Decisão Arbitral (consultar versão completa no PDF)
Os árbitros José Poças Falcão (presidente), Francisco Nicolau Domingos e Álvaro Caneira, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
I. Relatório
1. A..., LDA, pessoa coletiva n.º..., com sede na ... de ..., n.º..., ..., ...-... ... (doravante designada por “Requerente”),apresentou pedido de pronúncia arbitral e de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante designado por “RJAT”), em que é Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante designada por “Requerida” ou “AT”).
2. Pretende a Requerente, no referido pedido de pronúncia arbitral, que o Tribunal Arbitral anule os atos de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) e de juros compensatórios, relativos a diversos períodos de tributação dos anos de 2012 e de 2013, no montante total de € 560 589,84, sendo o valor de € 475 449,90 respeitante a imposto e € 85 139,94 a juros (Doc. 1). Como consequência da referida anulação, requer a condenação da Administração Tributária ao reembolso da importância que considera indevidamente cobrada, acrescida dos correspondentes juros indemnizatórios contados nos termos legais.
3. Os questionados atos de liquidação têm por base elementos factuais, apurados em sede de inspeção tributária, que, conforme entendimento expresso no RIT, indiciam errónea aplicação do Regime Especial de Tributação dos Bens em Segunda Mão na transmissão, em território nacional, de viaturas adquiridas no mercado comunitário ao abrigo do regime geral das transações intracomunitárias, dedução indevida de IVA e regularizações de imposto sem adequado suporte legal.
4. Nas circunstâncias detalhadamente descritas no referido Relatório, estaria vedado à Requerente a possibilidade de aplicar aquele regime especial de tributação da margem, devendo o imposto devido pela venda das sobreditas viaturas no mercado nacional ser liquidado com base no respetivo valor de venda, sendo-lhe ainda proibidas as deduções que efetuou.
5. Como fundamento do pedido, apresentado em 09-05-2018, a Requerente alega, em síntese, que:
- os questionados atos tributário de liquidação adicional de IVA encontram-se feridos de ilegalidade, por carecerem de adequada fundamentação quanto às razões de facto e de direito que estão na sua génese;
- os factos tributários a que se reportam os referidos atos de liquidação assentam em errónea qualificação e quantificação, por errada desconsideração da aplicação do Regime Especial dos Bens em Segunda Mão, regulado pelo Decreto-Lei n.º 199/96, de 18/10.
e
- as liquidações em causa, relativas a factos tributários situados nos anos de 2012 e de 2013, notificadas em 05-01-2018, foram efetuadas depois de decorrido o prazo de caducidade.
6. Em resposta ao solicitado, a AT pronunciou-se no sentido da improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, considerando dever manter-se na ordem jurídica os atos tributários impugnados e, em conformidade, dever o Tribunal pronunciar-se pela absolvição da entidade Requerida.
7. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e oportunamente notificado à Requerida.
8. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, os signatários foram designados como árbitros pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, tendo as nomeações sido aceites, nos termos e prazos legalmente previstos.
9. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03.
10. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o Tribunal Arbitral foi constituído em 18-07-2018.
11. Regularmente constituído o Tribunal Arbitral é materialmente competente, face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
12. Não ocorrem quaisquer nulidades e não foram suscitadas questões prévias ou exceções, pelo que nada obsta ao julgamento de mérito, encontrando-se, assim, o presente processo em condições de nele ser proferida a decisão final.
13. Atento o conhecimento que decorre das peças processuais juntas pelas Partes, que se julga suficiente para a decisão, o Tribunal, por despacho de 20-10-2018, decidiu dispensar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, bem como a produção de prova testemunhal, tendo-se convidado as Partes a alegar por escrito. Pelo mesmo despacho, foi fixado o dia 14-01-2019 como data limite para a prolação e notificação da decisão final.
14. Em 12-11-2018, a Requerida apresentou as suas alegações escritas reafirmando, no essencial, a posição já anteriormente assumida na contestação, e em 12-12-2018 a Requerente procedeu do mesmo modo.
II. Matéria de facto
15. Com relevância para a apreciação das questões suscitadas no presente pedido de pronúncia arbitral, destacam-se, com base nas peças processuais juntas pelas Partes, designadamente no RIT, os seguintes elementos factuais que, não sendo objeto de contestação, se consideram documentalmente provados:
15.1. A Requerente é uma sociedade comercial que tem como objeto social o exercício da atividade de “Comércio de Veículos Automóveis Ligeiros”, a que corresponde o CAE 45110”.
15.2. Em sede de IVA, a Requerente foi enquadrada no regime normal trimestral entre 22-02-2011 - data em que iniciou a atividade - e 31-12-2013, tendo, após esta data, passado para o regime normal de periocidade mensal.
15.3. No período temporal que decorreu entre 29-11-2016 e 29-11-2017, a Requerente foi destinatária de procedimento de inspeção externo desenvolvido pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direcção de Finanças de ... ao abrigo das Ordens de Serviço n.ºs O12016... e O12016....
15.4. A referida ação inspetiva, de âmbito parcial nos termos do artigo 14.º, n.º 1, alínea a), do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA), centrou-se no controlo da atividade de comércio de veículos automóveis, exercida pela Requerente e, no plano temporal, no decurso dos anos de 2012 e de 2013.
15.5. Com base nos elementos obtidos a partir dos registos contabilísticos da Requerente, os Serviços de Inspeção Tributária apuraram que a atividade por ela desenvolvida naqueles anos, consistiu, sobretudo, na aquisição de viaturas automóveis a empresas revendedoras sediadas noutros Estados-Membros da União Europeia – designadamente, Bélgica, Alemanha, Holanda, Áustria, Dinamarca, Espanha, França, Itália e Luxemburgo - com vista à sua posterior alienação, em território nacional, a clientes particulares.
