DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
I. RELATÓRIO
a) A..., doravante designada por Requerente, com o NIF ... e residência fiscal na Rua..., n.º ... – ..., ...-... Lisboa, tendo sido notificada, por Ofício n.º ... de 14/08/2018, da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que deduziu contra a liquidação adicional de Imposto do Selo da verba 1.1. da TGIS que lhe foi notificada pelo Ofício n.º..., de 20/11/2017, no montante de €3.600,00, com o fundamento de que a aquisição da fração autónoma designada pela letra “M”, correspondente ao sexto andar, destinado a habitação, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito em ..., na Rua..., números... a ..., freguesia de ..., Concelho de Lisboa, inscrito na matriz predial sob o artigo ...º, que realizou, em processo judicial, em 15/06/2016, não foi efetuada a uma empresa insolvente, veio em 31 de Agosto de 2018, deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT).
b) A Requerente pede ao Tribunal: (a) que seja “declarada a ilegalidade da liquidação de IS e, bem assim, do consequente ato de indeferimento da reclamação graciosa apresentada, com vista à anulação dos referido ato tributário relativo à aquisição pela Requerente, em 15/06/2016, da fração autónoma designada pela letra “M”, correspondente ao sexto andar, destinado a habitação, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito em ..., na Rua..., números ... a..., freguesia de..., Concelho de Lisboa, inscrito na matriz predial sob o artigo...”; (b) “ser reembolsada à Requerente, a quantia de € 3 600,00, referente ao pagamento indevido da liquidação supra referida”; (c) “ser condenada a AT no pagamento de juros indemnizatórios à Requerente, devidos pelo pagamento indevido da liquidação ilegalmente emitida”.
c) O pedido de constituição do TAS foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT no dia 31-08-2018.
d) Pelo Conselho Deontológico do CAAD foi designado árbitro o signatário desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 21.09.2018, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
e) O Tribunal Arbitral Singular (TAS) encontra-se, desde 08 de Novembro de 2018, regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto deste dissídio (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 30.º, n.º 1, do RJAT).
f) A fundamentar o pedido invoca a Requerente o seguinte:
g) Quanto à ilegalidade da liquidação e da decisão que lhe indeferiu a reclamação graciosa refere que “A Reclamante entende que ao proceder à liquidação adicional de IS, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) violou as suas legítimas expectativas e garantias anteriormente constituídas e, bem assim, o princípio da confiança e segurança jurídica, além de ter violado os princípios da legalidade tributária, da proibição da retroatividade da lei fiscal e da boa fé”. Sendo que
h) “... apesar de não concordar com a interpretação de que a isenção de IS concedida ao abrigo do artigo 269.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) não se aplica a operações no âmbito de insolvência pessoal, entende a Requerente que a revogação da isenção concedida apenas poderia efetivar-se no prazo de um ano após a respetiva concessão”. E pela razão de que
i) “... a isenção de IS prevista no artigo 269.º do CIRE consubstancia um benefício fiscal e a sua concessão configura um ato constitutivo de direitos do beneficiário, neste caso da Requerente”. E que,
j) “ainda que se admita que a AT tem fundamento para revogar a isenção concedida, para além de representar uma diminuição dos direitos adquiridos da Reclamante, tal revogação estaria sempre sujeita ao prazo legalmente previsto para o efeito”, como se retira da citação de “António Lima Guerreiro (in Lei Geral Tributária Anotada”, Editora Rei dos Livros, página 343), “os actos administrativos em matéria fiscal que sejam constitutivos de direitos só podem, pois, ser revogados com fundamento em invalidade, nos termos e prazos do artigo 141.º do CPA”.”
k) E “conforme disposto no artigo 168.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo, o ato constitutivo de direitos apenas pode ser objeto de anulação administrativa dentro do prazo de um ano.”
