Acórdão Arbitral
I – Relatório
1. A contribuinte A..., LDA, com o NIPC ... (doravante "Requerente"), apresentou, no dia 12 de Abril de 2018, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante "RJAT"), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante "AT" ou "Requerida").
2. A Requerente vem pedir a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade de actos de liquidação adicional de IRS, e juros compensatórios, referentes aos anos de 2012, 2013, 2014 e 2015. Arrolou três testemunhas.
3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
4. O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
5. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 25 de Junho de 2018.
6. Nos termos do art. 17º do RJAT, foi a AT notificada, em 28 de Junho de 2018, para apresentar resposta.
7. A AT apresentou a sua Resposta em 17 de Setembro de 2018, e nela pugna pela total improcedência do pedido da Requerente.
8. O Despacho Arbitral de 25 de Setembro de 2018 dispensou a realização da reunião a que alude o art. 18º do RJAT, indeferindo o requerimento de inquirição de testemunhas, por entender que os artigos do PPA sobre que incidiria a prova testemunhal não contêm factos mas interpretações e conclusões, deixando sem objecto essa prova.
9. O Tribunal concedeu prazo para alegações escritas e fixou a data de 20 de Novembro de 2018 como limite para a prolação e notificação da Decisão Arbitral.
10. Em 18 de Outubro de 2018 o CAAD recebeu, da Direcção de Finanças do ... – Divisão de Processos Criminais Fiscais, a solicitação de entrega das peças processuais apresentadas no âmbito dos processos arbitrais n.os 190/2018-T e 191/2018-T, com vista a instruir o processo de inquérito nº.../15...T..., que corre termos na 1ª Secção do DIAP de ... contra a Requerente; solicitação que foi atendida pelo CAAD em resposta de 23 de Outubro de 2018.
11. O processo não enferma de nulidades e não subsistem mais questões, prévias ou subsequentes, prejudiciais ou de excepção, que obstem à apreciação do mérito da causa, mostrando-se reunidas as condições para ser proferida decisão final.
12. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração (e posterior substabelecimento), encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
13. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.
II – Fundamentação: a matéria de facto
II.A. Factos que se consideram provados e com relevância para a decisão
1) A Requerente dedica-se ao aluguer de equipamentos para a construção civil, à preparação de terrenos para construção (terraplanagens, demolições) e à construção de muros em alvenaria e pedra velha.
2) A Requerente tem dois sócios, B..., que detém 74% do capital social e é casado com C...; e D... .
3) O volume de negócios declarados pela Requerente foi o seguinte:
Ano de Exercício
2012 2013 2014 2015
1.907.054,82 1.957.528,55 1.881.960,18 2.383.173,02
4) Por ofício de 13-07-2016 da 1.ª Secção DIAP de ..., foi a Direcção de Finanças do ... / Divisão de Processos Criminais Fiscais, notificada do despacho proferido no âmbito do processo de inquérito n.º .../15........., onde se lê o seguinte:
“In casu, investigam-se factos susceptíveis de consubstanciar a prática de um crime de fraude fiscal p.e p. pelo art. 103.º do RGIT e um crime de branqueamento p. e. p. pelo artigo 368.º A do CP. [§] Dos elementos carreados para os autos existem evidências do desfasamento entre o património dos suspeitos e as suas declarações de rendimentos. […] Importa com celeridade investigar a presente matéria e essencialmente acautelar que o produto do crime não seja dissipado. [§] Ora, o bom êxito da investigação do ilícito típico que se indicia bem como a salvaguarda dos direitos fundamentais dos sujeitos processuais, nomeadamente o bom nome, reputação do suspeito, poderiam ser comprometidos com a publicidade do processo. [§] A estratégia da investigação, nomeadamente a investigação e monitorização de contas bancárias poderia ficar comprometida com a publicidade do processo assim como a obtenção de prova documental eventualmente existente. [§] Assim, atento o teor da prova reunida, a especificidade da matéria de facto a que o objecto dos presentes autos se reporta, e ainda ao objectivo que com as investigações se pretende alcançar, ao abrigo do preceituado no artigo 86.º n.º 3 do Código de Processo Penal e tendo em conta o Despacho da P.G.R. do ... n.º 2/08 de 9-1-2008, determino que as investigações e os ulteriores termos dos presentes autos sejam tramitados sob o regime de segredo de justiça, durante a fase de Inquérito e pelo período de tempo máximo legalmente permitido. [§] Vindo os autos, e atendendo a que se investigam, para além de factos capazes de consubstanciar a pratica de crime fraude fiscal p.e p. pelo artigo 103.º do RGIT, a prática de um crime de branqueamento, nos termos do disposto no art. 7.º n.º 2 al. i) da Lei 49/2008 de 27 de Agosto, delego a presente investigação na P.J. [§] No entanto e atenta a acção inspectiva que está em curso, e a qual deverá ser efectuada pela A.T. deverão os presentes autos ser investigados com uma equipa mista, mantendo-se a eventual investigação do crime fiscal a cargo da A.T.”
5) Por isso a Requerente foi sujeita a acções inspectivas, a coberto nas ordens de serviço n.ºs OI 2016..., OI 2016..., OI 2016... e OI 2016..., respeitante aos exercícios de 2012 a 2015.
6) As acções inspectivas iniciaram-se em 3 de Novembro de 2016, com a notificação da Requerente. O âmbito do procedimento inspectivo foi alterado para geral por se mostrar adequado analisar-se de forma mais ampla a situação tributária da Requerente, nomeadamente no que respeita ao controle das retenções na fonte de IRS.
7) A Inspecção Tributária apurou o seguinte:
«II.1.1. IMPOSTO EM FALTA – RETENÇÕES NA FONTE
III.1.1.1. AJUDAS DE CUSTO
Da análise efetuada aos gastos com o pessoal aferimos que anualmente foram contabilizados encargos com ajudas de custo (conta SNC 6388 – Outros Gastos com o Pessoal – Ajudas de Custo), nos seguintes montantes:
• Ano 2012 - €175.550;
• Ano 2013 - €95.253,25;
• Ano 2014 - €87.092,62;
• Ano 2015 – €124.069,14.
