamente aos saldos referentes a operações financeiras liquidados no prazo de um ano.
h) A Requerente foi notificada, através do ofício n.º..., de 27.11.2017, dos Serviços de Inspeção Tributária/Unidade dos Grandes Contribuintes, do Relatório de Inspeção Tributária (doravante, RIT), que aqui se dá por inteiramente reproduzido, no qual foram tidos em consideração os elementos por ela carreados e parcialmente atendidos os argumentos por ela aduzidos no âmbito do exercício do direito de audição e, consequentemente, a correção em sede de Imposto do Selo inicialmente proposta, no valor de € 978.972,24, foi parcialmente anulada em € 16.319,44, tendo sido fixada no montante de € 962.652,80. [cf. documento n.º 4 anexo à P.I. e PA]
i) A aludida correção em sede de Imposto do Selo assentou, essencialmente, nos seguintes fundamentos vertidos no RIT que aqui respigamos [cf. documento n.º 4 anexo à P.I. e PA]:
“No caso em apreciação, os factos constitutivos do direito que a A... pretende fazer valer assentam na demonstração da existência dos pressupostos de uma situação de isenção de tributação das operações financeiras em causa, nos termos da alínea g) do n.º 1 do art. 7.º do CIS, recaindo tal obrigação de demonstração no sujeito passivo (cfr. n.º 1 do art. 74.º da LGT).
(…)
No tocante ao primeiro pressuposto invocado pelo sujeito passivo, relativo às operações por prazo não superior a um ano, nenhuma prova por ele é feita de que as operações financeiras em causa, relativamente a cada influxo financeiro e ao respetivo exfluxo, foi realizado no prazo máximo de um ano, e por isso não se pode atender à sua tese de que se encontram verificados todos os pressupostos inerentes à isenção da tributação.
(…)
Na verdade, nenhum elemento foi invocado pela A..., e muito menos provado, relativamente ao espaço temporal que mediou entre o momento da entrada de cada movimento financeiro na sociedade alegadamente carenciada de financiamento, e o momento do respetivo retorno à entidade financiadora. (…)
No tocante ao segundo pressuposto invocado pelo sujeito passivo, relativo às operações efetuadas em benefício da sociedade com a qual se encontre em relação de domínio ou de grupo, a Inspeção Tributária não levanta quaisquer objeções nesta parte, (…).
No que concerne ao terceiro pressuposto invocado pelo sujeito passivo, relativo ao destino exclusivo de cada fluxo financeiro à cobertura de carências de tesouraria da sociedade carenciada, limita-se a A... a teorizar sobre o conceito de carências de tesouraria, (…).
Tendo por base o extrato constante do Anexo 1, o sujeito passivo selecionou um conjunto de movimentos financeiros a favor da B..., que designou por “transações materiais”, para o qual efetuou uma análise específica, evidenciada na tabela da página 5 do Anexo 2, com indicação da finalidade de cada uma delas como forma de demonstrar que se destinam a fazer face a carências de tesouraria.
Da análise desta tabela, verifica-se que o movimento financeiro da A... para a B... constitui apenas o “Movimento A”, que é seguido de um “Movimento B”, através do qual a B... transfere os mesmos fundos ou fundos de montante inferior/superior para a H... (sociedade dominante do grupo fiscal que ambas integram) ou para outras duas entidades relacionadas, a I..., S. A. (doravante I...), NIPC..., e a J..., S. A. (doravante J...), NIPC... .
Constata-se, pois, que o sujeito passivo assenta a sua argumentação no entendimento de que existem carências de tesouraria na esfera das beneficiárias dos fundos, ou seja, da B..., da H..., da I... e da J..., consoante a transação, do que decorreria inexoravelmente a verificação do pressuposto em análise.
No entanto, estando em causa os movimentos financeiros concedidos pela A... à B..., para efeitos de aplicação aos mesmos da isenção prevista na al. g) do n.º 1 do art. 7.º do CIS, e concretamente da verificação do terceiro pressuposto, importa unicamente aferir da existência ou não de carências de tesouraria na esfera da B..., que constitui, em qualquer caso, a primeira beneficiária dos fundos.
Deste modo, apenas relevam os movimentos identificados pelo sujeito passivo como “Movimento A” na tabela da página 5 do Anexo 2, independentemente de, por via de movimentos subsequentes por parte da B... (“Movimento B” daquela tabela), as beneficiárias efetivas da totalidade ou de parte dos fundos serem outras entidades relacionadas.
Considerando ainda que não existe nenhum contrato através do qual se estabeleça que o crédito concedido pela A... à B... será, necessariamente, concedido por esta última à H..., à I... ou à J..., as carências de tesouraria verificadas na esfera das mesmas, ainda que fossem demonstradas, não relevam para a aplicação da isenção invocada às operações financeiras estabelecidas entre a A... e a B... .
Acresce que, para demonstrar a verificação do presente pressuposto, o sujeito passivo limitou-se a apresentar os elementos constantes do Anexo 3, os quais não permitem concluir sobre a situação de tesouraria da B... aquando da disponibilização de fundos pela A..., o que sempre seria um dado relevante para avaliar se os movimentos financeiros verificados ocorreram ou não num quadro de carência daquela.
Não obstante o CIS não definir o conceito de “carências de tesouraria” a utilizar para aferir o direito à isenção em apreço, entende-se que as mesmas existem quando os fundos de curto prazo disponíveis numa empresa (ativos) são insuficientes para fazer face aos compromissos/obrigações (passivo) com referência ao mesmo horizonte temporal, ou seja, quando o Fundo de Maneio (FM) existente é inferior às Necessidades de Fundo de Maneio (NFM).
Concretizando, a avaliação de uma situação de carência de tesouraria de determinada entidade tem por base o conceito da situação de tesouraria, a qual se reporta à análise comparativa entre o FM e as NFM, numa ótica de curto prazo.
Nestas circunstâncias, não foi possível à AT seguir a metodologia de apurar diariamente a situação de tesouraria da B... e compará-la com o saldo médio mensal dos fundos concedidos, porquanto a informação necessária não foi disponibilizada pelo sujeito passivo no decorrer da ação de inspeção.
