Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 443/2018-T
Data da decisão: 2019-02-28  IRC  
Valor do pedido: € 26.897,31
Tema: Regime das SGPS: dedução de encargos; orientações genéricas; circular n.º 7/2004, de 30 de março.
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Decisão Arbitral (consultar versão completa no PDF)

 

O árbitro Professor Doutor Jónatas Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para integrar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 19.11.2018, profere a seguinte decisão:

1             RELATÓRIO

 

1. A...– SGPS, S.A. (adiante abreviadamente designada por “A...” ou “Requerente”), titular do número único de identificação de pessoa coletiva (“NIPC”)..., com sede social na Rua..., n.º..., ...-... ... ..., requereu, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2°, da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”), em conjugação com a alínea a) do artigo 99.º e a alínea e) do n.º 1 do artigo 102.º, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), aplicáveis ex vi alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT , a constituição do Tribunal Arbitral, em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (a seguir, Requerida ou AT), relativamente à decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa do ato tributário apresentado contra a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2017 ... e correspondente demonstração de acerto de contas, no montante total a pagar de Euro 618,16 (seiscentos e dezoito euros e dezasseis cêntimos).

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 07-09-2018.

3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, al. a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitro singular o Professor Doutor Jónatas Machado, a 29-10-2018.

4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

5. Por força do preceituado na al. c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 19.11.2018.

1.1          Descrição dos factos

6. A Requerente é uma sociedade gestora de participações sociais (“SGPS”), de direito português, que prossegue, no âmbito do seu objeto social, a atividade principal de gestão de participações socias de outras sociedades, sendo que, a 31 de dezembro de 2013, era a sociedade dominante do Grupo B... e, consequentemente, das entidades que integravam o perímetro do respetivo Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (“RETGS”), a saber, nos termos do artigo 69.º do CIRC, as sociedades dominadas, C..., S.A.”, titular do NIPC...; “D...– Sociedade de Investimentos Imobiliários, S.A.”, titular do NIPC...; “E..., Lda.”, titular do NIPC...; “F..., SGPS, S.A.”, com o NIPC ... (doravante, “F...”); “G..., Lda.”, com o NIPC ... e  “H..., Lda.”, com o NIPC..., de acordo com o seguinte esquema:

 

7. Nessa qualidade, a Requerente submeteu, no dia 30 de maio de 2014, a declaração Modelo 22 respeitante ao aludido consolidado fiscal, por referência ao exercício de 2013, por entender que, nos termos do disposto no artigo 115.º do Código do IRC, sobre ela recai a responsabilidade pelo pagamento do IRC e pela entrega prévia da declaração Modelo 22 do grupo, sendo as demais entidades do grupo solidariamente responsáveis pelo pagamento do imposto. 

8. Da entrega da referida declaração resultou o apuramento de um resultado fiscal agregado no montante negativo de € 495.527,10 (quatrocentos e noventa e cinco mil, quinhentos e vinte e sete euros e dez cêntimos).

9. No âmbito do apuramento do lucro tributável da Requerente e da F..., estas sociedades procederam à submissão de declarações Modelo 22 individuais, nas quais foram apurados resultados fiscais no montante negativo de € 87.246,08 (oitenta e sete mil, duzentos e quarenta e seis euros e oito cêntimos) e positivo de € 1.900,81 (mil e novecentos euros e oitenta e um cêntimos), respetivamente.

10. No ano de 2017, por força da emissão das ordens de serviço OI2016... e OI2016..., datadas de 08-08-2016, foram desencadeados procedimentos inspetivos à Requerente com o objetivo de controlar o RETGS do Grupo B..., tendo a F..., na qualidade de sociedade integrante do grupo, sido igualmente inspecionada, ao abrigo da ordem de serviço OI2016..., de 08-08-2016.

11. Pelo facto de nem a Requerente nem a F..., terem acrescido qualquer valor, no campo 779 das respetivas declarações Modelo 22 referentes ao exercício de 2013, a título de encargos financeiros suportados com aquisições de partes de capital, em resultado destas ações inspetivas foram elaborados projetos de relatório propondo correções do lucro tributável da Requerente, no montante total de € 63.115,59 (sessenta e três mil, cento e quinze euros e cinquenta e nove cêntimos) e da F..., no valor de € 44.473,65 (quarenta e quatro mil, quatrocentos e setenta e três euros e sessenta e cinco cêntimos), verificando-se que o agregado destas correções individuais no RETGS do Grupo B... ascendeu ao montante de € 107.589,24 (cento e sete mil, quinhentos e oitenta e nove euros e vinte e quatro cêntimos).

12. De acordo com a posição dos Serviços de Inspeção Tributária (“SIT”), tais encargos não poderiam, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”) em vigor à data, relevar para o apuramento do lucro tributável destas sociedades, pelo que os mesmos calcularam o montante a acrescer nas aludidas declarações através da aplicação da fórmula consagrada na Circular n.º 7/2004, de 30 de março, da Direção de Serviços de IRC.

13. Não obstante não concordar com as correções em apreço, mas por forma a manter o seu histórico perante a AT imaculado, a Requerente, enquanto sociedade dominante do RETGS, procedeu, ainda durante o procedimento inspetivo, à submissão da correspondente declaração Modelo 22 de substituição do Grupo, com o n.º..., no dia 7 de agosto de 2017.

14. Em virtude da submissão dessa declaração, foi apurado pela Requerente um resultado fiscal agregado no montante negativo de Euro 382.617,11 (trezentos e oitenta e dois mil, seiscentos e dezassete euros e onze cêntimos), o que consubstancia uma diferença positiva de € 112.909,99 (cento e doze mil, novecentos e nove euros e noventa e nove cêntimos) face ao inicialmente reportado, correspondendo tal disparidade, quase na totalidade, à correção sobre a qual incide o presente Pedido de Constituição de Tribunal Arbitral, no montante de € 107.589,24 (cento e sete mil, quinhentos e oitenta e nove euros e vinte e quatro cêntimos), ainda que relativa à matéria coletável.

15. Na sequência da ação de inspeção promovida pela AT e da entrega da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de substituição relativa ao exercício de 2013, foi emitida a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2017 ... e a correspondente demonstração de acerto de contas, de que resulta um valor a pagar no montante total a pagar de € 618,16 (seiscentos e dezoito euros e dezasseis cêntimos), referente ao exercício de 2013. 

16. Já após a realização das aludidas regularizações por parte da Requerente e da sua participada – e tendo declinado o exercício do competente direito de audição relativamente às conclusões constantes do Projeto de Relatório previamente notificado à Requerente, por via do Ofício n.º 2017..., de 19-07-2017 – foi emitido o relatório final de inspeção tributária, no qual se consolidaram as supra mencionadas correções – qualificadas pelos SIT como meramente aritméticas –, à matéria coletável do RETGS encabeçado pela Requerente.

17. Por entender não assistir razão à AT nas correções efetuadas, a Requerente decidiu apresentar, a 11 de dezembro de 2017, pedido de revisão oficiosa do ato tributário, com vista à respetiva anulação, tendo sido notificada, em 9 de março de 2018, para, querendo, exercer o direito de participação na decisão, em audição prévia, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 60.º da LGT, sem que a mesma o tenha feito, tendo sido notificada da decisão final de indeferimento no dia 04 de junho de 2018.

18. No requerimento de pronúncia arbitral, a A... veio requerer a anulação, com fundamento em ilegalidade, da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa do ato tributário apresentado contra a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2017... e correspondente demonstração de acerto de contas, de que resulta um valor a pagar no montante total a pagar de Euro 618,16 (seiscentos e dezoito euros e dezasseis cêntimos), referente ao exercício de 2013.

19. Tendo sido devidamente notificada, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 17.º do RJAT, para, no prazo de 30 dias, AT veio apresentar a sua resposta, em 08.01.2019, pugnando pela manutenção na ordem jurídica dos atos controvertidos.

 

1.2          Argumentos das partes

20. Os argumentos e contra-argumentos esgrimidos pelas partes dizem respeito, fundamentalmente, à legalidade da aplicação da fórmula de cálculo consagrada no ponto 7 da Circular n.º 7/2004, de 30 de março, da Direção de Serviços de IRC.

