DECISÃO ARBITRAL
Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Fernando Araújo e João Menezes Leitão, designados para formarem Tribunal Arbitral no Centro de Arbitragem Administrativa, na seguinte:
I – RELATÓRIO
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No dia 17 de Julho de 2018, A..., SGPS, S.A., NIPC ..., com sede na ..., n.º..., Lisboa, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos actos de indeferimento do recurso hierárquico datado de 18 de Abril de 2018, de indeferimento da reclamação graciosa datado de 20 de Setembro de 2017, e o acto de autoliquidação de IRC relativo ao exercício de 2014, quanto ao valor de € 4.572.676,79.
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Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que:
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À luz da lógica e espírito que animam o normativo do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, lógica que por sua vez se infere do seu próprio texto legal, e bem assim do Relatório da Lei do Orçamento do Estado para 2003, sendo definitiva (como é) a conclusão de que à venda das partes de capital não será susceptível de aplicação o normativo previsto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF (por força do evento mais radical que se possa imaginar a este respeito – eliminação deste normativo), é de corrigir o afastamento que entretanto (e preventivamente) foi feito da dedução dos encargos financeiros;
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É isso que resulta da interpretação do n.º 2 do artigo 32.º do EBF, tendo em conta o seu texto e finalidade normativa;
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E é isso que aconselha igualmente o princípio da justiça, ao qual está sujeita a Administração (artigo 8.º do Código do Procedimento Administrativo; também o artigo 8.º da Lei Geral Tributária);
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Foi aquele o entendimento que a AT fixou em Orientações genéricas, a primeira das quais constante da Circular n.º 7/2004, de 30 de Março de 2004, da Direcção de Serviços do IRC (DSIRC), designadamente do seu ponto 6;
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Nesse sentido, também se decidiu no acórdão arbitral proferido no processo n.º 645/2017 do CAAD;
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Igualmente, na Ficha Doutrinária publicada no Portal das Finanças contendo o teor prescritivo do Despacho de 24 de Fevereiro de 2011 do Director-Geral dos Impostos, exarado no Processo n° 39/2011;
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“[A] administração tributária está vinculada às orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza, independentemente da sua forma de comunicação, visando a uniformização da interpretação e da aplicação das normas tributárias.” – artigo 68.º-A, n.º 1, da LGT;
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E o artigo 10.º do Código do Procedimento Administrativo manda observar os ditames da boa-fé na relação da AT com os contribuintes;
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É inconstitucional, na interpretação pretendida pela AT nos presentes autos, a norma constante do n.º 2 do artigo 32.º do EBF na redacção vigente em 31.12.2013;
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A norma constante do n.º 1 do artigo 68.º-A, n.º 1, da LGT, na interpretação de que, tendo a AT fixado numa primeira orientação genérica o entendimento de que a indedutibilidade fiscal dos encargos fiscais prevista no n.º 2 do artigo 32.º do EBF (na numeração vigente em 31.12.2013; anteriormente, artigo 31.º) deve ser corrigida “caso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime [de isenção de mais-valias, previsto no mesmo n.º 2]”, e mais tendo a AT prescrito em ficha doutrinária subsequente que é de aplicar esta solução em situação em que o citado n.º 2 do artigo 32.º do EBF cessou a sua aplicação com respeito a certas partes de capital, estaria ainda assim dispensada a aplicação destes entendimentos da AT em caso de cessação de aplicação do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, é inconstitucional por violação do princípio da tutela da confiança que se retira do artigo 2.º da Constituição (princípio do Estado de direito) e do n.º 2 do artigo 268.º da Constituição (princípios da justiça e da boa-fé);
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O regime da participation exemption não é apto a corrigir a indedutibilidade dos encargos financeiros aqui em causa, pois não estamos perante uma mesma norma sob roupagem (número de artigo e inserção sistemática) diferente, mas perante diferentes normas, substantivamente (e formalmente) falando;
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O limite geral quantitativo à dedução de encargos financeiros previsto no artigo 67.º do CIRC, introduzido pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, já existia antes da reforma do IRC de 2014, aplicando-se quando ainda vigorava o artigo 32.º, n.º 2, do EBF, e nenhum regime de participation exemption existia ainda;
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Está em causa apenas a aplicação do n.º 2 do artigo 32.º do EBF a encargos financeiros suportados até 31.12.2013, num tempo em que a norma que comanda é ainda a do n.º 2 do artigo 32.º do EBF, num tempo de vigência temporal e material da norma, e não de nenhuma putativa norma ou regime transitório;
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Está apenas em causa o fecho de contas resultante da aplicação do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, com respeito a ocorrências pertencentes ao seu âmbito de competência temporal e material (encargos financeiros com partes de capital, suportados por SGPS até 31.12.2013). Norma esta que também já não regerá eventual alienação futura, pós 31.12.2013, ou eventuais encargos financeiros futuros, suportados pós 31.12.2013, porque estes eventos sim, com esta pertença temporal, já estão fora do seu âmbito de competência temporal;
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Por esta mesma razão, nenhum choque há com o regime da participation exemption entrado em vigor em 2014: estamos a falar de encargos financeiros suportados até 31.12.2013, isto é, suportados anteriormente à entrada em vigor do regime de participation exemption, em 01.01.2014;
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O regime de participation exemption, em termos do seu conteúdo normativo intemporalmente considerado, também não se opõe ao peticionado, pela razão simples e radical de que nenhum afastamento de dedução prescreve com respeito a encargos financeiros;
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Nenhum problema há também com o princípio da especialização dos exercícios ou de aplicação da lei no tempo;
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Caso se entenda que a razão da Requerente repousa unicamente em inconstitucionalidade, não devem ser negados juros indemnizatórios.
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No dia 18-07-2018, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
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A Requerente procedeu à indicação de árbitro, tendo indicado o Exm.º Sr. Prof. Doutor Fernando Borges Araújo, nos termos do artigo 11.º/2 do RJAT. Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, a Requerida indicou como árbitro o Exm.º Sr. Dr. João Menezes Leitão.
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Os árbitros indicados pelas partes foram nomeados e aceitaram os respectivos encargos.
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Na sequência de requerimento apresentado pelos árbitros designados pelas partes para que o árbitro-presidente fosse designado pelo Conselho Deontológico, foi designado árbitro-presidente nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro e do artigo 5.º do Regulamento de Selecção e de Designação de Árbitros em Matéria Tributária, o ora Relator, que, no prazo aplicável, também aceitou o encargo.
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Em 21-09-2018, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
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Em conformidade com o preceituado no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 12-10-2018.
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No dia 13-11-2018, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por excepção e por impugnação.
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Alega a Requerida, quanto ao fundo da causa, em suma, que:
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A fundamentação que subjaz ao acórdão arbitral n.º 610/2017-T, já transitado em julgado, é bastante explícita na razão pela qual deve o pedido arbitral da Requerente improceder;
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Quanto ao valor dos encargos aqui em discussão, estão pendentes processos judiciais onde os mesmos se encontram a ser discutidos, e nos quais a Requerente peticiona a sua dedução no respectivo exercício, exactamente com o fundamento de que tal circular é ilegal/inconstitucional, não podendo ser aplicada (processos arbitrais n.º 333/2017-T, referente ao período de 2010 e n.º 471/2017-T, referente ao período de 2009);
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Do teor da Circular 7/2004 não resulta, desde logo, o pretendido pela Requerente, pois a Circular reconduz esse momento à alienação das participações, o que não é de todo o que está aqui em causa (nem tão pouco uma impossibilidade de venda futura pela Requerente);
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Quanto à ficha doutrinária exarada no processo n.º 39/2011, traçar um paralelismo com a revogação do regime das SGPS é comparar o incomparável;
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O denominador comum às disposições transitórias constantes do artigo 12.º da Lei n.º 2/2014, de 16.01, é o de não prever qualquer regularização de gastos ou de rendimentos, de prejuízos ou de operações respeitantes a períodos de tributação com início anterior a 1 de Janeiro de 2014.
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Se o legislador não definiu qualquer regime transitório na Lei n.º 83- C/2013, de 31/12, que revogou o art.º 32.º do EBF nem na Lei n.º 2/2014, não pode tal regime ser concebido e aplicado, seja pela AT ou pelos contribuintes, sob pena de violação do princípio da legalidade;
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Com a revogação do regime especial das SGPS pela Lei n.º 83-C/2013, com efeitos a partir de 01.01.2014, não se pode pretender que a Circular n.º 7/2014, que sobre este dispunha, se mantém em vigor;
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Em 2014, a Lei n.º 2/2014, de 16.01, que procedeu à reforma da tributação das sociedades (comummente designada "reforma do IRC”), introduziu no nosso ordenamento jurídico o denominado regime de participation exemption, o qual, no tocante às mais-valias e menos-valias realizadas com a transmissão onerosa, expandiu o “método da isenção” anteriormente aplicável às SGPS e previsto no artigo 32.º do EBF a todos os sujeitos passivos de IRC que exerçam a título principal uma atividade comercial industrial ou agrícola, desde que cumpridos todos os pressupostos de aplicação estabelecidos no artigo 51.º-C do Código do IRC.
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O início do regime de participation exemption determinou assim a revogação do regime fiscal das SGPS (cf. artigo 210.º da Lei n.º 83-C), em virtude de o mesmo ter passado a abranger todas as sociedades independentemente da natureza jurídica que apresentem.
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No tocante aos encargos financeiros que se encontravam limitados quanto à sua dedutibilidade na previsão legal do artigo 32.º do EBF, na reforma do IRC, por uma questão de simplicidade o legislador optou por reforçar a restrição à dedutibilidade de gastos de financiamento prevista no artigo 67.º do Código do IRC, evitando, assim, a criação de mais regras especiais limitativas da respetiva dedutibilidade.
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Não é verdade que tenha cessado de forma permanente a possibilidade de usufruir a exclusão de tributação dos resultados apurados por estas sociedades com a alienação de partes de capital, porque, em substância, para as SGPS, no período de tributação de 2014 e seguintes, mantêm-se os princípios e os fundamentos do então artigo 32.º do EBF, mas agora noutro normativo legal, o artigo 51.º-C do Código do IRC, o qual se apresenta como uma Lei Nova para os outros sujeitos passivos de IRC, mas não propriamente para as SGPS que já usufruíam das vantagens fiscais agora definidas no artigo 51.º-C.
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Tomando como bom o trabalho do legislador, das suas próprias palavras, expressas no Relatório sobre o Anteprojecto de Reforma, resulta de forma inequívoca que a revogação do artigo 32.º do EBF e a inexistência de regime transitório não correspondeu a um lapso.
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O respeito do princípio da tutela da confiança não impunha a atribuição de carácter retroativo à dedução dos encargos financeiros suportados com a aquisição das participações sociais detidas em 01-01-2014, na medida em que o regime designado por participation exemption não se revela penalizador – ao contrário – das SGPS que beneficiaram do artigo 32.º do EBF.
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O tratamento diferenciado a que se encontravam sujeitas as SGPS relativamente a outras sociedades detentoras de participações sociais não permite considerar que se encontrassem, em 01-01-2014, em posição de partida equivalente, na medida em que as SGPS sempre beneficiaram de um tratamento mais vantajoso em matéria de dividendos (até à alteração introduzida pela Lei n.º 55-A/2010, de 31/12) e de mais-valias, pelo que, não tendo existido identidade de condições até 31-12-2013, não pode fundadamente considerar-se que a revogação do artigo 32.º do EBF colocou, em 01-01-2014, as SGPS em situação globalmente desfavorável;
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Com a eliminação do regime especial de tributação das SGPS, o legislador apenas repôs a igualdade formal no tratamento tributário das mais-valias e menos valias geradas com a transmissão de partes de capital;
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O que a Requerente reclama é a dedução de uma só vez da totalidade dos encargos financeiros que alega não ter deduzido nos exercícios de 2007 a 2011, sem que, no entanto, tal tenha qualquer apoio na lei ou na Circular n.º 7/2004, bem como na jurisprudência por si citada;
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Só os gastos financeiros suportados pela Requerente em 2014 e exercícios seguintes, ainda que decorrentes de financiamentos contraídos em exercícios anteriores, por força dos critérios que regem a imputação temporal dos gastos (n.º 1 do art.º 18.º do Código do IRC) são abrangidos pelas regras gerais de dedutibilidade dos gastos previstas nos artigos 23.º e 67.º do mesmo Código, o que equivale a dizer que tal facto ocorreria apenas no momento da alienação das participações sociais e nunca em 2014;
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A pretensão da Requerente reconduz-se ao preenchimento de uma lacuna, ao referir que a revogação do regime do artigo 32.º do EBF deixa um vazio legal;
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Será materialmente inconstitucional a interpretação normativa proposta pela Requerente, no sentido de ser permitida a dedução dos encargos financeiros incorridos entre 2003 e 2013, portanto na vigência do artigo 32.º do EBF, ao lucro tributável de 2014, em face da absoluta inexistência de norma legal que o preveja, por violação do princípio da legalidade tributária, na vertente da generalidade e abstração da lei fiscal, e, igualmente, por violação do princípio da igualdade tributária, os quais decorrem, nomeadamente, do disposto no artigo 13.º e no artigo 103.º da CRP;
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O desiderato da Requerente consubstancia-se numa aplicação retroactiva da lei, de uma só vez, por via da imputação ao lucro tributável de 2014 da regra de dedutibilidade dos encargos de natureza financeira suportados entre 2007 e 2011 com a aquisição de partes sociais, cujas mais-valias e menos-valias realizadas não entravam para o cômputo do lucro tributável, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF;
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O pretendido pela Requerente encontra-se em manifesto desrespeito pelo princípio da tributação do lucro real e da capacidade contributiva, na medida em que viola o princípio da especialização dos exercícios e abstrai por completo da situação concreta de tributação (ou não) das participações no momento (futuro) em que venham a ser alienadas.
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Não assiste razão à Requerente quando entende que a revogação do artigo 32.º do EBF vai coartar a possibilidade de beneficiar da contrapartida que a levou a desconsiderar para efeitos fiscais os encargos financeiros imputáveis a partes de capital, pelo que deve ter a possibilidade de deduzir no período de tributação de 2014 os encargos financeiros não dedutíveis apurados nos períodos de tributação de 2007 a 2011, inclusive.
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Sendo que tal interpretação normativa, de permitir a dedução integral dos encargos financeiros incorridos entre 2003 e 2013, portanto na vigência do artigo 32.º do EBF, ao lucro tributável de 2014, é inconstitucional por violação do princípio constitucional da capacidade contributiva e tributação do lucro real (artigo 104.º, n.º 2 da CRP).
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Foi facultado à Requerente o exercício do contraditório relativamente à matéria de excepção invocada pela Requerida, contraditório esse que foi devidamente exercido.
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Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.
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Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.
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Foi indicado que a decisão final seria proferida até ao termo do prazo a que alude o art.º 21.º/1 do RJAT.
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O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 2, alínea b), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre proferir:
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
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Em 28 de Maio de 2015 a A... SGPS procedeu à entrega da declaração de rendimentos Modelo 22 com referência ao exercício de 2014 do Grupo de sociedades sujeito ao RETGS de que era sociedade dominante, tendo ainda apresentado declaração de substituição entregue em 24 de Agosto de 2016, que não abrangeu a matéria em discussão no presente processo arbitral e que originou a emissão da liquidação n.º 2016... .
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Nas referidas declarações a Requerente não deduziu ao lucro tributável do Grupo Fiscal € 19.881.203,41 em encargos financeiros relativos a partes de capital por si ainda detidas a 31 de Dezembro de 2013, que nos exercícios anteriores haviam ficado por deduzir ao abrigo do artigo 32.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), em conjugação com o disposto na Circular da DSIRC n.º 7/2004.
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No dia 26 de Maio de 2017, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra a autoliquidação do exercício de 2014, sustentando que lhe assiste o direito à dedução, no exercício de 2014, dos encargos financeiros suportados com a aquisição das participações nos períodos de tributação de 2007 a 2011.
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A reclamação graciosa foi indeferida por despacho datado de 20 de Setembro de 2017, tendo a Requerente apresentado, em 20 de Outubro de 2017, recurso hierárquico.
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O recurso hierárquico foi indeferido por despacho de 18 de Abril de 2018.
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Nos períodos de tributação compreendidos entre 2007 e 2011, a Requerente acresceu, para efeitos do apuramento do seu lucro tributável – e, em consequência, do lucro tributável do seu Grupo Fiscal sujeito ao RETGS do qual é, e era, a sociedade dominante – montantes correspondentes aos encargos financeiros que, de a acordo com a aplicação da metodologia prevista na Circular n.º 7/2004, foram imputados à aquisição de partes de capital, os quais ascenderam a um montante global de € 40.841.537,37, apurado de acordo com a metodologia definida pela referida Circular n.º 7/2004 da Direcção de Serviços do IRC.
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Daquele montante, € 21.375.949,12 respeitam a encargos financeiros referentes às participações detidas pela requerente a 31 de Dezembro de 2013 (i.e. B..., S.A., C..., S.A., D..., S.A., E..., F..., S.A., G..., S.A., H..., S.A., I... (Portugal), SGPS, S.A.).
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Por referência aos precedentes procedimentos administrativos (recurso hierárquico e reclamação graciosa) o valor de € 21.375.949,12 foi reduzido para o montante de € 19.881.203,41, porquanto sobreveio, entretanto, o trânsito em julgado de decisão que, com fundamento diferente, autorizou a dedução fiscal em 2011 dos encargos financeiros em questão, suportados em 2011.