Por outro lado, quanto ao caráter de exclusividade do financiamento para suprir carências de tesouraria, o sujeito passivo nada diz. E deveria ter demonstrado que cada um dos referidos fluxos financeiros se destinou exclusivamente a ultrapassar carências de tesouraria da sociedade beneficiária, mas não o fez. De facto, não basta aludir à finalidade das transações ou à natureza dos movimentos financeiros para desse modo pretender fazer valer a ideia de que os mesmos se destinaram exclusivamente a suprir carências de tesouraria da sociedade carenciada. (…)
Em suma, não estando reunidos os pressupostos de isenção da tributação em sede de IS, previstos na al. g) do n.º 1 do art. 7.º do CIS, por não terem sido demonstrados pelo sujeito passivo, que tinha esse ónus (cfr. n.º 1 do art. 74.º da LGT), não se verifica a situação de isenção do imposto, pelo que deverá ser emitida e notificada a respetiva liquidação.
(…)
Assim sendo, considera-se que as concessões de fundos pela A... à B... consubstanciam operações de utilização de crédito sujeitas a IS, nos termos da verba 17.1 da TGIS (por remissão do n.º 1 do art. 1.º do CIS).
(…)
Atendendo a que as operações revestem a natureza de crédito em conta corrente e que o prazo pelo qual o crédito foi concedido não é determinado ou determinável, temos que:
o a verba 17.1.4 da TGIS sujeita a tributação em IS a utilização de crédito sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou outra, de duração de utilização indeterminada ou indeterminável, à taxa de 0,04%, sobre a média mensal obtida através da soma dos saldos em divida apurados diariamente, durante o mês divididos por 30;
o a obrigação tributária de liquidação considera-se constituída no último dia de cada mês, de acordo com o disposto na al. g) do n.º 1 do art. 5.º do CIS.
Da aplicação das regras constantes do CIS acima descritas, procedeu-se à determinação dos saldos médios em dívida de cada mês para apurar o IS em falta. Os cálculos inerentes a este apuramento figuram do Anexo 4, sendo que é devido IS pela A... de 978.972,24 euros, assim repartido pelos 12 meses do ano:
(…) foi efetuado novo apuramento do imposto em falta no Anexo 5.
Em face do exposto, atendendo às alegações trazidas pela A... no direito de audição, assim como aos elementos apresentados, afere-se que a correção inicialmente proposta de 978.972,24 euros é parcialmente anulada em 16.319,44 euros, passando para 962.652,80 euros, montante assim repartido pelos 12 meses do ano:
j) Sequentemente, a Requerente foi notificada da liquidação de Imposto do Selo n.º 2017..., no valor de € 962.652,80, das liquidações de juros compensatórios n.ºs 2017..., 2017..., 2017..., 2017..., 2017..., 2017..., 2017... e 2017..., no valor total de € 128.513,68 e da demonstração de liquidação de Imposto do Selo n.º 2017..., no montante global de € 1.091.166,48, com data limite de pagamento em 07.02.2018. [cf. documento n.º 1 anexo à P.I. e PA]
k) Em 07.02.2018, a Requerente efetuou o pagamento integral e tempestivo do aludido montante de € 1.091.166,48. [cf. documento n.º 5 anexo à P.I.]
l) A partir de março de 2011, a Requerente passou a integrar o sistema de financiamento de curto prazo – sistema de cash pooling – existente no Grupo C... e centralizado na K..., S. A., através do qual as entidades que o integram podem obter e conceder financiamentos de curto prazo, isto é, com um prazo inferior a um ano, sem que, contudo, se tenha apurado a existência de qualquer contrato de gestão centralizada de tesouraria que lhe esteja subjacente. [cf. Anexo 2 do RIT (documento n.º 4 anexo à P.I. e PA)]
m) Na contabilidade da Requerente, concretamente na conta “268900004 – Empréstimos grupo – Outras operações” – que inclui saldos devedores e credores entre a A... e a B...– e no tangente ao ano de 2014, encontra-se registado, a 01.01.2014, um saldo inicial de € 76.686.559,41, atinente a operações financeiras da A... a favor da B... [cf. documento n.º 6 anexo à P.I. e PA]
n) No decurso do ano de 2014, foram efetuadas operações financeiras pela A... a favor da B..., integralmente registadas na mencionada conta “268900004 – Empréstimos grupo – Outras operações”, no montante total de € 142.688.619,05, repartido mensalmente da seguinte forma [cf. documento n.º 6 anexo à P.I. e PA]:
Mês Valor (€)
Janeiro 253.000,00
Fevereiro 120.552.000,00
Março 162.399,66
Abril 124.000,00
Maio 81.000,00
Junho 20.534.567,96
Julho 94.000,00
Agosto 195.883,81
Setembro 60.000,00
Outubro 279.883,81
Novembro 170.000,00
Dezembro 181.883,81
o) Os referidos movimentos financeiros existentes entre a Requerente e a B..., ao longo do ano de 2014, foram realizados no âmbito do sobredito sistema de cash pooling [cf. Anexo 2 do RIT (documento n.º 4 anexo à P.I. e PA)]
p) No decurso do ano de 2014, a B... efetuou diversas transferências de fundos para entidades suas relacionadas, designadamente as que seguidamente se indicam [cf. Anexo 3 do RIT (documento n.º 4 anexo à P.I. e PA) e documentos n.ºs 11, 12, 14 e 15 anexos à P.I.]:
DATA BENEFICIÁRIA VALOR (€)
02.01.2014 H... 15.000,00
10.01.2014 J... 40.000,00
23.01.2014 H... 199.000,00
31.01.2014 H... 103.000,00
03.02.2014 H... 120.444.000,00
13.02.2014 J... 15.000,00
24.02.2014 H... 25.000,00
27.02.2014 H... 2.500,00
23.05.2014 H... 25.000,00
04.06.2014 H... 2.474.000,00
12.06.2014 H... 19.002.000,00
17.06.2014 H... 17.000,00
05.08.2014 J... 43.000,00
03.10.2014 H... 472.000,00
15.10.2014 J... 42.000,00
15.10.2014 I... 15.000,00
16.10.2014 H... 101.000,00
q) Em 5 de janeiro de 2015, foi celebrado um denominado “Contrato de Cessão de Créditos”, entre a H..., a B... e a A..., nos termos constantes do documento n.º 7 anexo ao pedido de pronúncia arbitral e que aqui se dá por inteiramente reproduzido (o documento enferma de lapso de escrita no respetivo clausulado quanto à identificação das sociedades intervenientes – cf. PA), pelo qual, na parte que aqui importa destacar: a B... cedeu à A..., pelo respetivo valor nominal e com referência à data de 31.12.2014, o crédito que detinha sobre a H... no valor de € 48.000.000,00; e foi efetuada a compensação entre os suprimentos de € 136.800.000,00 devidos pela A... à B... e os valores a pagar por esta à A..., com efeitos a 31.12.2014.