l) E conclui: “tendo a isenção de IS sido concedida em 31/05/2016, a respetiva anulação apenas poderia ocorrer até 31/05/2017”, conforme se pode retirar do “Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 15/05/2013, onde se concluiu o seguinte: (I) Na determinação das consequências jurídicas da invalidade de acto administrativo em matéria tributária de concessão de benefício fiscal, no conspecto da possibilidade legal da sua revogação, há que aplicar as normas do CPA em conformidade com o que dispõe o artigo 2.º do CPPT. (II) – O acto de revogação de benefício fiscal de isenção de tributo, que produz efeitos ex tunc e ocorre mais de um ano depois do acto concedente da isenção, é ilegal por violação do disposto no artigo 141.º do CPA” e das decisões arbitrais tiradas nos processos CAAD n.º 519/2016-T e nº 27/2017-T.
m) Pelo que “tendo a AT revogado a concessão do benefício após o decurso do prazo de um ano, este ato de revogação e a respetiva liquidação adicional de IS são ilegais”.
n) Termina referindo que “em termos sucintos, a fundamentação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa baseia-se no argumento de que o procedimento de liquidação adicional do IS “configura-se como um acto de liquidação e não como um acto administrativo revogatório de acto anterior concedente de benefício fiscal, porque este efectivamente nunca existiu”. “Ora, tal fundamentação não colhe e contraria a jurisprudência do STA e do Tribunal Arbitral sobre a matéria, pelo que a liquidação do IS e o indeferimento da reclamação graciosa devem ser considerados ilegais, pelos motivos já expostos”.
o) Relativamente ao pedido de juros indemnizatórios refere que entende ter a eles direito pelo pagamento indevido da liquidação de IS ilegal, com fundamento nos artigos 43º-1 da LGT e 100º do CPPT.
p) Notificada a Requerida, respondeu em 12.12.2018, defendendo-se por impugnação nos termos seguintes:
q) Quanto ao âmbito de aplicação da isenção da alínea e) do artigo 269º do CIRE, refere que face à redacção desta disposição legal “esta isenção abrange assim todos os actos integrados no âmbito de planos de insolvência ou de pagamentos, ou de liquidação da massa insolvente, com a reserva de o insolvente ser uma empresa ou estabelecimento”, conforme o Acórdão do STA, de 03.07.2013, proferido no Recurso 765/13.
r) Acrescentando que “com o mesmo entendimento, mencionam-se as decisões proferidas nos processos arbitrais nºs 558/2015-T, 136/2016-T, 368/2016-T, 512/2016-T, 514/2016-T e 518/2016-T, que acolheram a interpretação defendida pela Autoridade Tributária relativamente a esta questão”.
s) E conclui “... no caso em questão não há dúvida que a liquidação de IS é legal por não se verificarem os pressupostos constantes no artigo 269º do CIRE”.
t) Quanto ao argumento “da Requerente de que a revogação do benefício fiscal é ilegal por violação dos artigos 140.º e 141.º do CPA,...” entende que improcede.
u) Refere o seguinte: “Contrariamente ao invocado pela Requerente, não existiu qualquer acto constitutivo de direitos, porque, o benefício constante do 269º do CIRE é um benefício automático nos termos do artigo 5º do EBF”, uma vez que “o artigo supra citado determina que os Benefícios fiscais automáticos são os que resultam directa e imediatamente da lei, por contraposição aos benefícios dependentes de reconhecimento, que pressupõem um ou mais actos posteriores de reconhecimento”.
v) E acrescenta: “por sua vez o nº 8 alínea d) do artigo 10º do CIMT, sobre reconhecimento das isenções e dispõe: «são de reconhecimento automático, competindo a sua verificação e declaração ao serviço de finanças onde for apresentada a declaração prevista no n.º 1 do artigo 19.º, as seguintes isenções: (Redação dada pelo artigo 97.º da Lei 64-A/2008, de 31 de Dezembro). (…) d) As isenções de reconhecimento automático constantes de legislação extravagante ao presente código. (Redação dada pelo artigo 97.º da Lei 64-A/2008, de 31 de dezembro).»”