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Com fundamento diferente, a Requerente peticionou a dedução de encargos financeiros na esfera individual da sociedade dominada nos exercícios de 2009 e 2010 nas acções arbitrais que correram termos sob os processos n.ºs 471/2017-T e 333/2017-T, respetivamente, as quais foram objecto das decisões proferidas em 4 de Dezembro de 2018 e em 10 de Abril de 2018, tendo-se julgado, na primeira decisão, procedentes os pedidos de declaração de ilegalidade parcial do acto de liquidação de IRC relativo ao exercício de 2009 na parte correspondente ao montante de € 2.419.296,45 e de reembolso do referido montante de € 2.419.296,45 e, na segunda decisão, procedentes os pedidos de declaração de ilegalidade da autoliquidação de IRC, referente ao exercício de 2010, na parte correspondente ao montante de € 3.056.662,62, e de reembolso do referido montante de € 3.056.662,62.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Em concreto, os factos referidos sob os pontos 2 e 8 resultam da prova documental apresentada pela Requerente, em sede arbitral e graciosa, sendo que em momento algum os valores em questão, incluindo o montante da redução de que dá conta o ponto 8 dos factos provados, foram contestados, impugnados, ou, por qualquer forma colocados em dúvida pela AT. A factualidade referida no ponto 9, para além da indicação constante dos articulados das partes, apurou-se pela divulgação pública dos acórdãos indicados na base de dados de jurisprudência do CAAD.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DO DIREITO
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Da matéria de excepção
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Da incompetência do Tribunal Arbitral em função da matéria
Começa a Requerida por arguir a incompetência do Tribunal Arbitral para a anulação da autoliquidação de IRC no concreto montante de € 4.572.676,79 e condenação da Requerida ao seu reembolso.
Considera a Requerida que “ainda que tal pretensão pudesse eventualmente decorrer da execução de julgados que viesse a ser efetuada em caso de a decisão arbitral proferida ser de procedência do pedido (principal ou subsidiário) (...) não pode ser conhecida no presente processo, porquanto tal pedido (na parte identificada) extravasa a competência do presente Tribunal”, uma vez que “quanto ao valor dos encargos, também o Tribunal não pode fixar o seu montante exato, em virtude da pendência de processos judiciais onde os mesmos se encontram a ser discutidos e em que a Requerente peticiona a sua dedução no respetivo exercício, como sejam os processos arbitrais n.º 333/2017-T, referente ao período de 2010 e 471/2017-T, referente ao período de 2009.”.
Conclui, ainda, a Requerida que “não se insere no âmbito destas competências a apreciação do pedido de reconhecimento do direito formulado pela Requerente, na parte em que apura e peticiona a devolução do eventual imposto (pago pelo Grupo) correspondente à correção à matéria coletável que pretende ver relevada a seu favor (acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios)”.
Mais nota a Requerida que “a definição dos atos em que se deve concretizar a execução de julgados arbitrais compete, em primeira linha, à AT, com possibilidade de recurso aos tribunais tributários para requerer coercivamente a execução, no âmbito do processo de execução de julgados, previsto no artigo 146.º do CPPT e artigos 173.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.”.
Todavia, não existe qualquer dúvida, na doutrina e na jurisprudência, arbitral e estadual, que um tribunal arbitral em matéria tributária, constituído sob a égide do CAAD, “à semelhança do que sucede com os tribunais tributários em processo de impugnação judicial, (...) é competente para apreciar os pedidos de reembolso da quantia paga e de pagamento de juros indemnizatórios.”, conforme se subscreve integralmente no Acórdão do TCA-Sul de 28-04-2016, proferido no processo 09286/16, citado pela própria Requerida.
Se se prova, ou não, que o montante indicado no pedido de reembolso, é o correcto, será questão que interfere com a procedência ou improcedência do pedido, mas não com a competência do Tribunal para o apreciar.
De resto, o mesmo Acórdão do TCA-Sul de 28-04-2016, proferido no processo 09286/16, conclui, no caso aí julgado, pela incompetência do Tribunal arbitral para julgar um pedido de reembolso, com base em duas ordens de razões, a saber:
- “O acórdão arbitral deve ser anulado, na parte em que condenou a Administração Tributária a restituir à ora Impugnada a quantia de € 559.725,29, porquanto: (i) não obstante ser certo que esse pedido estava literalmente contido no pedido formulado no pedido de pronúncia arbitral, a própria requerente esclareceu na resposta à arguição da excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral, que essa não era a sua pretensão nestes autos, já que o que efectivamente pretendia era a anulação do acto de indeferimento expresso da reclamação graciosa e do acto de auto-liquidação que estava na base daquela”;
- “Resulta dos autos, mormente dos factos provados e dos autos de reclamação graciosa nestes integrados, que a Administração Tributária antes da presente Impugnação de Decisão Arbitral, isto é, em sede de reclamação graciosa, não foi confrontada, nem emitiu pronúncia quanto a qualquer quantificação resultante de uma eventual anulação, o que impede a integração desta parte do seu objecto – reconhecimento de direito subjacente a quantificação do cálculo do imposto a restituir por indevidamente pago - na competência do Tribunal Arbitral, por violação dos artigos 2.º do RJAT e artigos 2.º e 3.º da Portaria de Vinculação.”
Ora, nem um, nem outro dos fundamentos se verifica no presente caso.
Com efeito:
- a Requerente afirmou, e reafirmou, expressamente, a sua pretensão de que a AT seja condenada na restituição do montante de imposto que indicou como indevidamente pago;
- Em sede administrativa, no caso em sede de reclamação graciosa, a AT foi confrontada com uma quantificação resultante de uma eventual anulação, e emitiu pronúncia, conforme o quadro constante do ponto 14.º da resposta da Requerida dá conta.
Daí que não estejamos perante um caso de aplicação da doutrina do invocado acórdão do TCA-Sul, sendo que também a jurisprudência arbitral invocada pela Requerida, conforme demonstrado pela Requerente no seu requerimento de pronúncia sobre as excepções, não é transponível para o presente caso.
Alega a Requerida que a interpretação segundo a qual a norma do art.º 2.º do RJAT integra a competência dos Tribunais arbitrais em matéria tributária a funcionar no CAAD para apreciar e decidir os pedidos de restituição do imposto indevidamente pago por força dos actos de liquidação objecto das acções arbitrais que sejam anulados, viola:
- os princípios da certeza e da segurança jurídica, sub-princípios concretizadores do princípio do Estado de Direito Democrático, previsto no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa;
- o princípio do acesso à justiça, da igualdade de tratamento, da tutela jurisdicional efetiva, previstos, desde logo, nos artigos 13.º e 20.º da CRP;
- seria, de igual modo, materialmente inconstitucional por violar o princípio da legalidade, o qual enforma toda a atividade administrativa, e o seu corolário da indisponibilidade do crédito tributário.
Sendo matéria já abundantemente apreciada, como se referiu, quer em sede doutrinal, quer em sede jurisprudencial, estadual e arbitral, de modo consensual no sentido de que à semelhança do que sucede com os tribunais tributários em processo de impugnação judicial, os tribunais arbitrais constituídos sob a égide do CAAD são competentes para apreciar os pedidos de reembolso da quantia paga e de pagamento de juros indemnizatórios, e não sendo, por qualquer modo, concretizada a forma como a Requerida entende que tal interpretação é violadora das normas e princípios constitucionais que invoca, conclui-se que não se verifica qualquer dessas apontadas violações, pelo que deverá esta excepção improceder.
Ainda a este respeito, sustenta a Requerida que “a administração tributária apenas está necessariamente obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”, pelo que “sob pena de enriquecimento sem causa, a condenação da AT à consideração dos encargos indevidamente deduzidos, bem como ao reembolso das quantias indevidamente pagas e ao pagamento dos respetivos juros indemnizatórios não pode exceder os montantes ainda por deduzir e o imposto efetivamente pago pela Requerente.”, daí retirando “a incompetência material do Tribunal para a apreciação daquele pedido da Requerente”.
Reconhecendo, aqui já, a Requerida a competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária constituídos sob a égide do CAAD para condenar a AT no “reembolso das quantias indevidamente pagas e ao pagamento dos respetivos juros indemnizatórios”, as questões que coloca quanto ao montante a reembolsar situam-se no plano da decisão de tal pedido, designadamente na apreciação da prova e modo da sua quantificação, matéria esta que tem a ver, naturalmente, com o fundo da causa, e não com matéria de excepção, nomeadamente, de incompetência material.
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Da incompetência do Tribunal Arbitral em função do valor
Prossegue a Requerida alegando que “o que efetivamente pretende submeter a Tribunal é a legalidade da parte do referido ato de autoliquidação que reflete a não dedução fiscal de encargos financeiros no montante de € 19.881.203,41”, pelo que “o valor do pedido arbitral que efetivamente deve ser atendido, caso se entenda dever ser apurado em função dos encargos que a Requerente pretende ver reconhecidos, é de € 19.881.203,41.”.
Conforme resulta da própria resposta da Requerida (cfr. art.ºs 51.º e 52.º), esta alegação assenta no pressuposto da procedência da excepção da incompetência material deste Tribunal arbitral, previamente arguida e que se vem de apreciar.
Ora, julgando-se improcedente a aludida excepção, desfalecem os fundamentos em que a presente alegação assenta.
Assim, por força do disposto no art.º 3.º/2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária do CAAD, e no art.º 97.º-A/1/a) do CPPT, o valor da causa será o da importância de imposto liquidado cuja anulação a Requerente pretende, ou seja, €4.572.676,79.
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Do fundo da causa
Como resulta pacificamente das posições da Requerente e Requerida, desde a fase graciosa, a questão substancial que se apresenta a decidir nos presentes autos prende-se com saber quais os efeitos da revogação do art.º 32.º do EBF, operada pela Lei n.º 83- C/2013, de 31/12, com efeitos a partir de 01/01/2014, no que diz respeito a encargos financeiros com participações sociais detidas por SGPS à data da referida revogação, não deduzidos em exercícios anteriores, por força do disposto no n.º 2.º do referido art.º 32.º do EBF, revogado.
Pretende a Requerente, nos presentes autos, que tais encargos financeiros sejam dedutíveis no primeiro exercício subsequente à revogação da norma em questão (o exercício de 2014), e sustenta a Requerida que tais encargos devem ser tidos por não dedutíveis, a menos que, se bem se percebe, aquando da alienação das participações sociais em causa, a Requerente não beneficie do regime participation exemption, entretanto introduzido no art.º 51.º-C do Código do IRC, pela Lei n.º 2/2014, de 16.01.
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Sem grandes preocupações conceptuais, poder-se-á dizer que, verificada a respectiva efectividade, a indedutibilidade de um gasto incorrido por um sujeito passivo de IRC num determinado exercício, resultará de uma de três hipóteses possíveis, a saber:
-
A não verificação dos requisitos gerais da dedutibilidade dos gastos;
-
A não compatibilidade da dedutibilidade do gasto com as regras de periodização económica;
-
A existência de norma específica que precluda, condicional ou definitivamente, a dedutibilidade do gasto.
Estando em causa, nos presentes autos, a aferição da dedutibilidade de determinados gastos efectivamente incorridos pela Requerente, com encargos financeiros relacionados com a aquisição de participações sociais, cumprirá, então determinar se se verifica alguma daquelas situações, partindo, a análise subsequente, da hipótese mais concreta (a referida na al. c) supra), para a hipótese mais genérica (a referida na al. a) supra).
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Como dados de facto relevantes para a apreciação e solução do problema jurídico colocado, e atenta a matéria de facto provada, temos que, no período em questão (2007-2011):
- a Requerente incorreu em gastos no montante global de € 21.375.949,12 (entretanto reduzido para o montante de € 19.881.203,41, conforme consta do ponto 8 dos factos provados);
- tais gastos respeitam a gastos financeiros com participações sociais que a Requerente detinha a 01/01/2014;
- esses mesmos gastos não foram objecto de dedução ao lucro tributável da Requerente no período de imposto respectivo, por as participações sociais em questão terem sido consideradas susceptíveis de, no futuro, não concorrerem com mais ou menos valias para a formação do seu lucro tributável, nos termos do art.º 32.º/2 do EBF;
- até 01/01/2014, as referidas participações não geraram mais ou menos valias que não contribuíssem para a formação do lucro tributável da Requerente, nos termos do art.º 32.º/2 do EBF.
Posto isto, dispunha o art.º 32.º/2 do EBF, na redação dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, e, antes dele, em termos materialmente idênticos quanto às SGPS, o art.º 31.º/2 do mesmo EBF, na redacção dada pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, que:
“As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim, os encargos financeiros suportados com a sua aquisição não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades.”
Antes disso, dispunha o mesmo art.º 31.º/2, na redacção dada pela Lei n.º 32-B/2002, de 30/12, que:
“As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS e pelas SCR mediante a transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere, de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim os encargos financeiros suportados com a sua aquisição, não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades.”
As referidas normas deram origem a várias dificuldades de aplicação prática, que no caso não relevam, sendo que, para o que ora importa, se veio a formar o entendimento, em suma, de que:
a. os encargos financeiros em questão (suportados com a aquisição de participações financeiras, detidas por período não inferior a um ano, por SGPS) não eram dedutíveis nos exercícios em que eram incorridos; e
b. Era possível a “correção dos custos não deduzidos em períodos tributários anteriores, caso a alienação de participação de capital não revista os requisitos para a aplicação do regime especial de isenção das mais-valias” em questão[2].
Foi em execução das normas referidas (art.º 31.º/2 e, posteriormente, art.º 32.º/2 do EBF), assim interpretadas, que a Requerente, nos exercícios de 2007 a 2011 não deduziu os encargos financeiros ora em causa.
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Assumindo-se que os “custos não deduzidos em períodos tributários anteriores, caso a alienação de participação de capital não revista os requisitos para a aplicação do regime especial de isenção das mais-valias”, seriam considerados para efeitos do cômputo do lucro tributável, o que não é, nem, em momento algum que se conheça, foi colocado em questão pela AT, ter-se-á de validar que:
-
tais “custos”/encargos financeiros são os mesmos que foram incorridos em “períodos tributários anteriores”, e não um custo/encargo financeiro novo que se gera/ocorre no período tributário em que se dá a “alienação de participação de capital [que] não revista os requisitos para a aplicação do regime especial de isenção das mais-valias”;
-
a indedutibilidade dos “custos”/encargos financeiros em questão será, assim e sob este ponto de vista, uma indedutibilidade “relativa”, por contraponto a uma indedutibilidade “absoluta”, própria dos custos que não são dedutíveis no exercício em que são incorridos, e que nunca o serão;
-
os “custos”/encargos financeiros em causa tinham uma dedutibilidade sob "condição suspensiva", ou seja, a dedutibilidade apenas seria "eficaz" quando a “alienação de participação de capital não revista os requisitos para a aplicação do regime especial de isenção das mais-valias” do art.º 32.º/2 do EBF.
Ou seja, e em suma: o regime do art.º 32.º/2 do EBF, à data da sua revogação, e do art.º 31.º/1 do mesmo diploma antes de 01/01/2008, tal como foi comummente interpretado, e não é nos presentes autos contestado, não postulava uma indedutibilidade definitiva dos encargos financeiros suportados com a aquisição de participações financeiras, detidas por período não inferior a um ano, por SGPS, mas uma indedutibilidade “condicionada” ao facto de que as mais ou menos valias geradas pela respectiva alienação não viessem a contribuir para o cômputo do lucro tributável das SGPS.
Não estará aqui, assim e simplesmente, em causa um norma especial que veda a dedução fiscal de certos custos, mas antes uma norma que consagra uma indedutibilidade não definitiva, em exercícios sucessivos, até que se verifiquem ou não determinados factos, dos quais decorra: a) a definitividade da indedutibilidade “ex ante”; ou b) a cessação daquela indedutibilidade.
O próprio TC, no aresto citado, fundamentando a não violação do princípio da proporcionalidade da norma em questão, esclarece que a indedutibilidade em questão integra uma “indedutibilidade de encargos financeiros ex ante”, ou seja, a indedutibilidade opera previamente à causa dessa mesma indedutibilidade, e condicionada à verificação dessa mesma causa, ou seja, à “aplicação do regime especial de isenção das mais-valias”.
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Sucede que, como se viu já, o regime em questão, plasmado, até 31/12/2013, no art.º 32.º/2 do EBF, foi revogado, com efeito a partir de 01/01/2014, pela Lei n.º 83-C/2013, de 31/12, sendo que, pela Lei n.º 2/2014, de 16/01, foi, no art.º 51.º-C do Código do IRC, introduzido o regime designado por participation exemption.
A questão que se coloca, então, é a da saber se o novo regime é uma continuação do anterior ou se, antes, é um regime novo, ainda que parcialmente replicando aspectos do regime revogado.
Ressalvado o respeito devido a outras opiniões, crê-se que se está perante um novo regime.
Efectivamente, e desde logo, embora não sendo um argumento decisivo, verifica-se que a revogação do art.º 32.º do EBF e a consagração do regime participation exemption ocorreram em actos legislativos distintos e em momentos temporais também distintos, ao contrário do que seria normal se houvesse uma continuidade de regimes.
Por outro lado, e não sendo este, igualmente, um argumento determinante, inexiste uma continuidade do diploma onde são consagrados os regimes em questão.
Esta circunstância dá-se, de resto, e aqui já se começam a apresentar circunstâncias de relevância mais substancial, porquanto se constata uma diferente natureza substancial dos regimes em causa.
Assim, enquanto que o regime do art.º 32.º/2 do EBF constituía um verdadeiro benefício fiscal, na definição do art.º 2.º/1 do próprio EBF[3], o regime participation exemption passou a fazer parte do regime geral do IRC, deixando de revestir o carácter excepcional, instituído para tutela de interesses públicos extrafiscais, postulado pela qualidade de benefício fiscal, e passado a ser uma norma genérica, aplicável a todos os sujeitos passivos de IRC, integrando o “modelo de tributação dos rendimentos de partes de capital”[4], fazendo parte de um “regime, que encontra a sua ratio num aprofundamento do princípio da territorialidade”[5].
Sendo que, como referiu o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 139/2016[6]:
“tentando apurar a igualdade substancial de posições jurídicas - no pressuposto de que só duas posições materialmente iguais ou equivalentes podem servir de parâmetro para aferir de um tratamento desigual -, não pode afirmar-se, de modo algum, que tal ligação exista entre uma relação que conduz à tributação-regra e uma outra relação que conduz à concessão ou não concessão do benefício fiscal.”
Este aspecto é bem claro no “Relatório do Anteprojeto da Reforma” do IRC, que refere que “que a realização de mais-valias e a distribuição de dividendos são duas formas alternativas de aportação de valor aos acionistas, sendo concebidas como substitutos próximos, em função da sua inerente substituibilidade relativa. Nestes termos, considera-se que um tratamento fiscal discrepante entre estas duas formas de realização do rendimento é suscetível de influenciar a decisão fundamental de detenção de capital nas empresas, modificando, desta forma, o comportamento “natural” dos agentes económicos, ou, por outras palavras, criando ineficiências.”[7].