As ajudas de custo destinam-se a compensar o trabalhador das despesas por si suportadas com refeições (almoço e jantar) e alojamento, estando as condições de atribuição definidas no artº 8 do Decreto- Lei n.º 106/98, de 24 de Abril. Contudo, nos exercícios em análise, aferimos que a empresa também declarou mensalmente gastos com deslocações e estadas, contabilizados na conta SNC 62512, nos seguintes montantes:
Os documentos de suporte encontram-se divididos em três diários: compras (código 5), operações diversas (código 7) e bancos (código 9), relevando cada um os seguintes montantes:
Analisados os documentos de suporte verificámos que 95% do valor contabilizado, nos exercícios em análise, refere-se a gastos com refeições e com dormidas, pois apenas se identificaram os montantes de €9.802 no ano de 2012 (documentos internos: 2012-01-31 5 1079, 2012-02-29 9 2012, 2012-02-29 9 2037 e 2012-06-30 9 6023) e de €137 no ano de 2013 (documentos internos: 2013-01-31 9 1092 e 2013-01-31 9 1093) associados a gastos com viagens de avião.
Verificou-se igualmente que os valores contabilizados a débito da conta SNC 6512, na série documental “Diário – 7 – Operações Diversas”, na quase totalidade dos lançamentos contabilísticos, resulta da soma de diversas faturas, referentes ao mesmo emitente (restaurante/pensão), pelo que o valor total contabilizado na conta decorre do somatório de centenas de documentos, associados a consumos diários/semanais. Ora, a análise documental efetuada, aos gastos contabilizados na conta de deslocações e estadas, na série documental “Diário – 7 – Operações Diversas”, levou-nos a concluir que os montantes mensais auferidos pelos funcionários a título de ajudas de custo, constituem um complemento salarial dos mesmos, atendendo a que as refeições e alojamento, foram fornecidos pela empresa.
Acresce o facto de que nos montantes mensais pagos, a título de ajudas de custo, não ter sido efetuada a dedução do abono do subsídio de refeição, incluído no processamento de salários, conforme estipulado pelo art.º 37.º do Decreto-Lei nº 106/98, de 24 de abril.
Na esfera dos beneficiários e para efeitos de IRS, em conformidade como disposto na alínea d) do nº 3 do art.º 2.º do CIRS, consideram-se rendimentos do trabalho dependente as ajudas de custo na parte em que excedam os limites legais ou quando não sejam observados os pressupostos da sua atribuição aos servidores do Estado.
Tratam-se de rendimentos sujeitos a imposto e dele não isentos, no entanto, para efeitos de determinação da taxa de retenção na fonte a aplicar em cada processamento de salários e para cada funcionário abrangido pelas ajudas de custo, a empresa não entrou em linha de conta com o montante pago a titulo de ajuda de custo, pelo que não procedeu à retenção na fonte dos montantes de IRS devidos por lei, incluindo a retenção resultante da aplicação da sobretaxa de 3,5%, conforme consta do nº 5 do artº 187º da Lei n.º 66-B/2012 (OE 2013).
De igual modo, não fez constar o valor anual pago relativo a essas mesmas remunerações na declaração de comunicação de rendimentos e retenções, prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 119º do CIRS. E, por consequência, os trabalhadores não mencionaram essas remunerações na declaração anual de rendimentos prevista no artigo 57º do CIRS.
De acordo com o artigo 99º do mesmo diploma legal, as entidades devedoras de rendimentos de trabalho dependente são obrigadas a reter o imposto no momento do seu pagamento ou colocação à disposição dos respetivos titulares. Assim, os montantes de imposto devidos, não retidos e não entregues nos cofres do estado vão ser exigidos à empresa na qualidade de substituto tributário, por se verificar a responsabilidade solidária prevista no nº 4 do artigo 103º do CIRS, segundo o qual:
“Tratando-se de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido.” Os montantes de imposto anual em falta ascendem a €38.757, €25.105, €21.632 e a €28.619, em 2012, 2013, 2014 e 2015, respetivamente, incidente sobre os montantes pagos a título de ajudas de custo, a seguir discriminados:
A discriminação por período de imposto dos montantes apurados das ajudas de custo sujeitas a imposto, encontra-se nos mapas em Anexo I.
De referir que na análise efetuada não foram incluídos os montantes pagos nos anos de 2013 a 2015, referentes às funcionárias E..., NIF..., F..., NIF ... e G..., NIF, ..., atendendo a que mapas de suporte referem-se a pagamento de Km´s, que respeitam à compensação do trabalhador pela utilização de viatura própria ao serviço da entidade patronal, e não a judas de custo.
(...)
III.2.2.3. AJUDAS DE CUSTO
Nas declarações de rendimentos Modelo 22 dos exercícios de 2012, 2013, 2014 e 2015 o contribuinte apurou tributações autónomas de IRC, à taxa de 5%, referentes à totalidade do valor contabilizado a título de ajudas de custo e de compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador (Km´s), na conta SNC 6388 Outros Gastos com o Pessoal - Ajudas de Custo, no montante de €175.500, €95.523,25, €87.092,62 e de €124.069,14, para cada um dos referidos exercícios.
Face ao disposto no nº9 do art.º 88.º do CIRC “São tributados autonomamente, à taxa de 5%, os encargos dedutíveis relativos a ajudas de custo e à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não facturados a clientes, escriturados a qualquer título, excepto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respectivo beneficiário, …”.
Assim, atendendo à correção proposta no capítulo III.1.1., aos valores sobre os quais incidiu a taxa de 5% de tributação autónoma, deveram ser deduzidos os montantes, referente a ajudas de custo consideradas rendimento e como tal sujeitas a tributação em sede de IRS, na esfera do trabalhador, apurando-se os valores de €8.777,50, €4.680,57, €4.324,63 e de €6.097 de imposto a recuperar pelo contribuinte, em cada um dos exercícios de 2012, 2012, 2014 e 2105, respetivamente, conforme quadro apresentado no ponto seguinte.
(…)
III.1.1.2. RENDIMENTOS DE CAPITAIS
A presente ação inspetiva à A..., decorreu em simultâneo com as ações inspetivas ao sócio e gerente B... e à esposa C... . As ações foram credenciadas pelas ordens de serviço nº 012016..., 012016..., 012016... e 012016... e também tiveram como incidência temporal os exercícios de 2012, 2013, 2014 e 2015, respetivamente.