w) Resultando “...da análise destas disposições legais ... que a isenção do artigo 269º do CIRE é automática, decorre directamente da lei e não existe uma análise prévia nem verificação prévia dos pressupostos de isenção, e também não existe um acto de atribuição de isenção”, esclarecendo que “o que acontece é que o SP apresenta uma declaração prevista no n.º 1 do artigo 19.º do CIMT, e só posteriormente é que a AT fiscaliza, analisando a verificação dos pressupostos da isenção, conforme dispõe o artigo 7.º do EBF.” “Este normativo determina que o reconhecimento dos benefícios está sujeito a controlo e após esse controlo, é que é aferida a verificação dos pressupostos da isenção,” “ pelo que, em rigor, o documento emitido a fim de ser realizada a escritura pública de compra e venda, não é uma verdadeira liquidação nem um documento de isenção, pelo que não há nesse momento, a constituição de um direito ao benefício fiscal”, como se decidiu na decisão CAAD de 28/02/2017 proferida no Processo 518/2016-T.
x) E conclui: “Ora, esta liquidação de imposto não pode ser considerada uma revogação de isenção, conforme foi considerado também na decisão CAAD de 21/08/2015, no Processo 834/2014-T, tese à qual aderimos, e onde, estando em causa também um benefício automático, se concluiu: «que o procedimento ocorrido posteriormente à efectiva fiscalização dos pressupostos indicados na declaração como fundamento do benefício se configura como liquidação e não acto administrativo revogatório de acto anterior concedente de benefício fiscal.»”, pelo que “... não se verificando os pressupostos legais para o Autor poder beneficiar da isenção de IS, nos termos da alínea e) do artigo 269º do CIRE, a administração tributária não podia deixar de liquidar o imposto devido, desde que respeitado o prazo de caducidade, que, no caso dos impostos de obrigação única, como o é o Imposto de Selo, da data em que o facto tributário ocorreu (conforme artigo 45.º, n.ºs 1 e 4, da LGT).”
y) A AT não se pronunciou - expressamente - sobre o pedido de reembolso de imposto pago e sobre o pedido de condenação em juros indemnizatórios.
z) Por despacho de 12.12.2018 foi dispensada a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, conferido prazo para apresentação de alegações escritas, se as partes optassem por esta forma. Nenhuma das partes apresentou alegações.
aa) Por despacho de 22.02.2019 foi designado o dia 11 de Março de 2019 como prazo limite para a prolação da decisão arbitral.
II - SANEAMENTO
bb) As partes são legítimas, gozam de personalidade jurídica e de capacidade judiciária e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
cc) O pedido de pronúncia foi apresentado em 31.08.2018 e a notificação da decisão que recaiu sobre o a reclamação graciosa foi levada a efeito pela AT através do Ofício n.º ... de 14/08/2018, pelo que se verifica a tempestividade na sua apresentação nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.
dd) O procedimento arbitral não padece de nulidades.
Cumpre apreciar.
III - MÉRITO
III-1- MATÉRIA DE FACTO
• Factos dados como provados
Considera-se dada como provada a seguinte matéria de facto:
a) Em 31 de Maio de 2016 a Requerente apresentou a declaração Modelo 1 do IMT para liquidação de IMT e Imposto do selo, com o registo n.º 2016.... Nesta mesma data, foi emitida em seu nome, pelo sistema informático da AT, a liquidação de IS - Verba 1.1 da TGIS, DUC n.º 2016..., referente à aquisição de uma fracção autónoma de imóvel em propriedade horizontal indicada na alínea seguinte, com 0,00 euros de imposto a pagar, constando o seguinte em “alienante do Bem – 1”:
- conforme artigo 8º do PPA, artigo 6º da Resposta e página 14/21 do PA junto pela AT com a Resposta;
b) A Requerente adquiriu em 15 de Junho de 2016, a fração autónoma designada pela letra “M”, correspondente ao sexto andar, destinado a habitação, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito em ..., na Rua ..., números ... a..., freguesia de ..., Concelho de Lisboa, inscrito na matriz predial sob o artigo ...º M, no âmbito de processo de insolvência de B... (contribuinte n.º...) que correu termos nos Juízos Cíveis de Lisboa, ... Juízo Cível, sob o n.º .../13... YXLSB – conforme artigos 6º e 7º do PPA, artigo 6º da Resposta e página 2/3 do Documento nº 1 em anexo ao PPA (informação da AT);