Foi este um dos dois[8] motivos específicos, dentro da constatação geral da limitação da “eficiência do regime utilizado, a nível nacional, para eliminação da dupla tributação”[9], que levaram a Comissão de Reforma a propor “a adoção de um regime participation exemption de cariz universal (i.e., aplicável ao investimento independentemente do país ou região em que este se materialize, salvo as indispensáveis normas anti-abuso) e horizontal (aplicável tanto à distribuição de lucros e de reservas, quanto às mais-valias, e, bem assim, às diversas operações suscetíveis de serem consideradas substitutos próprios destas operações)”[10].
Ou seja: a instituição do regime participation exemption nada teve a ver com o regime do art.º 32.º/2 do EBF, tendo sido determinado por razões próprias e específicas, alheias àquele.
A redundância (e não substituição) do “regime fiscal previsto para as SGPS”, e a sua consequente revogação, foi uma consequência da adopção do regime participation exemption, e não uma causa.
Ou seja, e em suma: crê-se que, com o regime participation exemption, não se trata, desde logo, de um regime de carácter excepcional, instituído para tutela de interesses públicos extrafiscais, mas de uma opção de política fiscal, integrado num lote de medidas destinado a aumentar a “eficiência do regime utilizado, a nível nacional, para eliminação da dupla tributação”, tendo a revogação do art.º 32.º do EBF sido uma consequência da sobreposição, em grande parte, entre o novo regime criado, e o regime especial das SGPS, sendo este um dos “diversos regimes fiscais especiais atualmente existentes” que “a adoção do novo regime de participation exemption veio tornar redundantes”[11].
Assim, e embora, como refere o próprio “Relatório do Anteprojeto da Reforma” do IRC, o novo regime mantenha, “no essencial, as vantagens que o Estatuto dos Benefícios Fiscais concedia a este tipo de entidades”[12], não deixam de ser regimes substancialmente distintos, como aponta a Requerente, sendo que, como se viu e resulta do “Relatório do Anteprojeto da Reforma” do IRC, a referida manutenção, no essencial, das vantagens que o EBF concedia às SGPS na matéria, é um efeito lateral da instituição de um novo regime cuja consagração, causalmente, está desligada do referido regime do EBF.
Daí que, desde logo, em sentido estrito, e para efeitos de aplicação da lei no tempo, não se possa nem deva falar em sucessão de leis.
O que ocorreu foi, isso sim, a revogação de um regime, e a consagração, 17 dias depois, de um outro, de âmbito e natureza distintos, que não sucedeu, nem pretendeu suceder, àquele.
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Posto isto, cumprirá, então, aferir, face à sucessão de regimes legais, qual o status jurídico dos gastos financeiros com participações sociais não deduzidos pela Requerente, de 2007 a 2011.
Como se viu, previamente, os referidos gastos não deverão ser reputados, à luz do regime do EBF (ou seja, até 2013) como simplesmente indedutíveis, mas, antes, como sujeitos a uma indedutibilidade antecipada ou ex ante.
A questão que se colocará, então, salvo melhor opinião, será, antes de mais, a de definir se, face à revogação do art.º 32.º do EBF, a referida indedutibilidade:
-
se consolida como indedutível;
-
se mantém; ou
-
cessa;
Relativamente à primeira das hipóteses colocadas, crê-se não haver grandes dúvidas que não se verifica.
Com efeito, e desde logo, tal hipótese não é sustentada, julga-se, sequer pela própria AT, nem será coerente quer com a interpretação que foi sendo feito do regime do art.º 32.º do EBF, designadamente com o entendimento, pilar da constitucionalidade daquele regime, de que a indedutibilidade em questão estava directamente condicionada ao gozo do benefício consagrado naquele mesmo regime, quer com os princípios da proporcionalidade, tal como entendido pelo Tribunal Constitucional, quer com a própria exigência constitucional de tributação das empresas pelo lucro real.
Não se julga, também, que a indedutibilidade dos gastos em questão estivesse já consolidada à luz da legislação vigente nos exercícios em que foram incorridos, máxime, do regime do art.º 32.º do EBF, questão que, de resto, não é suscitada nos autos.
Em todo o caso, tal entendimento, do qual resulta que a dedutibilidade desses gastos, nos casos de não aplicação do regime especial daquele art.º 32.º, configurará uma correcção fiscal, não terá, salvo melhor opinião, apoio quer no regime legal em causa, quer nas diversas interpretações doutrinais e jurisprudenciais conhecidas a respeito daquele, não se conhecendo, igualmente, qualquer prática que tenha existido nesse sentido.
De resto, a própria Circular 7/2004, no seu ponto 6[13], refere que a correcção fiscal opera no próprio exercício em são incorridos os gastos financeiros, e não no exercício em que, eventualmente, tais gastos venham a ser fiscalmente relevados, por terem cessado os pressupostos da sua indedutibilidade “ex ante”.
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Embora não o diga expressamente, crê-se que a segunda das hipóteses elencadas será a sustentada pela AT.
Entenderá a Requerida, se bem se compreende a sua argumentação, que prevendo o art.º 51.º-A do CIRC, em vigor a partir de 01/01/2014, uma possibilidade de não tributação das mais valias, à semelhança do que acontecia com o regime, vigente até 31/12/2013, do art.º 32.º do EBF, se deverá manter a indedutibilidade “suspensa” dos encargos financeiros em questão, até se verificar se, efectivamente, as participações sociais subjacentes aos gastos em questão geram, ou não, mais valias tributáveis.
Ressalvado sempre o respeito devido a outras opiniões, crê-se que, desde logo em homenagem aos princípios da legalidade e da tipicidade que vigoram no direito fiscal, apenas se poderá concluir dessa forma com base em norma legal que sustente esse mesmo entendimento.
É que, vistos os regimes legais potencialmente aplicáveis ao caso, não se descortina norma legal que aponte nesse sentido, ou seja, no de que os gastos em questão mantêm o seu status de antecipadamente indedutíveis, conclusão que sempre esbarraria, crê-se, na distinta natureza dos regimes legais que se sucederam no tempo.
Assim, tal não resultará, desde logo, do regime do art.º 32.º do EBF, que como se viu, apenas condicionava a dedutibilidade dos gastos em causa ao caso de “alienação de participação de capital não revista os requisitos para a aplicação do regime especial de isenção das mais-valias” em questão. Ou seja, e dito de outro modo, o regime do art.º 32.º do EBF suspendia a dedutibilidade dos gastos em questão, ou, visto por outro lado, impunha a sua indedutibilidade preventiva ex ante, até se verificar que as SGPS alienavam as participações sociais correspondentes, altura em que ou se consolidava a indedutibilidade dos gastos financeiros, ou eles se tornavam dedutíveis.
Ora, com a cessação, por revogação, do regime do art.º 32.º do EBF, deixa de existir a norma que mantinha a indedutibilidade em questão (ex ante) dos gastos financeiros em causa, que, nos termos das normas que regem a aplicação da lei no tempo, terá a sua sobrevigência limitada aos exercícios anteriores a 2014 (que aqui não estão em causa), aos quais se deverá considerar aplicável o respectivo regime.
Deixando de existir tal norma, a dedutibilidade de tais gastos terá de ser aferida, daí em diante (ou seja, do exercício de 2014 em diante), face às regras gerais, uma vez que, como se viu, a indedutibilidade imposta pelo regime revogado não era uma indedutibilidade definitiva e não se tinha consolidado.
Em suma: a 01/01/2014 a norma especial (relativa a benefícios fiscais) que impunha a indedutibilidade dos gastos financeiros, ora em causa, deixou de vigorar, pelo que deixou de condicionar (de ser aplicável) ao juízo de dedutibilidade ou indedutibilidade de tais gastos.
A manutenção da indedutibilidade ex ante ou condicionada dos gastos em causa, não resulta igualmente quer da Lei n.º 83- C/2013, de 31/12, quer da Lei n.º 2/2014, de 16/01, que, quer uma quer outra, não contém qualquer disposição transitória, dispondo sobre tal questão.
Especificamente, não se julga que a norma do art.º 14.º daquela Lei n.º 2/2014, contenha uma disposição transitória da qual decorra a persistência do regime de indedutibilidade ex ante, a que os encargos em apreço se encontravam sujeitos por força do revogado regime do art.º 32.º do EBF, do exercício de 2014 em diante.
Com efeito, e para o que ao caso interessa, está-se a aferir, no exercício de 2014, a dedutibilidade de encargos efectivamente incorridos pela Requerente, que até aí eram ex-ante indedutíveis, à luz do regime introduzido por aquela Lei 2/2014, dando-se, assim, cumprimento ao disposto no referido art.º 14.º, de aplicar a lei nova aos períodos de tributação que se iniciem após 1 de Janeiro de 2014.
De resto, não se deverá deixar de ter em conta que aquela norma do art.º 14.º da Lei n.º 2/2014 não deverá ser lida como integrando no seu âmbito, qualquer disposição transitória relativa ao regime do art.º 32.º do EBF, não só porquanto este havia já sido revogado previamente, como porque a matéria sobre que dispõe o regime a que se refere aquela Lei, não se refere a benefícios fiscais, mas ao regime geral do IRC.
Deste modo, apenas no regime participation exemption, introduzido no CIRC por aquela Lei n.º 2/2014, de 16/01, se poderá procurar alguma norma que, a partir de 01/01/2014 mantenha, nesse exercício, a indedutibilidade condicionada (ou ex ante) até aí imposta pelo art.º 32.º/2 do EBF.
Ora, compulsado o regime consagrado no CIRC a partir de 01/01/2014, não será possível detectar qualquer norma que obste à dedutibilidade dos gastos financeiros que ora nos ocupam.
Efectivamente, no regime em questão foi introduzido o art.º 67.º/13/d), que passou a dispor que os rendimentos ou gastos relativos a partes de capital às quais seja aplicável o regime previsto no artigo 51.º-C do CIRC, não concorrem para a formação do lucro tributável.
Assim, e desde logo, conclui-se que não é possível, com base no regime em causa, excluir, e menos ainda preventivamente ou ex ante, gastos relativos a partes de capital às quais fosse aplicável o regime previsto no artigo 32.º/2 do EBF, por não caber tal hipótese na estatuição da norma.
Por outro lado, e embora se possa questionar se o novo regime deverá efectivamente ser operacionalizado de forma igual ao regime do art.º 32.º/2 do EBF, ou seja, se os encargos com as participações susceptíveis de serem abrangidas pelo regime participation exemption deverão ser ver a sua dedutibilidade "suspensa" até ao momento da alienação, mesmo assumindo que assim seja, forçosamente que tal regime só se aplicará aos encargos incorridos após a entrada em vigor do novo regime.
Daí que, por força deste art.º 67.º/13/d) do CIRC, desde logo, porquanto a lei tributária dispõe apenas para o futuro, para os beneficiários da norma do art.º 51.º-C/1 do CIRC, não concorrerão para a formação do lucro tributável, os gastos relativos a partes de capital às quais seja aplicável o regime previsto no artigo 51.º-C, suportados (que sejam incorridos) a partir de 1/1/2014.
Este entendimento é confirmado pelo já citado Acórdão do TC de 09-01-2014, proferido no processo 42/2014, que, relativamente à entrada em vigor do regime do art.º 32.º do EBF (então art.º 31.º), entrado em vigor a 01/01/2003, considerou “que nenhum efeito retroativo comporta relativamente aos encargos financeiros incorridos (...) em exercícios anteriores a 2003”, razão pela qual foi julgada constitucional a indedutibilidade dos gastos financeiros incorridos após a entrada em vigor do regime, de onde decorre que se estaria perante um caso de retroactividade da lei fiscal, se essa indedutibilidade se alastrasse aos encargos financeiros suportados em exercícios anteriores (no caso julgado pelo TC, a 2003, no caso do regime participation exemption, a 2014).
Dever-se-á, pelo exposto e em aplicação da doutrina descrita, considerar que o regime da indedutibilidade decorrente do art.º 67.º/13/d), apenas se aplicará aos encargos financeiros suportados após 01/01/2014, não sofrendo, consequentemente, à luz de tal regime, qualquer constrangimento, ao nível da dedutibilidade, os gastos relativos às partes de capital que possam beneficiar do regime do art.º 51.º-C do CIRC, suportados em exercícios anteriores a 01/01/2014.
Dito de outro modo: se em 2014 um sujeito passivo de IRC for titular de participações sociais susceptíveis de beneficiar do regime do art.º 51.º-C do CIRC, não verá, ao abrigo do art.º 67.º/13/d) do CIRC, afastada a dedução de encargos que haja suportado com as participações em questão, por exemplo, nos exercícios de 2012 e 2013, ainda que não as haja deduzido ao seu lucro tributável[14].
Ora, se isto é assim, como se crê que será para todos os sujeitos passivos de IRC, a quem se aplica a norma do art.º 51.º-C do CIRC, não se vislumbra como poderá deixar de o ser para as SGPS, atenta, como se referiu, a inexistência de qualquer norma vigente e aplicável ao exercício de 2014, ora em causa, que disponha de outra forma.
Face ao exposto, verifica-se, então, que também o regime participation exemption, introduzido no CIRC pela Lei n.º 2/2014, de 16/01, não contém fundamento para considerar que a indedutibilidade ex ante dos gastos com participações sociais decorrente do regime do art.º 32.º/2 do EBF, se mantém, após a revogação daquele.
Conclui-se, deste modo, e em suma, que:
-
em 31/12/2013, cessou o regime do art.º 32.º/2 do EBF que determinava a indedutibilidade ex ante dos gastos financeiros suportados pelas SGPS, até essa data, com participações sociais susceptíveis de beneficiar daquele regime;
-
face ao novo regime, em vigor a partir de 01/01/2014, tais gastos não se tornaram definitivamente indedutíveis, nem viram mantida a sua indedutibilidade ex ante;
-
não se tendo tornado definitivamente indedutíveis, nem tendo sido mantida a sua indedutibilidade ex ante, ter-se-á de concluir que os gastos em questão serão dedutíveis, ou não, pela aplicação dos critérios gerais à luz dos quais se deve aferir a dedutibilidade dos gastos.
Estas conclusões ficarão particularmente claras, crê-se, executando-se o seguinte exercício:
-
Em primeiro lugar, dever-se-á abstrair
- das alterações operadas ao CIRC em 2014, e figurar, isoladamente, os efeitos jurídicos da revogação do art.º 32.º do EBF;
-
Nesse cenário, julga-se, não será sustentável que os encargos financeiros não deduzidos pelas SGPS, relativos a participações que não tivessem, à data da revogação, gerado mais ou menos valias isentas pelo regime revogado, não pudessem ser, então, dedutíveis;
-
Num segundo passo, deverá contemplar-se o regime novo, e verificar se deste decorre algum efeito jurídico noutro sentido, ou seja, que mantenha a indedutibilidade ex ante dos encargos em causa ou a torne definitiva;
-
Conforme se viu, do novo regime apenas se poderá retirar a indedutibilidade ex ante de encargos com participações sociais incorridos por sujeitos passivos de IRC:
-
susceptíveis de preencher os pressupostos do art.º 51.º-C do CIRC; e
-
incorridos após 01-01-2014;
-
Pelo que será o novo regime insusceptível de alterar a conclusão acima retirada em ii.
Ficará assim, julga-se, demonstrado que:
- ou se entende que o regime do art.º 32.º do EBF consagrava um indedutibilidade definitiva dos encargos a que tal regime se reportava, situação em que, por força da aplicação das leis no tempo, tal indedutibilidade deveria persistir; ou
- a aplicação das normas relativas à lei no tempo não são susceptíveis de fundar a persistência daquele regime de indedutibilidade ex ante, para lá do exercício correspondente ao ano de 2013.
É que, como se referiu já, o regime novo, não sucede ao revogado, tendo um alcance, uma teleologia e uma natureza distintas. Assim sendo, como se crê que é, a questão a formular, no fundo, julga-se, reconduz-se a saber se tendo sido revogado o regime relativo ao benefício fiscal, a dedutibilidade dos gastos incorridos, não deduzidos, e que não se consolidaram, na pendência do regime revogado, como indedutíveis, deve ou não ser aferida face ao regime geral vigente, após a ocorrência da revogação.
Não se subscrevendo o primeiro daqueles supra-referidos entendimentos – que tanto quanto se percebe não é sequer sustentado pela Requerida – necessariamente se haverá de concluir pelo segundo.
Estando, no caso sub iudice, em causa o exercício de 2014, tal entendimento conforma-se, assim, com o disposto quer no já referido art.º 14.º da Lei n.º 2/2014, quer com o art.º 12.º da LGT, quer com o art.º 12.º do Código Civil, na medida em que se está a aplicar o regime fiscal vigente no período de tributação de 2014, ao exercício da Requerente desse mesmo ano.
Por outro lado, não se julga ser caso de aplicação do disposto no art.º 11.ºdo EBF, uma vez que:
- não está em causa qualquer alteração a normas relativas a “benefícios fiscais convencionais, condicionados ou temporários”;
- tal norma apenas preclude a aplicação por força da lei nova, da parte do regime que prejudique o contribuinte, o que não é o caso, já que o que pretende a Requerida é a persistência de uma parte do regime desfavorável à Requerente, que implica a não relevância fiscal de gastos reais e efectivos em que incorreu.
Aqui chegados, a questão que se coloca é a da determinação do exercício em que tal dedutibilidade deve ser efectivada, no caso de, à luz dos critérios gerais da dedutibilidade dos gastos, se dever concluir pela respectiva dedutibilidade.
*
Dispõe o art.º 18.º do CIRC aplicável (versão de 2014) que:
“1 - Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.
2 - As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.”.
Face ao normativo em questão, poder-se-ia, prima facie, concluir que os gastos sub iudice deveriam, verificados que sejam os pressupostos gerais da dedutibilidade dos gastos, ser deduzidos nos períodos em que foram incorridos (no caso, de 2007 a 2013).
Não obstante, no caso concreto, crê-se dever ser outra a solução.
Assim, e desde logo, dentro do que foi a interpretação genericamente aceite do regime do art.º 32.º/2 do EBF, atrás já exposta, nunca foi entendido que, cessando a indedutibilidade ex ante decorrente de tal regime, os gastos que assim se tornassem dedutíveis tivessem de o ser nos exercícios em que foram incorridos.