(…)
Procedimentos realizados
No âmbito das ações inspetivas ao sócio o gerente B... e à esposa C..., procedeu-se ao pedido de informação sobre as contas bancárias, realizado junto do Banco de Portugal, em consequência da autorização concedida, pelos mesmos, à Autoridade Tributária, para aceder aos documentos bancários a que se refere o artº 63º-B da LGT
(…)
Conclusão
Da análise efetuada, verifica-se que a gestão dos recursos financeiros da empresa, foi desenvolvida de uma forma pouco clara e precisa, ao longo dos exercícios em análise. Os registos bancários das contas particulares e da empresa, demonstram uma mistura de movimentos de âmbito particular com os empresariais, sendo o património afeto ao exercício da atividade, confundido com o património que pertence aos B... e esposa, nos esclarecimentos prestados durante a ação inspetiva, tendo o mesmo justificado esse procedimento com o facto de ser o único “dono da empresa”,
Atendendo ao exposto nas considerações prévias e da Informação recolhida no âmbito da derrogação do sigilo bancário das contas tituladas pelos sujeitos passivos B... e C..., nomeadamente o facto de não apresentarem qualquer justificação quanto à origem de um número significativo de movimentos financeiros a crédito (a totalidade no ano de 2012) constantes das suas contas bancárias, assim como do facto, das justificações apresentadas para a parte restantes dos créditos dos exercícios de 2013, 2014 e 2015, não estarem devidamente comprovadas, carecendo de credibilidade, concluímos que os mesmos respeitam a fundos provenientes de rendimentos/ganhos da atividade da A..., que foram omitidos das demostrações financeiras e para efeitos fiscais.
De acordo com a discriminação, em cima efetuada, nos exercícios de 2012, 2013, 2014 e 2015, Os sujeitos passivos B... e C... auferiram dos montantes de €62.556,25, €201.525, €207.179,20 e de €124.420,94, respetivamente.
Esses fundos são enquadrados fiscalmente, em sede de IRS, na esfera dos respetivos beneficiários, como lucros distribuídos, enquadrados na Categoria E - Rendimentos de Capitais, nos termos da alínea h) do n.o 2 do art. 5.º do CIRS.
Nos termos da alínea a) n°1 do art. 71.º do CIRS, estão sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, à taxa liberatória de 28 % os rendimentos de capitais obtidos em território português, por residentes, pagos por ou através de entidades que aqui tenham sede, direção efetiva ou estabelecimento estável a que deva imputar-se o pagamento e que disponham de contabilidade organizada.
A retenção na fonte cabe à entidade devedora dos rendimentos, nos termos da alínea a) do n° 2 do art 101.o do CIRS, devendo ser efetuada no momento da colocação à disposição, de acordo com previsto no n' 2 da alínea a) do n°3 do art° 7.º do CIRS.
Assim, procedeu-se ao apuramento dos montantes de imposto anual em falta que ascendem a €17.515, €56.426, €58.009 e a €34.836, em 2012, 2013, 2014 a 2015, respetivamente, incidente sobre os montantes colocados à disposição dos sócios, a título de lucros, a seguir discriminados:
8) Na sequência da inspecção tributária, a Requerente recebeu liquidações adicionais de IRS respeitantes aos anos de 2012 a 2015, acrescidos de juros compensatórios:
ΑΝΟ IMPOSTO JUROS COMPENSATÓRIOS TOTAL
2012 56.272,00 12,248,05 68.520,05
2013 81.531,00 14.670,08 96.201,08
2014 79.641,00 11.093,45 90.734,45
2015 63.455,00 5.722,00 69.177,00
9) Essas liquidações correspondem a conclusões fundamentadas no RIT quanto à inexistência de retenção na fonte de IRS por lucros distribuídos, nos termos do art. 71º, 1, a) do CIRS; e quanto à inexistência de declaração de remunerações efectivas enquadráveis na Categoria A, apresentadas antes como “ajudas de custo”, e falta de correspondente retenção na fonte, nos termos do art. 99º do CIRS.
10) A Requerente apresentou em 12 de Abril de 2018 o Pedido de Pronúncia Arbitral.
II.B. Factos que se consideram não provados
Com base nos elementos documentais disponibilizados nos autos e consensualmente aceites pelas partes verifica-se que, com interesse para a decisão da causa, nada ficou por provar.
II.C. Fundamentação da matéria de facto
Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral e no processo administrativo.
III – Fundamentação: a matéria de Direito
III.A. Posição da Requerente
a) A Requerente começa por sustentar (arts. 5 e 6 do PPA) que, não obstante não ter solicitado a cumulação de pedidos ao abrigo do disposto no art. 3º do RJAT, seria vantajoso para a celeridade e simplificação processual, assim como para a uniformidade de decisões, que fossem apreciados, conjuntamente com este, outros pedidos respeitantes às liquidações do IVA e do IRC para os mesmos exercícios de 2012 a 2015.
b) Como fundamentos do pedido de anulação, a Requerente começa por invocar a caducidade do direito à liquidação do exercício de 2012, nos termos do art. 45º, 1 da LGT, rejeitando que se aplique ao caso a extensão de prazo prevista no nº 5 desse art. 45º, visto que tem que se tratar precisamente dos mesmos factos relativamente aos quais foi instaurado processo criminal, e não de quaisquer outros – sendo que entende a Requerente que a AT precisamente pretende ultrapassar os prazos de caducidade com respeito a factos relativamente aos quais não foi instaurado inquérito criminal, não se verificando a exigida identidade dos factos investigados no âmbito do processo penal e aqueles que constituem pressuposto da liquidação.
c) Insiste a Requerente que a mera abertura de um processo de inquérito não permite à AT, sem mais, proceder à liquidação de todo e qualquer imposto (no caso, retenções de IRS) sem observância do prazo normal de caducidade.
d) Assim, infere a Requerente, não tendo a AT, no RIT, indicado os factos a que se refere o processo de inquérito nº .../15........., nem autorizado a sua consulta, fica sem se saber se, de facto, a caducidade da liquidação de 2012 ocorreu ou não.
e) A Requerente alega que os actos tributários impugnados não se apresentam devidamente fundamentados, sendo que a preterição da fundamentação é fundamento de anulação desses actos
f) Relativamente à “distribuição de lucros”, a Requerente discorda da metodologia empregue na Inspecção dirigida ao seu sócio gerente e respectivo cônjuge, nomeadamente menosprezando os movimentos de saída nas contas bancárias que, relacionados com os movimentos de entrada nas mesmas contas, poderiam justificar estes; e, mais genericamente, não dando aos notificados (e a outros envolvidos) a oportunidade, ou o tempo, para fazerem a comprovação completa dos movimentos inspeccionados.
g) Entende a Requerente que, dadas as circunstâncias de desconhecimento da origem e natureza dos movimentos financeiros, a AT deveria ter seguido por um outro caminho, o da aplicação do regime das manifestações de fortuna, disciplinado pelo art 87º, 1, f) da LGT – porque, exceptuando o exercício de 2012, os depósitos excediam o valor de € 100.000,00, os implicados foram objecto de notificação para comprovar a natureza dos movimentos de depósito e não forneceram, de forma capaz e comprovada, os elementos necessários e suficientes para afastar a tributação em sede de IRS, e por enquadramento na categoria G de rendimentos: o que significa o preenchimento quase integral dos pressupostos desse regime.