c) Em 27 de Novembro de 2017, a Requerente foi notificada pelo Ofício n.º..., de 20 de Novembro de 201, para proceder ao pagamento da liquidação adicional de IS no montante de € 3.600,00 e em 10 de Janeiro de 2018 foi emitida à Requerente a liquidação n.º 2018...– conforme artigos 9º e 10º do PPA e página 16/21 do PA junto pela AT com a Resposta;
d) Em 16 de Fevereiro de 2018 a Requerente pagou o valor de IS que lhe foi liquidado adicionalmente – conforme artigo 11º do PPA, Documentos nº 4 e 5 juntos com o PPA e página 11/21 do PA junto pela AT com a Resposta;
e) Em 21 de Fevereiro de 2018 a Requerente, não se conformando com a liquidação adicional, apresentou a reclamação graciosa que tomou o nº ...2018... e pelo Ofício n.º..., de 14 de Agosto de 2018, foi notificada do seu indeferimento, com a seguinte fundamentação:
“Através da presente, vem a reclamante solicitar a sua anulação, dado que a revogação do benefício fiscal de isenção do tributo ocorreu mais de um ano após a sua concessão;
Ora, de acordo com o nº 1 do artigo 5.º do EBF os benefícios fiscais são automáticos ou dependentes de reconhecimento: os primeiros resultam directa e imediatamente da lei, os segundos pressupõem um ou mais actos posteriores de reconhecimento;
Já o n.º 4 do artigo 23.º do CIS, no caso da Verba 1.1, sujeita a liquidação às regras do CMT;
Com a redação da Lei nº 64-A/2018 (OE- 2009), o artigo 10º do CIMT passou a distinguir de forma mais desenvolvida os casos de isenções de reconhecimento prévio e de reconhecimento automático, existindo uma distinção nítida entre elas;
O nº 8 deste artigo, identifica as isenções que são de reconhecimento automático, onde estão incluídas as constantes de legislação extravagante ao código (alínea - d), referindo que compete a sua verificação e declaração ao Serviço de Finanças onde for apresentada a declaração prevista no nº 1 do artigo 19º;
Pode dizer-se que este nº 8 classifica como benefícios de reconhecimento automático situações em que o benefício se prende com elementos objectivos, nalguns casos apenas confirmáveis posteriormente e em que a AT parte do princípio de que a declaração do sujeito passivo é base suficiente para se dar como reunido o pressuposto da isenção, o que acontece no caso em apreço;
Apesar da intervenção da AT, estamos perante um procedimento não muito diferente do correspondente ao da autoliquidação efectuada petos contribuintes. Os elementos declarados servem para a imediata introdução no “sistema” com vista a obter o respetivo meio de pagamento (isenção), partindo-se do pressuposto que se verificam os elementos declarados, não existindo uma intervenção autónoma da AT sobre os dados;
Assim, o procedimento ocorrido posteriormente à efectiva fiscalização dos pressupostos indicados na declaração como fundamento do benefício e que esteve na origem da presente reclamação, configura-se como um acto de liquidação e não como um acto administrativo revogatório de acto anterior concedente de benefício fiscal, porque este efectivamente nunca existiu.” - conforme artigos 12º e 13º do PPA, pontos 4 e 5 do artigo 6º da Resposta da AT e página 3/3 do documento nº 1 junto com o PPA;
f) Em 31 de Agosto de 2018 a Requerente entregou no CAAD o presente pedido de pronúncia arbitral (ppa) – registo de entrada no SGP do CAAD do pedido de pronúncia arbitral.
• Factos não provados.
Não existe outra factualidade alegada que não tenha sido considerada provada e que seja relevante para a composição da lide processual.
• Fundamentação dos factos provados e não provados
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (conforme artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (conforme anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, indicando-se, por cada ponto levado à matéria de facto assente, os meios de prova que se consideraram relevantes, como fundamentação.
III-2- DO DIREITO
São as seguintes as questões de direito a decidir:
• Se a isenção aqui em discussão deve considerar-se como sendo um “benefício fiscal automático” nos termos do nº 1 do artigo 5º do EBF, como defende a AT;
• Caso não deva considerar-se que se trata de um “benefício fiscal automático” nos termos do nº 1 do artigo 5º do EBF, se poderia ser afastado através de uma liquidação adicional, com fundamento em ilegalidade na sua atribuição, para além do prazo de 1 ano, contado sobre a data da sua “verificação e declaração”.