15.6. Da análise das faturas emitidas pelas empresas vendedoras verificaram os Serviços de Inspeção que das mesmas consta, no tocante ao regime de tributação aplicável em sede de IVA, que as viaturas foram expedidas com destino à Requerente ao abrigo do regime geral das trocas intracomunitárias e estar-se perante transmissões intracomunitárias isentas do referido tributo no Estado-Membro do expedidor.
15.7. Após legalização das viaturas junto dos Serviços Aduaneiros da AT, verificaram estes, através da documentação analisada, que, aquando da sua revenda em território nacional, a Requerente emitiu sempre as respetivas faturas aos clientes, liquidando IVA pelo regime da margem, nos termos do Regime Especial dos Bens em Segunda Mão, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 199/96, de 18/10.
15.8. Em observância do disposto no artigo 6.º do mencionado diploma, as faturas emitidas contêm a menção obrigatória “IVA-Bens em segunda mão.”
15.9. Atuando em conformidade, a Requerente, nas respetivas declarações periódicas, apurou o montante de IVA a entregar ao Estado inscrevendo os valores de IVA liquidado que haviam sido objeto de registo na sua contabilidade, os quais, conforme acima referido, foram apurados pelo regime especial da margem.
15.10. Tal procedimento, segundo entendimento expresso no RIT, não tem cobertura legal. Apenas seria permitida a aplicação daquele regime especial se as transmissões tivessem sido efetuadas pelo sujeito passivo revendedor no Estado-Membro de origem ao abrigo daquele regime especial, mencionando tal opção na faturação por ele emitida. Neste caso, a aquisição da viatura não seria sujeita a IVA em território português e, quando da sua revenda em Portugal, poderia ser aplicado o regime especial dos bens em segunda mão, salvo opção do revendedor nacional pelas regras de tributação no regime geral do IVA.
15.11. Não se mostrando preenchidos os requisitos de aplicação do regime especial dos bens em segunda mão, constituía obrigação do sujeito passivo, ora Requerente, liquidar e deduzir o IVA no momento da aquisição intracomunitária dos bens, devendo, posteriormente, quando da revenda das viaturas em território nacional proceder à liquidação do IVA de acordo com as regras do regime geral.
15.12. Segundo o RIT: “O resultado dessa errónea aplicação do regime de bens em segunda mão por parte da A... às suas operações ativas, em vez de aplicar as regras do regime geral como era sua obrigação, traduziu-se numa falta de liquidação e entrega de IVA nos cofres do Estado”.
15.13. Relativamente à situação descrita, conclui-se no RIT que: “Deste modo, atendendo ao montante de IVA liquidado pelo sujeito passivo nas suas declarações periódicas, serão efectuadas as seguintes correções no âmbito deste imposto, relativas a falta de liquidação de IVA à taxa normal em operações faturadas, com consequente falta de entrega do imposto ao Estado, por infração aos artigos 19.º, 27.º e 41.º, todos do CIVA”.
15.14. Na mesma ação inspetiva, segundo consta do respetivo Relatório, foi ainda constatado que a Requerente procedeu à dedução indevida de IVA que considerou incluído no montante de Imposto sobre Veículos (ISV) cobrado pelos Serviços Aduaneiros da AT no momento da legalização dos veículos adquiridos no mercado comunitário.
15.15. Relativamente a esta dedução indevida de IVA, supostamente contido no montante de ISV liquidado, a situação verificada pelos serviços de inspeção tributária com base na contabilidade da Requerente, vem detalhadamente descrita no RIT nos seguintes termos: “O sujeito passivo, ao regularizar nos serviços aduaneiros da AT as viaturas adquiridas junto dos seus fornecedores intracomunitários, viu serem-lhe cobrados através de DAV os valores de ISV calculados nos termos legais pela legalização desses veículos. Ora, para os períodos 1203T a 1303T, a A... terá entendido que os montantes de ISV cobrados pelos serviços aduaneiros incluiriam IVA pois, no final de cada trimestre, decidiu calcular o total de ISV que havia pago nesse período e, em seguida, dividiu essa importância por 1,23, de forma a apurar um suposto IVA incluído nesse montante de ISV.
São precisamente estes valores, apurados como se explicou acima, que o sujeito passivo inscreveu na sua contabilidade, registando-os na conta 2432331 para os períodos 1203T a 1303T.”
15.16. Verificando, assim, a inexistência de IVA devido ou pago pela Requerente nos serviços aduaneiros no âmbito das DVA, os Serviços Tributários efetuaram as seguintes correções, em sede de IVA, por dedução indevida do imposto em infração ao disposto no artigo 19.º, n.º 1, do respetivo Código:
15.17. Na mesma ação inspetiva foi ainda constatado que a Requerente procedeu à dedução de IVA respeitante à aquisição de serviços de construção civil que, em violação da regra de inversão do sujeito passivo prevista no artigo 2,º, n.º1, alínea j), do Código do IVA, lhe foi facturado pelos respectivos fornecedores.