21. A Requerente alega que a invalidade da fórmula de cálculo conduz à ilegalidade da autoliquidação efetuada pela Requerente e da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, consubstanciando um erro de aplicação do direito que apenas aos serviços da AT poderá ser imputável, alicerçando a sua tese, fundamentalmente, nos seguintes argumentos:

a)            Uma das pedras de toque do sistema jurídico-fiscal nacional é, precisamente, o princípio da legalidade tributária, consagrado no artigo 103.º da Lei Fundamental e diretamente carreado para a legislação tributária pelo artigo 8.º da LGT, exatamente sob essa epígrafe;

b)           As circulares em que se vertem orientações genéricas não são atos legislativos, configurando somente doutrina criada pela administração, que apenas vincula a AT e os seus órgãos;

c)            O método de cálculo dos encargos financeiros a desconsiderar no apuramento do lucro tributável das SGPS estabelecido pela Circular n.º 7/2004, nunca tendo sido pacífico, deve ser considerado ilegal, na medida em que se trata de um método indireto de apuramento da matéria coletável sem o mínimo de respaldo na lei;

d)           O  artigo 32.º do EBF não previa, nem formal nem materialmente, qualquer mecanismo ou fórmula que permitisse afetar os encargos (gastos) financeiros incorridos com financiamentos contraídos com vista à aquisição de partes de capital a estas últimas (não possibilitando, assim, que se apurasse quais os encargos fiscalmente aceites e quais os encargos que não concorreriam para a formação do lucro tributável das SGPS), tendo em atenção a fungibilidade da moeda e as múltiplas afetações possíveis dos montantes recebidos em virtude de empréstimos contraídos;

e)           Não obstante ter sido emitida para ajudar à determinação, com uma maior segurança, do montante de encargos de financiamento a desconsiderar no cômputo do lucro tributável das SGPS, por essa via dotando o n.º 2 do artigo 32.º do EBF de um método de cálculo, a solução adotada baseia-se num método de cálculo proporcional, indireto e presuntivo, distorcendo de forma gravosa, pelo menos na maioria das vezes, o enquadramento tributário do contribuinte, ultrapassando, de forma substancial, o âmbito do aludido artigo;

f)            A lei não estabelece critérios de afetação de recursos financeiros à aquisição de participações sociais, não podendo a AT, por via administrativa criar normas de incidência, sob pena de se estar perante uma inconstitucionalidade material, uma vez que tais normas devem emanar de Lei (da Assembleia da República) ou Decreto-Lei (do Governo) devidamente autorizado;

g)            Não obstante o recurso a métodos de avaliação indireta se encontrar previsto na LGT, nomeadamente nos seus artigos 87.º a 89.º-A, a sua utilização é de índole marcadamente excecional e subsidiária, podendo a AT fazer uso de tais métodos (avaliação indireta) só nos casos expressamente enumerados no artigo 87.º da LGT e somente como mecanismo subsidiário relativamente à avaliação por métodos de afetação real e diretos;

h)           À luz do princípio da tributação do rendimento real, que surge como corolário do princípio da capacidade contributiva, a tributação com recurso a métodos indiretos deve ser admitida como uma exceção que terá de ser devidamente justificada, nos casos patológicos em que o contribuinte se recuse a colaborar com a administração na revelação dos seus rendimentos, casos em que nos termos da LGT pode haver lugar à determinação indireta da matéria coletável por meio de presunções;

i)             Só é admissível o recurso a métodos indiretos se esta for a única possibilidade de calcular a matéria coletável quando o sujeito passivo violou os seus deveres de cooperação e a sua declaração, maxime a sua contabilidade, não merece confiança;

j)             A impossibilidade de contabilização direta da matéria coletável terá sempre de ser apurada e provada pela AT em moldes concretos, atenta a situação de determinado contribuinte, e não abstratamente invocada e sustentada com base no facto de, alegadamente, ser árduo ou oneroso aplicar métodos de determinação direta da sua matéria coletável;

k)            Não obstante o regime consagrado no n.º 2 do artigo 32.º do EBF não instituir qualquer critério que permitisse distinguir entre encargos financeiros alocados (ou não) à aquisição de partes de capital, a AT só poderia, no âmbito daquelas que são as suas competências, mover-se no sentido de desenvolver um método que respeitasse a afetação direta e real, porque só esse seria compatível com o princípio da legalidade constitucionalmente consagrado e também, como vimos, com o da tributação do rendimento real;

l)             Em paralelo – e independentemente do método de imputação ora em causa configurar uma avaliação indireta da matéria coletável, sendo por isso ilegal –, a Circular n.º 7/2004, de 30 de março, determinava que os encargos (gastos) financeiros suportados com empréstimos contraídos com vista à aquisição de partes de capital fossem desconsiderados, para efeitos do apuramento do lucro tributável das SGPS, no exercício a que os mesmos diziam respeito, “independentemente de se encontrarem já reunidas todas as condições para a aplicação do regime especial de tributação das mais-valias”;

m)          Como decorre do Ponto 6 da referida Circular, caso se concluísse, aquando da transmissão onerosa das participações sociais detidas por aquelas sociedades, que não se encontravam cumpridos os requisitos necessários para a aplicação do regime fiscal das sociedades holding, proceder-se-ia, então, “nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores”.

 

22. Em sentido contrário, a AT veio sustentar a manutenção dos atos impugnados, salientando-se os seguintes fundamentos: 

a)            O Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de dezembro, que regula a atividade das SGPS, estipula que o seu único objeto contratual a gestão de participações noutras sociedades como forma indireta de exercido de atividades económicas;

b)           A participação numa sociedade é considerada uma forma indireta de exercício da atividade económica, quando a participação seja detida por período superior a um ano e atinja, pelo menos, 10% do capital com direito a voto, sendo às SGPS, em geral, vedado alienar participações sociais detidas antes de decorrido um ano sobre a sua aquisição;

c)            A regra geral é a não tributação das mais e menos valias, resultantes da alienação das participações sociais detidas pelas SGPS's, por beneficiarem da aplicação do n.º 2 do artigo 32.º do EBF, que contraria o regime geral de tributação das mais-valias e das menos valias obtidas pelos sujeitos passivos de IRC;

d)           Nos termos do n.º 2 do artigo 32.º do EBF, então em vigor, as SGPS’s estão isentas da tributação das mais-valias na alienação de partes de capital, desde que detidas por período, mas não podem deduzir fiscalmente os encargos financeiros que suportam para a aquisição dessas mesmas participações, não podendo, assim, acumular dois benefícios;

e)           A desconsideração dos encargos financeiros deve operar de imediato, não dependendo da alienação das participações sociais e da realização de mais-valias, o que implica não considerar, ab initio, os custos financeiros incorridos com a aquisição de participações sociais que possam vir a beneficiar da exclusão de tributação prevista no n.º 2 do art.º 32º do EBF, corrigindo-se essa desconsideração inicial se se constatar, a posteriori, que o requisito temporal previsto naquele normativo se não verificou;

f)            A alínea b) do n.º 3 do art.º 17.º do Código do IRC em conjugação com o regime especial previsto no n.º 2 do art.º 32.º, do EBF, determina a obrigação de identificação dos encargos financeiros direta ou indiretamente relacionados com a aquisição das partes de capital visados pela exclusão de dedução para efeitos de proceder, sendo caso disso, ao respetivo acréscimo ao lucro tributável;

g)            Do disposto no n.º 1 do artigo 74º da Lei Geral Tributária resulta uma repartição do ónus da prova, incumbindo à AT e aos contribuintes o ónus da prova dos factos que alegam como pressuposto do direito que pretendem exercer;

h)           A Requerente, tem o ónus de comprovar especificadamente os financiamentos obtidos e os correspondentes encargos financeiros; 

i)             A Requerente não fornece documentos comprovativos dos montantes de empréstimos obtidos remunerados e de encargos financeiros inerentes aos respetivos empréstimos e da relação com os alegados empréstimos contraídos;