III-2-Quanto ao mérito
A) A isenção de imposto do selo resultante da alínea e) do artigo 269º do CIRE deve considerar-se um “benefício fiscal automático” nos termos e para os efeitos do nº 1 do artigo 5º do EBF?
Em primeiro lugar, cumpre referir que a Requerente, muito embora refira “não concordar com a interpretação de que a isenção de IS concedida ao abrigo do artigo 269.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) não se aplica a operações no âmbito de insolvência pessoal” (artigo 15º do PPA), apenas coloca em causa que “a revogação da isenção concedida apenas poderia efetivar-se no prazo de um ano após a respetiva concessão”.
Portanto, a questão central a decidir gira em torno de saber se a isenção de Imposto do Selo aqui em causa, deve considerar-se que é um “benefício fiscal automático” nos termos e para os efeitos do nº 1 do artigo 5º do EBF, uma vez que, na verdade, a Requerente, aceita, pelo menos implicitamente, que a isenção não lhe deveria ter sido atribuída, uma vez que adquiriu o bem imóvel, em processo judicial de insolvência de uma pessoa singular e não em processo falimentar de uma empresa, em princípio uma pessoa moral ou colectiva.
Será muito discutível que se entenda que onde a lei refere “empresa” quer dizer “pessoa colectiva” ou “sociedade comercial” (excluindo, como parece ser a leitura adoptada pela AT, qualquer forma empresarial centrada numa pessoa singular, bastando lembrar as formas empresariais em “nome individual”).
No entanto, não se discute neste processo, o conceito muito vasto de “empresa” que, percute-se, pode existir com o fulcro numa pessoa singular, uma vez que existem empresas individuais (que pertencem a uma única pessoa) e societárias (constituídas por várias pessoas). Neste último grupo, as sociedades, por sua vez, podem ser anónimas, de responsabilidade limitada e de economia social (cooperativas, mutualidades, misericórdias e outras), entre outras.
Vejamos, em primeiro lugar, o texto da lei aplicável.
O artigo 269º - alínea e) do CIRE, sob a epígrafe “benefício relativo ao imposto do selo”, refere que “estão isentos de imposto do selo, quando a ele se encontrem sujeitos, os seguintes atos, desde que previstos em planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente: e) ... a venda, permuta ou cessão de elementos do activo da empresa ...”
O nº 4 do artigo 23º do Código do Imposto do Selo refere que “tratando-se do imposto devido pelos actos ou contratos previstos na verba 1.1 da tabela geral, à liquidação do imposto aplicam-se, com as necessárias adaptações, as regras contidas no CIMT”.
O artigo 10º do CIMT, sob a epígrafe “reconhecimento das isenções”, refere no seu nº 1 que “as isenções são reconhecidas a requerimento dos interessados, a apresentar antes do acto ou contrato que originou a transmissão junto dos serviços competentes para a decisão, mas sempre antes da liquidação que seria de efectuar”. E no seu nº 8 e na sua alínea d) refere que “são de reconhecimento automático, competindo a sua verificação e declaração ao serviço de finanças onde for apresentada a declaração prevista no n.º 1 do artigo 19.º, as ... isenções de reconhecimento automático constantes de legislação extravagante ao presente código”.
O nº 1 do artigo 21º do CIMT refere que: “o IMT é liquidado pelos serviços centrais da Direcção-Geral dos Impostos, com base na declaração do sujeito passivo ou oficiosamente, considerando-se, para todos os efeitos legais, o acto tributário praticado no serviço de finanças competente” e
A alínea a) do nº 2 do artigo 21º do CIMT refere que “quando a liquidação for efectuada com base na declaração do sujeito passivo, considera-se competente para a liquidação do IMT, o serviço de finanças onde é apresentada a declaração”.
Ao ler-se as instruções de preenchimento do Modelo 1 do IMT, aprovadas por Portaria Ministerial, aí se refere textualmente “declaração para liquidação oficiosa”.