15.18. De tal facto decorre que a Requerente não poderia “efectuar a dedução do IVA suportado nas faturas supra identificadas, nos termos do n.º 8 do artigo 19.º do CIVA, em virtude de não ter procedido à liquidação e pagamento desse imposto como era sua obrigação, razão pela qual serão efectuadas as seguintes correcções em sede de IVA por dedução indevida de IVA:”
15.19. Para além das situações acima descritas, extrai-se do RIT que a Requerente procedeu a regularizações de IVA a seu favor nos períodos 1206T e 1303T. Da análise da contabilidade do sujeito passivo, e respectivos documentos de suporte, verificaram os Serviços de Inspecção que “ambas as regularizações foram efetuadas apenas com base em documentos internos e sem evidenciarem qualquer explicação que justificasse o motivo pelo qual o sujeito passivo havia procedido à sua regularização. Deste modo, não estando demonstrada a razão subjacente àquelas regularizações de IVA a favor do sujeito passivo, serão realizadas as seguintes correcções em sede de IVA, por infracção ao art.º 78.º. n.º 6, do CIVA:”
15.20. Com a fundamentação acima sumariamente referida que, em larga extensão, se optou por transcrever, foram, efectuadas as correcções em sede de IVA, que originaram os actos de liquidação ora impugnados, constantes, em síntese, do seguinte quadro:
15.21. Em 30-11-2017, foi a Requerente notificada, nos termos dos artigos 60.º da Lei Geral Tributária (LGT) e 60.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira (RCPITA), para exercer o direito de audição.
15.22. No exercício do direito de audição, concretizado em 15-12-2017, a Requerente contestou as propostas de correcção do IVA respeitante à considerada indevida aplicação do regime da margem na transacção das viaturas por ela adquiridas no mercado comunitário e transmitidas a adquirentes em território nacional, bem como a regularização a seu favor respeitante ao período de 1303T.
15.23. Relativamente às correcções respeitantes a errónea aplicação do regime da margem na venda de viaturas que lhe foram transmitidas por fornecedores estabelecidos noutros Estados-Membros da União Europeia, alegou a Requerente a dificuldade de interpretação das menções contidas da facturação por eles emitida, pressupondo que todas as viaturas adquiridas junto de sujeitos passivos revendedores intracomunitários estariam abrangidas pelo regime da margem aquando da sua revenda em território nacional.
15.24. Sobre a regularização de IVA a seu favor ocorrida no período 1303T alegou a Requerente que a mesma se traduziu em mera reclassificação contabilística – débito na conta 243411 e, em simultaneo, crédito na conta 24345- de efeito nulo no apuramento do IVA a entregar ao Estado.
15.25. Apreciado o alegado pelo sujeito passivo em sede de exercício do direito de audição, os Serviços Tributários entenderam ser de manter as correcções propostas no RIT, sendo a Requerente notificada, através de carta registada com aviso de recepção, em 02-01-2018 do Relatório Final de Inspeção Tributária, através do ofício n.º..., de 29-12-2017, da Direção de Finanças de ... .
15.26. Conclui-se, ainda, no RIT que “Os factos descritos na presente informação levam a concluir que o sujeito passivo terá aplicado erradamente o Regime Especial dos Bens em Segunda Mão, aquando da venda das viaturas adquiridas ao abrigo do regime geral das aquisições intracomunitárias.
Por tal facto, a A... sonegou-se à obrigação de liquidar e entregar o IVA nos cofres do Estado, nos montantes de 37.660,02€, 195.504,78€, 268.972,38€ e 665.667.46€, respectivamente, nos anos de 2012, 2013, 2014 e 2015, podendo esses valores ser ainda superiores, de acordo com o descrito nos pontos 3.B) e 3.C.
Os factos descritos na presente informação levam a concluir que em sede de IVA a A... não entregou nos cofres do Estado a totalidade do imposto que lhe era exigido legalmente, facto que consubstancia a prática do crime de abuso de confiança, previsto no artigo 105.º do RGIT, pelo que se propõe o envio da presente informação ao EIC para efeitos de instauração de eventual processo de inquérito.”
15.27. Por despacho concordante da Chefe de Divisão de Inspeção Tributária da Direcção de Finanças de ..., foi acolhida a proposta de 09-12-2016, da Chefe de Equipa no sentido de que “Dado os factos apurados e descritos na presente informação, que evidenciam a prática de crime de fraude fiscal, será de remetar a presente informação ao EIC-Equipa de Investigação Criminal, nos termos do artigo 35.º do RGIT e para efeitos do artigo 40.º do mesmo Código.”
15.28. Para instauração de processo de inquérito foi, através da nota interna n.º .../2016, de 12-12-2016, do Serviço de Inspeção Tributária, remetida ao EIC a referida informação para instauração de processo de inquérito.
15.29. Entretando, e com base na factualidade e fundamentação constante do RIT foram efectuadas, em 30-12-2017, as liquidações de IVA decorrentes das correcções no mesmo propostas, sendo as mesmas notificadas à Requerente em 05-01-2018.
III. Matéria de direito
16. A Requerente imputa às liquidações impugnadas os vícios de:
a) Falta de fundamentação, alegando, quanto a este vício, que “o ato tributário de liquidação adicional de IVA aqui em crise é, desde já, ilegal, por carecer de adequada fundamentação quanto às razões de facto e de direito que estão na génese das referidas liquidações adicionais de IVA. Com efeito, o RIT não incluiu, de forma clara e suficiente, a necessária fundamentação que permitam a um destinatário normal – o bonus pater familiae a que alude o n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil – conhecer das razões factuais e jurídicas que justificaram as correções de imposto efetuadas, pressuposto chave para a sua manutenção na ordem jurídica.”