r) Em 16 de janeiro de 2015, a B... transmitiu ao L... uma ordem de transferência bancária, no montante de € 4.785.000,00, por débito da sua conta n.º ... e para crédito da conta n.º ..., ali domiciliada e titulada pela A..., mencionando como data-valor 29.12.2014. [cf. documento n.º 8 anexo à P.I.]
s) Na mesma ocasião, a A... efetuou uma transferência bancária para a B..., no montante de € 45.000,00, por débito da conta n.º..., por si titulada, e para crédito na conta n.º..., titulada pela B..., ambas domiciliadas no L... . [cf. documento n.º 8 anexo à P.I.]
t) O valor de € 4.785.000,00 referido no facto provado r) foi registado na contabilidade da Requerente, concretamente na mencionada conta “268900004 – Empréstimos grupo – Outras operações”, em 31.01.2015. [cf. documento n.º 9 anexo à P.I.]
u) Os reembolsos de valores por parte da B... à A... eram efetuados segundo o método contabilístico FIFO (first in, first out), sem que houvesse correspondência exata entre os influxos e os exfluxos financeiros existentes entre as duas empresas. [depoimentos das testemunhas E..., F... e G...]
v) Em 4 de maio de 2018, foi apresentado o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo. [cf. sistema informático de gestão processual do CAAD]
§2. FACTOS NÃO PROVADOS
Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não há factos que não se tenham provado
§3. MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas Partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa e, portanto, admitidos por acordo, na análise crítica da prova documental que consta dos autos, incluindo o processo administrativo e, ainda, na prova testemunhal produzida.
Relativamente aos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela Requerente – E..., à data dos factos, Diretora de Contabilidade da Requerente, F..., à data dos factos, contabilista da Requerente e G..., à data dos factos, Diretora de Tesouraria da Requerente, as quais depuseram de forma clara, objetiva e isenta sobre os factos aos quais foram inquiridas (matéria de facto constante dos artigos 11.º a 25.º, 38.º a 40.º, 47.º, 50.º a 55.º, 58.º a 65.º, 78.º e 84.º a 87.º do pedido de pronúncia arbitral), com conhecimento direto dos mesmos, o que resultou revelado e comprovado pela forma circunstanciada como os explicitaram, pelo que os seus depoimentos mereceram total credibilidade –, as mesmas corroboraram, no essencial, a factualidade alegada pela Requerente, sobre a qual depuseram.
III.2. DE DIREITO
§1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO
A questão de mérito submetida à apreciação deste Tribunal respeita à incidência de Imposto do Selo sobre as operações financeiras existentes entre a Requerente e a A... no decurso do ano de 2014, à face da norma de isenção que consta do artigo 7.º, n.º 1, alínea g), do CIS.
A Requerente suscita, neste âmbito, erros de facto e de direito quanto a dois pontos.
O primeiro prende-se com a verificação do requisito temporal previsto na citada norma, ou seja, as operações financeiras devem ser por prazo não superior a um ano.
O segundo respeita ao cumprimento do requisito atinente à finalidade de tais operações financeiras, as quais devem ser exclusivamente destinadas à cobertura de carência de tesouraria.
Por fim, o Tribunal tem de pronunciar-se sobre os pedidos de reembolso do montante de Imposto do Selo indevidamente pago e de pagamento de juros indemnizatórios.
§2. DO MÉRITO
A. INTRODUÇÃO
Constitui objeto do presente processo determinar se se mostram ou não preenchidos os pressupostos de que depende a aplicação da isenção de Imposto do Selo prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea g), do CIS.
A AT pretende fazer valer o direito a tributar as mencionadas operações financeiras e, nessa medida, propugna a legalidade da liquidação de Imposto do Selo controvertida.
Por seu turno, a Requerente pretende fazer valer o seu direito à isenção de tal tributação, ao abrigo da indicada norma do CIS.
Antes de avançarmos, importa deixar assente a quem está legalmente atribuído o ónus da prova da verificação dos pressupostos de aplicação da citada norma que estatui a isenção de imposto do Selo em apreço.
A este propósito, o artigo 74.º, n.º 1, da LGT estatui o seguinte:
“O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.”
Subsumindo o caso concreto a esta norma, atentas aquelas que são as pretensões que a AT e a Requerente pretendem fazer valer neste processo, temos que à AT incumbirá a prova da existência de uma operação de utilização de crédito tributável sem sede de Imposto do Selo.
Por sua vez, à Requerente incumbirá a prova dos pressupostos da isenção de tal tributação que resulta da norma do artigo 7.º, n.º 1, alínea g), do CIS.
A jurisprudência do STA tem, reiteradamente, afirmado este entendimento, sendo disso exemplo o acórdão de 16.01.2008, proferido no processo n.º 0381/07, em cujo sumário se pode ler o seguinte:
“III – À Administração cumpre apenas o ónus da prova da verificação dos respectivos indícios ou pressupostos da tributação, ou seja, os pressupostos legais da sua actuação e, ao invés, cabe ao contribuinte provar a existência dos factos tributários que alega como fundamento do seu direito.”
No mesmo sentido, entre outros, podem consultar-se o acórdão de 29.04.2004, proferido no processo n.º 01680/03 e o acórdão de 14.01.2015, proferido no processo n.º 01480/03.
B. A INCIDÊNCIA DE IMPOSTO DO SELO SOBRE AS OPERAÇÕES FINANCEIRAS
O artigo 1.º, n.º 1, do CIS estatui o seguinte:
“O imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens.”