h) E que portanto, dada a inexistência de dados concretos sobre a origem e natureza dos acréscimos patrimoniais, a AT não deveria ter seguido o caminho que seguiu, e que foi o de envolver a Requerente naquilo que investigou e apurou quanto ao sócio-gerente da Requerente e quanto à sua esposa, para concluir que os movimentos financeiros a crédito das contas bancárias tituladas por aqueles, não justificados, respeitavam a fundos provenientes de rendimentos / ganhos da atividade da Requerente, que foram omitidos das demonstrações financeiras e para efeitos fiscais.
i) O regime das manifestações de fortuna serviria para possibilitar a concretização de tributações quando não existam elementos que sirvam para comprovar suficientemente a fonte e natureza dos acréscimos e para enquadrá-los tributariamente noutra categoria de rendimentos – não para, a partir de indícios em contas bancárias, extrapolar para os elementos objectivos que são reclamados por uma tributação directa.
j) Ao tributar em IRS como “rendimentos de capitais”, e nomeadamente como “lucros distribuídos”, teria sido cometida uma outra ilegalidade, visto que a esposa do sócio gerente, C..., não é sócia da Requerente, e portanto não pode obter rendimentos dessa natureza.
k) Em suma, entende a Requerente que a AT, sobre a qual alegadamente impende o ónus da prova (art. 74º, 1 da LGT), não logrou, em sede do procedimento de inspecção, obter elementos factuais que demonstrassem, ou sequer indiciassem, a existência da omissão daqueles proveitos e qualquer distribuição de lucros que da mesma pudesse derivar – ficando-se pelo plano das meras suspeitas.
l) E assim, no que respeita à “distribuição de lucros”, a Requerente conclui que se impõe a anulação das liquidações efectuadas.
m) Quanto ao pagamento de ajudas de custo, a Requerente começa por lembrar que foi aplicado o disposto no art. 103º, 4, do CIRS, o qual estabelece a responsabilidade solidária do substituto pelo imposto não retido, quando os rendimentos em causa não tenham sido comunicados aos beneficiários como sujeitos a tributação.
n) Mas como a Requerente não teria mencionado as importâncias respeitantes às ajudas de custo na comunicação dos rendimentos auferidos através da declaração prevista no art. 119º, 1, b) do CIRS, mas a AT não faz prova de que essa comunicação não tenha ocorrido nesses precisos termos, cai a possibilidade de se recorrer à responsabilidade solidária da Requerente – voltando-se ao princípio de que os efectivos contribuintes são os trabalhadores e não a entidade pagadora das ajudas de custo.
o) Nesse caso, prossegue a Requerente, devem os trabalhadores ser notificados e tributados e ser-lhes conferido o direito a reclamar graciosamente ou impugnar judicialmente a liquidação de IRS que afete a sua esfera tributária por via da retenção e enquanto pagamento por conta do imposto devido a final.
p) Insiste a Requerente que a retenção de imposto por conta do imposto devido a final, não libera a AT de diligenciar o apuramento da liquidação global do IRS que compete aos sujeitos passivos em questão, o que só poderá ser feito considerando a totalidade dos rendimentos do seu agregado e os seus encargos e deduções pessoais. Sendo que, no seu entender, só com a liquidação adicional aos trabalhadores se poderá determinar o exacto imposto que resultou em prejuízo dos cofres do Estado.
q) Em suma, as liquidações relativas aos pagamentos de ajudas de custo seriam ilegais por não terem sido efectuadas na pessoa dos supostos beneficiários dos rendimentos imputados.
r) De seguida, a Requerente procura provar que os trabalhadores que foram abonados com ajudas de custo não são sempre exactamente os mesmos que implicaram o pagamento das facturas contabilizadas como gastos com refeições e dormidas, e que portanto a AT cometeu o erro de se guiar por uma mera simultaneidade da ocorrência de gastos. Adicionalmente, sustenta que não há duplicação de gastos, e que a AT não pode colocar em causa a faculdade que a Requerente tem de adoptar critérios distintos na opção que legalmente pode exercer entre atribuir ajudas de custo e suportar os gastos directamente – sendo que são imensas as circunstâncias que podem conduzir, em cada situação, a soluções distintas.
s) E conclui, neste ponto, que se a AT, onerada com a prova, pretendia demonstrar a duplicação de gastos através da simples menção da contabilização de gastos com as duas naturezas, esse esforço é frustrado, porquanto, para tal, teria que realizar uma análise detalhada que pudesse demonstrar que, simultaneamente, os trabalhadores foram beneficiados com ajudas de custo e, ou não realizaram as respetivas deslocações, ou, tendo-o feito, a Requerente pagou directamente as despesas que lhes eram inerentes.
t) A Requerente alega que também neste ponto não há fundamentação bastante na decisão da AT, o que ilustra ainda com a circunstância, que admite, de poderem ter ocorrido situações em que não foi efectuada a dedução do subsídio de almoço em virtude do processamento de ajudas de custo aos trabalhadores – situações que, no seu entender, não provam que a deslocação não se verificou na forma comprovada pelo documento desse processamento, mas, apenas que existiu um erro na atribuição do vencimento, levando à eventual sujeição a IRS do subsídio de refeição atribuído indevidamente.
u) Rematando que, na ausência de fundamentação, quer no ponto respeitante a “lucros distribuídos”, quer no relativo a “ajudas de custo”, as liquidações em causa devem ser anuladas na sua totalidade.
III.B. Posição da Requerida
a) Na sua Resposta, a Requerida mantém o entendimento de que a liquidação controvertida consubstancia uma correcta aplicação do Direito, não enfermando de qualquer vício.
b) Mais especificamente, a Requerida nega que tenha havido violação do princípio do inquisitório por terem sido insuficientes diligências de investigação para reunir os necessários elementos de prova que contrariassem as justificações que tivessem sido ou viessem a ser apresentadas pela Requerente.
c) Nega que as investigações sobre o sócio gerente da Requerente e sobre a sua esposa devessem ter seguido o caminho da aplicação do regime das manifestações de fortuna, sem envolver a Requerente; negando que seja ilegítima a opção pela tributação directa em detrimento da aplicação do regime dos métodos indirectos.
d) E refuta ainda o entendimento de que, nas ajudas de custo, devam ser notificados apenas os trabalhadores e não a entidade pagadora.