b) Errónea qualificação e quantificação dos factos tributários, por errada desconsideração da aplicação do regime dos bens em segunda mão. Alegando a dificuldade na interpretação das menções contidas nas facturas emitidas pelos respectivos fornecedores, entende a Requerente que:“ exigir-se à impugnante que demonstre que o IVA foi liquidado pelo regime da margem nos países de proveniência das viaturas usadas, tendo em conta as dificuldades anteriormente apontadas, tal desiderato confira só por si uma violação do princípio da proporcionalidade, até porque, estamos perante um imposto harmonizado, que obedece a requisitos da UE, designadamente o VAT Information Exchange System (VIES), pelo que a AT poderia ter requerido a prestação da informação necessária ao apuramento da verdade material, o que não fez, limitando-se na resposta ao direito de audição a referir (fls. 20/23 do RIT) que a impugnante efetuou aquisições intracomunitárias, sem ter averiguado das suas implicações com as correções em causa.”
c) Caducidade do direito à liquidação, por ter inexistência de notificação válida das liquidações impugnadas dentro do prazo previsto no artigo 45.º, n.º 1, da LGT, não se mostrando, no caso, reunidos os pressupostos do alargamento daquele prazo, ao abrigo do n.º 5 do mesmo artigo.
17. Considerando, por um lado, o princípio enunciado no artigo 130.º do Código de Processo Civil (CPC), no sentido de se evitar a prática de actos inúteis e, por outro lado, o disposto no artigo 124.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) , que determina a apreciação prioritária dos vícios que possam conduzir a uma mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos, procederemos primeiramente à análise da matéria de facto respeitante à questão da caducidade do direito à liquidação, por poder implicar a inutilidade do conhecimento dos restantes vícios.
Da caducidade do direito à liquidação
18. Dos elementos do processo, dados como documentalmente provados e não contestados pelas Partes, extrai-se que
- os factos tributários que se encontram na origam das liquidações impugnadas respeitam ao Imposto sobre o Valor Acrescentado e a diversos períodos trimestrais dos anos de 2012 e de 2013.
- as liquidações, segundo consta das correspondentes notas demonstrativas, foram efectuadas no dia 30-12-2017, e
- foram notificadas à Requerente, através de carta registada com aviso de recepção que lhe foi entregue em 05-01-2018.
19. É, pois, perante os factos acima sintetizados que se suscitam posições divergentes da Partes, que importa analisar em detalhe.
Posição da Requerente
20. Sobre o invocado vício de caducidade do direito à liquidação, alega a Requerente, no articulado do pedido de pronúncia arbitral que vai indicado, que: “67º - Nos termos do n.º 1 do artigo 45º da LGT “O direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro”.
68º - Assim, o prazo de caducidade para a liquidação de impostos previsto no n.º 1 do artigo 45.º da LGT é de 4 anos, prazo dentro do qual a AT também tem que notificar validamente os contribuintes, exceto nos casos em que a própria lei preveja prazo diferente.
69º - Por sua vez, o n.º 4 daquele preceito legal dispõe que o referido prazo de caducidade se conta, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu, exceto no IVA, em que aquele prazo de quatro anos se conta a partir do ano civil seguinte àquele em que se verificou a exigibilidade do imposto.
70º - De referir que uma das exceções, que implicam um alargamento do prazo de caducidade, está consagrada no n.º 5 do artigo 45.º da LGT onde se estabelece que “Sempre que o direito à liquidação respeita a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo a que se refere o n.º 1 é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano”.
71º Ora, as liquidações em causa, notificadas em 05.01.2018, foram efetuadas depois de decorrido o prazo de caducidade de 4 anos, que já havia terminado em 31.12.2016 e 31.12.2017, respetivamente, para o IVA dos anos de 2012 e 2013, conforme mapa seguinte Doc. 12):
72º - Atendendo a que somente no relatório da inspeção tributária se refere que foi instaurado inquérito criminal para os anos de 2012 e 2013 (págs 2/3 do RIT), importa aferir se tal razão é fundamento para que se possa considerar validamente suspenso o prazo de caducidade e, atempadamente, efetuada a liquidação e notificação do IVA em causa.
73º - Desde já pode-se adiantar que não estavam reunidos os requisitos para que se considere ter sido suspenso o prazo de caducidade e dentro do mesmo terem sido validamente efetuadas as liquidações adicionais e juros compensatórios do IVA e respetivas notificações no valor global de 560.589,84 € (475.449,90 € + 85.139,94 €).
74º -Na verdade, desde logo, inexiste um dos pressupostos para o alargamento do prazo de caducidade que exige uma identificação dos factos subjacentes ao ato tributário de liquidação e a investigação criminal, ou seja, tem de haver uma correspondência entre os factos objeto de inquérito criminal e os factos que constituem fundamento para as correções que deram origem às liquidações adicionais, pelo que é necessário aferir se tais correções estão relacionadas com a matéria objeto de inquérito.
75º Aliás, já o Acórdão do TCA-Norte de 18.01.2012, proferido no processo 00670/08.1BEBRG, considerou que “para que se verifique esse alargamento do prazo de caducidade é imperioso que os factos tributários subjacentes à (s) liquidação (ões) em causa tenham sido objeto de uma investigação em sede criminal e quanto a eles instaurado inquérito criminal «O que se compreende, pois não havendo a exigida identidade dos factos investigados no âmbito do processo penal e aqueles que constituem pressuposto da liquidação, não se vislumbra de que forma a pendência daquele processo possa afetar o exercício do direito de liquidação dos tributos.» [cfr. Ac. do TCA Norte de 22 de abril de 2010].”
76º - Por isso, exige-se que os factos tributários subjacentes à liquidação tenham sido objeto de uma investigação em sede de inquérito criminal, em termos de a pendência de tal investigação afetar o exercício do direito de liquidação dos tributos.