Nos termos da verba 17.1 da TGIS, é devido Imposto do Selo:
“17.1. Pela utilização de crédito, sob a forma de fundos, mercadorias e outros valores, em virtude da concessão de crédito a qualquer título excepto nos casos referidos na verba 17.2, incluindo a cessão de créditos, o factoring e as operações de tesouraria quando envolvam qualquer tipo de financiamento ao cessionário, aderente ou devedor, considerando-se, sempre, como nova concessão de crédito a prorrogação do prazo do contrato – sobre o respectivo valor, em função do prazo:
17.1.1. Crédito de prazo inferior a um ano – por cada mês ou fração … 0,04%
17.1.2. Crédito de prazo igual ou superior a um ano … 0,50%
17.1.3. Crédito de prazo igual ou superior a cinco anos … 0,60%
17.1.4. Crédito utilizado sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer outra forma em que o prazo de utilização não seja determinado ou determinável, sobre a média mensal obtida através da soma dos saldos em dívida apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30 … 0,04%”
Como se refere no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 03.12.2015, proferido no processo n.º 06974/13, “a verba n.º 17, da Tabela Geral do Imposto de Selo (T.G.I.S.), sujeita a incidência de imposto de selo as operações financeiras tendo em conta a sua substância económica e desconsiderando a forma jurídica subjacente aos contratos, denotando-se uma preocupação crescente com o princípio da igualdade fiscal.
O imposto sobre a utilização de crédito previsto na referida verba 17.1. da T.G.I.S. incide sobre todas as operações de natureza financeira, realizadas por qualquer entidade, e a qualquer título, de que resulte a disponibilização de crédito sob a forma de fundos, mercadorias e outros valores, abrangendo na sua incidência, quer os actos de tomada de fundos disponibilizados em território nacional a entidades aqui não domiciliadas, quer as operações desta natureza realizadas a favor de entidades aqui domiciliadas, ainda que o facto tributário – o saque dos fundos – se deva considerar localizado fora do território nacional.
(…)
Já a verba 17.1.4, supra exposta, tributa a utilização de crédito sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou outra, de duração de utilização indeterminado ou indeterminável, sendo sujeito à taxa de 0,04% sobre a média mensal obtida através da soma dos saldos em dívida apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30. (…) Nesta verba, a incidência de imposto deriva do sujeito favorecido com a operação de crédito beneficiar de um aumento de liquidez financeira num momento actual, sendo que a situação passiva colateral – o encargo ou dívida – se encontra disseminada num médio ou longo prazo (variando a taxa de tributação precisamente nessa função "pro rata temporis"), considerando o legislador suficiente para efeitos de tributação esse “súbito enriquecimento aparente” resultante de uma disponibilidade monetária instantânea.”
A propósito das operações financeiras, deparamos com a seguinte isenção objetiva estatuída no artigo 7.º, n.º 1, alínea g), do CIS:
“1. São também isentos do imposto:
(…)
g) As operações financeiras, incluindo os respetivos juros, por prazo não superior a um ano, desde que exclusivamente destinadas à cobertura de carência de tesouraria e efetuadas por sociedades de capital de risco (SCR) a favor de sociedades em que detenham participações, bem como as efetuadas por outras sociedades a favor de sociedades por ela dominadas ou a sociedades em que detenham uma participação de, pelo menos, 10 % do capital com direito de voto ou cujo valor de aquisição não seja inferior a € 5.000.000, de acordo com o último balanço acordado e, bem assim, efetuadas em benefício de sociedade com a qual se encontre em relação de domínio ou de grupo.”
Esta norma estatui, pois, os seguintes requisitos de cuja verificação cumulativa depende a sua aplicação:
a) Prazo não superior a um ano;
b) Finalidade exclusiva de cobertura de carência de tesouraria;
c) Realização por determinadas entidades ali discriminadas.
C. ANÁLISE CONCRETA
No caso concreto, importa aquilatar se se mostram ou não verificados os dois primeiros requisitos, acima enunciados, de que depende a isenção de Imposto do Selo estatuída no artigo 7.º, n.º 1, alínea g), do CIS, ou seja, as operações financeiras serem (i) por prazo não superior a um ano e (ii) terem por finalidade exclusiva a cobertura de carência de tesouraria, uma vez que, relativamente ao terceiro requisito, as partes estão de acordo quanto à sua verificação.
C.1. DO PRAZO DAS OPERAÇÕES FINANCEIRAS
Como resulta do facto provado m), na contabilidade da Requerente, concretamente na conta “268900004 – Empréstimos grupo – Outras operações” e no tangente ao ano de 2014, encontra-se registado, a 01.01.2014, um saldo inicial de € 76.686.559,41, atinente a operações financeiras da A... a favor da B... .
Também resultou provado que, no decurso do ano de 2014, foram efetuadas operações financeiras pela A... a favor da B..., integralmente registadas na mencionada conta “268900004 – Empréstimos grupo – Outras operações”, no montante total de € 142.688.619,05, repartido mensalmente da forma descrita no facto provado n).
Por outro lado, foi ainda comprovado que, em 5 de janeiro de 2015, foi celebrado um denominado “Contrato de Cessão de Créditos”, entre a H... , a B... e a A..., pelo qual, na parte que aqui importa destacar: a B... cedeu à A..., pelo respetivo valor nominal e com referência à data de 31.12.2014, o crédito que detinha sobre a H... no valor de € 48.000.000,00; e foi efetuada a compensação entre os suprimentos de € 136.800.000,00 devidos pela A... à B... e os valores a pagar por esta à A..., com efeitos a 31.12.2014 (cfr. facto provado q)).
Também se considerou provado que, em 16 de janeiro de 2015, a B... transmitiu ao L... uma ordem de transferência bancária, no montante de € 4.785.000,00, tendo como beneficiária a A..., mencionando como data-valor 29.12.2014 (cfr. facto provado r)), valor esse que foi registado na contabilidade da Requerente, concretamente na mencionada conta “268900004 – Empréstimos grupo – Outras operações”, em 31.01.2015 (cfr. facto provado t)); na mesma ocasião, a A... efetuou uma transferência bancária para a B..., no montante de € 45.000,00 (cfr. facto provado s)).