Por outro lado, e bem vistas as coisas, no caso o que se verifica é que:
- em tais exercícios e face às normas aplicáveis a cada um deles, os gastos em questão continuarão a dever ter-se como afectados pela indedutibilidade ex ante imposta pelo art.º 32.º/2 do EBF, que não obstante a sua revogação, continuará a aplicar-se aos factos ocorridos durante a respectiva vigência; e
- o regime revogatório do art.º 32.º do EBF não previu nenhuma norma transitória, no sentido de aqueles gastos poderem/deverem ser deduzidos nos períodos em que foram incorridos;
- o facto jurídico subjacente à cessação da indedutibilidade ex ante que afectava os gastos em questão, ou seja, a revogação do regime jurídico do art.º 32.º do EBF, apenas ocorreu a 01/01/2014, ou seja, no exercício de 2014.
Pelo que se deverá concluir que os gastos em questão, sendo, face às regras gerais, dedutíveis, deverão sê-lo no exercício de 2014.
Em todo o caso, e mesmo que assim não se entendesse, tem sido jurisprudência recorrente do STA que:
“III - O princípio da especialização dos exercícios visa tributar a riqueza gerada em cada exercício e daí que os respectivos proveitos e custos sejam contabilizados à medida que sejam obtidos e suportados, e não à medida que o respectivo recebimento ou pagamento ocorram.
IV - Contudo esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.”[15]
Assim, também à luz do referido entendimento se deverá admitir a dedutibilidade dos gastos ora em questão no exercício de 2014, dado, manifestamente, não estarmos perante “omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios”, e visto que a não dedução em exercícios anteriores se deveu a impedimento legal, e que, como se viu, nunca, na interpretação e execução do regime do art.º 32.º/2 do EBF se considerou que o princípio da especialização dos exercícios obstasse à dedutibilidade de gastos indedutíveis ex ante, em exercício posterior àquele em foram incorridos, sendo que, de resto, esta solução até acaba por favorecer o credor tributário, como aponta a Requerente, designadamente ao nível do cálculo de juros que sejam devidos[16].
Deste modo, e face a todo o exposto, conclui-se que o princípio da especialização dos exercícios não deverá, em concreto, constituir obstáculo à dedutibilidade dos gastos em questão, em exercício posterior àquele em foram efectivamente suportados.
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Aqui chegados, crê-se ter ficado claro que face às normas legais aplicáveis se deverá concluir que:
- Os gastos sub iudice viram a indedutibilidade ex ante que os afectava cessada a 01/01/2014;
- O princípio da especialização dos exercícios não obsta a que os gastos em causa, cumpridos os requisitos gerais da dedutibilidade dos gastos, sejam deduzidos no exercício de 2014.
Deste modo, cumpre apenas aferir se aqueles requisitos gerais estão, ou não cumpridos.
A este propósito, o art.º 23.º do CIRC aplicável estabelece que:
“1 - Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.
2- Consideram-se abrangidos pelo número anterior, nomeadamente, os seguintes gastos e perdas: (...)
c) De natureza financeira, tais como juros de capitais alheios aplicados na exploração, descontos, ágios, transferências, diferenças de câmbio, gastos com operações de crédito, cobrança de dívidas e emissão de obrigações e outros títulos, prémios de reembolso e os resultantes da aplicação do método do juro efetivo aos instrumentos financeiros valorizados pelo custo amortizado;”
Estão em causa, deste modo, gastos reputados como expressamente dedutíveis pelo referido art.º 23.º/1 e 2/c) do CIRC aplicável, dado tratar-se de gastos suportados com encargos financeiros destinados à aquisição de participações sociais, sendo a Requerente uma SGPS, que tem como objecto, justamente e por definição, a aquisição e gestão de participações sociais.
No caso, e de resto, a AT não contesta, ou põe, por qualquer forma, em causa ou em dúvida, a natureza ou a quantificação dos gastos em questão, constantes das declarações periódicas da Requerente, que são do conhecimento pessoal da AT, e que se presumem verdadeiras nos termos do art.º 75.º/1 da LGT.
Nestes termos, haverá que concluir pela verificação dos requisitos gerais da dedutibilidade dos gastos ora em questão, por aplicação das normas indicadas, e não se postulando, antes se constatando e valorando devidamente, a ausência de qualquer disposição transitória na matéria em causa.
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Como se referiu inicialmente, verificada a respectiva efectividade, a indedutibilidade de um gasto incorrido por um sujeito passivo de IRC num determinado exercício resultará de uma das seguintes três hipóteses:
-
A não verificação dos requisitos gerais da dedutibilidade dos gastos;
-
A não compatibilidade da dedutibilidade do gasto com as regras de periodização económica;
-
A existência de norma específica que precluda, condicional ou definitivamente, a dedutibilidade do gasto.
E, como se vem verificar, relativamente aos gastos em discussão nos presentes autos, por referência ao exercício de 2014:
-
Cumprem os requisitos gerais da dedutibilidade dos gastos;
-
A sua dedutibilidade não é postergável pelas regras da periodização económica;
-
Não existe norma específica que precluda, condicional ou definitivamente a sua dedutibilidade.
Termos em que se terá de concluir pela admissibilidade da dedução dos gastos em questão, no exercício de 2014, enfermando, portanto, os actos tributários objecto da presente acção arbitral de erro de direito, e devendo, como tal e nessa medida, ser anulados.
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Questão análoga à que vem de se apreciar subjaz aos acórdãos arbitrais proferidos nos processos[17] n.ºs 754/2016-T e 645/2017-T, que julgaram procedentes os respectivos pedidos, e n.º 610/2017-T do CAAD, que julgou improcedente o respectivo pedido, e para o qual a Requerida remete expressamente.
Visto o referido acórdão, e com o muito e reconhecido respeito que lhe é devido, não se descortinam argumentos que invalidem o entendimento que atrás se firmou.
Assim, para além de considerações relativas às circulares, em geral, e à circular 7/2004, em especial, que irrelevarão para o que supra se expôs, na medida em que da referida circular não se retira nenhum argumento decisivo para qualquer uma das conclusões retiradas (sem prejuízo de o teor da mesma corroborar o quanto foi dito relativamente ao que foi a interpretação genericamente aceite do regime do art.º 32.º/2 do EBF), refere-se no referido acórdão que:
“Como ficou dito, no caso em apreço rege a lei nova que é precisamente o normativo do artigo 51.º-C do Código do IRC, a qual deveria aplicar-se ao Requerente caso tivesse realizado mais ou menos-valias com alienação das participações sociais descritas nos autos a partir de 2014. Relativamente aos encargos financeiros suportados a partir de 2014, também serão de aplicar as disposições em vigor desde 1 de janeiro de 2014, ou seja, dedução dos encargos financeiros ao abrigo da norma geral do artigo 23.º do Código do IRC, com a limitação prevista no artigo 67.º do Código do IRC.”
Este entendimento, é, precisamente, o que ora se segue, ou seja, considera-se que, in casu, a solução jurídica deve ser procurada na lei nova, e que desta resulta, apenas, que “aos encargos financeiros suportados a partir de 2014, também serão de aplicar as disposições em vigor desde 1 de janeiro de 2014, ou seja, dedução dos encargos financeiros ao abrigo da norma geral do artigo 23.º do Código do IRC, com a limitação prevista no artigo 67.º do Código do IRC.”.
Daqui decorre, como se viu, que a lei nova não impõe qualquer limitação aos gastos suportados anteriormente a 2014, sendo, precisamente, as circunstâncias de:
-
Se aplicar a lei nova; e
-
Se verificar a ausência nesta de norma que vede a dedutibilidade dos gastos suportados anteriormente a 2014, e cuja indedutibilidade definitiva não resulta de qualquer norma anteriormente vigente e aplicável aos períodos anteriores;
que conduz à solução a que se chegou previamente.
Mais se refere no acórdão em questão que “em relação aos encargos financeiros suportados até 2014, só a eventualidade de não virem a ser realizadas mais-valias permitirá, como adiante se verá, deduzir os gastos incorridos, mas essa é uma eventualidade incerta (dependente da desvalorização das participações sociais detidas em 2014), e é exatamente a mesma situação em que a Requerente estaria se o legislador não tivesse alterado o regime fiscal. Tendo-o feito de forma que lhe conferiu vantagens adicionais (a partir de 2014 pode beneficiar da isenção de mais-valias e da dedução dos encargos financeiros, nos termos gerais) não faz sentido pretender invocar para o passado uma argumentação que, por opção legislativa, só colhe para futuro.”
Em relação a estes considerandos, como se expôs previamente, considera-se que a Requerente não está “exactamente” na mesma situação que estaria se o legislador não tivesse alterado o regime fiscal, desde logo porque o novo regime, como se viu, não é “exactamente” o mesmo, variando, inclusive, a sua natureza jurídica, sendo, que nas palavras do “Relatório do Anteprojeto da Reforma” do IRC, o novo regime manteve, “no essencial, as vantagens que o Estatuto dos Benefícios Fiscais concedia a este tipo de entidades” (sublinhado nosso), e que o próprio acórdão em questão acaba, mais adiante, por reconhecer que o novo regime tem “pequenos ajustes”.
Que o novo regime é, na sua intencionalidade, substancialmente diferente do anterior, dá também conta aquele Relatório, que refere expressamente que “quanto aos encargos financeiros, (...) optou-se por não criar regras especiais limitativas da respetiva dedutibilidade ou recaptura”[18], de onde resulta que a tão relevada, no aresto em apreço, associação “entre os encargos financeiros não deduzidos e as mais-valias isentas”, se pretendeu quebrada no, ou pelo menos foi alheia ao, desenho do novo regime.
Acresce que, como se viu e se verá adiante, a questão a formular, não será a de saber se a Requerente está, “exactamente”, ou no “essencial” na mesma situação que estaria se o legislador não tivesse alterado o regime fiscal, ou, sequer se tem “vantagens adicionais”, mas se a lei nova consagra alguma previsão que mantenha a indedutibilidade ex ante dos gastos em causa, incorridos em períodos anteriores a 2014, não fazendo, como o acórdão em referência não faz, sentido aplicar para o passado, uma solução que, por opção legislativa, só colhe para futuro.
Prossegue o acórdão em questão, referindo que “conceder provimento ao pedido da Requerente seria como que admitir ficar na disponibilidade do SP escolher o ano de dedução dos encargos, fora do quadro legal, quer anterior, quer vigente.”, o que como se viu, anteriormente não será o caso, acrescendo que, como também se viu, na interpretação genericamente aceite e executada do art.º 32.º/2 do EBF, nunca foi questionada que a dedutibilidade, no caso de cessação da indedutibilidade ex ante decorrente daquele regime, deveria ser exercida no exercício em que se desse tal cessação.
Afigura-se ainda que no acórdão em causa não se separou devidamente a questão da dedutibilidade, ou não dos gastos face à revogação do regime do art.º 32.º do EBF, da questão do momento da dedutibilidade. Com efeito, esta última questão é independente e subsequente à primeira, não sendo por isso, causal e logicamente, susceptível de afectar a resposta a dar a esta.
Mais se refere no mesmo acórdão que “Por outro lado, seria também colocar a Requerente numa situação mais favorável do que a que decorria do regime do artigo 32.º, n.º 2, do EBF para as SGPS’s.”, consideração que, no quadro da fundamentação acima lavrada não assume qualquer relevância, já que não se considera estar em causa saber se os regimes são mais ou menos favoráveis, como se disse já, mas, unicamente, delimitar devidamente os seus termos de aplicação.
Por outro lado, a admissibilidade da dedutibilidade peticionada pelas Requerentes, não coloca as SGPS em situação mais vantajosa do que os restantes sujeitos passivos de IRC, mas no mesmo pé, sendo que, também estes, pela introdução do regime participation exemption no CIRC foram colocados “numa situação mais favorável do que a que decorria do regime” anterior, não se vendo porque razão o mesmo não poderá ocorrer para as SGPS.
Desenvolve o acórdão em causa a mesma ideia, referindo que:
“Na verdade, no quadro do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, às SGPS apenas era permitido, no momento da alienação das participações sociais, deduzir os encargos (até esse momento incorridos) com a aquisição das mesmas, caso a vantagem obtida (a isenção de mais-valias) não pudesse ser obtida.
Ora o que a Requerente pretende é, sem alienar as participações, deduzir desde já os encargos incorridos no passado com a aquisição de participações sociais, num quadro jurídico em vigor que lhe garante simultaneamente a isenção da tributação de eventuais mais-valias que possa vir a obter.
O que significaria favorecer a Requerente em relação a todas as demais SGPS que não tenham formulado pretensão idêntica.”
Relativamente a esta última parte, desde logo, não se descortina de que forma releva para a apreciação da questão em discussão, na medida em que é uma situação comum a todos os contribuintes que formulem pretensões junto da AT, em relação a outros contribuintes que não o façam. Em todos esses casos, caso os contribuintes que se empenhem em determinada causa obtenham ganho na mesma, ficarão favorecidos em relação aos contribuintes que optem por se conformar com a aplicação das normas tributárias feitas pela AT, em seu desfavor.
No mais, crê-se que o primeiro parágrafo ora em apreço contorna um dado, generalizando-o, que é o de que a vantagem obtida (ou a obter), ou não obtida, ser a da isenção de mais valias, no quadro do regime do art.º 32.º/2 do EBF, e não qualquer outra isenção, actual ou futura.
Para além disto resultar da própria lei, foi isto que o TC afirmou no seu acórdão 42/2014, já referenciado, ao indicar que não se dava a “correção dos custos não deduzidos em períodos tributários anteriores, caso a alienação de participação de capital não revista os requisitos para a aplicação do regime especial de isenção das mais-valias” (sublinhado nosso).
Quanto ao segundo parágrafo transcrito supra, sempre se dirá, para além do quanto se apontou já quanto à relevância das “vantagens” do novo regime para a discussão em causa, que o que as Requerentes pretendem é que, tal como os restantes sujeitos passivos de IRC, possam “deduzir desde já os encargos incorridos no passado com a aquisição de participações sociais, num quadro jurídico em vigor que lhe garante simultaneamente a isenção da tributação de eventuais mais-valias que possa vir a obter”.
Considera também o acórdão em questão, referindo que “ao contrário da pretensão da Requerente o regime ora aplicável a partir de 1 de Janeiro de 2014 não viola o princípio da igualdade.”.
Concordando-se que o regime “ora aplicável a partir de 1 de Janeiro de 2014 não viola o princípio da igualdade.”, julga-se que também o mesmo acontece com a pretensão das Requerentes, já que não só não cria qualquer desigualdade (antes pelo contrário) com os demais sujeitos passivos de IRC, como não haverá qualquer desigualdade injustificada entre SGPSs, na medida em que, como se referiu já, se tal ocorrer será porque umas reagiram contra a aplicação que a AT fez da lei, e outras não.
Reconhece o acórdão então que “É certo que relativamente às participações em carteira, que beneficiarão de isenção numa futura transmissão, sejam ou não detidas por SGPS, os encargos financeiros suportados para a sua aquisição não foram deduzidos pelas SGPS e foram deduzidos pelas restantes empresas.”, contrapondo que “a possibilidade de, a pretexto de uma mudança de regime, se vir permitir agora o que não era permitido antes – que é o que a Requerente reclama –, criaria uma situação de eliminação retroativa de parte do regime das SGPS, precisamente a que é desfavorável às SGPS, isto é, a desconsideração dos encargos financeiros.”.
Sendo um dado incontornável o primeiro aspecto assinalado, já o contraponto laborará, salvo melhor opinião e o muito respeito devido, num equívoco, que é o de que a pretensão das Requerentes “criaria uma situação de eliminação retroativa de parte do regime das SGPS”, o que não será o caso, na medida em que, como se tentou explicar anteriormente, o que ocorreu foi a eliminação in totum (e não parcial) do regime especial (benefício fiscal) das SGPSs, por um lado, e, por outro, não há qualquer retroactividade, uma vez que o que estará em causa será retirar os efeitos de tal revogação, face a gastos financeiros que, por força daquele regime especial tinham sido objecto de uma indedutibilidade ex ante, e que mantinham tal status jurídico à data daquela revogação, sem que o mesmo tenha sido convertido em definitivo.
Dito de outro modo, e como se apontou antes, a pretensão da AT, acolhida naquele acórdão, é que mantém os gastos em questão no referido status jurídico de indedutibilidade ex ante, que se resultava do regime do art.º 32.º/2 do EBF, após a revogação deste, e sem norma que disponha nesse sentido.
Mais adiante, conclui o acórdão em apreço que “não foram as SGPS que passaram para o regime das restantes sociedades (o que, reconheça-se, implicaria um cuidado acrescido na transição de regimes), foram as demais sociedades que passaram para o regime das SGPS.”.
Não se descortinando, por não especificado qual o “cuidado acrescido na transição de regimes” postulado, discorda-se, em função do quanto foi dito antes, do enquadramento feito, já que o que ocorreu foi a revogação de um regime especial, que constituía um benefício fiscal, sendo como tal, excepcional, e consagração de um regime geral de tributação dos rendimentos emergentes de participações sociais, por sujeitos passivos de IRC, integrado num lote de medidas destinado a aumentar a “eficiência do regime utilizado, a nível nacional, para eliminação da dupla tributação”, e causalmente desligada do regime especial anteriormente vigente para as SGPSs.
Conclui igualmente o acórdão que “As SGPS ficaram, portanto, onde sempre tinham estado, não se afigurando que, devam agora ser aceites fiscalmente os encargos financeiros desconsiderados ao longo da vigência do regime e que se encontram “imputados” ao valor de aquisição das participações financeiras em carteira, sem existir base legal nesse sentido.”.
Uma vez mais, e em função do anteriormente explicado, com ressalva do respeito devido, se discorda, uma vez que, no novo regime, as SGPSs deixaram de ter um regime especial próprio, integrante de um benefício fiscal, para passarem a estar integradas no regime geral, que, nas palavras do “Relatório do Anteprojeto da Reforma” do IRC, tornou aquele regime especial “redundante”.
Por outro lado, e também em função do já exposto, julga-se que não existe base legal necessária é para manter, como julgou aquele acórdão, o status jurídico de indedutibilidade ex ante dos gastos em questão, ou para o converter em indedutibilidade definitiva. Já a dedutibilidade dos gastos, resultará, como também se viu, da aplicação das regras gerais que disciplinam tal matéria.