Refere o artigo 5º do EBF, sob a epígrafe “benefícios fiscais automáticos e dependentes de reconhecimento” que (1) Os benefícios fiscais são automáticos ou dependentes de reconhecimento; os primeiros resultam directa e imediatamente da lei, os segundos pressupõem um ou mais actos posteriores de reconhecimento. (2) O reconhecimento dos benefícios fiscais pode ter lugar por acto administrativo ... (3) O procedimento de reconhecimento dos benefícios fiscais regula-se pelo disposto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
Por seu turno refere o nº 4 do artigo 14º do EBF “O acto administrativo que conceda um benefício fiscal não é revogável, nem pode rescindir-se o respectivo acordo de concessão, ou ainda diminuir-se, por acto unilateral da administração tributária, os direitos adquiridos, salvo se houver inobservância imputável ao beneficiário das obrigações impostas, ou se o benefício tiver sido indevidamente concedido, caso em que aquele acto pode ser revogado”.
Referem os nºs 1 e 2 do artigo 65º do CPPT, sob a epígrafe “reconhecimento dos benefícios fiscais”: “(1) salvo disposição em contrário ..., o reconhecimento dos benefícios fiscais depende da iniciativa dos interessados, mediante requerimento dirigido especificamente a esse fim, o cálculo, quando obrigatório, do benefício requerido e a prova da verificação dos pressupostos do reconhecimento nos termos da lei. (2) Os pedidos de reconhecimento serão apresentados nos serviços competentes para a liquidação do tributo a que se refere o benefício e serão instruídos de acordo com as normas legais que concedam os benefícios.”
Refere o artigo 165º do CPA que: “(1) A revogação é o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade. (2) A anulação administrativa é o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade”.
No artigo 167º do CPA refere-se que “Os atos constitutivos de direitos só podem ser revogados ... com fundamento na superveniência de conhecimentos técnicos e científicos ou em alteração objetiva das circunstâncias de facto, em face das quais, num ou noutro caso, não poderiam ter sido praticados” devendo “a revogação ... ser proferida no prazo de um ano, a contar da data do conhecimento da superveniência ou da alteração das circunstâncias, podendo esse prazo ser prorrogado, por mais dois anos, por razões fundamentadas”.
E o nº 2 do artigo 168º do CPA refere que “..., os atos constitutivos de direitos só podem ser objeto de anulação administrativa dentro do prazo de um ano, a contar da data da respetiva emissão”
Será assim de concluir, face à lei e ao que consta nas instruções de preenchimento do Modelo 1 do IMT, que a liquidação inicial de Imposto do Selo à taxa zero, registada com o nº 2016..., expressa no DUC nº 2016..., no valor de 3 600,00 euros, “verificando e declarando” a isenção que foi suscitada no Modelo 1 do IMT apresentado em 31 de Maio de 2016, (por força da aplicação das normas do CIMT), é
• uma liquidação oficiosa;
• um acto tributário praticado no SF de ... (nº 1 do artigo 21º do CIMT)
• praticado pelo serviço de finanças de ... (alínea a) do nº 2 do artigo 21º do CIMT).
Em termos práticos o que é um benefício fiscal (neste caso uma isenção) automático, ou seja, que resulta directa e imediatamente da lei?
Vejamos um caso claro de benefício fiscal automático de Imposto do Selo: a isenção de IS da alínea d) do artigo 6º do Código do IS aplicável às Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS).
A IPSS limita-se a averbar no documento que titula o facto tributário, a disposição legal que prevê a isenção (por força do artigo 8º do CIS) e isso porque existe a norma do artigo 23º nº 6 do CIS que refere “nos documentos e títulos sujeitos a imposto são mencionados o valor do imposto e a data da liquidação”.
Este é um caso claro que nos indica o que é e como funciona uma isenção automática, “ope legis”, ou seja, uma isenção que depende directa e imediatamente da lei.