j)             A utilização do método da imputação da Circular 7/2004 visa precisamente, de acordo com o disposto no artigo 32º nº. 2 do EBF, alcançar a tributação mais próxima possível do lucro real particularmente no caso de omissão de quantificação, por parte do contribuinte, dos encargos financeiros imputáveis às partes de capital por si detidas;

k)            A metodologia apresentada, da alegada afetação direta, não permite aferir concretamente quais os encargos financeiros que correspondem à aquisição de partes de capital, como tal não dedutíveis para efeitos do artigo 32.º do EBF, o que reforça a correção do método aplicado no âmbito do procedimento inspetivo, de acordo com o estatuído na Circular n.º 7/2014;

l)             Não é a Circular n.º 7/2004 que cria presunções de gastos não dedutíveis, mas é a própria lei, que afasta a dedutibilidade dos encargos financeiros (incorridos com financiamentos ligados à aquisição das participações sociais alienadas e que realizam mais valias excluídas de tributação) para efeitos de apuramento do lucro tributável do exercício em que são incorridos, mesmo que anteriores ao da realização;

m)          Salvo no que diz respeito à imposição, no n.º 7 da Circular n.º 7/2004, da utilização do método indireto de afetação dos encargos financeiros, nada obstava, no pressuposto de que a afetação direta fosse possível, que a Requerente a pudesse empreender, contrariando, assim, a imposição do método indireto de afetação dos encargos financeiros, razão pela qual não se vislumbra em que medida esta instrução administrativa possa conter verdadeiras normas de incidência, de determinação de taxa e de liquidação.

n)           O artigo 32.º do EBF ao determinar que os encargos financeiros suportados com a aquisição de partes sociais não concorrem para a formação do lucro tributável das SGPS, não estabeleceu o método a utilizar para efeitos de afetação dos encargos financeiros às participações sociais;

o)           A Circular n.º 7/2004, em respeito pela ratio legis implementada com a alteração legislativa ocorrida ao n.º 2 do artigo 32.º do EBF, mais não pretende que dar cumprimento à lei, explanando um método possível e uma forma de cálculo dos encargos financeiros suportados com a sua aquisição de partes sociais;

p)           A divulgação da Circular n.º 7/2004, de 30/03, a preconizar a adoção de um método indireto, sempre que a SGPS se depare com a impossibilidade prática de uma afetação específica dos encargos financeiros às partes de capital, i.e., quando a identificação dos encargos financeiros suportados com a aquisição daquelas participações coloque dificuldades de execução e se torne de difícil controlo, teve na sua origem razões de praticabilidade e exequibilidade de um normativo legal e o dever que o n.º 3 do art.º 59.º da LGT impõe à AT de divulgar orientações genéricas sobre a interpretação e aplicação das normas tributárias;

q)           As orientações administrativas vertidas na Circular (pontos 7 e 8) sobre o método de afetação indireta e a respetiva fórmula têm subjacente a preocupação de alinhamento com a ratio legis do n.º 2 do art.º 32.º do EBF, e recortam-se nas metodologias clássicas utilizadas na gestão financeira empresarial, devendo, em todo o caso, ser entendido, como mecanismo subsidiário da aplicação do método de afetação direta e específica, o qual goza de primazia sobre qualquer outro método;

r)            Não é a Circular n.º 7/2004 que cria normas de incidência, mas é a própria lei, interpretada nos termos acima expostos, que afasta a dedutibilidade dos encargos financeiros (incorridos com financiamentos ligados à aquisição das participações sociais alienadas e que realizam, ainda que potencialmente, mais-valias excluídas de tributação), para efeitos de apuramento do lucro tributável do exercício em que são incorridos;

s)            A interpretação iuris constante da Circular n.º 7/2004, está conforme à letra da lei, na medida em que mais não faz do que empreender a descoberta do seu mais preciso significado, em respeito, aliás, pela teoria geral da interpretação da lei e o do quadro normativo que a conforma, limitando-se, no âmbito do seu enquadramento legal, a promover a uniformização da interpretação e da aplicação da norma tributária em causa;

t)            O ato tributário de liquidação aqui em causa não está viciado ou enfermado de qualquer ilegalidade que lhe possa ser assacada com base nesta questão da afetação dos encargos financeiros, associada à emanação da Circular n.º 7/2004, de 30 de março. 

 

1.3          Reunião arbitral do artigo 18º do RJAT

 

23. Por despacho de 09.01.2019, dada a inexistência de prova a produzir em audiência e a pronúncia já realizada por escrito pela Requerente, foi dispensada a realização da reunião a que se reporta o artigo 18.º do RJAT e determinada a produção de alegações escritas simultâneas, tendo sido fixado, como prazo limite para a prolação da decisão arbitral, o prazo legalmente estabelecido.

24. Nas alegações, juntas ao processo pela Requerente em 28.01.2019 e pela Requerida em 05.02.2019, aquela manteve no essencial os argumentos apresentados na PI, tendo a segunda remetido, sem mais, para a contestação. 

2             SANEAMENTO

25. Tendo a notificação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa ocorrido no passado dia 11 de junho de 2018, constata-se que a Requerente dispunha até ao dia 9 de setembro de 2018 de prazo para formular o pedido de pronúncia arbitral, pelo que o mesmo é tempestivo.

26. Não foram invocadas exceções.

27. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (arts. 5.º, n.º2, 6.º, n.º1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT)

28. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.

29. O processo não padece de nulidades nem foram invocadas exceções, podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.

 

3             FUNDAMENTAÇÃO

3.1          Factos dados como provados

30. Com base nos documentos trazidos aos autos são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:

1)            Com base na liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2017... e na correspondente demonstração de acerto de contas, apurou-se o montante total a pagar de Euro 618,16 (seiscentos e dezoito euros e dezasseis cêntimos), referente ao exercício de 2013. (Documentos n.º 1 e 8) 

2)            A Requerente é uma sociedade gestora de participações sociais (“SGPS”), de direito português, que prossegue, no âmbito do seu objeto social, a atividade principal de gestão de participações socias de outras sociedades, sendo que, a 31 de dezembro de 2013, era a sociedade dominante do Grupo B... e, consequentemente, das entidades que integravam o perímetro do respetivo Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (“RETGS”), a saber, nos termos do artigo 69.º do CIRC, as sociedades dominadas, C..., S.A.”, titular do NIPC...; “D..., S.A.”, titular do NIPC...; “E..., Lda.”, titular do NIPC...; “F..., SGPS, S.A.”, com o NIPC ... (doravante, “F...”); “G..., Lda.”, com o NIPC ... e  “H..., Lda.”, com o NIPC... . (Documento n.º 2)

3)            Na qualidade de sociedade dominante, a ora Requerente submeteu, no dia 30 de maio de 2014, a declaração Modelo 22 respeitante ao aludido consolidado fiscal, por referência ao exercício de 2013 (cfr. declaração Modelo 22 do Grupo B... n.º... . (Documento n.º 3)

4)            No âmbito do apuramento do lucro tributável da Requerente e da F..., estas sociedades procederam à submissão de declarações Modelo 22 individuais (cfr. declarações Modelo 22 com os n.ºs ... e ..., de 30 e de 29 de maio de 2014)  nas quais foram apurados resultados fiscais no montante negativo de Euro 87.246,08 (oitenta e sete mil, duzentos e quarenta e seis euros e oito cêntimos) e positivo de Euro 1.900,81 (mil e novecentos euros e oitenta e um cêntimos), respetivamente. (Documentos n.ºs 5 e 6)

5)            Os SIT partiram diretamente para a aplicação da fórmula prevista na aludida orientação genérica e apuraram, de forma indireta, os montantes de encargos que, alegadamente, teriam sido imputados à aquisição de participações sociais pela Requerente e pela F... . (Documentos n.ºs 5 e 6)

6)            A Requerente, enquanto sociedade dominante do RETGS, procedeu, ainda durante o procedimento inspetivo, à submissão da correspondente declaração Modelo 22 de substituição do Grupo, com o n.º ... (cfr. declaração Modelo 22 de substituição do Grupo B..., referente ao exercício de 2013, no dia 7 de agosto de 2017. (Documento n.º 7)

7)            A versão final do Relatório de Inspeção Tributária foi notificado à Requerente através do Ofício n.º 2017..., de 25-10-2017. (Documento n.º 9)

8)            No dia 11 de dezembro de 2017, a A... SGPS, em nome do RETGS por si dominado, apresentou um pedido de revisão do ato tributário, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), contra o ato de liquidação de IRC supra identificado, no qual sustentou a ilegalidade das correções efetuadas e que deram origem à submissão da mencionada declaração e consequente autoliquidação de IRC. (Documento n.º 10)

9)            Mantendo a sua posição, com base, nomeadamente, na aplicação da Circular n.º 7/2004, de 30 de março, a AT notificou a Requerente, através do Ofício n.º 2018..., de 28-022018, do projeto de decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado (Documento n.º 11).