77º - Ou seja, só operará a extensão do prazo de caducidade do direito à liquidação dos impostos, a que se refere o n.º 5 do artigo 45.º da LGT, caso se demonstre que aquele direito estava, efetivamente e em concreto, condicionado pelo resultado da investigação criminal, como resulta, aliás, dos trabalhos preparatórios (atualização do Programa de Estabilidade e Crescimento apresentado pelo XVII Governo Constitucional de dezembro de 2005) para a alteração do regime da caducidade do direito à liquidação dos tributos no sentido de se prever que, estando o correto apuramento do imposto dependente de factos apurados em inquérito criminal, aquele prazo é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da respetiva sentença, acrescido de um ano.
78º - De facto, a AT, que pretende a prevalência do n.º 5 do art.º 45.º da LGT, não logrou provar ou demonstrar que o correto apuramento do IVA estava dependente de factos a apurar em inquérito criminal, pois que, nos termos do n.º 1 do artigo 74.º da LGT, era ela que estava onerada com tal demonstração.
79º - Efetivamente, o RIT nem sequer evidencia o que quer que seja quanto aos factos subjacentes ao inquérito criminal instaurado no final de 2016 (em 2016.12.12), em bom rigor, legítimo é considerar se estava em causa alguma coisa que tivesse a ver com IVA perante a mera observação de que “Note-se que para efeitos de contagem do prazo de caducidade do direito à liquidação dos anos de 2012 e 2013, que foi instaurado inquérito criminal sob o n.º do processo NUIPC .../2016... I..., razão pela qual a referida contagem seguirá a regra definida no art.º 45º, n.º 5 da Lei Geral Tributária (LGT)“.
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82º - Contudo, também esse RIT não esclarece porque foi necessário lançar mão do expediente de instaurar um inquérito criminal de que a impugnante foi constituída arguida em 21 abril de 2017, desconhecendo-se ainda hoje qualquer desenvolvimento, inclusive se o mesmo foi arquivado ou que tipo de diligências investigatórias foram efetuadas, para além das normalmente realizadas pela AT no âmbito da ação inspetiva que visou as liquidações adicionais do IVA, as quais foram notificadas em 05.01.2018.
83º - Na verdade, no RIT (pág. 2) é mencionado que “As Ordens de Serviço n.ºs OI2016... e OI2016... decorreram entre 2016/11/29 e 2017/11/29”, pese embora terem sido emitidas em 10/02/2016, quando o inquérito criminal (NUIPC .../2016... I...) apenas foi instaurado em 12.12.2016.
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84º - Nesse sentido, é evidente que houve um total desvirtuamento do objetivo da norma consagrada no n.º 5 do artigo 45.º da LGT, na medida em que a mesma foi meramente instrumental para justificar o alargamento ilegítimo e ilegal do prazo de caducidade, desrespeitando-se os seguintes princípios consagrados no Código do Procedimento Administrativo (aplicável por força do artigo 2.º da LGT): da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da razoabilidade e da boa fé (art.ºs 6.º, 7.º, 8.º e 10.º).
85º - Deste modo, não estando demonstrados os pressupostos do n.º 5 do artigo 45.º da LGT, não poderá operar o alargamento do prazo de caducidade ali consagrado, tendo as liquidações adicionais aqui impugnadas sido efetuadas e notificadas para além do prazo de caducidade, sendo, por isso, as mesmas ilegais, cfr. Acórdão no Proc.º n.º 199/2015-T, de 18.11.2015, do CAAD.
86º - Por outro lado, há ainda que ter em consideração que os factos subjacentes às liquidações adicionais do IVA efetuadas pela AT, por violação dos artigos 19º, 27º, n.º 1 e 41º do CIVA, não são passíveis de consubstanciar a prática de qualquer crime fiscal, nomeadamente o de fraude fiscal previsto e punível pelo artigo 103.º do RGIT.”
...
Posição da Requerida
21. Pronunciando-se sobre o que vem alegado pela Requerente em matéria de caducidade do direito de liquidação, considera a Requerida que “ foi respeitado o prazo de caducidade do direito à liquidação no que concerne às liquidações de IVA em causa, pelo que deve soçobrar a pretensão anulatória deduzida pela Requerente, porquanto da análise ao acervo probatório junto aos autos resulta notório e evidenciado que a notificação da liquidação sub judice foi perfeita, válida, e eficaz, por tempestivamente diligenciada em cumprimento do prazo de caducidade previsto no n.º 1 do art.º 45.º que nos termos do n.º 5 da mesma norma, validamente suspenso.”
22. Desenvolvendo a posição que assume, alega a Requerida que “64. - Por força da Lei n.º 60-A/2005, de 30/12/2005 (Lei de Orçamento de Estado para 2006) que entrou em vigor em 1/1/2006, foi aditado um novo n.º 5 ao art.º 45.º da LGT, o qual dispõe que sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo a que se refere o n.º 1 desse normativo, é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano.
65. - Este normativo foi, inclusivamente, aplicável aos prazos de caducidade em curso à data em vigor da Lei n.º 60-A/2005, nos termos da norma de direito transitório consagrada no n.º 2 deste Lei, no mesmo sentido, é claro o expresso no Acórdão do STA proferido em 02/07/2008, no âmbito do processo n.º 0343/08.
66. - Na sua construção literal, a norma prevista no n.º 5 do art.º 45.º da LGT é clara, referindo-se expressamente a uma necessária identidade de factos, isto é identidade entre o facto tributário e o facto criminal, e inclusivamente, no mesmo sentido se encaminha a jurisprudência do STA.