e) Relativamente à alegação da caducidade do direito à liquidação, a Requerida sustenta que é evidente a identidade entre os factos a que presidiram à instauração do processo de inquérito e os que constituem o fundamento da liquidação, tudo se tendo originado em ordens de serviço na mesma data, 3 de Novembro de 2016, tendo o prazo para a conclusão dos procedimentos inspectivos ficado suspenso na sequência da instauração do processo de inquérito n.º .../15........., nos termos do artigo 36º, 5, c) do RCPITA, tendo a Requerente sido notificada do facto, e tendo ficado igualmente suspenso o prazo de caducidade do direito à liquidação de impostos, nos termos do artigo 46º, 1, da LGT – apenas tendo sucedido que no procedimento inspectivo não foi comunicado o completo teor do inquérito por força do segredo de justiça, ao abrigo do preceituado no art. 86º, 3, do Código de Processo Penal.
f) Relativamente à “distribuição dos lucros”, a Requerida sustenta que o princípio do inquisitório foi respeitado, e que o sócio gerente da Requerida, e a esposa desse sócio gerente, foram abundantemente solicitados a prestarem todos os esclarecimentos, verbalmente e por escrito – além de que foi reunida abundante documentação, não apenas referente à Requerente mas também a entidades que mantiveram relações comerciais e financeiras com a Requerente (como está documentado no PA), alguma dela inconclusiva porque várias movimentações apareciam classificadas como “ainda não identificado”, outras movimentações omitem as relações com terceiros, e as que não as omitem se cingem a registar transacções comerciais.
g) Isso permitiu ultrapassar as meras suspeitas com o apuramento de factos como:
1. as irregularidades identificadas nos circuitos financeiros da empresa, com o incumprimento do estipulado no art. 63º da LGT e os saldos anormais evidenciados na conta SNC 111 Caixa, demonstrativos da falta de clareza, exatidão e credibilidade dos mesmos;
2. o número muito significativo de movimentos identificados na análise das contas tituladas pelo sócio gerente e esposa, como estando associados à A... (empréstimos concedidos pelo sócio e reembolso dos mesmos, pagamentos a fornecedores, cheques emitidos para particulares associados a entidades relacionadas com a empresa, um número muito significativo de cheques emitidos ao portador, de montante superior €1.000, procedimento atípico de uma conta particular);
3. a falta de comprovação credível das poucas justificações apresentadas para os diversos depósitos em numerário e transferências, identificados nas contas particulares, demonstrativos de que os mesmos respeitavam a fundos provenientes de rendimentos da atividade da A..., que foram omitidos das demostrações financeiras e para efeitos fiscais.
h) No que respeita à quantificação dos rendimentos de capitais, ela foi efectuada de forma directa e exacta, pois os montantes apurados, acrescidos aos rendimentos declarados dos exercícios de 2012 a 2015, resultaram da soma dos créditos (depósitos e transferências) relevados mensalmente, nas contas bancárias particulares, tituladas pelo casal, cuja origem não foi justificada, verificando-se que os montantes não foram estimados ou presumidos, pelo que não se verificaram as condições previstas no art. 87º da LGT, necessárias para a realização de avaliação indirecta.
i) No referente às ajudas de custo processadas no ano de 2012, esclarece a Requerida que se aferiu que as mesmas foram contabilizadas, na totalidade, em 31 de Dezembro de 2012, através de um único lançamento contabilístico (identificador – 2012...), tendo-se verificado, pela análise das folhas de remunerações mensais apresentadas pelo sujeito passivo, que os montantes atribuídos mensalmente, a cada funcionário, não estavam reflectidos nas respetivas folhas de remunerações mensais.
j) No referente às ajudas de custo processadas nos anos de 2013 e 2014, a Requerida lembra que as ajudas de custo constam das folhas de remunerações mensais, na rúbrica de rendimentos com o código “105 – Ajudas de Custo”, tendo-se verificado que esse rendimento mensal, apesar de ser rendimento sujeito a IRS e dele não isento, para efeitos de determinação da taxa de retenção na fonte a aplicar em cada processamento de salários e para cada funcionário abrangido, a empresa não entrou em linha de conta com o montante pago a título de ajuda de custo, pelo que não procedeu à retenção na fonte dos montantes de IRS devidos por lei, incluindo a retenção resultante da aplicação da sobretaxa de 3,5%, conforme consta do art. 187º, 5, da Lei n.º 66-B/2012 (OE 2013).
k) A prova foi obtida recorrendo às folhas de remunerações mensais que constituem o suporte contabilístico do processamento de salários mensal; além de que, pelo seu lado, a declaração prevista no art. 119.º, 1, b) do CIRS, contém os mesmos dados da DMR, sendo que os valores mencionados em cada uma das rúbricas são anuais e não mensais, sendo entregue pela empresa ao funcionário, a fim de o mesmo mencionar a informação nela contida na declaração de rendimentos de IRS, prevista no art. 57º do CIRS.
l) A Requerida esclarece que no RIT não se coloca em causa a legitimidade do contribuinte para a adopção de diferentes critérios quanto à atribuição das ajudas de custo aos diversos colaboradores, em função da localização das obras que dispõe e que implicam encargos com as deslocações (refeições e dormidas) de montantes diversos para os mesmos. Mas que o que, no seu entender, resulta claro é que se descobriu uma duplicação de encargos com deslocações e estadas afectos aos facto de a Requerente dispor de diversas obras, sitas em local distante da sua sede – através da análise conjugada dos mapas de suporte das ajudas de custo, contabilizadas mensalmente via gastos com pessoal (conta SNC 6388), e dos documentos de suporte dos gastos com deslocações e estadas, contabilizados mensalmente na conta SNC 62512.
m) Daí, no entender da Requerida, impor-se a conclusão de que os montantes mensais auferidos pelos funcionários a título de ajudas de custo constituiriam um complemento salarial dos mesmos, atendendo a que as refeições e alojamento foram fornecidos pela empresa.
n) A reforçar esse entendimento, a verificação de que o montante mensal auferido a título de “Ajuda de Custo” é bastante significativo face ao montante atribuído a título de “Vencimento Base”, como fica ilustrado particularmente nos exercícios de 2012 e 2013:
•Ano 2012:
Total Remunerações Base - €104.250,83;
Total Ajudas de Custo - €175.631,50;
Peso das Ajudas de Custo nas Remunerações – 168%.
•Ano 2013:
Total Remunerações Base - €101.432,50;
Total Ajudas de Custo - €195.043,91;
Peso das Ajudas de Custo nas Remunerações – 192%.
•Ano 2014:
Total Remunerações Base - €142.190,37;
Total Ajudas de Custo - €86.492,61
Peso das Ajudas de Custo nas Remunerações – 61%.