Prossegue o acórdão no, que se julga, um novo equívoco ao exarar que:
“A questão relevante é a de saber se esse “custo” de formação de uma futura vantagem deve ser-lhe devolvido. Afigura-se óbvio que a resposta dependerá de a vantagem ainda lhe poder ser atribuída ou não. Se ela incorreu em custos para obter uma certa vantagem que o legislador depois lhe sonegou, é de toda a justiça que seja ressarcida desses custos: outra coisa seria violar os princípios mais elementares do Estado de Direito, se é que não legitimar a fraude legal. Se ela incorreu em certos custos e a vantagem que pretendia obter com eles lhe continua a ser devida, então parece igualmente óbvio que a decisão de a dispensar desses custos cabe por inteiro ao legislador.”.
Com efeito, e como se viu anteriormente na análise ao regime do art.º 32.º/2 do EBF, a indedutibilidade ex ante dos gastos ali em causa não era, nem deverá, ser enquadrada como ““custo” de formação de uma futura vantagem”, mas antes como o efeito de um facto impeditivo da dedutibilidade daqueles gastos, decorrente da referida norma do art.º 32.º/2 do EBF.
Dito de outra forma, tal como foi, de forma genericamente aceite, interpretada aquela norma, a mesma impedia a dedutibilidade dos gastos nela previstos, até se verificar que, em oposição à normalidade das coisas, as SGPSs não beneficiavam do regime nela previsto. Foi assim, crê-se que de forma meridianamente clara, que o TC interpretou o regime em questão, no supra mencionado acórdão 42/2014, e foi assim que, por norma, desde logo em obediência à Circular 7/2004, a AT a interpretou.
Não estará assim, prosaicamente, em causa um “custo” pago pela Requerente, que lhe haja de ser devolvido, mas antes a vigência de um regime legal que consagrava uma indedutibilidade ex ante dos gastos em questão, como, de forma igualmente prosaica, não estará em causa a Requerente ter incorrido “em certos custos”, em ordem a obter uma “vantagem (...) com eles”, e que “lhe continua a ser devida”, já que, desde logo, nunca esteve na disponibilidade da Requerente comprar ou não comprar a putativa vantagem, nem o regime do art.º 32.º/2 do EBF lha garantia, uma vez que, sendo provável, não deixava de ser eventual, nem o novo regime lha garante, nos mesmos termos, sendo que, mesmo que se aceitasse a tese do custo/vantagem, o certo é que o custo da vantagem prevista no mesmo regime não é o mesmo que estava previsto no regime anterior, dado que, como se viu, do novo regime apenas decorre a indedutibilidade dos gastos incorridos de 2014 em diante, e não em períodos anteriores àquele, sendo que, como também se viu já, inexiste qualquer norma que imponha para as SGPS um custo diferente para a vantagem consagrada no novo regime.
Na mesma linha, consta ainda do acórdão que se está a acompanhar que “as sociedades que não incorreram nos custos impostos às SGPS (não dedutibilidade dos gastos de financiamento na aquisição de participações sociais, com a correspondente majoração dos impostos pagos) também não tiveram, durante a mais de uma década em que durou a divergência de regimes, a possibilidade de beneficiarem da correlata vantagem (isenção de mais-valias na alienação das participações sociais).”, considerações que não se acolhem pelo exposto anteriormente, ou seja, que o que está em causa é a vigência e aplicação de determinado regime legal (no caso de um benefício fiscal), e não a compra de uma qualquer vantagem.
Acresce ainda que, relativamente às participações sociais que se mantinham na titularidade da Requerente a 01/01/2014, a Requerente não obteve “durante a mais de uma década em que durou a divergência de regimes” qualquer “correlata vantagem”, não se descortinando, na fundamentação do acórdão ou em qualquer outra sede, justificação para a mera “possibilidade” daquela e/ou as vantagens auferidas relativamente a outras participações entretanto alienadas, impôr a partir da referida data, relativamente a participações ainda detidas, um custo superior à dos restantes sujeitos passivos de IRC para uma mesma vantagem.
Por fim, a argumentação em questão desconsidera um dado legal relevante, na perspectiva analítica que adopta (teoria custo/vantagem), e que é o seguinte: previamente à instituição do regime participation exemption, os sujeitos passivos de IRC que não fossem SGPSs podiam deter participações sociais e auferir os respectivos benefícios (dividendos), beneficiando da vantagem consagrada no art.º 51.º do CIRC (anterior art.º 46.º, eliminação da dupla tributação económica) e deduzindo os gastos financeiros em que tivessem incorrido, enquanto que as SGPSs[19], que estivessem na mesma posição, tinham a mesma vantagem mas a um custo acrescido, que era o de não poder deduzir aqueles gastos, não se devendo perder de vista que, como consta do “Relatório do Anteprojeto da Reforma” do IRC, “a realização de mais-valias e a distribuição de dividendos são duas formas alternativas de aportação de valor aos acionistas”[20] (sublinhado nosso).
Para além disso, os sujeitos passivos de IRC que não fossem SGPSs podiam, ao contrário destas, beneficiar, adicionalmente e sempre sem prejuízo da dedutibilidade dos encargos financeiros correspondentes, ou de qualquer outro custo adicional, da vantagem consagrada no art.º 48.º do CIRC, ao nível da tributação de mais valias decorrentes da alienação de participações sociais de que fossem titulares, bem como da consideração, como custo fiscal, de metade das menos valias geradas por tal alienação, nos termos do art.º 45.º/3, também do CIRC.
Ou seja: antes da instituição do novo regime as SGPS tinham uma potencial vantagem em relação aos restantes sujeitos passivos de IRC ao nível de eventuais mais-valias que decorressem da alienação de participações sociais, mas:
- tinham um regime mais desfavorável, no que respeitava aos rendimentos gerados pelas participações sociais que detivessem (dividendos);
- tinham um regime mais desfavorável no que respeitava ao tratamento das menos-valias decorrentes da alienação de participações sociais;
- sendo que os restantes sujeitos passivos de IRC podiam, nas condições aí previstas, beneficiar do regime do art.º 48.º do CIRC, na tributação das mais valias geradas pela alienação de participações sociais.
De onde decorre, desde logo, que o benefício para as SGPS, decorrente do regime do art.º 32.º/2 do EBF não era tão acentuado como o acórdão que se tem estado a rever considerou, dado que:
- por um lado, existia também um regime geral que, em determinadas condições, concedia um tratamento fiscal favorável às mais valias decorrentes da alienação de participações sociais, sem prejudicar o regime geral da dedutibilidade dos encargos financeiros suportados com a aquisição daquelas, e sem qualquer outro custo adicional;
- tinha correspondência, não só na indedutibilidade ex ante dos encargos financeiros relacionados com as participações sociais susceptíveis de gerar aquele benefício, como na sujeição a um regime fiscalmente mais oneroso no que diz respeito não só aos rendimentos gerados pelas participações sociais detidas, como à consideração como gasto das eventuais menos-valias geradas pela alienação, a qualquer título, daquelas.
Assim, se a Requerente, e as outras SGPSs, tiveram “durante a mais de uma década em que durou a divergência de regimes, a possibilidade de beneficiarem da (...) vantagem (isenção de mais-valias na alienação das participações sociais)”, esta não era, simplisticamente, “correlata” do custo de não poder deduzir os gastos financeiros relativos a tais participações, mas também de ter os referidos regimes agravados, relativamente às menos-valias e aos dividendos, repetindo-se que “a realização de mais-valias e a distribuição de dividendos são duas formas alternativas de aportação de valor aos acionistas”, pelo que não deverão, nem poderão, ser menos ou desprezadas tais circunstâncias.
Daí que, repita-se, será, no mínimo, extremamente redutor considerar a indedutibilidade ex ante imposta pelo regime do art.º 32.º/2 do EBF, como um ““custo” de formação de uma futura vantagem”, quando na realidade e vistas bem as coisas, acaba por ser um regime genericamente equilibrado e balanceado entre vantagens e desvantagens, regime esse que foi, in totum, revogado.
Conclui, por fim, o acórdão em apreço que “conceder provimento ao pedido da Requerente seria admitir a dissociação, para o passado, entre os encargos financeiros não deduzidos e as mais-valias isentas, solução essa que não encontra apoio no regime anterior nem foi salvaguardada pelo atual”, já que para aquele Tribunal a Requerente “pretende que o Tribunal Arbitral reconheça a possibilidade de dedução em 2014 da totalidade dos encargos financeiros incorridos com participações sociais e não deduzidos nos exercícios de 2008 a 2013, inclusive, sem a verificação da condição legalmente imposta (alienação das participações sociais) e independentemente do regime fiscal dessa alienação.” uma vez que “A Requerente não alega nem prova em que participações sociais não beneficiou/beneficiará do regime de isenção de mais-valias previsto no artigo 51.º-C do Código do IRC, por não se verificarem os requisitos do regime que não eram exigidos pelo artigo 32.º do EBF”.
Para o acórdão em causa, “não tendo o legislador previsto uma norma transitória que salvaguardasse os efeitos da revogação do artigo 32.º do EBF, no que concerne à dedução dos encargos financeiros anteriormente incorridos, não pode o mesmo pretender deduzir os referidos encargos financeiros na totalidade em 2014”, uma vez que “se tivesse querido salvaguardar a dedução da totalidade dos encargos financeiros no ano de 2014, tê-lo-ia previsto na Lei que revogou o artigo 32.º do EBF ou, no limite, na Lei da Reforma do IRC.”, pelo que “não tendo estabelecido uma norma transitória sobre os encargos financeiros não deduzidos ao abrigo da lei antiga, não pode o intérprete criar essa norma transitória, admitindo a dedução dos referidos encargos financeiros, na totalidade, no exercício de 2014.”.
Sempre salvaguardado o muito respeito devido, julga-se que emerge aqui o equívoco de base do aresto para que remete a Requerida, que é o de desconsiderar que existem normas gerais que disciplinam a dedutibilidade dos gastos, e que, verificados esses requisitos gerais aquela dedutibilidade apenas poderá ser afastada pelas regras da periodização económica ou por norma especial que a afaste.
Daí que a questão não seja a de encontrar uma norma, designadamente, transitória, que autorize a dedutibilidade de gastos cuja dedutibilidade já decorre das normas gerais, mas, pelo contrário, a de encontrar uma norma que afaste ou restrinja tal dedutibilidade.
E é precisamente a inexistência de tal norma, seja no regime novo, seja em sede de normas transitórias que deverá conduzir à conclusão oposta àquela a que chegou a decisão que se analisou, não só por força do princípio hermenêutico do legislador razoável, que imporia que se aquele quisesse que, no âmbito do novo regime as SGPSs tivessem um tratamento mais desfavorável que os restantes sujeitos passivos, deveria dizê-lo, como também, e sobretudo, por força dos princípios da legalidade e da tipicidade a que deve obedecer a lei fiscal.
Para além disso, e como se procurou demonstrar, não está em causa “a dissociação, para o passado, entre os encargos financeiros não deduzidos e as mais-valias isentas”, já que as mais-valias isentas, a existirem, serão associadas aos encargos financeiros abrangidos pelo novo regime, sendo que, lá está, inexiste qualquer norma vigente para o exercício de 2014 que faça qualquer associação entre os encargos financeiros não deduzidos anteriormente àquele ano e as mais valias que se venham a gerar daí em diante.
Para além disso, e como se procurou demonstrar, não existe um nexo causal exclusivo entre a isenção da tributação de mais valias prevista pelo art.º 32.º/2 do EBF e a indedutibilidade ex ante, também decorrente do mesmo artigo, já que tal regime implica, igualmente, um tratamento mais desfavorável, em relação ao regime geral contemporaneamente vigente, no que diz respeito à tributação de dividendos e à consideração como gastos das menos-valias, tratando-se, assim, de um regime global, com um conjunto de equilíbrios e contrapesos, que não pode ser, simplesmente, reduzido a uma troca, entra a desconsideração de um gasto e a não tributação de um ganho.
Por fim, e como também previamente se expôs, não se considera que tenha havido uma sucessão de regimes (no sentido de ter havido a substituição da regulação de uma determinada matéria, por outra regulação sobre a mesma matéria), mas a revogação de um regime tout court, e a posterior consagração de outro, que dispondo sobre matéria distinta, tornou, colateralmente, aquele redundante.
Por todo o exposto, e uma vez mais, sempre salvaguardando o respeito devido e mantido à decisão em questão, não se pode acompanhar o decidido no acórdão 610/2017-T.
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Não obstante julgar-se que a fundamentação precedente dá resposta a todas as questões que se possam, de forma relevante, colocar acerca da matéria em questão, por exaustividade, analisar-se-ão, especificadamente, os argumentos e questões apresentados em sentido contrário pela Requerida.
Relativamente às considerações relativas ao teor da Circular 7/2004 bem como à ficha doutrinária exarada no processo n.º 39/2011, conforme se referiu já, ao analisar o acórdão arbitral proferido no processo 610/2017-T do CAAD, não se julga que as mesmas contendam com as conclusões anteriormente formuladas, na medida em que nenhum argumento decisivo se retira daqueles entendimentos administrativos.
No que diz respeito à circunstância de o denominador comum às disposições transitórias constantes da Lei n.º 83- C/2013, de 31/12 e do artigo 12.º da Lei n.º 2/2014, de 16-01 ser o de não se prever qualquer regime transitório, designadamente de regularização de gastos ou de rendimentos, de prejuízos ou de operações respeitantes a períodos de tributação com início anterior a 1 de Janeiro de 2014, como se viu anteriormente, tem a consequência precisamente oposta à retirada pela Requerida.
Com efeito, a circunstância de não ser prevista qualquer disposição transitória, que como a própria Requerida refere “não se tratou de lapso”, designadamente no sentido de se manter a indedutibilidade ex ante decorrente do art.º 32.º/2 do EBF revogado, ou de a consolidar como indedutibilidade definitiva, é que concorre para a conclusão de que aquela indedutibilidade ex ante cessou com a revogação referida.
Por outro lado, não está em causa uma regularização, dado que não precedeu qualquer irregularidade, mas unicamente a aferição da dedutibilidade de gastos efectivamente incorridos, à luz das normas vigentes no momento relevante.
Deste modo, afrontoso do princípio da legalidade, seria qualificar, no exercício de 2014, os gastos em questão como indedutíveis (ex ante ou definitivamente), sem qualquer norma que sancione tal qualificação.
Face ao previamente exposto, não será igualmente, de acolher o entendimento da Requerida, segundo o qual a Lei n.º 2/2014, de 16-01, que procedeu à reforma da tributação das sociedades (comummente designada "reforma do IRC”), introduziu no nosso ordenamento jurídico o denominado regime de participation exemption, o qual, no tocante às mais-valias e menos-valias realizadas com a transmissão onerosa, expandiu o “método da isenção” anteriormente aplicável às SGPS e previsto no artigo 32.º do EBF a todos os sujeitos passivos de IRC que exerçam a título principal uma atividade comercial, industrial ou agrícola, desde que cumpridos todos os pressupostos de aplicação estabelecidos no artigo 51.º-C do Código do IRC.
Efectivamente, como se viu, não há qualquer continuidade ou expansão de regimes, formal, substancial ou teleológica, mas antes a revogação de um, e a criação de outro, distinto, que tornou redundante o primeiro.
Relativamente às considerações a propósito dos princípios da tutela da confiança ou da igualdade, e do carácter penalizador ou não do novo regime, conforme resulta da fundamentação precedente, não são factores, crê-se, decisivos na apreciação a fazer, que resulta, essencialmente, da interpretação e aplicação do regime jurídico relativo à dedutibilidade dos gastos, vigente no exercício em causa (2014).
Quanto à circunstância de a Requerente reclamar a dedução de uma só vez da totalidade dos encargos financeiros que não deduziu nos exercícios de 2007 a 2011, foi já objecto de apreciação anteriormente, a propósito da análise feita à luz do princípio da periodização económica, e do acórdão arbitral proferido no processo 610/2017-T.
A consideração de que só os gastos financeiros suportados pela Requerente em 2014 e exercícios seguintes, ainda que decorrentes de financiamentos contraídos em exercícios anteriores, por força dos critérios que regem a imputação temporal dos gastos (n.º 1 do art.º 18.º do Código do IRC) são abrangidos pelas regras gerais de dedutibilidade dos gastos previstas nos artigos 23.º e 67.º do mesmo Código, carece, como se viu, de fundamento legal, pelo que não será a pretensão da Requerente a reconduzir-se ao preenchimento de uma lacuna, mas antes a interpretação que a Requerida pretende fazer valer, ao não assentar em qualquer norma legal vigente no exercício de 2014, que se reconduz a tal operação.
Julga-se, por isso e por todo o anteriormente exposto, que não se verificam as inconstitucionalidades arguidas pela Requerida, designadamente a violação do disposto no artigo 13.º e no artigo 103.º da CRP, e/ou dos princípios da legalidade tributária, na vertente da generalidade e abstração da lei fiscal, da igualdade tributária.
Do mesmo modo, e também à luz da fundamentação previamente explanada, não se crê que haja qualquer aplicação retroactiva da lei, ao contrário do arguido pela Requerida.
Com efeito, o que se procede é à aplicação da lei vigente em 2014 a realidades que persistiam a essa data, e face a factos jurídicos ocorridos também nessa data, ou seja, e concretamente, aos gastos incorridos pela Requerente, que estiveram até aí sujeitos a um regime de indedutibilidade ex ante, e que, nesse exercício, por falta de norma que a mantivesse ou convertesse em indedutibilidade definitiva, viram alterado o seu status jurídico-tributário.
Não haverá assim qualquer retroatividade, do mesmo modo que, na hipótese pugnada pela Requerida, de, no caso de as participações sociais em questão não virem a beneficiar do regime do art.º 51.º-C do CIRC, ser facultada à Requerente a possibilidade de deduzir os gastos em causa, não haveria qualquer retroactividade.
Haveria, sim, retroactividade, se se prosseguisse a senda, também sugerida pela Requerida, de que os gastos em questão, concluindo-se pela sua dedutibilidade, deveriam ser deduzidos no exercício em que foram incorridos, já que tal se daria em violação do regime então vigente, que impunha a sua indedutibilidade ex ante, e corresponderia à aplicação do regime entrado em vigor em 2014, que não manteve aquela nem a converteu em definitiva, a períodos anteriores à sua vigência.