67. - Assim, o Acórdão do STA de 11 de maio de 2016, rec. 1071/14, em que se consignou que “A contagem do prazo de caducidade do direito de liquidar tributos nos termos do art.º 45.º, n.º, da LGT, só ocorre se o acto tributário de liquidação e a investigação criminal se referirem aos mesmos factos” e o Acórdão de 3 de Novembro de 2016, rec. 1407/15, onde se consignou, citando jurisprudência anterior, que “ (...) a contagem do prazo de caducidade do direito de liquidar tributos nos termos do art.º 45.º, n.º 5, da LGT, só ocorre se o acto tributário de liquidação e a investigação criminal se referirem aos mesmos factos.”.
68. - Saliente-se que não é sequer exigível, para efeitos do alargamento do prazo de caducidade do direito à liquidação previsto no n.º 5 do art.º 45.º da LGT, a par de uma “identidade objectiva” entre facto tributário e facto objecto de inquérito criminal, uma identidade subjectiva, entre o arguido ou agente e o sujeito passivo de imposto, entendimento que resulta do Acórdão do STA de 06/1272017, no âmbito do processo n.º 073/16.
69. - Ora, no caso sub judice, contrariamente ao alegado pela Requerente, não impende sobre a AT o ónus da prova no sentido da prevalência do n.º 5 do art.º 45.º da LGT.
70. - Não se compreendendo que não labore no mesmo sentido o seu raciocínio no que concerne à sindicada aplicabilidade do regime especial constante do DL 199/96, de 18 de Outubro, a não ser o da verificação da sua condição objectiva de aplicabilidade: a identidade objectiva dos factos, nos termos já explanado, sendo evidente, em face do auto de notícia junto ao processo que a mesma se verifica, não sendo plausível que a Requerente alegue qualquer circunstância legal da data em que teve conhecimento da sua instauração, ou a sua constituição como arguida, factos que não tem qualquer relevância do ponto de vista legal nem, tão pouco, pretender qualificar os factos criminalmente ou reputar a instauração do inquérito como subterfugio, no que a AT não pode conceder.
71. - E, assim sendo, verificando-se que o direito à liquidação respeita a factos relativamente aos quais corre ainda os seus termos inquérito criminal, instaurado em 12/12/2016 (Processo de inquérito n.º .../2016...I..., não se encontra, portanto, findo, o prazo de 4 anos previsto no n.º 1 do art.º 45.º, o qual é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano, o que, no caso sub judice, significa que o prazo de caducidade ainda se encontra em curso.”
72. - Assim, resulta evidente que à data em que a Requerente foi notificada das liquidações controvertidas em causa não decorrera ainda o prazo de caducidade do direito à liquidação, uma vez que este foi alargado até ao arquivamento do inquérito ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano, pelo que o mesmo ainda não se completou.
73. - Tal significa que, de acordo com os normativos citados, foi respeitado o prazo de caducidade do direito à liquidação no que concerne às liquidações de IVA em causa, pelo que deve soçobrar a pretensão anulatória deduzida pela Requerente, porquanto da análise ao acervo probatório junto aos autos resulta notório e evidenciado que a notificação da liquidação sub judice foi perfeita, válida, e eficaz, por tempestivamente diligenciada em cumprimento do prazo de caducidade previsto no n.º 1 do art.º 45.º que nos termos do n.º 5 da mesma norma, validamente suspenso.
Do conhecimento da questão
23. Expostas, assim, as posições das Partes sobre a questão da caducidade do direito à liquidação, centradas sobre o alargamento do respetivo prazo, nos termos do artigo 45.º, n.º 5, da Lei Geral Tributária (LGT), importa apreciar o pedido nesta vertente.
24. Convergem as Partes no entendimento de que o prazo geral de exercício do direito à liquidação de IVA é de quatro anos, a contar do termo do ano civil seguinte àquele em que se verificou a exigibilidade do imposto (LGT, art. 45.º, nºs. 1 e 4 e CIVA, arts. 7.º, n.º 1 e 8.º, n.º 1).
25. No caso dos autos, os factos geradores da obrigação de imposto, bem como a sua exigibilidade, ocorreram em diversos períodos de tributação dos anos de 2012 e de 2013, sendo que os atos de liquidação oficiosa, embora efetuados em 30-12-2017, apenas foram notificados ao respetivo destinatário em 05-01-2018.
26. De acordo com a norma do artigo 45.º, n.º 1, da LGT, “o direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos...” No caso em análise, não subsistem, pois, dúvidas de que o direito de liquidação teria já caducado, ao abrigo da norma transcrita, no momento em que as liquidações impugnadas foram notificadas à Requerente.
27. Porém, é ressalvada a aplicação do referido prazo geral às situações em que não haja sido fixado na lei prazo diverso.
28. Ora, com relevância para o caso em análise, prevalece, assim, o prazo de caducidade previsto no artigo 45.º, n.º 5, da LGT, desde que se mostrem preenchidos os respetivos pressupostos.
29. Introduzido pela Lei n.º 60-A/2005, de 30/12, estabelece o referido preceito que: “Sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo a que se refere o n.º 1 é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano”.
30. É, pois, do alargamento do prazo de caducidade estabelecido na norma acima transcrita que a Requerida se socorre para sustentar que, no caso dos autos, os atos de liquidação impugnados haviam sido praticados dentro do prazo de caducidade.
31. Sobre o âmbito de aplicação da norma invocada pela Requerida como fundamento da tempestividade das liquidações que efetuou, constitui jurisprudência pacífica, acolhida em diversas decisões arbitrais, que é necessária a existência de uma relação entre a possibilidade de exercício do direito de liquidação e a pendência do processo de inquérito, “de forma a poder afirmar-se que o direito de liquidação não podia ser exercido nos termos corretos sem conhecimento de factos apurados no inquérito”.