E foi isso que aconteceu, ou algo idêntico, no caso em análise? A resposta só pode ser negativa. Veja-se:
A isenção que foi “verificada e declarada” à Requerente dependeu:
• De uma declaração apresentada à AT (Modelo 1 do IMT), onde constam todos os elementos relativos ao facto tributário sujeito a tributação;
• A isenção foi invocada nessa declaração, através de um código e de forma escrita;
• A declaração foi apresentada à AT, através de uma aplicação informática pela qual é responsável e se presume realiza as operações em estrito cumprimento da lei fiscal;
• O SF de Finanças de ... emitiu o DUC titulando o acto tributário de liquidação de imposto do selo, uma vez que é a entidade competente para a liquidação (nº 1 e alínea a) do nº 2 do artigo 21º do CIMT)
• E no DUC consta que foi conferida a isenção, pelo que, em coetaneidade com a liquidação à taxa zero, apreciou, pelos automatismos do sistema informático que é de estrita responsabilidade da AT, a isenção indicada na declaração de Modelo 1 do IMT.
Ao verificarmos os elementos exigíveis para o preenchimento da declaração de Modelo 1 do IMT eles correspondem aos exigíveis no artigo 65º do CPPT:
• iniciativa do interessado;
• mediante requerimento (na dimensão de um documento utilizado para obter um direito ou uma declaração de uma autoridade pública) dirigido especificamente a esse fim (não se diz na lei que tem que ser em separado de um outro pedido ou declaração de liquidação);
• apresentação nos serviços competentes para a liquidação do tributo a que se refere o benefício.
Considerar-se que um benefício que assim foi conferido ou considerado, expresso num documento oficial escrito - num DUC - emitido pelo sistema informático de exclusiva responsabilidade da AT, é “automático” porque resulta directa e imediatamente da lei será algo que o intérprete, face aos factos concretos ocorridos e ao teor da lei que define o que é uma benefício fiscal automático, não terá base legal para sustentar.
O elemento literal da norma é sempre um elemento muito relevante, por ser delimitador da actividade interpretativa.
Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. A letra é um elemento irremovível da interpretação, ou um “limite da busca do espírito”.
“Uma interpretação que não se situe já no âmbito do sentido literal possível, já não é interpretação, mas modificação de sentido” (Larenz).
“(...) há-de ser um sentido (uma motivação, um conjunto de objectivos) que caiba razoavelmente no sentido literal da declaração do legislador. Sob pena de, se isto não acontecer, se estar a criar uma nova norma, em vez de interpretar uma norma já existente” (Hespanha).
O nº 8 do artigo 10º e a sua alínea d) do Código do IMT classifica este benefício como sendo de “reconhecimento automático”.
Não vemos como o intérprete, face a esta literalidade, em que se usa um termo próprio do estatuto dos benefícios fiscais (EBF), possa depois concluir, face ao estatuído no nº 2 do artigo 9º do Código Civil, como se a expressão “reconhecimento” não constasse na lei, concluindo que a mesma se refere aos benefícios puramente automáticos.
Ao intérprete não parece poder exigir-se, que configure sequer, que o legislador quando introduziu a alteração legislativa e usou a expressão “reconhecimento”, que é própria do EBF, não quis determinar que o benefício em causa não depende directa e imediatamente da lei, mas sim da sua invocação numa declaração de Modelo 1 do IMT, como de resto se retira da expressão “competindo a sua verificação e declaração ao serviço de finanças onde for apresentada a declaração prevista no nº 1 do artigo 19º” do CIMT.
É certo que depois, na alínea d) do nº 8 do artigo 10º do CIMT, vem dizer-se que seguem o regime que acabamos de expôr, as “isenções de reconhecimento automático” constantes de legislação extravagante, como será a que está em causa neste processo. Aqui sim, é nítido que o legislador se refere – comprovadamente de forma incorrecta - a um tipo de benefícios que eram “automáticos”, e não de “reconhecimento automático”, e pela razão de que esta formulação jurídica não existia antes da publicação da Lei 64-A/2008, de 31.12. Impõe-se aqui uma leitura corretiva da lei, uma vez que, é público e notório que a AT passou a exigir em todas as liquidações de IMT e IS quanto a aquisições de bens imóveis que beneficiam de isenção ou redução de taxa, que as mesmas só operam, mediante o cumprimento da obrigação declarativa Modelo 1 do IMT.
Ou seja, com a alteração legislativa operada pela Lei 64-A/2008, de 31.12, pelo menos ao nível da alteração na liquidação do IMT e IS, passaram a existir benefícios fiscais de “reconhecimento automático” (pelo sistema informático de responsabilidade da AT), transformando as isenções anteriormente puramente automáticas, em isenções dependentes de reconhecimento automático com base em procedimento declarativo, benefícios estes que, no que tange à forma da sua verificação ou reconhecimento, são distintos dos benefícios puramente automáticos, que são aqueles, percute-se, que dependem única e imediatamente da lei.