•Ano 2015:
Total Remunerações Base - €177.849,30;
Total Ajudas de Custo - €121.940,00;
Peso das Ajudas de Custo nas Remunerações – 69%.
o) A Requerida remata a sua Resposta com o argumento de que ficou verificada a inexistência de qualquer erro imputável aos serviços na emissão das liquidações impugnadas, pelo que improcede, por infundado, qualquer pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
IV. Sobre o mérito da causa
IV.1. Uma Recapitulação dos factos
Nas acções inspectivas promovidas ao sócio-gerente da Requerente, B..., e à esposa deste, C..., ambos forneceram a informação e esclarecimentos solicitados – e foi com base nessas informações e no acesso às contas bancárias que a AT veio a concluir que, estando verificado que existia mistura dos movimentos financeiros de âmbito particular com os referentes à atividade empresarial da Requerente, as verbas depositadas nas suas contas bancárias, cuja explicação não foi aceite, respeitavam a fundos provenientes de rendimentos / ganhos da Requerente, omitidos às demonstrações financeiras e as declarações fiscais desta.
No que toca ao IRS, o sócio-gerente e a esposa ter-se-iam, assim, apropriado dos valores correspondentes às vendas / serviços prestados omitidos em facturação (para efeitos de IVA) e em declarações de ganhos para efeitos de IRC.
Foram esses valores omitidos que, enquadrados como lucros distribuídos, face ao disposto no art. 5º, 2, h) do CIRS, deram origem à primeira parte das liquidações adicionais de IRS (por aplicação da taxa de retenção na fonte a título definitivo de 28%, com base no disposto no art. 71º, 1, a) do CIRS)
Quanto ao pagamento de ajudas de custo, a análise, pela Inspecção Tributária, dos gastos contabilizados pela Requerente levaram à conclusão de que os montantes auferidos pelos seus funcionários a título de ajudas de custo constituíram, antes, um complemento salarial dos mesmos, atendendo a que as refeições e o alojamento foram fornecidos pela própria Requerente – uma conclusão reforçada pela constatação de não ter sido efectuada a dedução do subsídio de refeição incluído no salário processado, conforme determinado pelo art. 37º do Decreto-Lei nº 106/98, de 24 de Abril.
A AT constatou ainda que a Requerente não havia feito operar qualquer retenção sobre os montantes das ajudas de custo pagas, seja a título de IRS, seja reportada à sobretaxa de 3,5%, conforme previsão do art. 187º, 5, da Lei nº 66-B/2012, pelo que procedeu ao cálculo das retenções que deveriam ter sido efetuadas, considerando a situação particular de cada trabalhador.
Estabelecendo que a Requerente não havia feito constar, das declarações de comunicação de rendimentos entregues a cada trabalhador, o valor anual pago como ajudas de custo, a AT entendeu que os montantes não retidos seriam de exigir ao Requerente, na qualidade de substituto tributário, ao abrigo do previsto no art. 103.º 4,° do CIRS. E é esta segunda parte que, somada à primeira, perfaz no total, ano a ano, as liquidações de IRS impugnadas pela Requerente nos presentes autos.
IV.2. Questões a decidir
A Requerente alega que os actos tributários enfermam de ilegalidade, por erro nos pressupostos de facto e por erro nos pressupostos de direito, nomeadamente:
1. Caducidade do direito à liquidação do exercício de 2012
2. Falta de fundamentação dos actos tributários
3. Violação do princípio do inquisitório
4. Incorrecta requalificação de factos tributários
Analisemo-las uma por uma, tendo por irrelevante a ordem do seu conhecimento, já que o estabelecimento de uma ordem de conhecimento de vícios só se justifica quando a eventual procedência dos vícios de conhecimento prioritário torne desnecessário o conhecimento dos restantes – o que não se afigura ocorrer neste caso.
IV.2.1. Caducidade do direito à liquidação do exercício de 2012
Afigura-se clara a identidade entre os factos que presidiram à instauração do processo de inquérito e os que constituem o fundamento da liquidação, estando todos identificados em ordens de serviço na mesma data, 3 de Novembro de 2016, tendo o prazo para a conclusão dos procedimentos inspectivos ficado suspenso na sequência da instauração do processo de inquérito n.º .../15........., nos termos do artigo 36º, 5, c) do RCPITA, e tendo a Requerente sido notificada do facto.
A Requerente sabe portanto, desde a data da notificação, que ficou igualmente suspenso o prazo de caducidade do direito à liquidação de impostos, nos termos do artigo 46º, 1, da LGT.
Por outro lado, não pode a Requerente alegar com o desconhecimento do teor completo do processo de inquérito – por força do segredo de justiça, ao abrigo do preceituado no art. 86º, 3, do Código de Processo Penal – porque evidentemente não depende, nem poderia depender, de um tal tipo de conhecimento a suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação de impostos; pois, a entender-se de outro modo, para se alcançar tal efeito teria que se cometer uma ilegalidade, a da violação do próprio segredo de justiça. Seria, a acontecer, uma ilegalidade estimulada, paradoxalmente, pela própria lei!
Em suma, no caso vertente não caducou o direito à liquidação do exercício de 2012.
IV.2.2. Falta de fundamentação dos actos tributários
A minúcia e exaustividade das demonstrações e cálculos contidos no RIT parece corresponder ao preenchimento dos requisitos de que depende a verificação do dever de fundamentação.
Tem-se entendido na doutrina e na jurisprudência que a fundamentação, até por causa do imperativo da clareza, deve ser simples, sem deixar de ser plena.
Implica isso que, se a fundamentação se encontra já formulada completamente num determinado passo de um procedimento ou processo, é mais do que desnecessário, por redundância, repeti-la: pode ser até contraproducente, convertendo-se numa penosa reformulação de tudo o que já foi dito, de tudo o que já foi argumentado, de tudo o que já foi documentado – contribuindo presumivelmente para a entropia informativa por excesso, redundando, no final, em desinformação e vulnerabilização daquele a quem a informação deveria precipuamente aproveitar, que é o seu destinatário: esse o princípio que dita a solução consagrada no art. 77º da LGT.
Nesse mesmo sentido reconheceu-se já, em sede de arbitragem tributária, que “quando o ato tributário (liquidação adicional de imposto, por exemplo) surge na sequência e em consequência dum procedimento inspetivo levado a cabo pela Administração Fiscal, a dialética ou diálogo que necessariamente se estabelece entre o contribuinte e a inspeção tributária, hão-de tornar difícil, em princípio, o não cumprimento ou até o cumprimento deficiente desse ónus de fundamentação na medida em que a decisão final se vai construindo ao longo desse processo com a participação do contribuinte” .