Por último, a este propósito, importa ainda termos presente que resultou provado que os reembolsos de valores por parte da B.... à A... eram efetuados segundo o método contabilístico FIFO (first in, first out), sem que houvesse correspondência exata entre os influxos e os exfluxos financeiros existentes entre as duas empresas (cfr. facto provado u)).
Isto posto. Constitui nosso entendimento que a afirmação da AT de que, quanto a este requisito de que (além de outros) depende a isenção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea g), do CIS, a Requerente nenhuma prova fez “de que as operações financeiras em causa, relativamente a cada influxo financeiro e ao respetivo exfluxo, foi realizado no prazo máximo de um ano”, considerando que a Requerente não invocou, e muito menos provou, qualquer elemento “relativamente ao espaço temporal que mediou entre o momento da entrada de cada movimento financeiro na sociedade alegadamente carenciada de financiamento, e o momento do respetivo retorno à entidade financiadora”.
Porquanto, contrariamente ao que ressalta das afirmações da AT a este propósito, entendemos que a verificação do requisito em análise não exige que haja uma correspondência exata entre os influxos e os exfluxos financeiros entre a entidade carecida de financiamento e a entidade financiadora; com efeito, compulsada a norma em questão, não lobrigamos qualquer elemento que, direta ou indiretamente, aponte nesse sentido e, como flui do disposto no artigo 9.º do Código Civil (aplicável ex vi artigo 11.º, n.º 1, da LGT e artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT), o intérprete não pode considerar o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 2), sendo que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir corretamente o seu pensamento (n.º 3).
Assim, nada obsta a que o reembolso de valores por parte da entidade carenciada de financiamento à entidade financiadora seja efetuado, como acontece no caso concreto, segundo o método contabilístico FIFO (first in, first out) e, portanto, sem que haja correspondência exata entre os influxos e os exfluxos financeiros existentes entre as duas entidades.
Destarte, consideramos que a Requerente logrou comprovar que parte dos valores financiados à B... foram-lhe por esta reembolsados em prazo não superior a um ano; concretizando:
a. saldo inicial em 01.01.2014: € 76.686.559,41 (1)
b. operações financeiras da A... a favor da B... (2014): € 142.688.619,05 (2)
c. reembolsos efetuados pela B... à A... (2014): € 184.800.000,00 (3)
d. (3) – (1): € 108.113.440,59 (4)
e. (2) – (4): € 34.575.178,46.
O saldo inicial (1) não foi considerado como tendo sido reembolsado no prazo de um ano, como aliás a própria Requerente expressamente reconhece e aceita no pedido de pronúncia arbitral.
No tocante ao montante dos reembolsos efetuados pela B... à A..., no decurso do ano de 2014, considerámos apenas os valores de € 136.800.000,00 e de € 48.000.000,00, tendo excluído o valor de € 4.740.000,00 (4.785.000,00 – 45.000,00), pela seguinte ordem de razões: este último valor apenas surge registado na contabilidade da Requerente, concretamente na conta “268900004 – Empréstimos grupo – Outras operações”, em 31.01.2015 (cfr. facto provado t)), inexistindo qualquer evidência nos autos que permita concluir que a pretensão da Requerente no sentido de a data-valor da transferência bancária em causa ser 29.12.2014 tivesse sido, de alguma forma, efetivada.
A propósito da data-valor, não será despiciendo fazermos um pequeno excurso para chamar à colação o Decreto-Lei n.º 18/2007, de 22 de janeiro, que estabelece a data valor de qualquer movimento de depósitos à ordem e transferências efetuados em euros, determinando qual o seu efeito no prazo para a disponibilização de fundos ao beneficiário, cujo artigo 3.º, alínea d), estatui que se entende por “«data valor» a data a partir da qual a transferência ou o depósito se tornam efetivos, passíveis de serem movimentados pelo beneficiário e se inicia a eventual contagem de juros decorrentes dos saldos credores ou devedores das contas de depósito”.
No respeitante à movimentação de contas bancárias, temos, então, por um lado a data do movimento que é aquela em que a operação é efetuada pelo titular da conta (por exemplo, uma transferência para outra conta) e, por outro lado, a data-valor que é aquela a partir da qual o movimento produz efeitos na conta, sendo que esta pode ser diferente da data do movimento.
Voltando ao caso concreto, nada se tendo comprovado no sentido de a data-valor da transferência bancária em questão ser, efetivamente, diferente da data da sua realização e sendo a data de contabilização dessa operação o dia 31.01.2015, não podemos considerar o aludido montante no cômputo dos valores reembolsados pela B... à A... no decurso do período de tributação de 2014.
Uma vez que os reembolsos efetuados pela B... à A... eram segundo o método contabilístico FIFO, o montante total desses reembolsos efetuados no ano de 2014 (3) começou por ser alocado ao saldo inicial em divida (1); o remanescente (4) foi, por sua vez, alocado ao reembolso das operações financeiras da A... a favor da B..., no ano de 2014 (2), tendo daí resultado o saldo final de € 34.575.178,46, montante este que não foi reembolsado no decurso do período de tributação de 2014, correspondendo € 12.691.559,41 aos empréstimos realizados pela A.. no mês de fevereiro de 2014 e o restante aos empréstimos pela mesma efetuados nos restantes meses de 2014.
Concluindo, no período de tributação de 2014, foram realizadas em prazo não superior a um ano operações financeiras entre a Requerente e a B... no montante de € 108.113.440,59, pelo que, quanto a estas, consideramos verificado o requisito em análise para a isenção de Imposto do Selo estatuída no artigo 7.º, n.º 1, alínea g), do CIS.
C.2. DA FINALIDADE DAS OPERAÇÕES FINANCEIRAS
Entrando, agora, na análise do último dos enunciados requisitos de que depende a aplicação da isenção de Imposto do Selo prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea g), do CIS, atinente à finalidade das operações financeiras e, segundo o qual, estas devem visar exclusivamente a cobertura de carência de tesouraria.