32. Este entendimento, que sem reservas se acompanha, vem exposto em acórdão arbitral proferido no processo 7/2016-T, cuja fundamentação, pela sua clareza e rigor, a seguir se transcreve: “ Como resulta do próprio texto desta norma, ao exigir que o direito a liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, para aplicação do alargamento do prazo previsto neste artigo 45.º, é necessário, desde logo, que se prove que o direito de liquidação se baseia em factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o que pressupõe o conhecimento dos factos concretos que foram alvo da investigação criminal.”
...
É necessário, assim, que haja uma relação entre a possibilidade de exercício do direito de liquidação e a pendência do processo de inquérito, de forma a poder afirmar-se que o direito de liquidação não podia ser exercido nos termos corretos sem conhecimento de factos apurados no inquérito.”
33. Prossegue o aludido acórdão, “Na verdade, numa interpretação teleológica do referido artigo 45.º, n.º 5, da LGT, que tenha em mente, a par do interesse na cobrança de tributos, o interesse do contribuinte e público da segurança jurídica, ínsito no instituto da caducidade do direito de liquidação de tributos, e o princípio constitucional da necessidade na restrição de garantias dos contribuintes, não se pode entender que, pelo facto de ter sido instaurado um inquérito criminal para averiguar qualquer facto que possa gerar uma dívida tributária, o direito de liquidação relativamente a quaisquer factos ocorridos no mesmo ano se prolongue nos termos daquele artigo 45.º, n.º 5. Com efeito, essa ponderação relativa dos interesses conflituantes da segurança jurídica e da cobrança de tributos tem de conduzir forçosamente à conclusão de que só é aplicável o prazo alargado quando os factos que servem de base à liquidação são averiguados no inquérito criminal, isto é, quando não havia outra forma de a Autoridade Tributária e Aduaneira liquidar no prazo normal, salvaguardando todos os interesses em confronto.”
34. Acrescenta ainda o referido acórdão, que: “ Esta conclusão sobre a restrição do alargamento do prazo de caducidade do direito de liquidação aos casos em que o apuramento de factos é necessário para correto apuramento do imposto está em consonância com a intenção legislativa expressamente publicitada pelo Governo na p. 30 da Actualização de Dezembro de 2005 ao Programa de Estabilidade e Crescimento 2005-2009, apresentada à Assembleia da República em sintonia com a Proposta de Lei do. Orçamento do Estado para 2006 (in http://www.parlamento.pt/OrcamentoEstado/Documents/pec/pec2005-2009.pdf), em que veio a ser introduzido na LGT a norma referida:
No Orçamento de Estado para 2006 foi alterado o regime da caducidade do direito à liquidação dos tributos (em regra, nos impostos periódicos, 4 anos a contar do ano seguinte àquele em que ocorreu o facto tributário e nos impostos de obrigação única, a contar da data da ocorrência do facto tributário) no sentido de se prever que, estando o correto apuramento do imposto dependente de factos apurados em inquérito criminal, aquele prazo é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da respetiva sentença, acrescido de um ano. Com tal alteração visa-se, no essencial, prevenir que aqueles que são indiciados ou até acusados da prática de ilícitos criminais de natureza tributária não beneficiem, por virtude do decurso do prazo de caducidade, da não liquidação de imposto, com a inerente desobrigação de proceder ao seu pagamento, por virtude da prática daqueles ilícitos. Pretende-se, assim, a moralização do ordenamento jurídico-tributário e um mais eficaz combate à fraude e evasão fiscal;
35. Conclui, assim, o acórdão que vimos transcrevendo que: “É, assim, claro que, na perspectiva legislativa, o alargamento do prazo referido apenas se justifica em situações em que «o correcto apuramento do imposto (esteja) dependente de factos apurados em inquérito criminal”
...
“Assim, os elementos racional e histórico da interpretação apontam decisivamente no sentido de o alargamento do prazo apenas se verificar quando a liquidação não poderia ter sido efetuada sem o apuramento de factos que vieram a ser apurados em inquérito criminal, mesmo que neste esses factos não conduzam a uma acusação criminal.”
36. No mesmo sentido, se concluiu, em acórdão arbitral de 18-11-2015, proferido no processo n.º 199/2015-T que:“ ... só operará a extensão do prazo de caducidade do direito à liquidação de tributos, a que se refere o artigo 45.º/5 da LGT, caso se demonstre que aquele direito estava – efectivamente e em concreto – condicionado pelo resultado da investigação criminal indo assim ao encontro dos trabalhos preparatórios, pertinentemente recordados pela Requerente, e onde se pode ler que a “alteração do regime da caducidade do direito à liquidação dos tributos [foi] no sentido de se prever que, estando o correcto apuramento do imposto dependente de factos apurados em inquérito criminal, aquele prazo é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da respectiva sentença, acrescido de um ano”. Aqui chegados, cumpre notar que sendo a AT quem se pretende prevalecer da norma em causa (da previsão do n.º 5 do artigo 45.º da LGT), seria ela quem, nos termos do artigo 74.º/1 da LGT, estava onerada com a demonstração de que, efectivamente e em concreto, “o correcto apuramento do imposto dependente de factos apurados em inquérito criminal”, demonstração essa que não só não foi feita, como se indicia o contrário, na medida em que, justamente, a liquidação foi emitida bem antes de estar finda a investigação criminal (sublinhado nosso)....” .