3.2          Factos não provados

31. Com relevo para a decisão sobre o mérito não existem factos alegados que devam considerar-se como não provados.

3.3          Motivação

32. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

33. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

34. Assim, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

3.4          Questão decidenda

 

35. A questão decidenda prende-se, fundamentalmente, com a legalidade da aplicação do método de cálculo consagrado no ponto 7 da Circular n.º 7/2004, de 30 de março, referente ao regime fiscal das SGPS previsto, à data, no artigo 32.º do EBF, que, nos termos dos autos, fundamentou as correções efetuadas pelos SIT, constantes da declaração Modelo 22 de substituição submetida pela Requerente. 

O regime das SGPS

36. O regime fiscal em causa foi introduzido pela Lei n.º 32-B/2002 , de 30 de dezembro, que veio estabelecer um benefício fiscal destinado às SGPS e às Sociedades de Capital de Risco (“SCR”), tendo em vista aumentar a sua competitividade. O mesmo previa a não concorrência, para a formação do lucro tributável, do montante apurado a título de mais e menos valias realizadas pelas SGPS com a alienação de partes de capital, desde que as mesmas fossem, entre outros requisitos, “detidas por período não inferior a um ano”. Ao mesmo tempo, estabelecia-se a não concorrência dos encargos (gastos) financeiros para a formação do lucro tributável, desde que os mesmos fossem suportados pelas referidas sociedades (i.e., SGPS), com empréstimos contraídos com vista à aquisição de partes de capital. Pretendia-se que apenas os encargos financeiros diretamente associados à aquisição de partes sociais ficassem abrangidos pela indedutibilidade.

37. A lógica era relativamente linear: “estando uma SGPS na posição de poder vir a beneficiar da exclusão de tributação logo que realizasse mais-valias com a alienação das participações sociais, ela já não estava numa posição equivalente às das demais sociedades, as quais, realizando ganhos de mais-valias com a alienação de participações sociais, não beneficiavam da aludida exclusão de tributação – pelo que se entendia que era apenas no seio daquele regime excecional que seria de ponderar a justiça da desconsideração dos encargos em contrapartida da desconsideração dos ganhos” .

38. Nos termos deste regime, para determinar a não dedutibilidade de certos encargos financeiros, tornava-se necessário demonstrar uma relação direta entre os mesmos e a aquisição de determinadas participações sociais. Assim, se determinadas participações não fossem adquiridas com passivos geradores de encargos financeiros, elas não seriam consideradas para efeito da aplicação do n.º 2 do artigo 32º do EBF, na parte respeitante à não dedutibilidade de encargos financeiros. Por outro lado, relativamente às participações sociais adquiridas com financiamentos geradores de encargos, apenas os encargos derivados dos financiamentos relativos à sua aquisição não seriam dedutíveis.

 39. A sua aplicação veio a revelar-se especialmente complexa, não sendo fácil ou mesmo possível apurar qual a parte dos encargos (gastos) financeiros anualmente suportados pelas SGPS que corresponderia à aquisição de partes de capital. Assim sucedia, designadamente, porque as sociedades frequentemente contraíam empréstimos tendo em vista a prossecução de diferentes objetivos.

40. Tendo em vista reduzir a complexidade e a incerteza, concretizando o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, a AT, por via da Direção dos Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (DSIRC), emanou a Circular n.º 7/2004, de 30 de março, da Direção de Serviços do IRC, com o objetivo de auxiliar os sujeitos passivos no apuramento do ajustamento a realizar para o cálculo do seu lucro tributável. Digno de nota, para o caso concreto, é o ponto 7, onde se fixou a fórmula pro rata de cálculo do montante de encargos financeiros que deveria ser desconsiderado em sede de apuramento do lucro tributável das SGPS, a saber, os gastos relacionados com financiamentos contraídos para a aquisição de partes de capital.

41. De acordo com o método proposto, “os passivos remunerados das SGPS e SCR deverão ser imputados, em primeiro lugar, aos empréstimos remunerados por estas concedidos às empresas participadas e aos outros investimentos geradores de juros, afetando-se o remanescente aos restantes ativos, nomeadamente participações sociais, proporcionalmente ao respetivo custo de aquisição”.

Orientações genéricas e princípio da legalidade tributária

42. Este método de cálculo dos encargos financeiros a desconsiderar no apuramento do lucro tributável das SGPS reflete-se no apuramento da matéria coletável, o que imediatamente suscita a questão de saber se o mesmo é compatível com o princípio da legalidade tributária, consagrado no artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e vertido no artigo 8.º da LGT. Trata-se de uma manifestação qualificada do princípio da legalidade da Administração, que é um subprincípio do princípio constitucionalmente estruturante do Estado de direito. A relevância constitucional-fiscal da questão em análise prende-se, justamente, com o facto de se estar diante da introdução de um método indireto de apuramento da matéria coletável através de uma Circular portadora de uma orientação genérica.

43. Nos termos do artigo 112º n.º 1 da CRP, [s]ão atos legislativos as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais.” Nesta disposição são elencados os atos normativos com dignidade de lei formal. O princípio da legalidade é indissociável do princípio da tipicidade dos atos legislativos. Ele tem como corolário o princípio do paralelismo de formas ou da equivalência normativa. Em traços largos, este princípio significa que um determinado regime jurídico só pode ser alterado, derrogado, revogado, integrado ou interpretado com eficácia externa através de uma fonte normativa dotada de dignidade hierárquica e formal equivalente aquela que procedeu à definição desse regime. 

44. O princípio da equivalência normativa manifesta-se no n.º 5 do artigo 112.º da CRP, nos termos do qual “[n]enhuma lei pode criar outras categorias de atos legislativos ou conferir a atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.” Isso significa que só um ato formalmente legislativo pode interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar, com eficácia externa, um preceito de outro ato formalmente legislativo. Daqui resulta que as orientações genéricas emitidas pela administração, constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza (arts. 55º CPPT e 68º-A da LGT), não são lei formal – nem esse estatuto lhes pode ser atribuído por lei formal – tratando-se de atos que apenas vinculam a AT e os seus órgãos. 

45. Isto não significa, porém, que as mesmas não se repercutam, indiretamente, na situação jurídico-tributária dos contribuintes. Assim sucede, efetivamente, em virtude de as orientações genéricas exprimirem o entendimento da AT relativamente ao espírito e ao texto de preceitos da lei fiscal. Por outras palavras, as mesmas condensam a interpretação oficial da lei fiscal efetuada pela AT. Por esse motivo, elas são invocáveis perante os contribuintes, embora não o possam ser retroativamente perante aqueles que tenham agido com base numa interpretação da lei plausível e de boa fé. 

46. A competência da AT para a administração dos impostos e a promoção da correta aplicação da legislação fiscal requer necessariamente a formulação de orientações genéricas e a elaboração de regras para garantir efetividade a todas as normas criadas pelo legislador. Com efeito, a AT é chamada quotidianamente a interpretar, integrar e concretizar a lei fiscal, sendo que esta se apresenta frequentemente dotada de elevada complexidade, ora por ter que recorrer a conceitos indeterminados, ora por mobilizar múltiplos conceitos técnicos precisos de natureza jurídica, económica e contabilística . 