Como judiciosamente se afirma no acórdão proferido em 25.11.2013, no processo n.º 76/2013-T do CAAD, esta norma “fala em operações “exclusivamente destinadas à cobertura de carência de tesouraria” e não principalmente (ou qualquer outro sinónimo) destinadas a tal finalidade”.
No mesmo sentido, encontramos o acórdão proferido em 03.07.2018, no processo n.º 31/2018-T do CAAD, onde se afirma que estão excluídas do âmbito de aplicação da isenção fiscal em apreço aquelas outras operações que têm por objeto não apenas carências de tesouraria, mas também necessidades de financiamento.
Cumpre, pois, verificar se as operações financeiras realizadas pela Requerente a favor da B... visaram, com caráter de exclusividade, cobrir carências de tesouraria da B... .
Como ficou provado, a partir de março de 2011, a Requerente passou a integrar o sistema de financiamento de curto prazo – sistema de cash pooling – existente no Grupo C... e centralizado na K..., S. A., através do qual as entidades que o integram podem obter e conceder financiamentos de curto prazo, isto é, com um prazo inferior a um ano, sem que, contudo, se tenha apurado a existência de qualquer contrato de gestão centralizada de tesouraria que lhe esteja subjacente (cfr. facto provado l)).
Resultou, ainda, provado que os referidos movimentos financeiros existentes entre a Requerente e a B..., ao longo do ano de 2014, foram realizados no âmbito do sobredito sistema de cash pooling (cfr. facto provado o)).
Também ficou provado que, no decurso do ano de 2014, a B... efetuou diversas transferências de fundos para entidades suas relacionadas, designadamente as que estão indicadas no facto provado p).
Em face desta factualidade que resultou provada, impõe-se que comecemos por fazer uma abordagem, necessariamente sucinta, à gestão centralizada de tesouraria (cash pooling), visando apreender as suas linhas mestras.
Como é explicitado por José Fernando Abreu Rebouta (Contextualização Fiscal da Gestão Centralizada de Tesouraria (cash pooling) em Ambiente Internacional, II Pós-Graduação em Direito Fiscal, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Outubro de 2005, pp. 3, 4 e 6 a 8): “Os centros de gestão de tesouraria ou a gestão centralizada de tesouraria têm como objectivo a gestão consolidada da tesouraria de diversas empresas de um grupo de sociedades através de uma dessas empresas ou através de uma empresa especificamente constituída ou destinada para o efeito, ou seja, de forma sucinta, permitir relacionar saldos devedores e saldos credores junto de uma instituição financeira. Este tipo de operações permite a compensação do saldo devedor de algumas das empresas pelo saldo credor das restantes. Além de que o centro de gestão de tesouraria pode recorrer aos fundos gerados para financiar as empresas do grupo.
Para tanto, três alternativas de abordagem se colocam, pelo que a constituição dos referidos centros depende da celebração de uma de três das seguintes convenções de “cash-pool”:
1) “Notional cash-pooling”;
2) Cash concentration “Zero-balancing”;
3) Adiantamentos de tesouraria.
2.2.1. Notional cash pooling (fusão de saldos de contas para cálculo de juros)
Com a Notional cash pooling, dá-se o equivalente a uma fusão virtual de saldos de contas para cálculo de juros, ou seja, os fundos não são movidos mas a Instituição financeira (o Banco) combinará os saldos das diferentes contas bancárias e cobrará/pagará juros pelo somatório agregado dos saldos.
No final de cada dia os saldos de todas as contas são relacionados de forma virtual. Este relacionamento é possível pelo estabelecimento de relações “mãe-filhas” das diferentes contas bancárias com a conta bancária “mãe”, que assume um papel virtual.
(…)
2.2.2. Cash concentration (zero balancing)
Nesta modalidade, a centralização de tesouraria é operada em conta da entidade centralizadora constituída junto do Banco, sendo titular uma das sociedades do grupo (a entidade centralizadora). Tendo por base o enquadramento do contrato de centralização de tesouraria, efectuam-se efectivas transferências de capital para a conta global, ou seja, os fundos são fisicamente direccionados para uma única conta bancária agregada. Nesta modalidade a denominada opção zero balancing é a mais comum, pois todas as contas bancárias são colocadas a zero no movimento de transferência para a conta global, consequentemente os saldos devedores são cobertos por um movimento de transferência inverso da conta global a favor da conta bancária devedora.
(…)
2.2.3. Adiantamentos de tesouraria
Em função das necessidades, as sociedades participantes podem obter fundos junto de outras sociedades, incluindo a entidade centralizadora. Estres fundos poderão advir de excedentes de tesouraria de outras empresas do grupo ou do recurso a crédito negociado de forma global.
A centralização das operações de tesouraria é também realizada intragrupo, sem intermediação bancária no sentido financeiro, ainda que os fundos estejam depositados em Instituição de crédito, a qual realiza transferências por ordem genérica das diversas entidades envolvidas no acordo de gestão centralizada. Assim, a relação jurídica estabelece-se necessariamente entre as entidades devedoras e credoras do capital e juros, ou seja, directamente entre sociedades participantes e participante e entidade centralizadora. Esta transferência de saldos entre entidades do grupo, consubstanciam financiamentos obtidos/concedidos, verificando-se, assim, a utilização/concessão de crédito.
(…)
A ideia de operações de tesouraria associa-se normalmente com a de aplicações financeiras de curto prazo. No entanto, a correcta gestão das disponibilidades de uma empresa, ou de um grupo de empresas, implica que os excedentes monetários possam ser aplicados ou colocados noutras sociedades que deles necessitem, quer de forma efémera quer, também, de modo duradouro.”
Volvendo ao caso concreto, importa começar por salientar que nos documentos bancários atinentes aos fluxos financeiros entre a Requerente e a B... e entre esta e outras entidades relacionadas, constantes do Anexo 3 do RIT (cfr. documento n.º 4 anexo à P.I. e PA), é feita expressa referência a cash pooling como descritivo das operações a que respeitam.