O contexto procedimental / processual não é, em suma, indiferente para se aferir em concreto a adequação da fundamentação produzida. Como se conclui numa outra decisão arbitral, “Deverá, desde logo, ser afastada a hipótese de existência de nulidade por falta de fundamentação, já que é bem patente a existência de um processo administrativo com junção de elementos probatórios, funcionamento do contraditório, fundamentação, conclusões […] Ou seja, todos os despachos decisórios que conduziram à liquidação contestada ou à confirmação da sua correcção, foram precedidos de informações dos serviços contendo todos os fundamentos, de facto e de direito, necessários à plena compreensão de como foi calculado o valor [§] Assim, verifica-se que o acto foi praticado num contexto procedimental susceptível de permitir ao seu destinatário ficar a saber as razões de facto e de direito […]” .
Daí que seja entendimento firmado na própria jurisprudência arbitral que a alusão a “sucinta exposição” no art. 77º, 1 é para ser tomada à letra: “o que importa é que, ainda que resumidamente ou de forma sucinta, se conheçam as premissas do ato e se refiram todos os motivos determinantes do conteúdo resolutório”
As mesmas razões de economia e racionalidade de meios, aditadas à consciência de que a fundamentação se vai, não raro, adensando “dialogicamente” ao longo do processo, têm levado a jurisprudência a reconhecer que a fundamentação excessivamente minuciosa pode ser o contrário daquilo que teleologicamente se visa com uma verdadeira fundamentação – dispensando minúcias ainda onde elas notoriamente não contribuíssem já para a partilha de informação entre administração e contribuintes, numa espécie de efeito de “rendimento marginal decrescente” da própria informação. Daí que a referência a princípios, a regimes, ou a quadros normativos, possa dispensar a enunciação completa de tudo o que corresponde a esses princípios ou a esses regimes ou a esses quadros normativos.
“Nos actos de liquidação de IRS, atenta a sua natureza de “processo de massa”, o dever de fundamentação é cumprido pela Administração fiscal de forma “padronizada” e “informatizada”, mas sem que possa deixar de observar o disposto no n.º 2 do artigo 77.º da LGT ou de pôr em causa as finalidades do direito à fundamentação.” .
Admite-o também a Lei. Lembremos a consagração desse mesmo princípio no nº 3 do art. 153º do CPA:
“Na resolução de assuntos da mesma natureza, pode utilizar-se qualquer meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde que tal não envolva diminuição das garantias dos interessados.”
Ressalve-se que, por uma questão de igualdade de armas, o conhecimento do itinerário cognoscitivo, valorativo e volitivo que culminou na escolha dos valores da liquidação, e não de outros quaisquer, incumbe à entidade autora do acto, não sendo concebível que recaia sobre o contribuinte o ónus de enunciar ele próprio os argumentos fundamentadores do acto impugnado, para de seguida os poder aceitar ou contradizer: esse o sentido do dever de fundamentação consagrado genericamente no art. 268º da Constituição e no art. 77º da LGT.
Em contrapartida, não poderá deixar de se levar em conta que o discernimento do concreto destinatário da fundamentação é um elemento a ser ponderado para se aferir se, sim ou não, a fundamentação lhe propiciou a ele, em concreto a ele e naquelas precisas circunstâncias – e não noutras mais remotas ou abstractas – a formulação de um juízo consciente sobre a conveniência de aceitar ou impugnar, graciosa ou contenciosamente, o acto.
Na verdade, a fundamentação envolve também uma aferição pela sua eficácia, ou seja, pela “impressão do destinatário” – não no sentido de ela dispensar a verificação dos requisitos objectivos da sua verificação (até porque, lembremos, não é somente da protecção dos interesses do destinatário, da “função garantística” da fundamentação, que se trata, estando também em jogo a própria transparência e correcção objectiva do processo decisório, a “função endógena” da fundamentação ), nem no sentido psicologista de se remeter a uma indagação dos estados subjectivos de convicção do destinatário (o que seria impossível), mas sim no sentido de essa fundamentação ter a respectiva clareza avaliada pelo padrão do declaratário médio ou do declaratário concreto se este dispuser de mais informação do que o declaratário médio – como resulta do princípio geral consagrado no art. 236º, 1 e 2, do Código Civil.
É aliás, no nosso entendimento, esse princípio geral da “impressão do destinatário” que confere autonomia à questão formal da fundamentação, que é essencialmente uma questão de acesso à informação relativa aos motivos que levaram a Administração a actuar como actuou, as razões em que fundou a sua actuação – e que tem que ser separada dessa outra dimensão material da fundamentação, que se refere à validade substancial do acto, respeitante à correspondência desses motivos à realidade, e à suficiência dessa correspondência para legitimar a concreta actuação administrativa .
Sendo que é no plano formal – demarcando-o por sua vez do tema da notificação, que não se confunde com ele – que se indaga autonomamente sobre o cumprimento do dever de fundamentação, remetendo as questões materiais para a apreciação do mérito.
Como lapidarmente se estabelece numa decisão arbitral, “No caso em apreciação, verifica-se que a Requerida Autoridade Tributária deu a conhecer, através do relatório de inspeção, a fundamentação pela qual, na perspetiva daquela, a Requerente não podia deixar de incluir no valor tributável para efeitos de IVA o valor relativo à subvenção em apreço. [§] Ora, do teor do relatório de inspeção que subjaz à liquidação de IVA e JC, resultam de forma expressa, suficiente e congruente as razões de facto e de direito em que se respalda tal posicionamento da Autoridade Tributária. [§] Se estes pressupostos e razões aportados pela Autoridade Tributária para o relatório inspetivo são ou não substantivamente válidos é questão que tem a ver com o mérito e já não com a forma e que, portanto, se coloca numa outra dimensão de que não cumpre, neste ponto, conhecer. [§] In casu, fica patenteado o critério (mal ou bem) trilhado pela Autoridade Tributária.” .
Admitamos, em contrapartida, que não seria razoável daí inferir que toda a reacção jurídica do contribuinte revelaria, ipso facto, a “impressão do destinatário” demonstrativa da suficiência da fundamentação – até pela elementar razão de que entender uma fundamentação não é aceitar essa fundamentação, nem considerá-la sequer verdadeira, adequada ou completa.
Como já se observou em sede arbitral, “Este argumento, tal como é apresentado, improcede e podia mesmo conduzir, em tese, à inadmissibilidade da invocação (ou à irrelevância da consideração) do vício de falta de fundamentação dos actos caso o sujeito passivo recorresse aos Tribunais (fossem arbitrais ou judiciais). O facto de se apresentar um pedido de pronúncia não permite demonstrar, por si, que o acto estava devidamente fundamentado” .