47. Na sua atividade, que envolve o contacto direto e permanente com milhões de sujeitos passivos, individuais e coletivos, residentes e não residentes, e o acompanhamento de milhões de transações , a AT depara-se com questões fiscais em que se discute o pagamento de todos os impostos envolvendo os mais diversos montantes, desde os mais baixos aos mais elevados, em que as questões de legalidade, igualdade, equidade horizontal, equidade vertical ou justiça social adquirem acuidade política e jurídica extrema. Por esse motivo, a perfeição no exercício de tão vastas responsabilidades não pode razoavelmente ser esperada .

48. Chamada a atuar sob intensa pressão processual, a AT não pode contar com o legislador para que este proceda a uma pormenorizada disciplina dos impostos ou esteja em condições de lhe fornecer, em tempo real, ou com elevado grau de prontidão, todos os elementos de interpretação autêntica, integração de lacunas ou concretização técnica de que aquela necessita para a imediata, categórica e persuasiva solução dos múltiplos casos concretos com que a mesma a toda a hora se defronta.

49. Porque assim é, a AT não pode furtar-se à necessária atividade de interpretação, integração e concretização da lei fiscal. Ela é, na prática, a intérprete primária das normas fiscais, intervindo os tribunais em segunda linha. Sobre a AT impende um imperativo constitucional de regularidade interpretativa , sendo que lhe cabe assegurar um grau suficiente de legalidade material, uniformidade espacial  e consistência temporal, de modo a garantir a prossecução efetiva dos fins da tributação e ao mesmo tempo afirmar os valores da universalidade, legalidade, igualdade, previsibilidade, segurança jurídica e proteção da confiança dos cidadãos e preservar a legitimidade e a credibilidade institucional e funcional da administração tributária, essenciais para o exercício da sua missão.

50. É por estes motivos, de inegável relevância constitucional, que se estabelece que as próprias informações vinculativas – todas sujeitas a publicação  – devem ser convertidas em circulares administrativas, logo que verificados os pressupostos do artigo 68º-A n.º3 da LGT. Elas constituem uma importante fonte de informação fiscal na disponibilidade dos contribuintes. A respetiva publicação significa que as circulares podem servir de precedente a ser utilizado na solução de outros casos semelhantes, podendo ser citadas e invocadas para esse propósito .

51. Por um lado, elas instruem os funcionários da AT acerca da interpretação e aplicação uniforme a dar às leis fiscais, contribuindo para a simplificação e a celeridade do trabalho administrativo. Por outro lado, elas desempenham uma importante tarefa de informação e orientação dos contribuintes, oferecendo-lhes indicações sobre o modo como a AT irá aplicar uma norma de direito fiscal a realidades factuais substancialmente idênticas.

52. Ou seja, as circulares administrativas genéricas vinculam apenas a AT, mas fazem-no, evidentemente, quando esta aplica a lei fiscal à generalidade dos contribuintes. Elas obrigam a AT a aplicar soluções juridicamente idênticas a contribuintes em condições factualmente idênticas. As mesmas não têm valor hierárquico-normativo de lei formal, pelo que nem os sujeitos passivos nem os tribunais se encontram juridicamente vinculados pelas orientações genéricas, na medida em que isso iria contra o princípio da tipicidade das leis consagrado no artigo 112.º da CRP.

53. Isto significa que os contribuintes, sem qualquer penalização, podem abster-se de seguir as circulares administrativas quando preencham e entreguem as suas declarações de rendimentos, se estiverem razoavelmente convencidos, de boa-fé, de que a sua posição é realisticamente sustentável e dotada de plausibilidade e mérito, podendo, se o entenderem, alegar a respetiva ilegalidade diante da AT e dos tribunais. Estes últimos podem declarar a respetiva ilegalidade, embora se espere, por questões de competência e adequação institucional, que manifestem um grau razoável de consideração para com a atividade interpretativa, aplicativa e concretizadora da AT, quando a mesma seja defensável, ou seja, se caracterize pela razoabilidade e plausibilidade à luz dos parâmetros jurídicos, económicos e contabilísticos fiscalmente pertinentes .

54. Esta expectativa de consideração jurisdicional está associada ao reconhecimento da maior adequação institucional e experiência especializada da AT em comparação com os tribunais, bem como da sua maior capacidade técnica, pessoal e material, para investigar e obter informações relevantes. Ainda assim, não se retira aos tribunais a palavra final sobre se a interpretação da AT é juridicamente sustentável, deixando-se-lhes uma ampla margem para desconsiderarem completamente as circulares administrativas genéricas, sempre que, de maneira devidamente fundamentada, entenderem que o devem fazer por força da Constituição e da lei.  

55. Embora não exista uma solução perfeita para resolver o problema da inconsistência na aplicação da lei fiscal de uma forma que também garanta um mecanismo de certeza absoluta do contribuinte, as circulares administrativas portadoras de orientações genéricas fornecem um veículo para uma solução quase perfeita. As circulares da AT contêm em muitos casos padrões e critérios através dos quais a AT aborda os factos tributários e as normas tributárias, pelo que, se os tribunais as considerarem simplesmente apenas um pedaço de papel destituído de qualquer valor jurídico - uma posição que muitos contribuintes eventualmente também assumirão – a AT ver-se-á privada de qualquer incentivo para emitir orientações genéricas, por essa via resultando seriamente comprometidas a igualdade e a previsibilidade na aplicação da lei fiscal.

56. Ainda assim – como já se disse acima – a despeito do seu valor jurídico interpretativo e concretizador, as circulares administrativas não são lei em sentido formal. Elas estão hierarquicamente subordinadas à Constituição e à lei, à semelhança do que sucede com os regulamentos. Está-lhes por isso vedada a tomada de decisões materialmente legislativo-tributárias que ponham em causa o princípio da legalidade tributária.

57. Nos termos do artigo 8.º da LGT, as decisões fundamentais em domínios como a incidência, a taxa, os benefícios fiscais, as garantias dos contribuintes, a definição dos crimes e o regi.me geral das contraordenações fiscais, e bem assim, a liquidação e cobrança dos tributos, incluindo os prazos de prescrição e caducidade, a regulamentação das figuras da substituição e da responsabilidade tributárias, a definição das obrigações acessórias, a definição das sanções fiscais sem natureza criminal e as regras de procedimento e processo tributário, não podem ser tomadas por circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza.

58. Assim se compreende, além do mais, que os contribuintes possam impugnar a constitucionalidade e a legalidade das orientações genéricas junto dos tribunais e que a administração tributária esteja obrigada a proceder à sua revisão atendendo, nomeadamente, à jurisprudência dos tribunais superiores (art. 6º-A da LGT).

 

O ponto 7 da Circular n.º 7/2004, de 30 de março

59. Uma vez esclarecido o sentido das circulares com orientações genéricas, importa indagar se o Ponto 7 da Circular n.º 7/2004, de 30 de março, é compatível com o princípio da constitucional da legalidade tributária. Como ali se diz, "dada a extrema dificuldade de utilização, nesta matéria, de um método de afetação direta ou específica e à possibilidade de manipulação que o mesmo permitiria, deverá essa imputação ser efetuada com base numa fórmula que atenda ao seguinte: os passivos remunerados das SGPS e das SCR deverão ser imputados, em primeiro lugar, aos empréstimos remunerados por estas concedidos as empresas participadas e aos outros investimentos geradores de juros, afetando-se o remanescente aos restantes ativos, nomeadamente participações sociais, proporcionalmente ao respetivo custo de aquisição”.

60. Tratou-se aí de fornecer critérios de interpretação e aplicação do n.º 2 do artigo 32º do EBF, garantindo, a um tempo, efetividade, uniformidade, igualdade, previsibilidade e segurança jurídica ao preceito em causa. Este aspeto reveste-se de grande importância prática, tendo em vista o facto de que a eventual proliferação de múltiplas interpretações não deixaria de ter graves consequências do ponto de vista dos princípios da legalidade e da igualdade tributárias, da interação da AT com os contribuintes, da eficaz realização das finalidades da tributação e do combate à elisão fiscal .