No entanto, a mera invocação de que as transferências de valores são efetuadas no âmbito de um acordo de cash pooling não constitui prova suficiente para a demonstração de que os créditos concedidos se destinam a suprir carências de tesouraria da(s) beneficiária(s), pois, como é óbvio, tal pode ter ou não ter adesão à realidade; aliás, bem se compreende que assim seja pois o cash pooling não se esgota, exclusivamente, na supressão de carências de tesouraria da(s) sociedade(s) beneficiária(s). Com efeito, como explicita José Fernando Abreu Rebouta (ob. cit., p. 3), “a gestão centralizada de tesouraria pode retirar vantagens materiais anulando saldos devedores e saldos credores. Além das vantagens materiais que respeitam a (i) redução de juros associados a contas devedoras e (ii) comissões de descoberto e similares, podem ser sumariadas vantagens formais e qualitativas, como (i) o reforço das Demonstrações financeiras da empresa, pela redução do nível de empréstimos bancários, (ii) reforço da capacidade negocial junto da instituição financeira e (iii) reforço do atractivo da empresa e do grupo junto do mercado de capitais. Por fim, a retenção de impostos sobre juros pode também ser minimizada/optimizada.”
A fim de sustentar a sua posição no sentido de que as operações financeiras em causa são, exclusivamente, destinadas à cobertura de carências de tesouraria da B..., a Requerente alinha, essencialmente, o argumento de que a B..., enquanto SGPS, tem como objeto social a gestão de participações sociais noutras sociedades, como forma indireta de exercício de atividades económicas; assim, em conformidade com o estatuído no Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de dezembro, a B... não exercia uma atividade comercial, gerindo apenas as suas participações e prestando com caráter residual e acessório alguns serviços às suas participadas. Nesta conformidade, a Requerente sustenta que “a abrangência do conceito de carência de tesouraria previsto para efeitos da aplicação da isenção de Imposto do Selo prevista na alínea g) do número 1 do artigo 7.º do respetivo Código deverá ter em consideração o escopo de atividade da B... enquanto SGPS – i.e., prestação de serviços e financiamento às suas participadas”.
À falta de qualquer definição legal, concretamente no âmbito da legislação fiscal, temos de nos socorrer da gestão financeira empresarial e da contabilidade a fim de delinearmos o que deve ser entendido por carência de tesouraria.
Conceptualmente, uma empresa está em equilíbrio financeiro se tiver capacidade (liquidez de tesouraria) para solver atempadamente os seus compromissos financeiros, ou, dito de uma forma mais simples, se dispuser dos meios monetários para pagar, em devido tempo, o montante em dívida aos seus credores.
Em linguagem financeira, diz-se que nessa situação de solvabilidade a empresa tem uma tesouraria líquida positiva; em sentido oposto, se não tiver essa capacidade, a empresa encontra-se numa situação de carência de tesouraria, chamada em linguagem financeira tesouraria líquida negativa.
A tesouraria líquida (TL) define-se como a diferença entre o fundo de maneio funcional (FMF) e as necessidades em fundo de maneio (NFM).
As necessidades em fundo de maneio (NFM) correspondem às necessidades de financiamento do ciclo de exploração da empresa, isto é, a atividade corrente da empresa ligada ao seu objeto, ou seja, pagamentos que a empresa tem de efetuar antes de receber dos seus devedores.
O fundo de maneio funcional (FMF) corresponde à parcela dos capitais permanentes (capitais próprios e passivos de médio e longo prazo) que financiam as atividades cíclicas, isto é, o ciclo de exploração da empresa.
Se o FMF for maior ou igual do que as NFM, significa que o fundo de maneio existente é suficiente para financiar as necessidades de financiamento do ciclo de exploração, logo a tesouraria está equilibrada ou mesmo com excedentes, que nesse caso poderão/deverão ser aplicados, por forma a gerar um rendimento.
Ao invés, se o FMF for menor do que as NFM, significa que o fundo de maneio existente não é suficiente para financiar as necessidades de financiamento do ciclo de exploração, logo a tesouraria está desequilibrada, isto é, existe uma carência de tesouraria que a empresa tem de suprir sob pena de entrar em situação de incumprimento das suas obrigações financeiras.
A situação de carência de tesouraria pode ter um caráter permanente ou pontual, isto é, a atividade da empresa pode não conseguir gerar fundos de tesouraria (liquidez) suficientes para em tempo útil fazer face aos seus pagamentos:
a) de forma permanente, sendo uma situação estrutural, o que significa que o fundo de maneio tem de ser aumentado, incrementando o volume dos capitais permanentes que financiam a empresa (aumento de capital social, prestações acessórias, suprimentos, financiamentos a médio e longo prazo, etc.), ou seja, a empresa tem uma estrutura de capitais insuficiente para fazer face às necessidades de financiamento correntes inerentes ao seu ciclo de exploração;
b) de forma pontual, sendo uma situação temporária, o que significa que em determinados momentos ou épocas tem de existir um reforço da tesouraria por recurso a empréstimos de curto prazo, sendo o ajustamento feito naturalmente no ciclo de exploração corrente da empresa.
Em suma, a carência de tesouraria deve ser aferida pela insuficiência de disponibilidades para fazer face a compromissos de curto prazo, isto é, inferiores a um ano, sendo que, à data do recurso ao financiamento, a carência deve existir, ou seja, o compromisso de curto prazo deve constar dos registos contabilísticos da empresa.
Revertendo ao caso concreto, é incontroverso, por decorrer do respetivo regime legal a que está subordinada, que a B..., enquanto SGPS, pode conceder crédito às sociedades que sejam por si dominadas nos termos do artigo 486.º do Código das Sociedades Comerciais ou a sociedades em que detenha participações previstas no n.º 2 do artigo 1.º e nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de dezembro (cfr. respetivo artigo 5.º, n.º 1, alínea c)), sendo que, neste último caso, a concessão de crédito só será permitida até ao montante do valor da participação constante do último balanço aprovado, salvo se o crédito for concedido através de contratos de suprimento (cfr. artigo 5.º, n.º 2); por outro lado, a própria B... pode ser beneficiária de operações de tesouraria efetuadas pelas sociedades suas participadas que com ela se encontrem em relação de domínio ou de grupo (cfr. artigo 5.º, n.º 3).