Configura-se, pois, face ao que vem exposto, que o documento de página 14/21 que integra o PA junto pela AT com a Resposta (o DUC de liquidação do IS onde se “declara” o benefício fiscal), constitui a forma expressa do acto tributário e administrativo de liquidação do Imposto do Selo e de “verificação e declaração” (na expressão literal da lei) do benefício fiscal em sede de Imposto do Selo.
Com efeito, aí se encontram os elementos exigíveis pelo artigo 148º do CPA. Trata-se de um acto constitutivo de direitos (nº 3 do artigo 167º do CPA).
Assim sendo, reconhecendo-se que a isenção foi erradamente “verificada e declarada” pela AT, quer se entenda que poderia ser afastada pelo mecanismo da “revogação”, quer pelo mecanismo da “anulação” (face ao novo CPA), a verdade é que só poderia ser “revogado” no prazo de 1 ano a contar do seu reconhecimento (nº 4 do artigo 14º do EBF) face ao que é a jurisprudência unânime do STA para este tipo de actos.
Ora, a liquidação (mesmo que se considere que corresponde a uma verdadeira autoliquidação), com verificação e declaração da isenção de IS, em coetaneidade, ocorreu em 31.05.2016 (alínea a) dos factos provados) e só em 27 de Novembro de 2017 a AT notificou a Requerente para proceder ao pagamento da liquidação adicional aqui impugnada, a qual veio a ser emitida em 10 de Janeiro de 2018 (alínea c) dos factos provados).
Nestes termos, na leitura que fazemos dos factos e da sua subsunção à lei, procede o pedido da Requerente.
B) Direito ao reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios
A Requerente formula o pedido de restituição do valor de € 3 600,00, relativo ao imposto do selo indevidamente liquidado e pago, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios.
O artigo 24.º, n.º 1, al. b) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT) estatui que em caso de procedência da decisão arbitral que a AT deve: “(…)restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito;”.
No caso concreto, na sequência da ilegalidade do ato de liquidação adicional, há lugar a reembolso do imposto pago ilegalmente, por força dos artigos 24.º, n. º1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para «restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado».
Assim sendo, a Requerente deve ser reembolsada do imposto do selo que pagou ilegalmente.
A Requerente formulou ainda um pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, por isso há que apurar se tem direito aos mesmos.
O artigo 43.º, n.º 1, da LGT dispõe que: «São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».
Por outras palavras, são três os requisitos do direito aos referidos juros: i) a existência de um erro em acto de liquidação de imposto imputável aos serviços; ii) a determinação de tal erro em processo de reclamação graciosa ou de impugnação judicial e iii) o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
Deste modo, é logo possível formular uma questão: é admissível determinar o pagamento de juros indemnizatórios em processo arbitral tributário? A resposta à questão é afirmativa.
Com efeito, o artigo 24.º, n.º 5 do RJAT dispõe que: “É devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas.
Resulta do exposto que deve ocorrer o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito.
Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade do acto de liquidação adicional, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).
IV. DECISÃO
Termos em que, com os fundamentos expostos:
a) Julga-se procedente o pedido de pronúncia arbitral, declarando-se em desconformidade com a lei a liquidação adicional a que se refere a alínea c) da matéria de facto provada e bem assim a decisão de indeferimento da reclamação graciosa referida em e) da matéria de facto provada, que se anulam;
b) Condena-se a Requerida a reembolsar à Requerente a quantia de 3 600,00 euros;
c) Julga-se procedente o pedido de pagamento à Requerente de juros indemnizatórios, contados à taxa legal, com termo inicial no dia 16 de Fevereiro de 2018;
V - VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em 3 600,00 €, nos termos do artigo 97.º - A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VI - CUSTAS
Custas a suportar pela Requerida, no montante de 612,00 €, conforme o artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT.
Notifique.
Lisboa, 05 de Março de 2019
Tribunal Arbitral Singular
Augusto Vieira