Mas, de acordo com o princípio geral da relevância do conhecimento, pelo declaratário, da vontade real do declarante, como estabelecido no nº 2 do art. 236º do Código Civil, não pode ser juridicamente indiferente, para a aferição da suficiência da fundamentação, a conduta do declaratário que seja reveladora da compreensão concreta, real, contextual, daquilo que foi transmitido juntamente com a decisão.
A doutrina afirma-o, aceitando que esteja cumprido o dever de fundamentação se, pela posição que toma e argumentos que utiliza, se evidencia que o contribuinte apreendeu as razões ou motivações, de facto e de direito, do autor do acto .
É da “impressão do destinatário”, para pedirmos emprestada a categoria civilística, que se trata neste critério de ponderação quanto ao preenchimento dos requisitos da fundamentação, ao menos na sua teleologia “garantística”; e isso fica perfeitamente plasmado na fórmula canónica da jurisprudência dos tribunais superiores: “Segundo a jurisprudência uniforme deste STA, e atendendo à funcionalidade do instituto da fundamentação dos actos administrativos, ou seja, ao fim instrumental que o mesmo prossegue, um acto estará devidamente fundamentado sempre que um destinatário normal possa ficar ciente do sentido dessa mesma decisão e das razões que a sustentam, permitindo-lhe apreender o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pela entidade administrativa, e optar conscientemente entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação” .
Em suma, e pelas razões que precedem, temos que os actos tributários impugnados nos presentes autos não enfermam de falta de fundamentação.
IV.2.3. Violação do princípio do inquisitório
De algum modo, o entendimento sobre este ponto decorre do que ficou estabelecido no ponto anterior: se concluímos que o RIT é minucioso e completo nas demonstrações e cálculos, e que daí pudemos até inferir o preenchimento do dever de fundamentação, então é porque foi cumprido o dever estabelecido no art. 58º da LGT quanto à realização de “todas as diligências necessárias (…) à descoberta da verdade material”, e não ocorreu nenhum vício procedimental de omissão de actos de inspecção, que especificamente redundasse em desconsideração pelas justificações apresentadas pela Requerente, ou de conflito com essas justificações, ou não lograsse passar do plano das meras suspeitas.
Resulta claro do RIT e da demais documentação junta ao PPA, e do PA junto à resposta da Requerida, que o sócio gerente da Requerente, e a esposa desse sócio gerente, foram repetidamente solicitados a prestarem esclarecimentos, e foi reunida abundante documentação, não apenas referente à Requerente mas também a entidades que mantiveram relações com a Requerente.
Nem toda a informação prestada era credível e conclusiva, mas não se vislumbra que isso se deva a uma violação do princípio do inquisitório, antes parece dever-se a inexatidões, obscuridades e omissões documentais e contabilísticas que a própria documentação junta aos autos evidencia.
Em suma, não se vislumbra qualquer violação do princípio do inquisitório.
IV.2.4. Incorrecta requalificação de factos tributários
Quanto à alegação de que teria ocorrido errónea qualificação de rendimentos, dividamos os factos referentes a “distribuição dos lucros”, por um lado, dos factos respeitantes a “ajudas de custo”, por outro.
Relativamente à “distribuição dos lucros”, foram apurados factos como irregularidades identificadas nos circuitos financeiros da empresa, um número muito significativo de movimentos identificados na análise das contas tituladas pelo sócio gerente e esposa, como estando associados à Requerente, ou a falta de comprovação credível das poucas justificações apresentadas para os diversos depósitos em numerário e transferências, identificados nas contas particulares, demonstrativos de que os mesmos respeitavam a fundos provenientes de rendimentos da atividade da Requerente, mas que foram omitidos das demostrações financeiras e para efeitos fiscais.
Em resultado dessa determinação de factos, os montantes apurados, acrescidos aos rendimentos declarados dos exercícios de 2012 a 2015, resultaram da soma dos créditos relevados mensalmente, nas contas bancárias particulares, tituladas pelo casal (sócio gerente e esposa), cuja origem não foi justificada, verificando-se que os montantes não foram estimados ou presumidos, pelo que não se verificaram as condições previstas no art. 87º da LGT, necessárias para a realização de avaliação indirecta.
Por força das presunções relativas a rendimentos da Categoria E, cabia ao sócio gerente da Requerente fazer prova de que os factos apurados não correspondiam a “lançamentos a seu favor (…) feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros” (art. 6º, 4 do CIRS). Como essa prova não foi feita, passa a considerar-se que houve mesmo “distribuição dos lucros” e que sobre ela não se operou a retenção na fonte que é imposta pelo art. 71º, 1, a) do CIRS.
Relativamente às “ajudas de custo”, novamente resulta da matéria de facto provada que houve um desvirtuamento da natureza dessas denominadas “ajudas de custo”, que passaram a servir de meios de remuneração mensal pela Requerente, constituindo “complementos salariais” dos funcionários da Requerente, além de não terem sido, até na sua qualificação de “ajudas de custo”, sujeitos à retenção na fonte de IRS nos montantes devidos por lei, incluindo a retenção resultante da aplicação da sobretaxa de 3,5%, conforme consta do art. 187º, 5, da Lei n.º 66-B/2012 (OE 2013).
Assim, provado que ficou que a Requerente pagara rendimentos de trabalho dependente, de Categoria A, que qualificou, indevidamente, como “ajudas de custo” – também por ultrapassagem dos limites estabelecidos no art. 2º, 3, d) do CIRS –, impunha-se a conclusão de que tinham sido omitidas as correspondentes declarações, e as retenções na fonte que eram devidas, nos termos do art. 99º do CIRS; assumindo a Requerente, que como substituto tributário deveria ter procedido à retenção, responsabilidade (solidária) pelo imposto não-retido, nos termos do art. 103º, 4 do CIRS.
Em suma, a matéria de facto provada demonstra que as liquidações impugnadas não assentaram em incorrecta requalificação dos factos tributários.
V. Decisão
Em face de tudo quanto antecede, decide-se:
Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral de declaração de ilegalidade dos actos de liquidação adicional de IRS e juros compensatórios objeto dos autos, apresentados à Requerente e referidos aos anos de 2012, 2013, 2014 e 2015.
VI. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em €324.632,58, nos termos do disposto no art. 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VII. Custas
Custas a cargo da Requerente, dado que o presente pedido foi julgado improcedente, no montante de €5.508,00, nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT.
Lisboa, 26 de Novembro de 2018
Os Árbitros
José Poças Falcão
(Presidente)
Sofia Ricardo Borges
(Vogal)
Fernando Araújo
(Vogal)