61. Desde então, tem sido com base nas referidas instruções que a inspeção tributária vem fazendo e fundamentando as correções aos encargos financeiros suportados pelas SGPS. A AT reconhecia que o n.º 2 do artigo 32.º do EBF, embora apontasse para um método de afetação direta, não previa, nem formal nem materialmente, qualquer mecanismo ou fórmula que permitisse afetar os encargos financeiros (gastos) incorridos com financiamentos contraídos com vista à aquisição de partes de capital a entidades participadas, não possibilitando o apuramento dos encargos fiscalmente aceites e dos encargos que não concorreriam para a formação do lucro tributável das SGPS, tendo em atenção as múltiplas afetações possíveis dos montantes recebidos em virtude de empréstimos contraídos. Por esse motivo, o risco de manipulação fiscal era manifesto.

62. Tendo em vista permitir a boa execução da lei, a AT determinou, de forma imperativa, o recurso a uma fórmula pro rata para a determinação dos encargos financeiros associados à aquisição de participações, uma técnica de aplicação complexa e controvertida. De imediato se colocou a questão de saber se a AT se limitou a interpretar a norma legal ou se foi ao ponto de criar autonomamente regras inovadoras respeitantes ao pressuposto objetivo da incidência do imposto, matéria que constitui reserva de lei formal, nos termos dos artigos 103º e 165º/1 i) da CRP. 

 

Argumentos favoráveis à solução do Ponto 7

63. A favor da solução preconizada no Ponto 7 da Circular n.º 7/2004, e na linha do que anteriormente se disse acerca das circulares administrativas com orientações genéricas, pode sustentar-se que a mesma nada mais é do que a simples concretização técnica do objetivo e do critério legislativo fundamental que consiste na negação às SGPS de um duplo benefício (i.g. dedução/não inclusão), através de um mecanismo razoável, proporcional e de modo nenhum estranho às práticas contabilísticas geralmente aceites. 

64. De acordo com semelhante entendimento, o Ponto 7 da Circular limita-se conferir efetividade ao critério legalmente vertido, desdobrando e explicitando tecnicamente as suas implicações que já se encontravam de forma seminal e implícita no espírito e na letra da lei, critério esse dotado de densidade normativa suficiente. Mais concretamente, não teria sido a Circular n.º 7/2004 a criar presunções inilidíveis de custos não-dedutíveis, mas sim o artigo 32.º n.º 2 do EBF que quis, de modo inteiramente razoável e legítimo, afastar a dedutibilidade dos encargos financeiros incorridos com financiamentos ligados à aquisição das participações sociais cuja alienação realize mais-valias excluídas de tributação . 

65. Decorrendo da Constituição que a AT, na interpretação das normas tributárias que lhe incumbe levar a cabo, garanta a efetividade e a uniformidade da aplicação das normas fiscais, isso traduz-se, necessariamente, na emissão legalmente subordinada de orientações genéricas que permitam preencher e concretizar tecnicamente as opções fundamentais do legislador. Não seria razoável, portanto, concluir que toda e qualquer interpretação ou concretização dos princípios, regras e conceitos da lei fiscal – nomeadamente que, deixando intocados os respetivos elementos essenciais, aumente a sua efetividade e reduza a incerteza na sua aplicação – deva ser vista como ferida de ilegalidade e qualificada como o exercício disfarçado e abusivo da função legislativa por parte da AT.

66. Para este entendimento, não estaria em causa, neste domínio, a aplicação generalizada de métodos indiretos, já que sempre estará aberta ao contribuinte a possibilidade de carrear para a AT todos os elementos documentais concretamente necessários para que se proceda à distinção precisa entre encargos a considerar e a desconsiderar no apuramento do lucro tributável da SGPS. O n.º 2 do art.º 32.º do EBF exigiria a definição de um método de aplicação apto a garantir a sua efetividade, ou seja, que não torne impossível ou extremamente difícil a aplicação do critério por ele definido. A Circular n.º 7/2004, exprimindo o exercício de uma função indeclinável de integração e complementação da AT, teria vindo concretizar tecnicamente e dotar de generalidade essa exigência, de forma não arbitrária e inteiramente razoável, adequada e proporcional, sem que se possa falar da violação dos princípios de legalidade tributária, da proporcionalidade ou da segurança jurídica e proteção da confiança dos cidadãos, ínsitos no princípio do Estado de direito.  

67. Por conseguinte, a utilização da fórmula de cálculo constante da Circular n.º 7/2004 seria inteiramente legítima, desde que seja sempre assegurada a sua concreta aplicação em conformidade com o telos ou a ratio legis do n.º 2 do art.º 32º do EBF e se reconheça ao sujeito passivo a possibilidade de se furtar a ela sempre que as consequências da sua aplicação se mostrem contrárias aos princípios e fins subjacentes a este preceito legal e o mesmo esteja convencido, razoavelmente e de boa-fé, de que tem condições probatórias para sustentar o mérito da sua posição à face da lei.

68. A aplicação do critério de afetação direta não está de modo algum excluída a priori, podendo ser levada a cabo pelas sociedades afetadas através da adequada documentação contabilística . O recurso ao método indireto sempre seria possível, em sintonia com o disposto no o artigo 87.º n.º 1 alínea b) da LGE, quando fosse impossível, em concreto, a comprovação e quantificação direta e exata dos elementos indispensáveis à correta determinação da matéria tributável, para efeitos do artigo 32.º n.º 2 do EBF.

69. Ainda que se possa falar numa preferência legal absoluta pela utilização de métodos de avaliação direta para a fixação da matéria tributável, por serem maiores as garantias de rigor que estes métodos fornecem, o recurso aos métodos indiretos não pode em absoluto ser rejeitado, excecionalmente, nos casos em que se revele manifestamente impossível ou extremamente difícil a comprovação e quantificação direta e exata dos elementos constitutivos do lucro tributável.

 

 

Aplicação da solução do Ponto 7

70. Na jurisprudência suscitaram-se dívidas acerca de a Circular n.º 7/2004 proceder à fixação e criação de critérios e métodos inovadores e dotados de eficácia externa para a verificação da incidência do imposto, em violação da reserva de lei formal.

71. Tudo está em saber se é legítima a introdução, por Circular, de um método indireto de apuramento do lucro tributável assente em presunções e extravasando o critério de imputação direta e real legalmente estabelecido.  Para alguma jurisprudência, não havendo um método técnico legalmente previsto, não caberia a sua criação à AT, sob pena de inconstitucionalidade orgânica e formal.

72. Na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, tem sido sustentado que o recurso a métodos de avaliação indireta, embora previsto na LGT, nomeadamente nos seus artigos 87.º a 89.º-A, é de utilização marcadamente excecional e subsidiária, sob pena de ilegalidade . De acordo com esta orientação, a AT apenas deverá fazer uso de tais métodos (avaliação indireta) nos casos expressamente enumerados no artigo 87.º da LGT – regime simplificado de tributação, nos casos e condições previstos na lei ou impossibilidade de comprovação e quantificação direta e exata dos elementos indispensáveis à correta determinação da matéria tributável de qualquer imposto – e somente como mecanismo subsidiário relativamente à avaliação por métodos de afetação real e diretos.

73. De acordo com esta orientação, atenta às circunstâncias de cada caso concreto, não se pode afirmar a ilegalidade abstrata do método previsto no Ponto 7 da referida circular, se entendido como apenas sendo aplicável subsidiariamente, como método indireto, nos casos em que não seja viável a determinação direta do montante dos encargos conexionados com financiamentos utilizados na aquisição de participações sociais, como permitem os artigos 85.º, n.º 1, e 87.º, n.º 1, alínea b), da LGT. Contudo, a impossibilidade de comprovação de que se fala no artigo 87.º n.º da LGT tem que ser absoluta, não bastando a “extrema dificuldade de utilização, nesta matéria, de um método de afetação direta ou específica” que se invoca no ponto 7 da Circular n.º 7/2004, como razão a utilização do método indireto .

74. Esta impostação obteve recentemente votos ponderosos do Supremo Tribunal Administrativo , que voltou a reafirmar que “[o] ponto 7 da Circular n.º 7/2004, de 30.03, da DSIRC, estabelece um método indireto, presuntivo, de afetação de encargos financeiros em desrespeito dos artigos 87.º a 90.º da LGT sendo, por isso, ilegal”, embora salientando a necessidade de uma atenção às circunstâncias de caso concreto visto que “a “norma” emitida pela AT não pode ser considerada de per si, de forma isolada, sem qualquer relação com uma concreta situação de determinado contribuinte, como se tratando de método de afetação ilegal e proibido; se houver razões que justifiquem a sua aplicação, pode tratar-se de método idóneo a efetuar a respetiva afetação, mas se não se verificarem tais razões, trata-se de método inadequado de proceder a essa mesma afetação.”