37. É, ainda, esta a orientação acolhida em outras decisões arbitrais, conforme se pode extrair da decisão proferida no processo 144/2014-T, em que se expressa o entendimento de que: “ só é aplicável o prazo alargado quando os factos que servem de base à liquidação são averiguados no inquérito criminal, isto é, quando não havia outra forma de a Autoridade Tributária e Aduaneira liquidar no prazo normal, salvaguardando todos os interesses em confronto.”
38. É este, também, o sentido da jurisprudência do STA, conforme se pode ler em acórdão de 06-12-2017, proferido no processo 073/16, “Assim, a norma prevista no n.º 5 do artigo 45.º da LGT resulta da necessidade de garantir uma boa decisão da causa em matéria fiscal, aguardando-se assim o desfecho dos inquéritos ou dos processos-crime em que o facto tributário se encontra em discussão. Ou seja, o inquérito criminal teve por objecto a averiguação da eventual prática de crimes fiscais relacionados com a matéria objecto da Inspecção Tributária e da liquidação subsequente...”
39. No mesmo sentido, referem José Maria Fernandes Pires, Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal e Maria João Menezes in Lei Geral Tributária – anotada e comentada, 2015, p. 412, "o n.º 5 destina-se a impedir o decurso do prazo de caducidade na pendência do processo criminal por se entender que encontrando-se a liquidação dependente de sentença a proferir no âmbito desse processo tal liquidação não pode ser prejudicada pela demora da decisão judicial. Para o efeito alarga-se o prazo de caducidade até arquivamento do inquérito ou ao trânsito em julgado da sentença acrescido de um ano".
40. As liquidações impugnadas foram, pois, efetuadas com base nos elementos desde logo apurados na ação inspetiva realizada junto da empresa, não se encontrando, de forma alguma, condicionadas pelo resultado do inquérito criminal, como, de resto, decorre da respetiva fundamentação.
41. Não divergindo do entendimento jurisprudencial exposto, cabe referir que, como alega a Requerente, sendo a AT que pretende a prevalência da norma do artigo 45.º, n.º.5, da LGT, é sobre ela que, nos termos do artigo 74.º, n.º 1, da mesma Lei, recai o ónus de provar que, efetivamente e em concreto, o correto apuramento do imposto estava dependente de factos apurados em inquérito criminal.
42. Tal prova não foi feita, antes se indiciando não existir aquela dependência já que as liquidações ora impugnadas foram, todas elas, efetuadas antes de estar concluído o inquérito criminal com base em elementos recolhidos na acção inspetiva, circunstância que bem demonstra que no caso sub judice não é possível o alargamento do prazo de caducidade.
43. Assim, e pelo exposto, tendo as liquidações impugnadas sido emitidas depois de decorrido o prazo de caducidade, são as mesmas ilegais, por violação da norma do artigo 45.º, n.º 1, da LGT, devendo, consequentemente, ser objeto de anulação.
Questões de conhecimento prejudicado
44. Sendo de julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral com fundamento em caducidade do direito à liquidação, fica prejudicado, por ser inútil, o conhecimento das restantes questões colocadas, salvo no que concerne ao pedido de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios.
Do direito a juros indemnizatórios
45. A par da anulação das liquidações de IVA e de juros compensatórios, e consequente reembolso das importâncias indevidamente pagas, o Requerente solicita ainda que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º, da LGT.
46. Com efeito, nos termos da norma do n.º 1 do referido artigo, serão devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.” Para além dos meios referidos na norma que se transcreve, entendemos que, conforme decorre do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral e, assim, se conhece do pedido.
47. O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.
48. No presente caso, ainda que se reconheça não ser devido imposto por se encontrarem feridas de ilegalidade as liquidações a que o mesmo respeita, por violação do prazo de caducidade do direito à liquidação, determinando-se, em consequência, a anulação dos atos respetivos, não se obriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito a favor do contribuinte, pelo contrário, o que ocorreu foi a prática de uma infração por parte da Requerente que originou as liquidações cuja anulação ora se determina.
49. Nesta matéria tem-se em atenção a orientação da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo , que vai no sentido de que o direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT pressupõe que no processo se determine que na liquidação "houve erro imputável aos serviços" entendido este como o "erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à Administração Fiscal.”
50. Como decorre da referida jurisprudência, a expressão "erro imputável aos serviços" refere-se a "erro" e não a "vício", o que inculca que quer relevar os erros sobre os pressupostos de facto ou de direito que levaram a AT a uma ilegal definição da relação jurídica tributária do contribuinte, não considerando os vícios formais ou procedimentais que, ferindo, embora, de ilegalidade o ato, não implicam, necessariamente, uma errónea definição daquela relação. Resulta, assim, que só nos casos de anulação fundada em vícios respeitantes à relação jurídica tributária haverá lugar a pagamento de juros indemnizatórios, não sendo reconhecido tal direito no caso de anulação de ato de liquidação baseada unicamente em vício de caducidade do direito de liquidação.
V. Decisão
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral acorda em:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, no que concerne à ilegalidade das liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios impugnadas, por vício de caducidade do direito à liquidação, determinando-se a sua anulação com as devidas consequências legais;
b) Julgar improcedente o pedido de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios.
Valor do processo: € 560 584,84.
Custas: Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 8.568,00 (oito mil quinhentos e sessenta e oito euros), a cargo da Requerida (AT).
Lisboa, 3 de janeiro de 2019
O Tribunal Arbitral,
José Poças Falcão
(árbitro presidente)
Francisco Nicolau Domingos
(vogal)
Álvaro Caneira
(vogal)