Nesta conformidade, temos então que as operações financeiras por prazo não superior a um ano, desde que exclusivamente destinadas à cobertura de carências de tesouraria, efetuadas pelas SGPS a favor das suas participadas (operações descendentes), bem como as operações com a mesma natureza, efetuadas em benefício das SGPS por sociedades que com elas estejam em relação de domínio ou de grupo (operações ascendentes), beneficiam da isenção de Imposto do Selo prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea g), do CIS.
Dito isto. Apesar de ter ficado comprovado que, no decurso do ano de 2014, a B... transferiu fundos para entidades suas relacionadas, os quais eram em grande medida provenientes das transferências de valores que lhe foram feitas pela A... (como se refere no RIT, em resultado da análise da tabela da página 5 do respetivo Anexo 2, “verifica-se que o movimento financeiro da A... para a B... constitui apenas o “Movimento A”, que é seguido de um “Movimento B”, através do qual a B... transfere os mesmos fundos ou fundos de montante inferior/superior para a H... (…) ou para outras duas entidades relacionadas, a I..., S.A. (…) e a J..., S.A. (…)” – cfr. documento n.º 4 anexo à P.I. e PA), tal não se afigura suficiente para concluirmos que as operações financeiras realizadas pela A... a favor da B... tiveram por finalidade exclusiva a cobertura de carências de tesouraria da B... .
Porquanto, nada ficou demonstrado nos autos relativamente à situação de tesouraria da B... aquando do início da concessão dos fundos pela Requerente, o que seria indiscutivelmente um dado relevante para aferir se os fluxos financeiros em questão ocorreram ou não num quadro de carência de tesouraria daquela empresa. Não existe, nomeadamente, qualquer documento (de natureza contratual ou outra) do qual decorra que os valores transferidos pela A... para a B... seriam, necessariamente, concedidos por esta última a outras entidades suas relacionadas, designadamente por tal ser uma obrigação (por exemplo, de efetuar suprimentos ou prestações acessórias ou prestações suplementares) previamente assumida pela B... perante aquelas outras entidades, o que também teria de ser (documentalmente) comprovado; por outras palavras, não foi comprovada a situação de carência de tesouraria na esfera da B..., por não dispor dos fundos necessários ao cumprimento das suas obrigações pré-existentes à transferência de fundos pela Requerente.
Nesta conformidade, as operações financeiras em causa devem ser caracterizadas como abertura de crédito sob a forma de conta corrente que se enquadra na norma de incidência da Verba 17.1.4. da TGIS.
Como explicitado no citado acórdão proferido no processo n.º 31/2018-T do CAAD, a “abertura de crédito é entendida como um contrato pelo qual uma parte se vincula a proporcionar a outra a disponibilização de crédito até a um certo montante e por um tempo determinado. Por efeito do contrato, o creditado adquire o direito de utilizar o crédito que lhe é facultado na medida e nas datas que entender como convenientes, pelo que é no momento em que se verifica a transferência dos meios financeiros através da utilização do crédito que se efectiva a relação creditícia.
Por efeito das alterações introduzidas no novo CIS, o facto gerador da obrigação do imposto passou a ser a utilização do crédito, e não a celebração do contrato – como resultava do regime precedente –, e, nesse sentido, o valor tributável é agora apurado em função da obtenção do crédito e do prazo pelo qual ele vigorar.
A norma geral de incidência do imposto é a da verba 17.1 da TGIS, que tributa a utilização de crédito, sob a forma de fundos, mercadorias ou outros valores, sobre o respectivo valor em função do prazo. Tratando-se de contratos com prazo determinado, o imposto incidirá sobre cada uma das utilizações de crédito nos termos das verbas 17.1. a 17.1.3 da TGIS, sendo aplicável a taxa de 0,5% quando o crédito é de prazo igual ou superior a um ano, de 0,6% quando o crédito é de prazo igual ou superior a cinco anos, e 0,04% ao mês quando o prazo é inferior a um ano, correspondendo esse prazo ao lapso de tempo que ocorre entre a data de utilização do crédito e a data limite constante do contrato até à qual o crédito é concedido.
Contrariamente, nos créditos utilizados sob a forma de conta corrente, descoberto bancário e sempre que o prazo de utilização não seja determinado ou determinável, o facto tributário reveste-se de natureza continuada, e para esses casos a verba 17.4 fixa um outro critério de determinação do imposto, mandando aplicar a taxa de 0,04% sobre a média mensal obtida através da soma dos saldos em dívida apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30. O imposto incide, nesse caso, sobre os saldos apurados em cada mês, sendo apenas nesse sentido que pode atribuir-se relevância ao factor temporal.
É esse, de resto, o princípio que decorre do artigo 5.º, alínea g), do Código de Imposto do Selo: nas operações de crédito, a obrigação tributária considera-se como constituída no momento em que forem realizadas ou, se o crédito for utilizado sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer outro meio em que o prazo não seja determinado nem determinável, no último dia de cada mês.”
Assim, não se mostrando observado o requisito em análise de que depende a aplicação da isenção de Imposto do Selo prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea g), do CIS, nada haverá a censurar à liquidação impugnada, improcedendo o respetivo pedido de declaração de ilegalidade e de anulação parcial.
D. REEMBOLSO DO MONTANTE DE IMPOSTO INDEVIDAMENTE PAGO ACRESCIDO DE JUROS INDEMNIZATÓRIOS
A Requerente peticiona, ainda, o reembolso do montante de € 566.066,36 de Imposto do Selo indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, calculados nos termos legais.
Nada havendo a censurar à liquidação de Imposto do Selo controvertida, não tem a Requerente direito a qualquer reembolso de imposto, nem ao pagamento de quaisquer juros indemnizatórios.
Nesta conformidade, também estes pedidos devem improceder.
* * *
A finalizar, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras.
IV. DECISÃO
Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:
a) Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral;
b) Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.
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VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 566.066,36 (quinhentos e sessenta e seis mil e sessenta e seis euros e trinta e seis cêntimos).
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CUSTAS
Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, o montante das custas é fixado em € 8.568,00 (oito mil quinhentos e sessenta e oito euros), a cargo da Requerente.
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Lisboa, 21 de dezembro de 2018.
Os Árbitros,
(Maria Fernanda Maçãs)
(Ricardo Rodrigues Pereira-relator)
(Hélder Faustino)