Por fim, julga-se que haveria também retroactividade, caso se corroborasse o entendimento sustentado pela Requerida, já que tal se reconduziria a, em 2014 – exercício sub iudice – aplicar a indedutibilidade ex ante consagrada no regime que entrou em vigor em 2014, a factos (encargos financeiros) ocorridos antes daquela data.
Julga-se, também, que não ocorre qualquer violação dos princípios da tributação do lucro real e da capacidade contributiva (artigo 104.º, n.º 2 da CRP), tal como não existirá qualquer violação de tais princípios, por ser permitido aos restantes sujeitos passivos de IRC, que não SGPSs, deduzir os mesmos encargos, incorridos previamente à entrada em vigor do novo regime, e tal como ocorria anteriormente a este, quando aqueles sujeitos passivos, que não SGPSs, beneficiavam da não tributação de dividendos, nos termos do art.º 51.º do CIRC, podendo deduzir os encargos financeiros incorridos com a aquisição das participações sociais geradoras daqueles[21].
Não se reputa, igualmente, susceptível de fundar qualquer violação dos princípios da tributação do lucro real e da capacidade contributiva, a putativa violação do princípio da especialização dos exercícios, desde logo porquanto, como se viu, o STA esclareceu já devidamente que não se trata de um princípio absoluto, para além de, como também se viu, se crer que não há qualquer violação daquele, e que a situação sempre seria análoga à dedutibilidade dos mesmos encargos aquando da alienação das participações sem que se verificasse a aplicação do regime do art.º 32.º/2 do EBF, situação em que, como igualmente se abordou, era consensualmente aceite que era possível/imposto que o sujeito passivo, nesse caso, deduzisse todos os encargos com a participação em causa, no exercício em que se dava a alienação em tais condições, e não no exercício em que tinha incorrido nos referidos encargos.
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Conjuntamente com o pedido anulatório, a Requerente peticiona a restituição do imposto indevidamente pago, por força da liquidação parcialmente anulada, e a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.
Tendo-se este Tribunal declarado competente para conhecer dos pedidos em causa, e concretamente do primeiro daqueles indicados, cumpre apreciar a questão, suscitada pela Requerida, de os encargos aqui em causa, terem sido discutidos em processos arbitrais onde a Requerente peticionou a sua dedução no respectivo exercício, com o fundamento que a circular 7/2004 é ilegal/inconstitucional, não podendo ser aplicada (processos arbitrais n.º 333/2017-T, referente ao período de 2010 e n.º 471/2017-T, referente ao período de 2009).
No que diz respeito à questão, suscitada pela Requerida, de o desfecho de tais processos contender com a quantificação dos valores a restituir à Requerente, e por esta peticionados, julga-se que não haverá qualquer óbice a reconhecer.
Com efeito, estaremos aqui numa situação semelhante, mas invertida, às de duplicação de colecta. Nestas, como aqui, apenas poderá obstar ao pagamento das quantias exigidas por mais de uma via, o pagamento efectivo numa delas.
Ora, em relação aos processos indicados pela Requerida, ao contrário do outro, referente ao exercício de 2011, e já computado pela Requerente no pedido formulado, não se demonstra que haja ocorrido, efectivamente, qualquer restituição do imposto peticionado, pelo que nada obstará a que seja reconhecido aqui o direito à restituição do mesmo, sem prejuízo de, em sede de execução da presente decisão, a AT poder efectuar os descontos que entenda pertinentes, designadamente por força de eventuais restituições a que, entretanto, proceda, e de a Requerente, discordando dos mesmos, poder lançar mãos dos meios previstos na lei para a execução de julgados.
Quanto ao pedido de juros indemnizatórios formulado pela Requerente, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
No caso, o erro que afecta as liquidações anuladas é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, que manteve o acto de liquidação objecto da presente acção arbitral, sem o necessário suporte legal.
Como se dispôs no Acórdão do STA de 19-09-2018, proferido no processo 0926/17[22], em doutrina directamente transponível para os presentes autos[23]:
“No caso de actos de retenção na fonte e de pagamento por conta, embora esteja, em princípio, afastada a possibilidade de existir erro imputável aos serviços, o legislador entendeu que o erro passa a ser imputável aos serviços caso o contribuinte deduza impugnação administrativa (reclamação graciosa e recurso hierárquico) contra tais actos e ocorra o seu indeferimento (expresso ou silente). Isto é, passará a ser imputável aos serviços a partir do momento em que, pela primeira vez, a administração tributária toma posição desfavorável ao contribuinte e indefere a sua pretensão.”.
Tem, pois, direito a ser reembolsada a Requerente da quantia que pagou (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT) por força dos actos anulados e, ainda, a ser indemnizada pelo pagamento indevido através do pagamento de juros indemnizatórios, pela Requerida, desde 20 de Setembro de 2017 (data do indeferimento da reclamação graciosa), até reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
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Anular os actos de indeferimento do recurso hierárquico datado de 18 de Abril de 2018, de indeferimento da reclamação graciosa datado de 20 de Setembro de 2017, e, parcialmente, o acto de autoliquidação de IRC relativo ao exercício de 2014, no valor de € 4.572.676,79;
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Condenar a AT na restituição dos montantes de imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos supra expostos, o que compreende os descontos que possam resultar dos reembolsos resultantes das decisões proferidas nos processos arbitrais n.º 333/2017-T, referente ao período de 2010 e n.º 471/2017-T, referente ao período de 2009.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 4.572.676,79., nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Notifique-se.
Lisboa, 9 de Abril de 2019
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho)
O Árbitro Vogal
(Fernando Araújo)
O Árbitro Vogal,
(João Menezes Leitão, com declaração de voto de vencido)
DECLARAÇÃO DE VOTO DE VENCIDO
I. Observações iniciais
1. A posição que fez vencimento nos presentes autos, da qual respeitosamente dissinto, decidiu que, em atenção à revogação pela Lei n.º 83-C/2013, de 31.12, da disposição prevista no art. 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), cabe à Requerente, que constitui uma sociedade gestora de participações sociais, o direito de, no ano de 2014, deduzir fiscalmente ao seu lucro tributável (e, logo, ao lucro tributável do grupo de sociedades sujeito ao Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS) de que era sociedade dominante nesse ano de 2014) a totalidade dos encargos financeiros suportados desde 2007 até 2011 com a aquisição de participações sociais ainda detidas em 31.12.2013, no montante global de €19.881.203,41, a que corresponde um montante de imposto liquidado naquele ano de 2014 de €4.572.676,79.
2. O ponto de Direito substantivo fulcral em causa prendia-se, com efeito, em ajuizar, na espécie aqui em julgamento, se constitui consequência jurídica decorrente da revogação da disposição constante do n.º 2 do art. 32.º do EBF (cujo enunciado, conforme a redacção por último resultante do art. 144.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30.12, era o seguinte: “As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim, os encargos financeiros suportados com a sua aquisição não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades” – esta redacção, em substância, remonta à Lei n.º 32-B/2002, de 30.12, cujo art. 38.º alterou o art. 31.º do EBF, o qual veio a ser renumerado como art. 32.º pela republicação do EBF efectuada pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26.6), que foi operada pelo art. 210.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31.12 (que, sob a epígrafe “Norma revogatória no âmbito do Estatuto dos Benefícios Fiscais”, dispôs o seguinte: “São revogados o artigo 32.º, os n.ºs 1 e 2 do artigo 32.º-A e 4 a 7 do artigo 41.º, o artigo 42.º e a alínea b) do n.º 5 e os n.ºs 9 a 11 do artigo 60.º do EBF, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de julho”), a dedutibilidade fiscal, no período de tributação de 2014, dos encargos financeiros suportados por sociedade gestora de participações sociais (SGPS) em períodos de tributação anteriores à data de entrada em vigor da referida Lei n.º 83-C/2013, de 31.12 (1.1.2014, nos termos do respectivo art. 260.º) com financiamentos para aquisição de partes de capital ainda detidas em 31.12.2013.
3. Para exacta apreciação desta questão de Direito, é preciso ter presente que aquela disposição do n.º 2 do art. 32.º do EBF – que, em si mesma, constitui estritamente uma regra de não consideração para a formação do lucro tributável das SGPS das componentes positivas e negativas constituídas pelas mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e pelos encargos financeiros suportados com a sua aquisição – foi interpretada, no que concerne à correcção fiscal necessária à desconsideração, assim estabelecida, dos encargos financeiros, nos termos de uma eventual concatenação temporal pela qual os encargos financeiros suportados em certo período tributário (após 1.1.2003) não eram deduzidos fiscalmente nesse período, mas poderiam eventualmente ser considerados no período temporal não coincidente da alienação das partes de capital, caso as mais-valias daí advenientes fossem então incluídas na base tributável respectiva (fiscalidade latente). Por outras palavras, os montantes dos encargos financeiros conexos com financiamentos para aquisição de partes de capital por SGPS eram acrescidos ao lucro tributável no período em que foram incorridos (e reconhecidos na contabilidade como gastos em conformidade com o princípio da periodização económica), mas esses valores poderiam ser readmitidos ou recapturados como componentes negativas para redução do lucro tributável no período da alienação das partes de capital a que respeitavam se as mais-valias pertinentes concorressem nessa altura para a formação desse lucro tributável.
4. Este entendimento foi adoptado na Circular n.º 7/2004, de 30.3, da DSIRC, em cujo ponto n.º 6, sob a epígrafe “Exercício em que deverão ser feitas as correcções fiscais dos encargos financeiros”, se considerou o seguinte: “Relativamente ao exercício em que deverão ser desconsiderados como custos, para efeitos fiscais, os encargos financeiros, dever-se-á proceder, no exercício a que os mesmos disserem respeito, à correcção fiscal dos que tiverem sido suportados com a aquisição de participações que sejam susceptíveis de virem a beneficiar do regime especial estabelecido no n.º 2 do art.º 31º do EBF, independentemente de se encontrarem já reunidas todas as condições para a aplicação do regime especial de tributação das mais-valias. Caso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores”. Como se observa, segundo a orientação administrativa constante desta Circular (e, nessa medida, com exclusiva valia jurídica interno-hierárquica, mesmo que assistida de uma relevância persuasiva ou argumentativa externa), à correcção fiscal, no período em que foram suportados, dos encargos financeiros relativos à aquisição de partes de capital por SGPS poder-se-ia eventualmente seguir a recuperação, como gasto fiscal, desses encargos financeiros no exercício da alienação das partes de capital em causa, caso esta alienação implicasse a realização de mais-valias relevantes para a determinação do lucro tributável.
5. A conformidade e razoabilidade constitucional desta orientação hermenêutico-aplicativa em atenção aos princípios da igualdade e da proporcionalidade mereceu acolhimento no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/2014 (n.ºs 21 e 22) que decidiu “não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 31.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, na redação conferida pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro, na parte em que impõe a indedutibilidade fiscal dos encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital logo que estes sejam incorridos, independentemente da realização de mais-valias isentas de tributação com a alienação de tais partes de capital” (al. b) do respectivo dispositivo) e em que, designadamente, se considerou sobre “a dissociação temporal entre a não dedução (imediata) dos encargos financeiros e isenção (futura) de tributação de mais-valias realizadas” o seguinte: este “afastamento decorre, desde logo, da distinta natureza e tipologia de formação dos factos tributários em ponderação, protelando-se sucessivamente e ao longo de período temporal alargado, abrangendo os encargos financeiros vários exercícios e períodos de tributação, enquanto a realização de mais-valias ocorre num único momento e período de tributação. Nessa medida, não se reputa de excessivo e intolerável regime que pondere e faça atuar a indedutibilidade de encargos financeiros ex ante, em cada período de tributação em que são incorridos, por referência à medida que a equilibra, tendo em atenção a preservação da possibilidade de (efetiva e futura) realização de mais-valias. Tanto mais que a normação em apreço não exclui a eventualidade de correção dos custos não deduzidos em períodos tributários anteriores, caso a alienação de participação de capital não revista os requisitos para a aplicação do regime especial de isenção das mais-valias”.
6. Constitui, assim, no que aqui importa, dado relevante da concretização do quadro normativo previsto no n.º 2 do art. 32.º do EBF a indedutibilidade fiscal ex ante (em relação à realização de mais-valias não tributáveis das partes de capital) dos encargos financeiros associados à aquisição de partes de capital nos exercícios em que foram incorridos, ainda que com possibilidade da sua recuperação fiscal em período posterior em que ocorresse a alienação das partes de capital e as mais-valias então realizadas fossem incluídas no lucro tributável da SGPS.
7. Ora, como se disse, para a orientação que fez vencimento, em face da revogação do n.º 2 do art. 32.º do EBF pela Lei n.º 83-C/2013, de 31.12, tem que se reconhecer às SGPS a dedução una tantum ao lucro tributável de 2014, primeiro exercício subsequente à referida revogação, de todos os encargos financeiros anteriormente suportados com a aquisição de partes sociais ainda detidas à data de 1.1.2014.
8. Dado que, conforme decorre do pressuposto, que julgo fundamental (e absolutamente vital na arbitragem tributária – n.º 2 do art. 2.º do RJAT), de que “os juízes aplicam o Direito criado pelo legislador, pelo que o fundamento normativo de uma decisão judicial só pode ser uma norma ou uma multiplicidade de normas gerais e não considerações de razoabilidade ou equidade” (JOSÉ LAMEGO, Elementos de Metodologia Jurídica, Coimbra, 2016, p. 155), é exigência hermenêutico-aplicativa que o julgador, não obstante a pré-compreensão que possua, não deve imputar o seu discurso próprio ao textos legais, mas antes assegurar que, para o caso decidendo, os enunciados normativos, na sua localização temporal e consistência gramatical, contextual e teleológica, dizem o que efectivamente dizem (juris dictio), como entendo que a estatuição jurídica que foi configurada da dedutibilidade integral e instantânea em 2014, pelas SGPS, da totalidade dos encargos financeiros anteriormente suportados e associados a partes de capital ainda detidas em 1.1.2014, não possui guarida nem justificação na normatividade legal aplicável, votei vencido, pelos fundamentos a seguir expostos.
II. Ausência de fundamento normativo do critério decisório configurado da dedução una tantum em 2014 dos encargos financeiros suportados por SGPS desde 2007 a 2011 com a aquisição de partes de capital detidas em 1.1.2014
9. O critério de decisão que conduziu a tese vencedora a reconhecer, em relação à controvérsia sub judice, a dedutibilidade em 2014 da totalidade dos encargos financeiros suportados pela Requerente desde 2007 a 2011 com a aquisição de partes de capital ainda detidas em 1.1.2014, se bem apreendo a argumentação apresentada (centro-me na secção do acórdão em que se desenvolve a posição perfilhada e não na componente dedicada a apontar pretensos “equívocos” à decisão proferida no processo n.º 610/2017-T), assentou nos seguintes motivos:
i) “o regime do art.º 32.º/2 do EBF, à data da sua revogação, e do art.º 31.º/1 do mesmo diploma antes de 01/01/2008, tal como foi comummente interpretado, (...) não postulava uma indedutibilidade definitiva dos encargos financeiros suportados com a aquisição de participações financeiras, detidas por período não inferior a um ano, por SGPS, mas uma indedutibilidade “condicionada” ao facto de que as mais ou menos valias geradas pela respectiva alienação não viessem a contribuir para o cômputo do lucro tributável das SGPS”, isto é, “os “custos”/encargos financeiros em causa tinham uma dedutibilidade sob "condição suspensiva", ou seja, a dedutibilidade apenas seria "eficaz" quando a “alienação de participação de capital não revista os requisitos para a aplicação do regime especial de isenção das mais-valias” do art.º 32.º/2 do EBF”;
ii) “com a cessação, por revogação, do regime do art.º 32.º do EBF, deixa de existir a norma que mantinha a indedutibilidade em questão (ex ante) dos gastos financeiros em causa”, ou seja, “a 01/01/2014 a norma especial (relativa a benefícios fiscais) que impunha a indedutibilidade dos gastos financeiros, ora em causa, deixou de vigorar, pelo que deixou de condicionar (de ser aplicável) ao juízo de dedutibilidade ou indedutibilidade de tais gastos”; “face ao novo regime, em vigor a partir de 01/01/2014, tais gastos não se tornaram definitivamente indedutíveis, nem viram mantida a sua indedutibilidade ex ante”; “não se tendo tornado definitivamente indedutíveis, nem tendo sido mantida a sua indedutibilidade ex ante, ter-se-á de concluir que os gastos em questão serão dedutíveis, ou não, pela aplicação dos critérios gerais à luz dos quais se deve aferir a dedutibilidade dos gastos”;
iii) quanto à “determinação do exercício em que tal dedutibilidade deve ser efectivada, no caso de, à luz dos critérios gerais da dedutibilidade dos gastos, se dever concluir pela respectiva dedutibilidade” como “o facto jurídico subjacente à cessação da indedutibilidade ex ante que afectava os gastos em questão, ou seja, a revogação do regime jurídico do art.º 32.º do EBF, apenas ocorreu a 01/01/2014, ou seja, no exercício de 2014” “[p]elo que se deverá concluir que os gastos em questão, sendo, face às regras gerais, dedutíveis, deverão sê-lo no exercício de 2014”.
10. Nestes termos, o efeito de direito, configurado pela orientação que fez vencimento, da dedutibilidade em 2014 da totalidade dos encargos financeiros suportados pela Requerente desde 2007 a 2011 com a aquisição de partes de capital ainda detidas em 1.1.2014 apresenta como base o disposto no Código do IRC no art. 23.º na versão aplicável em 2014 – como se escreve expressamente no texto do acórdão: “a lei nova não impõe qualquer limitação aos gastos suportados anteriormente a 2014, sendo, precisamente, as circunstâncias de: a) Se aplicar a lei nova; e b) Se verificar a ausência nesta de norma que vede a dedutibilidade dos gastos suportados anteriormente a 2014 e cuja indedutibilidade definitiva não resulta de qualquer norma anteriormente vigente e aplicável aos períodos anteriores; que conduz à solução a que se chegou” ou, noutro passo, “relativamente aos gastos em discussão nos presentes autos, por referência ao exercício de 2014: a) Cumprem os requisitos gerais da dedutibilidade dos gastos; b) A sua dedutibilidade não é postergável pelas regras da periodização económica; c) Não existe norma específica que precluda, condicional ou definitivamente a sua dedutibilidade”, pelo que “se terá de concluir pela admissibilidade da dedução dos gastos em questão, no exercício de 2014”. Mais especificamente: o critério decisório da dedutibilidade em 2014 da totalidade dos encargos financeiros suportados pela Requerente desde 2007 a 2011 assenta no facto de a lei nova (o Código do IRC na versão aplicável em 2014) não “consagra[r] alguma previsão que mantenha a indedutibilidade ex ante dos gastos em causa, incorridos em períodos anteriores a 2014”.