75. Reiterando esta posição, o Supremo Tribunal Administrativo sustentou que se mostra “afetado por vício de violação de lei o ato de autoliquidação de IRC efetuado em obediência às instruções constantes no Ponto 7 da Circular nº 7/2004, de 30.03, da Direção de Serviços do IRC, na medida em que nela se estabelece um método ilegal de afetação de encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais”  .  Aí, o STA sustentou, em aresto relevante para o caso em apreço que: 

 

“enquanto método indireto de determinação do lucro tributável, o mesmo só seria admissível, nos termos gerais [cfr. n.º 1 do art. 85.º e alínea b) do n.º 1 do art. 87.º, da LGT] nos casos em que se verifique inviabilidade de determinação direta dos encargos resultantes de financiamentos diretamente associados à aquisição de participações sociais, competindo à AT o ónus da prova da verificação desses pressupostos, nos termos do n.º 3 do art. 74.º da LGT, como bem ficou dito no acórdão fundamento. Ora, no caso sub judice, no que às sindicadas correções respeita, a AT não questionou que não se verificassem os pressupostos mencionados no art. 23.º do CIRC quanto à dedutibilidade dos custos, antes se limitando a utilizar a fórmula constante da Circular n.º 7/2004 e procedendo, dessa forma, a uma verdadeira utilização de métodos indiretos para determinar o valor dos encargos financeiros que supostamente terão sido suportados com a aquisição de partes do capital, sendo que também não identificou qualquer participação social que haja sido adquirida com recurso a financiamento, nem qualquer financiamento que tenha originado os encargos financeiros que entendeu corrigir. Ora, para que a AT pudesse recorrer ao método previsto no ponto 7. da Circular n.º 7/2004, impunha-se-lhe que demonstrasse que não podia fazer uma imputação dire7ta, o que não fez, antes se limitando, sem mais, a aplicar aquele método. Em conclusão, é à AT que compete o ónus da prova para a determinação da matéria tributável por métodos indiretos, não permitindo o n.º 3 do art. 74.º da LGT que se faça recair esse ónus sobre o contribuinte”. 

 

76. Este posicionamento jurisprudencial repetidamente sustentado não deixa de ser significativo, do ponto de vista do esquema constitucional de repartição de competências e funções e das exigências de igualdade e segurança jurídica e proteção da confiança dos cidadãos. Por um lado, cabe aos tribunais, na sua função de controlo da AT e de garantia dos direitos dos contribuintes, avaliar a conformidade das circulares administrativas e da respetiva aplicação no caso concreto com a Constituição e a lei. A posição dos tribunais superiores, sempre determinando atenção às especificidades de cada caso concreto, não pode deixar de ser tida em conta pelos restantes operadores jurídicos.

77. Os tribunais tributários, incluindo os tribunais arbitrais, deverem tomar em consideração as circulares administrativas portadoras de orientações genéricas quando as mesmas procurem concretizar tecnicamente as opções fundamentais do legislador tributário.  Relativamente à Circular n.º 7/2004, cabe-lhes garantir, nos termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, que a sua aplicação ao caso concreto não consubstancia uma ilegalidade e/ou inconstitucionalidade.

78. Não existindo entre nós a regra anglo-saxónica do precedente judicial, a pretensão de consistência das decisões jurisdicionais corresponde a uma exigência de otimização decorrente dos princípios da legalidade tributária, da igualdade tributária e da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos. Dela depende, além do mais, a própria credibilidade e legitimidade das instituições jurisdicionais e administrativas. 

79. Do ponto de vista do esquema constitucional de repartição de competências e funções, as decisões dos tribunais superiores devem sobrepor-se à atividade da administração e fornecer parâmetros interpretativos à generalidade dos tribunais, incluindo o presente tribunal arbitral. Isto, em total coerência com o apontado dever, que impende sobre a AT, de proceder à revisão das orientações genéricas atendendo, nomeadamente, à jurisprudência dos tribunais superiores (art. 6º-A da LGT).

80. Esta jurisprudência é parte de um diálogo institucional mais vasto , no seio do qual incumbe ao legislador corrigir as insuficiências do texto legal apontadas pela administração e pelos tribunais.  Concretamente, caber-lhe-ia, para dissipar todas as dúvidas, recortar a solução do Ponto 7 da Circular n.º 7/2004 e colá-la no texto de um preceito jurídico com dignidade hierárquico-normativa de lei formal.

81. No quadro do princípio da separação de poderes constitucionalmente consagrado, a criação, interpretação e aplicação das normas jurídicas ocorrem no âmbito de um diálogo institucional permanente entre os poderes legislativo, administrativo e judicial . Em causa está a promoção e proteção da unidade e coerência do sistema jurídico, da funcionalidade da estrutura de governação e dos direitos fundamentais dos cidadãos. Estes últimos têm o direito de estruturar a sua vida pessoal e económica no quadro de um ordenamento jurídico institucional e normativamente estruturado, estável e previsível.

 

Ónus da prova e aplicação concreta da Circular n.º 7/2004 

82. Em sede de ónus da prova, o ponto de partida é o disposto no n.º 1 do artigo 74º da LGT, onde se dispõe que “[o] ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”. Daqui resultaria, prima facie, a repartição do ónus da prova, incumbindo à AT e aos contribuintes provar os factos que aleguem como pressuposto do direito que pretendam exercer. Esta norma é especialmente relevante em matéria de deduções, na medida em que é doutrina geralmente aceite no direito fiscal que “o contribuinte tem o ónus da prova para estabelecer que ele ou ela tem direito à dedução".  Assim, a prova da existência e quantificação dos encargos, para efeitos do correto apuramento do imposto efetuado na liquidação, incumbe ao sujeito passivo. 

83. A ser decisivo o disposto no artigo 74.º n.º 1 da LGT – na medida em que pretenda invocar o regime do n.º 2 do artigo 32.º do EBF para as SGPS, e considerando que dos respetivos telos e ratio se deduz razoavelmente uma presunção de associação entre encargos financeiros e a aquisição de participações sociais  –, o sujeito passivo deveria comprovar especificadamente a existência, quantificação e enquadramento dos diversos financiamentos obtidos e dos correspondentes encargos financeiros , de maneira a afastar a aplicação subsidiária do método do Ponto 7 da Circular n.º 7/2004, sendo que a referida presunção sempre admitiria prova em contrário, por força do disposto no artigo 73.º da LGT. 

84. A ausência de comprovação iria condicionar a relevância dos ditos financiamentos e encargos para efeitos dos regimes em apreço, na medida em que ficaria por demostrar a conexão essencial entre os encargos assumidos e as finalidades que permitem a sua dedução ou impõem a sua não dedução.

85. Numa primeira leitura, de acordo com o artigo 74.º n.º 1 da LGT, o ónus da prova da dedutibilidade dos custos recairia sobre o sujeito passivo, na medida em que é a ele quem interessa a alegação dos pressupostos da dedutibilidade, sendo que, no caso específico das SGPS, ninguém está em melhor posição do que elas para indicar e concretizar os encargos financeiros suportados com a aquisição das participações sociais. 

86. Importa considerar que o artigo 75.º n.º 1 da LGT dispõe que “presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos”. De acordo com este preceito, a AT deveria tomar por boa a declaração apresentada pelo contribuinte, cabendo-lhe provar que a mesma padece de vícios que impedem a aceitação do mérito substantivo do respetivo conteúdo e a liquidação de imposto que lhe corresponda.

87. Contudo, é de ter em atenção os termos do n.º 2 do mesmo artigo 75º da LGT, onde se dispõe que “A presunção referida no número anterior não se verifica quando: a) As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexatidões ou indícios fundados de que não refletem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo; b) O contribuinte não cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, salvo quando, nos termos da presente lei, for legítima a recusa da prestação de informações;” Daqui resulta que, para beneficiar da presunção de verdade e boa-fé da declaração de rendimentos, o contribuinte tem pelo menos o dever de fornecer informação documental suficiente para o conhecimento da matéria tributável real.