11. Esta ratio decidendi – que, como é fácil de ver, poderia perfeitamente ser acompanhada da afirmação exactamente contrária de a lei nova (o Código do IRC na versão aplicável em 2014) não consagrar qualquer previsão que determine a dedutibilidade ex post em 2014 dos gastos em causa, incorridos em períodos anteriores a 2014 – não encontra qualquer “texto-norma” em que se possa fundar, pois, por um lado, o art. 32.º, n.º 2 do EBF, como se viu, só admitia a recuperação dos encargos financeiros não deduzidos fiscalmente ex ante caso as mais valias realizadas com a alienação das partes de capital a que se reportavam fossem sujeitas a tributação e, por outro lado, o Código do IRC, na versão resultante da Lei n.º 2/2014, de 16.01, por força do disposto no art. 14.º desta Lei, “aplica-se aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014”.
12. Tendo presente a observação do acórdão, que se subscreve, de que “em homenagem aos princípios da legalidade e da tipicidade que vigoram no direito fiscal, apenas se poderá concluir dessa forma com base em norma legal que sustente esse mesmo entendimento”, esta ausência de “texto-norma” fundamentador torna insustentável – pois para brotar rios da terra árida ao menos é preciso haver terra – a solução aplicada ao caso, a qual tem como resultado singular – que imediatamente apela à imagem do melhor dos dois (ou até três) mundos – oferecer, sem justificação, em 2014 às SGPS, independentemente da alienação de quaisquer partes de capital e da tributação das mais-valias daí resultantes (como exigido pelo art. 32.º, n.º 2 do EBF), a dedução integral de todos os encargos financeiros acrescidos em exercícios anteriores relativos a financiamentos para aquisição de partes de capital ainda detidas em 2014 enquanto simultaneamente lhes garante a isenção da tributação de mais-valias que possam vir a obter com a alienação dessas partes de capital (art. 51.º-C do Código do IRC) e ainda a libertação dos limites gerais e especiais à dedução de encargos financeiros existentes quer nos períodos anteriores quer em 2014 (cfr. art. 67.º do CIRC, nas redacções anterior, designadamente resultante da Lei n.º 66-B/2012, de 31.12, e posterior à Lei n.º 2/2014).
13. Não posso, aliás, deixar de manter (não obstante a nota de rodapé 16 introduzida na sequência da apresentação de versão inicial desta declaração) que só a ausência de um “texto-norma” legitimador do critério de decisão configurado permite compreender a presença de argumentos – que só podem ver-se como expressão de juízos de equidade – em que se invoca que “esta solução até acaba por favorecer o credor tributário, como aponta a Requerente, designadamente ao nível do cálculo de juros que sejam devidos”. Esta referência não possui valia, nem mesmo retórica, porquanto em relação à Administração Tributária, como em relação a qualquer Administração Pública, só se pode juridicamente pressupor, não interesses próprios, mas a prossecução do interesse público e o cumprimento da legalidade nas suas dimensões integrais, conforme o impõe a subordinação à Constituição e à lei e o serviço exclusivo do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (cfr. art. 266.º da CRP).
14. Acrescente-se que o critério decisório configurado me coloca ainda uma dificuldade inultrapassável: é que a posição adoptada surge revestida de contornos generalizadores, gerando a conclusão normativa de que, em sede de IRC, apesar do disposto no art. 1.º e no n.º 9 do art. 8.º do Código do IRC, quando uma norma especial vede a dedução fiscal de certos custos num determinado período de tributação e venha a ser revogada, caso a lei nova nada diga sobre esses custos anteriormente suportados e não deduzidos fiscalmente no pertinente período de tributação, então todos esses custos tornam-se imediatamente dedutíveis, porquanto, relativamente ao período do início de aplicação da lei nova, “existem normas gerais que disciplinam a dedutibilidade dos gastos, e que, verificados esses requisitos gerais aquela dedutibilidade apenas poderá ser afastada pelas regras da periodização económica ou por norma especial que a afaste”.
15. Por isso, parece-me mesmo que emerge um problema de desconformidade constitucional na configuração do critério decisório que fez vencimento. É que, se bem vejo, advém da decisão do litígio uma interpretação normativa que constitui um daqueles casos-limite em que se atingem os princípios da legalidade e da tipicidade tributárias por via hermenêutica. Com efeito, se é certo que do art. 103.º, n.º 2 da CRP decorrem determinações que se dirigem directa e primariamente ao legislador – a saber: só a lei ou decreto-lei autorizado pode criar impostos, devendo constar da lei formal de modo tão preciso quanto possível os elementos essenciais que se reconduzem à incidência, à taxa, aos benefícios fiscais e às garantias dos contribuintes –, também estão aí implicadas restrições à actividade do intérprete que passam pela observância dos limites expressos das normas vigentes ou das normas aplicáveis em atenção às regras de aplicação da lei no tempo, sendo que, se se ditar para certos casos, seja como incidência tributária, seja como benefício fiscal, soluções de tal modo claramente fora da zona de abrangência da normatividade tributária, o resultado interpretativo normativo, assim alcançado de modo alheio ao quadro jurídico-legal pertinente, pode sujeitar-se a um juízo de afectação dos princípios da legalidade e da tipicidade fiscais.
III. O critério de resolução do caso normativamente adequado. Aplicação da lei no tempo
16. Dito isto, procure-se agora explicitar o critério de resolução que, em concretização da normatividade aplicável, designadamente em razão das regras de aplicação da lei no tempo, se julga valer para o caso, evidenciando, para adoptar uma expressão usada pelo acórdão, os equívocos da posição que fez vencimento (que, diga-se, não foram ultrapassados pelos aditamentos realizados em réplica ao exposto em versão inicial desta declaração).
17. O primeiro equívoco de que padece a tese que fez vencimento prende-se com a ideia de que, a partir da revogação do art. 32.º do EBF pela lei nova, está fora de cogitação a aplicação da regulação constante daquela lei antiga (cfr. acima as citações constantes do n.º 9, ii)).
18. A este respeito, cabe destacar que, em si mesma considerada, uma norma revogatória expressa – como é aquela que consta do acima transcrito art. 210.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31.12, que designa individualmente artigos e números de artigos do EBF para os declarar revogados, aí compreendendo o art. 32.º do EBF aqui em causa – apresenta como consequência jurídica simplesmente a extinção ou cessação de vigência da lei revogada (art. 7.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Civil). Porém, a cessação de vigência da lei revogada não impede que tal lei continue a reger certas situações da vida que perduram ou certos factos pretéritos que continuam a produzir efeitos. Para recorrer à conhecida distinção de EUGENIO BULYGIN, (“Tiempo y validez” in CARLOS E. ALCHOURRON/EUGENIO BULYGIN, Análisis lógico y Derecho, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1991, pp. 195-214 (p. 199)), deve-se distinguir o período de tempo durante o qual uma norma existe num certo ordenamento, que é o tempo externo da norma, do tempo interno, que concerne à sua aplicabilidade, abrangendo, pois, toda a sequência de momentos temporais em que uma norma é aplicável aos casos da vida, mesmo que já tenha sido revogada – justamente, leis cujo fim de vigência já ocorreu por revogação podem e são muitas vezes objecto de aplicação continuada (vd. NOGUEIRA DE BRITO, Introdução do Estudo do Direito, Lisboa, 2017, p. 356). Cite-se, ainda, pela sua clareza TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Direito, Coimbra, 2012, p. 180: “A revogação implica o fim da vigência da lei, mas (...) isso nem sempre quer dizer que a lei revogada deixe de ser aplicável na resolução de casos concretos. A possibilidade de aplicação de uma lei não vigente decorre da chamada aplicação da lei no tempo e, em especial, de uma das soluções possíveis no âmbito dessa aplicação: a sobrevigência (ou ultra-actividade) da lei antiga”.
19. É preciso, pois, ter bem presente, quando se trata de aferir a consequência jurídica decorrente da revogação da disposição constante do n.º 2 do art. 32.º do EBF pelo art. 210.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31.12, com entrada em vigor em 1.1.2014, quanto aos encargos financeiros suportados e não deduzidos fiscalmente em períodos anteriores, que as normas revogadas podem reter a sua aplicação, ou seja, noutra perspectiva, que a revogação de uma norma não priva esta necessariamente da sua aplicabilidade, dado o bem conhecido fenómeno da “sobrevivência do Direito anterior, que continuará a aplicar-se para além do momento em que foi revogado” (GALVÃO TELLES, Introdução ao Estudo do Direito, vol. I, 11.ª ed, Coimbra, 2001, p. 2275). As normas jurídicas não têm que estar em vigor para serem aplicadas, pois pode suceder e sucede frequentemente que, por força das regras de sucessão das leis no tempo, tenha lugar a aplicação a certos casos concretos de normas passadas. Como explica MIGUEL GALVÃO TELLES, “Temporalidade jurídica e Constituição” in Escritos Jurídicos, vol. II, Coimbra, 2014, p. 354, “O “âmbito da vigência” (...) não delimita, por si só, o círculo temporal de “factos” e “questões” regulados pela norma. A delimitação desse círculo, a que (...) poderíamos chamar âmbito de aplicação (ou âmbito de regulação) implica a intervenção de uma norma ou de normas habitualmente ditas de direito intertemporal ou transitório. Perante factos ou questões que tenham relação com tempos de vigência de diversas normas, a questão do direito aplicável é uma questão deontologicamente necessária)”.
20. Ora, como se adiantou, a análise desenvolvida pela posição que fez vencimento assenta na ideia, que se entende inadequada, de que, a partir da revogação do art. 32.º do EBF pela lei nova, nunca mais se poderá aplicar a regulação constante daquela lei antiga – vejam-se as seguintes considerações: “com a cessação, por revogação, do regime do art.º 32.º do EBF, deixa de existir a norma que mantinha a indedutibilidade em questão (ex ante) dos gastos financeiros em causa, que, nos termos das normas que regem a aplicação da lei no tempo, terá a sua sobrevigência limitada aos exercícios anteriores a 2014 (que aqui não estão em causa). Deixando de existir tal norma, a dedutibilidade de tais gastos terá de ser aferida, daí em diante (ou seja, do exercício de 2014 em diante), face às regras gerais, uma vez que, como se viu, a indedutibilidade imposta pelo regime revogado não era uma indedutibilidade definitiva e não se tinha consolidado”; “a 01/01/2014 a norma especial (relativa a benefícios fiscais) que impunha a indedutibilidade dos gastos financeiros, ora em causa, deixou de vigorar, pelo que deixou de condicionar (de ser aplicável) ao juízo de dedutibilidade ou indedutibilidade de tais gastos”; “o facto jurídico subjacente à cessação da indedutibilidade ex ante que afectava os gastos em questão, ou seja, a revogação do regime jurídico do art.º 32.º do EBF, apenas ocorreu a 01/01/2014, ou seja, no exercício de 2014”; [o]s gastos sub iudice viram a indedutibilidade ex ante que os afectava cessada a 01/01/2014” .
21. Saber, porém, da aplicabilidade, ou falta dela, da lei revogada a certas situações ou factos passados ou pendentes é questão que tem de ser resolvida mediante a ponderação específica das regras de aplicação das leis no tempo. Para citar, novamente, TEIXEIRA DE SOUSA (ob. cit., p. 180): “não é a revogação que restringe o âmbito de aplicação da lei revogada, mas o regime sobre a aplicação da lei no tempo que a define como aplicável aos factos e às situações passadas. Portanto, a sobrevigência da lei antiga nunca pode ser vista como um efeito da revogação, mas antes como uma consequência do regime da aplicação da lei no tempo”.
22. A posição vencedora, mesmo com os aditamentos introduzidos após a apresentação da versão antecedente desta declaração de voto, não realizou adequada apreciação específica sobre a aplicação no tempo da regulação em causa, tendo-se baseado, como resulta das citações acima efectuadas no n.º 20, para alcançar a conclusão da “admissibilidade da dedução dos gastos em questão, no exercício de 2014”, nas ideias, que se têm por equivocadas, primum, de que o regime geral do Código do IRC na versão vigente em 2014 é aplicável aos gastos financeiros não deduzidos fiscalmente nos exercícios de 2007 a 2011 apenas por estar em causa no litígio o período de tributação de 2014, independentemente, pois, da verificação ou localização temporal de qualquer facto tributário juridicamente relevante nesse período (seja ele, evidentemente, a suportação dos próprios encargos financeiros, que ocorreu anteriormente, seja a alienação e realização de mais-valias tributadas, que não ocorreu), e, secundum, que a revogação do art. 32.º, n.º 2 do EBF constitui um facto jurídico determinativo da cessação da indedutibilidade ex ante dos gastos, representando, pois, afinal, um facto tributário cuja ocorrência, pelo preenchimento de uma qualquer norma de incidência tributária (eventualmente o próprio art. 32.º, n.º 2 do EBF que é revogado), acarreta a dedutibilidade por referência a 2014 dos encargos financeiros não deduzidos nos períodos de tributação anteriores.
23. Como não se podem acolher estas ideias, procure-se, então, ponderar devidamente as regras pertinentes de aplicação da lei no tempo, tendo em mente, como já se disse, que determinar se uma norma revogada mantém a sua aplicabilidade e em que termos isso se dá não decorre do próprio acto de revogação, na sua especificidade propriamente revogatória, mas é uma questão cuja resposta se tem de encontrar aliud, mediante a apreciação de disposições transitórias formais ou materiais adrede formuladas e que eventualmente acompanham a norma revogatória (Direito transitório ou Direito transitório material), ou através do recurso aos critérios gerais ou especiais determinativos da aplicação da lei no tempo (Direito intertemporal ou Direito transitório de conflitos).
24. Sabendo-se que o direito transitório material estabelece uma regulação específica para determinado factos ou efeitos jurídicos, a qual se autonomiza do que determina a lei antiga ou a lei nova, e que o direito transitório formal procede à escolha entre a lei nova (LN) e a lei antiga (LA) como a lei aplicável a um certo facto ou efeito jurídico (vd., por exemplo, TEIXEIRA DE SOUSA, “Aplicação da lei no tempo” in CDP, 18 (Abril/Junho 2007), p. 5; GERMANO MARQUES DA SILVA, Introdução ao estudo do Direito, 5.ª ed., Lisboa, 2015, p. 168; BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1983, p. 230), é evidente, como também se observa no texto vencedor, a ausência de disposições transitórias, seja de carácter formal (em que se determina a lei aplicável entre a lei antiga e a lei nova), seja de carácter material (em que se estabelece uma regulação própria, autónoma da LA e da LN para as situações pendentes) em conexão com a própria revogação do art. 32.º, n.º 2 do EBF operada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31.12.
25. Também nessa outra Lei Nova que é a Lei n.º 2/2014, de 16.01 (objecto da Declaração de Rectificação n.º 18/2014), que procedeu à reforma da tributação das sociedades e que introduziu, com carácter geral, o denominado regime de participation exemption (cfr., no que concerne às mais-valias e menos-valias realizadas com transmissão onerosa de partes sociais, o referido art. 51.º-C do Código do IRC), nenhuma norma transitória particular consta que se reporte especificamente à dedutibilidade fiscal dos encargos financeiros anteriormente acrescidos pelas SGPS (cfr. art. 12.º daquela Lei n.º 2/2014). No entanto, e assestando a atenção para a observação de CASTRO MENDES, Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1984, p. 274 de que, antes de mais, “o problema da aplicação da lei tem de resolver-se através da interpretação da lei nova. Traduz-se em apurar até onde a lei nova se quer aplicar”, é muito de destacar a expressa previsão do art. 14.º da referida Lei n.º 2/2014 de que “a presente lei aplica-se aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014”, delimitando, assim, o seu âmbito temporal de aplicação.
26. Nesta sequência, não se pode deixar de destacar que o critério decisório que obteve acolhimento segundo o qual os juros incorridos pelas SGPS emergentes de empréstimos remunerados para aquisição de participações sociais que tinham sido objecto de desconsideração fiscal em períodos anteriores a 2014 se tornam dedutíveis una tantum no ano de 2014 por força, primeiro, da revogação do n.º 2 do art. 32.º do EBF, depois, da ausência de norma que impeça essa dedução no Código do IRC na redacção em vigor em 2014 e, por fim, da subordinação ao disposto no art. 23.º do Código do IRC na mesma versão, não só não encontra, como se referiu, nenhum texto-norma que o fundamente, como infringe directamente a expressa determinação do mencionado art. 14.º da Lei n.º 2/2014, lei esta que, não se esqueça, modificou o teor do art. 23.º do CIRC, onde se estabelecem “os requisitos gerais da dedutibilidade dos gastos” que a posição que fez vencimento pretende aplicar em relação a gastos não deduzidos fiscalmente em períodos anteriores a 1.1.2014.
27. Por isso mesmo, bem se compreende que no acórdão proferido no processo n.º 610/2017-T se tenha escrito, sem qualquer equívoco, que: “não tendo o legislador previsto uma norma transitória que salvaguardasse os efeitos da revogação do artigo 32.º do EBF, no que concerne à dedução dos encargos financeiros anteriormente ocorridos, não pode o mesmo pretender deduzir os referidos encargos financeiros na totalidade em 2014”, pois reconhecer “a possibilidade de dedução em 2014 da totalidade dos encargos financeiros incorridos com participações sociais e não deduzidos nos exercícios de 2008 a 2013, inclusive, sem a verificação da condição legalmente imposta (alienação das participações sociais) e independentemente do regime fiscal dessa alienação” seria “admitir a dissociação, para o passado, entre os encargos financeiros não deduzidos e as mais-valias isentas, solução essa que não encontra apoio no regime anterior nem foi salvaguardada pelo atual”.
28. Afigura-se-nos, justamente, que, em última instância, aquilo que resulta da posição que fez vencimento é a configuração ex nihilo de uma disposição transitória material pela qual possui relevância fiscal, como componente negativa, para a determinação do lucro tributável respeitante ao exercício de 2014, sem conexão com qualquer transmissão onerosa de partes de capital e com a obtenção de quaisquer mais-valias tributáveis, todos os encargos financeiros, conexos com essas partes de capital, que não foram deduzidos fiscalmente desde 1.1.2003 a 31.12.2013 – é, precisamente, porque a figuração dessa regra transitória material não encontra respaldo em qualquer disposição legal ou arco de disposições legais aplicável que me parece inadmissível a solução adoptada no presente processo.
29. Nestes termos, como não foi criada pelo legislador – a quem e só a quem isso seria legítimo – qualquer regra de direito transitório material quanto à dedutibilidade fiscal no exercício de 2014 dos encargos financeiros incorridos antes de 1.1.2014, retome-se, então, aquilo que julgo decisivo para o tratamento da matéria, que se prende com a determinação da norma temporalmente competente, em atenção aos critérios de resolução dos conflitos de leis no tempo (Direito intertemporal), para decidir sobre a dedutibilidade fiscal dos gastos financeiros em causa.
30. A este respeito, convoque-se, antes de mais, a disposição geral do art. 12.º da Lei Geral Tributária, segundo a qual, no que aqui importa, se determina o seguinte: “As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor” (n.º 1) e “Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor” (n.º 2).
Recorde-se, adicionalmente, que o art. 12.º do Código Civil, cuja préstimo no campo fiscal tem sido amplamente acolhido (vd., por exemplo, o acórdão do STA de 16.9.2015, proc. n.º 01292/14), estabelece que: “A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular” (n.º 1) e “Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor” (n.º 2).
Para além destas soluções aplicáveis em termos gerais no ordenamento (art. 12.º do Cód. Civil) ou no Direito Fiscal (art. 12.º da LGT), há ainda que contar, dado o enquadramento do art. 32.º do EBF como beneficio fiscal, com a disposição especial do art. 11.º do EBF (que correspondia ao art. 10.º antes da republicação do EBF operada pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26.06) que, sob a epígrafe “Aplicação no tempo das normas sobre benefícios fiscais”, estabelece no n.º 1 o seguinte: “As normas que alterem benefícios fiscais convencionais, condicionados ou temporários, não são aplicáveis aos contribuintes que já aproveitem do direito ao benefício fiscal respectivo, em tudo que os prejudique, salvo quando a lei dispuser em contrário”.
31. Da determinação do art. 12.º, n.º 1 da LGT (e do art. 12.º, n.º 1 do Código Civil) resulta que, na ausência de qualquer previsão específica sobre aplicação no tempo, a lei fiscal só regula para o futuro, não se aplicando a factos ou situações ocorridas antes da sua entrada em vigor. Por força do art. 12.º, n.º 2, 2.ª parte do Cód. Civil, só quando a lei dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, é que se entende – em caso de dúvida – que abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor; como regra, nos termos da art. 12.º, n.º 2, 1.ª parte do Cód. Civil, quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se – em caso de dúvida – que só visa os factos novos, pelo que, para os factos anteriores e seus efeitos, verifica-se a sobrevigência da lei antiga. Da determinação do art. 11.º, n.º 1 do EBF, que se deve interpretar como compreendendo os benefícios fiscais que, pela sua formulação, se comportam “como incentivo, estímulo ou medida de fomento fiscal”, como “medidas dinâmicas e causais de um comportamento desejado”, abrangendo, portanto, a regulação objecto do art. 32.º, n.º 2 do EBF, advém que tais benefícios fiscais implicam direitos adquiridos, pelo que a lei desagravadora anterior revogada “se mantém em ultra-actividade” (cfr. SÁ GOMES, Teoria geral dos benefícios fiscais, Lisboa, 1991, pp. 274, 283, 285, 286).
32. Em face destas determinações, a lei nova, seja a norma revogatória do art. 210.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31.12, com entrada em vigor em 1.1.2014, seja a Lei n.º 2/2014, que se aplica apenas (art. 14.º) “aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014”, vale unicamente para os factos ou as situações que se constituírem após 1.1.2014, ou seja, no que aqui importa, os encargos financeiros associados a partes de capital de SGPS suportados a partir de 1.1.2014.
33. Pois bem, para os factos ou as situações anteriores, mesmo que os seus efeitos ainda perdurem no presente, ou seja, no que aqui importa, os encargos financeiros associados a partes de capital de SGPS suportados em exercícios anteriores ao período de tributação de 2014 com possibilidade da sua recuperação fiscal em período posterior, vale, em sobrevigência, ainda que tal disposição tenha sido revogada com efeitos a partir de 1.1.2014, a regra constante do art. 32.º, n.º 2 do EBF, com os requisitos nela exigidos, tal como foram determinados interpretativamente, quanto à alienação de partes de capital e tributação das mais-valias resultantes.
34. Para precisar devidamente o que se vem de referir, é relevante notar os exactos termos da aplicação do art. 32.º, n.º 2 do EBF, atenta a interpretação-concretização que se consolidou, acima descrita (n.ºs 3, 4 e 5): os encargos financeiros conexos com financiamentos para aquisição de partes de capital por SGPS eram objecto de ajustamento positivo ao lucro tributável no período em que foram suportados, mas poderiam eventualmente ser deduzidos fiscalmente no exercício da alienação das partes de capital a que respeitavam, considerando-se então como gastos fiscais, desde que as mais-valias pertinentes concorressem nessa altura para o lucro tributável, sendo que, se assim não sucedesse, pura e simplesmente, não teria lugar qualquer correcção fiscal nesse período dos gastos anteriormente suportados.
35. Diga-se, nesta sequência, que, ao contrário do que se pretende na orientação vencedora, estes termos da aplicação do n.º 2 do art. 32.º do EBF não envolvem qualquer “indedutibilidade condicionada” em que “os “custos”/encargos financeiros em causa tinham uma dedutibilidade sob "condição suspensiva", ou seja, a dedutibilidade apenas seria "eficaz" quando a “alienação de participação de capital não revista os requisitos para a aplicação do regime especial de isenção das mais-valias” do art.º 32.º/2 do EBF” (vd. supra n.º 9, i)) – o art. 32.º, n.º 2 do EBF é directa e imediatamente uma regra de não dedutibilidade dos encargos financeiros suportados em certos exercícios com financiamentos para a aquisição de partes de capital por SGPS, que admitia, na interpretação aceite, uma eventual recuperação fiscal, mediante correcção a realizar ao cálculo do lucro tributável desse período (cfr. art. 17.º, n.º 1 do CIRC), no exercício da alienação dessas partes de capital se ocorresse tributação das mais-valias aí realizadas.
36. Não posso, aliás, deixar de observar que me parece que a posição vencedora incorre numa deslocação semântica do que foi decidido pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/2014 (já acima citado no n.º 5) que é impossível de acompanhar.
Na verdade, a posição vencedora começa por aludir, mediante citação do referido acórdão do TC, que “[E]ra possível a “correção dos custos não deduzidos em períodos tributários anteriores, caso a alienação de participação de capital não revista os requisitos para a aplicação do regime especial de isenção das mais-valias” em questão”, para afirmar seguidamente que o “próprio TC, no aresto citado, fundamentando a não violação do princípio da proporcionalidade da norma em questão, esclarece que a indedutibilidade em questão integra uma “indedutibilidade de encargos financeiros ex ante”, ou seja, a indedutibilidade opera previamente à causa dessa mesma indedutibilidade, e condicionada à verificação dessa mesma causa” e, mais à frente, que “o entendimento, pilar da constitucionalidade daquele regime, de que a indedutibilidade em questão estava directamente condicionada ao gozo do benefício consagrado naquele mesmo regime, quer com os princípios da proporcionalidade, tal como entendido pelo Tribunal Constitucional, quer com a própria exigência constitucional de tributação das empresas pelo lucro real”.
37. Se bem leio o acórdão do TC referenciado, não se afirma nele, em momento algum, qualquer relação de condição da dedução de encargos financeiros associados à aquisição de participações financeiras na articulação com a tributação/isenção de mais-valias pela transmissão onerosa de participações sociais. Reproduza-se (novamente) o que escreve o TC nesse seu acórdão (n.º 22): “cumpre afastar, a partir da mera dissociação temporal entre a não dedução (imediata) dos encargos financeiros e isenção (futura) de tributação de mais-valias realizadas a violação do princípio da proporcionalidade. Esse afastamento decorre, desde logo, da distinta natureza e tipologia de formação dos factos tributários em ponderação, protelando-se sucessivamente e ao longo de período temporal alargado, abrangendo os encargos financeiros vários exercícios e períodos de tributação, enquanto a realização de mais-valias ocorre num único momento e período de tributação. Nessa medida, não se reputa de excessivo e intolerável regime que pondere e faça atuar a indedutibilidade de encargos financeiros ex ante, em cada período de tributação em que são incorridos, por referência à medida que a equilibra, tendo em atenção a preservação da possibilidade de (efetiva e futura) realização de mais-valias. Tanto mais que a normação em apreço não exclui a eventualidade de correção dos custos não deduzidos em períodos tributários anteriores, caso a alienação de participação de capital não revista os requisitos para a aplicação do regime especial de isenção das mais-valias”.
Realce-se, também, o que consta expressis verbis da al. b) do dispositivo deste acórdão: “não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 31.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, na redação conferida pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro, na parte em que impõe a indedutibilidade fiscal dos encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital logo que estes sejam incorridos, independentemente da realização de mais-valias isentas de tributação com a alienação de tais partes de capital”.
38. Assim, ao contrário do entendido pela posição vencedora, a decisão do Tribunal Constitucional não exigiu, para o seu juízo de não desconformidade constitucional, qualquer condicionalidade entre os encargos não deduzidos e a realização de mais-valias não tributáveis, mas viu aí simplesmente uma mera eventualidade, o que surge, aliás, tão somente como um elemento adicional no discurso argumentativo (repare-se que se diz: “Tanto mais que a normação em apreço não exclui a eventualidade de correção dos custos não deduzidos em períodos tributários anteriores, caso a alienação de participação de capital não revista os requisitos para a aplicação do regime especial de isenção das mais-valias”), constituindo antes a base essencial da fundamentação desenvolvida o seguinte: o “afastamento [dedução ex ante dos encargos financeiros e isenção (futura) de tributação de mais-valias realizadas] decorre, desde logo, da distinta natureza e tipologia de formação dos factos tributários em ponderação, protelando-se sucessivamente e ao longo de período temporal alargado, abrangendo os encargos financeiros vários exercícios e períodos de tributação, enquanto a realização de mais-valias ocorre num único momento e período de tributação. Nessa medida, não se reputa de excessivo e intolerável regime que pondere e faça atuar a indedutibilidade de encargos financeiros ex ante, em cada período de tributação em que são incorridos, por referência à medida que a equilibra, tendo em atenção a preservação da possibilidade de (efetiva e futura) realização de mais-valias”.
39. Deste modo, a desconsideração dos encargos financeiros nos exercícios em que foram suportados foi justificada em atenção ao fundamento de que, por força do regime de benefício fiscal constante do art. 32.º, n.º 2 do EBF, uma SGPS goza da exclusão de tributação aplicável aos rendimentos de mais-valias realizados com a alienação de participações sociais, pelo que os gastos financeiros relacionados com a obtenção de tais rendimentos, que são incorridos em diversos períodos de tributação, não devem relevar em termos de apuramento do lucro tributável desses exercícios, ainda que, eventualmente, essa relevância possa advir posteriormente mediante adequada correcção fiscal do lucro tributável em período subsequente de alienação de partes de capital.
40. E bem se compreende que esteja em causa apenas uma eventualidade e não qualquer condicionalidade: é que, nos termos literais do art. 32.º, n.º 2 do EBF, a isenção das mais-valias das partes de capital que justificava a não dedutibilidade dos encargos financeiros associados dependia de requisitos que, em última instância, envolviam unicamente o decurso de um período de tempo mínimo (1 ano ou 3 anos), pelo que só se as partes sociais fossem alienadas antes do decurso desses prazos, é que as mais-valias estariam sujeitas ao regime geral de tributação e os encargos financeiros seriam dedutíveis em conformidade com as regras gerais de dedutibilidade dos gastos e perdas. Como tal, decorridos esses prazos de detenção das partes de capital, independentemente da sua efectiva alienação, o sujeito passivo SGPS já tem, e sabe-o, perfeitamente definida e consolidada a situação de indedutibilidade dos encargos financeiros suportados com financiamentos para a aquisição dessas partes de capital.
41. A correcção fiscal de natureza negativa que eventualmente poderia ocorrer no período de alienação das partes sociais com origem em custos contabilísticos não aceites em períodos anteriores para efeitos fiscais consubstancia, então, enquanto diferença entre o resultado apurado pela contabilidade e a sua projecção fiscal, não rigorosamente uma fiscalidade diferida, mas verdadeiramente uma fiscalidade latente, entendendo, pela primeira, a projecção fiscal assente numa forte probabilidade e pela segunda a projecção fiscal assente numa mera eventualidade (vd. as indicações em FREITAS PEREIRA, A periodização do lucro tributável, Lisboa, 1988, p. 102, nota 60, sobre o uso desta terminologia).
42. Justamente, como este ajustamento fiscal eventual tem a sua origem em custos contabilísticos não aceites fiscalmente em períodos tributários anteriores, a factualidade tributária relevante para a determinação da lei ratio temporis aplicável assenta na diminuição patrimonial não fiscalmente dedutível decorrente da suportação em cada período de tributação dos encargos financeiros associados à aquisição das partes de capital em causa, como, aliás, decorre da sua natureza de custos de período, o que implica a subordinação dos encargos financeiros incorridos até 31.12.2013 à regra de não dedutibilidade do art. 32.º, n.º 2 do EBF, não obstante a sua revogação com efeitos a partir de 1.1.2014.
43. Pois bem, por força da sobrevigência do art. 32.º, n.º 2 do EBF e da eventualidade, interpretativamente acolhida, da dedução fiscal dos encargos financeiros anteriormente suportados caso no exercício da alienação das partes de capital ocorra a tributação das mais-valias realizadas, poderá ter lugar nesse exercício – e só nesse exercício – o cômputo no lucro tributável respectivo dos encargos anteriormente suportados e não deduzidos se efectivamente os rendimentos de mais-valias realizados com a transmissão das participações sociais forem igualmente incluídos no lucro tributável.
44. Para citar novamente MIGUEL GALVÃO TELLES, ob cit., p. 354: “as normas revogadas não “desaparecem”, nem deixam necessariamente de fazer parte do sistema jurídico. Muitas delas são ainda hoje – um qualquer hoje que se considere – directamente aplicáveis a situações da vida, segundo as regras gerais ou segundo normas especiais de direito transitório. E muitas delas ainda definem ou condicionam o concreto regime jurídico relevante”.
45. A eventualidade de uma dedução fiscal dos gastos financeiros suportados até 31.12.2013 em período posterior depende, pois, em suma, da satisfação do pressuposto, definido com base no n.º 2 do art. 32.º do EBF, da inclusão no lucro tributável das mais-valias realizadas com a transmissão das partes de capital em causa, pressuposto que continua a reger a vantagem da recuperação fiscal de tais encargos financeiros incorridos em exercícios anteriores por força da sobrevigência daquele art. 32,º, n.º 2, que resulta, em termos de regras de aplicação no tempo da legislação fiscal, do art. 12.º, n.º 1 da LGT e do art. 11.º, n.º 1 do EBF e decorre ainda, em termos gerais, do art. 12.º, n.º 1, 1.ª parte do Código Civil.
46. No caso dos autos, não se comprova qualquer alienação em 2014 das partes de capital a que estão associadas os encargos financeiros suportados entre 2007 e 2011 anteriormente não incluídos no lucro tributável, pelo que não é possível a pretendida dedução fiscal desses gastos no exercício de 2014.
47. Não posso, pois, acompanhar a posição que fez vencimento quanto à configuração como critério de decisão do caso sub judice da dedutibilidade fiscal em 2014 da totalidade dos encargos financeiros suportados pela Requerente nos exercícios de 2007 a 2011 com a aquisição de partes de capital.
(João Menezes Leitão)
[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.
[3] “Consideram-se benefícios fiscais as medidas de carácter excepcional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem.”.
[4] “Relatório do Anteprojeto da Reforma” do IRC, p. 182.
[6] Disponível em https: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20160139.html.
[8] O outro foi “a circunstância de os lucros obtidos no estrangeiro através de uma filial não serem tributados imediatamente (mas apenas, salvo a aplicação de regras de transparência fiscal, no momento da respetiva distribuição), quando os mesmos lucros obtidos por uma sucursal exterior são automaticamente tributados, é suscetível de criar um incentivo artificial à incorporação de sociedades no estrangeiro, podendo distorcer a decisão de investimento”.
[13] “Relativamente ao exercício em que deverão ser desconsiderados como custos, para efeitos fiscais, os encargos financeiros, dever-se-á proceder, no exercício a que os mesmos disserem respeito, à correcção fiscal dos que tiverem sido suportados com a aquisição de participações que sejam susceptíveis de virem a beneficiar do regime especial estabelecido no n.º 2 do art.º 31º do EBF (...) Caso se conclua, no momento da
alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores” (sublinhados nossos).
[14] Abstrai-se aqui da determinação do exercício em que a dedução deverá ser exercida, questão abordada mais abaixo.
[15] Cfr. p. ex. Ac. de 14-03-2018, proferido no processo 0716/13.
[16] Note-se, para que fique bem claro, que esta consideração se restringe à apreciação da relevância, ou não, do princípio da periodização do lucro tributável no caso concreto, limitando-se a corroborar a jurisprudência do STA na matéria, citada, e não a qualquer outra das matérias jurídicas previamente analisadas.
[19] Que, recorde-se, são sociedades gestoras de participações socias, e não meras sociedades geradoras de mais-valias por compra e venda de participações sociais.
[21] A este propósito, cfr. o já citado Ac. do TC n.º 139/2016.
[23] O acórdão refere-se a actos de retenção na fonte e pagamentos por conta, que têm um regime impugnatório análogo à autoliquidação (reclamação graciosa necessária: cfr. art.ºs 131.º/1. 132.º/3 e 133.º/2, todos do CPPT).