88. É certo que o artigo 74º n.º 3 da LGT dispõe que “Em caso de determinação da matéria tributável por métodos indiretos, compete à administração tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos da sua aplicação, cabendo ao sujeito passivo o ónus da prova do excesso na respetiva quantificação.” Este preceito adquire uma relevância decisiva no caso em apreço, como resulta com clareza da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo acima referida. O mesmo isenta o contribuinte do ónus da prova, entendido este enquanto ónus de persuasão acerca do mérito substantivo da sua posição. 

89. Estando em causa a Circular n.º 7/2004, que procura responder às dificuldades de utilização do método de afetação ao risco da respetiva manipulação pelos contribuintes, não há dúvidas de que a aplicação de métodos indiretos, de forma generalizada e sem ser tida em conta a situação concreta de cada contribuinte, está proscrita pelos arts. 104.º, nº 2 da CRP, 81.º, n.º 1 e 85.º da LGT, e pelo princípio da tipicidade das leis, ínsito no n.º 5 do art. 112.º, n.º 5, da CRP. No entanto, isso não significa, como bem frisou o Supremo Tribunal Administrativo, que a referida circular possa ser, em abstrato, considerada ilegal ou inconstitucional em todos os casos  .

90. No mesmo sentido aponta o princípio da interpretação das normas jurídicas em conformidade com a Constituição, com na dupla função de garantia da primazia da constituição r conservação de normas . Enquanto for possível conferir a uma norma jurídica uma interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com os princípios e regras constitucionais deve ser essa a orientação adotada pelos operadores jurídicos. É neste quadro que se tem entendido que o método indireto do Ponto 7 da Circular para calcular o montante dos encargos financeiros destinados à aquisição de participações sociais só poderá ser aplicado subsidiariamente e depois de se ficar demonstrada a inviabilidade da quantificação direta no caso concreto. 

91. Por outras palavras, nos termos gerais, [cfr. n.º 1 do art. 85.º e alínea b) do n.º 1 do art. 87.º, da LGT] o recurso ao método indireto do Ponto 7 só é admissível nos casos em que se verifique a inviabilidade de determinação direta dos encargos resultantes de financiamentos diretamente associados à aquisição de participações sociais, competindo à AT o ónus da prova da verificação desses pressupostos, nos termos do n.º 3 do art. 74.º da LGT.

92. Ora, e procurando seguir a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Administrativo , importa ter presente que, no caso concreto, nem Requerente nem a F..., acresceram qualquer valor, no campo 779 das respetivas declarações Modelo 22 referentes ao exercício de 2013, a título de encargos financeiros suportados com aquisições de partes de capital, pelo que essas declarações, revelam omissões que permitem concluir que as mesmas não refletem a matéria tributável real do sujeito passivo e impedem o respetivo conhecimento.

93. Dentro do ónus da prova do contribuinte é possível distinguir, como faz alguma doutrina e está subjacente à argumentação acima expendida, entre o ónus da produção e  ónus da persuasão , compreendendo aquele o dever de, com um limiar mínimo de exigência, fornecer à AT elementos documentais idóneos a sustentar, prima facie, a correção da própria posição fiscal – o que não se compadece com a mera alegação da arbitrariedade da posição da AT, a simples reclamação do direito a uma dedução ou a negação genérica e inexplicada de responsabilidade fiscal .  Por seu lado, o ónus da persuasão consiste na demonstração, em termos definitivos e de maneira clara e convincente, do mérito substantivo da posição do sujeito passivo a partir dos elementos documentais disponibilizados .

94. Uma ver produzidos os documentos necessários ao estabelecimento de factos básicos (v.g. empréstimos; pagamento de juros; aquisição de participações sociais) que possibilitam a determinação da matéria coletável, não valeria aqui a tese de que os factos falam por si (res ipsa loquitur). Antes caberia à Autoridade Tributária, nos termos do artigo 74.º n.º 3 da LGT, o ónus da prova da verificação dos pressupostos da aplicação de métodos indiretos, a partir de uma análise compreensiva, causal, coerente e consistente dos dados factuais pertinentes. Ora a Requerente, não oferece sequer – como podia e devia ter feito na sua qualidade de parte nas transações relevantes – documentos a partir dos quais se pudesse estabelecer os montantes de empréstimos obtidos remunerados e de encargos financeiros inerentes aos respetivos empréstimos e a relação com os alegados empréstimos contraídos.

95. Essa omissão na prestação de elementos declarativos na Declaração Modelo 22 deixou concretamente patente, junto da AT e do presente tribunal, a impossibilidade de se proceder à utilização de métodos diretos, sendo que o sujeito passivo é quem estaria em melhores condições para oferecer elementos que permitissem ao menos sustentar prima facie a sua viabilidade – mesmo sem ter o ónus de provar, de forma clara e convincente, o mérito substantivo da sua posição  fiscal em termos definitivos – em virtude de poder dispor de toda documentação que lhe permitiria proceder a uma afetação direta. O ónus da prova da AT não exonera a Requerente do adequado cumprimento das suas obrigações acessórias declarativas, antes deve ser entendido na estreita relação que estabelece com elas.

96. A utilização do método da imputação do Ponto 7 da Circular n.º 7/2004 visa precisamente, de acordo com o disposto no artigo 32º nº. 2 do EBF, alcançar a tributação mais próxima possível do lucro real particularmente no caso de omissão de quantificação, por parte do contribuinte, dos encargos financeiros imputáveis às partes de capital por si detidas. A metodologia apresentada pelo sujeito passivo, da alegada afetação direta, não permite aferir concretamente quais os encargos financeiros que correspondem à aquisição de partes de capital, como tal não dedutíveis para efeitos do artigo 32.º do EBF, o que reforça a correção do método aplicado no âmbito do procedimento inspetivo, de acordo com o estatuído na Circular n.º 7/2004.

97. Como tem entendido a jurisprudência do STA , para que a AT possa recorrer ao método previsto no Ponto 7 da Circular n.º 7/2004, impõe-se que demonstre que não podia fazer uma imputação direta, nos termos do artigo 74.º n.º 3 da LGT. No entanto, isso não isenta o contribuinte do seu ónus de produção de elementos documentais de modo a que a sua declaração, ainda que não permita o conhecimento da matéria tributável real, venha fornecer à AT elementos factuais básicos que lhe permitam, ao menos, demonstrar a impossibilidade de uma imputação direta e a necessidade de uma avaliação indireta. 

98. Não tendo o contribuinte fornecido sequer informação declarativa mínima exigida, que pudesse ser contestada pela AT, deve entender-se que a demonstração a que se refere o artigo 74.º n.º 3 da LGT foi cabalmente realizada pelo particular, por via das omissões de que padece a declaração, tornando concretamente inexigível à AT a comprovação e quantificação de forma direta e exata dos encargos dedutíveis e não dedutíveis. Ou seja, a AT não tem que provar o que já ficou cabalmente demonstrado pelo contribuinte.

99. Isto, sob pena de se entender que o pagamento do imposto no montante selecionado pelo contribuinte, à margem de qualquer elemento documental, seria presumivelmente válido até que a AT provasse o contrário, o que conduziria a uma diminuição da receita fiscal, com o resultante aumento do défice e da dívida . Do mesmo modo, a não ser aceite o entendimento sufragado por este tribunal, ficariam escancaradas as portas ao benefício de contribuintes desonestos, negligentes ou relapsos e a inspeções tributárias necessariamente mais invasivas e onerosas .

100. Este entendimento apoia-se, além do mais, em várias ordens de razões de grande relevância constitucional e legal. Ele incentiva os contribuintes a cumprir os requisitos legais sobre a manutenção rigorosa de registos de transações (v.g. financiamentos; juros pagos; compra e venda de participações sociais) essenciais ao cumprimento das suas obrigações acessórias declarativas (arts. 31.º n.º 2 da LGT; 17º n.º 3, 117,º ss. do CIRC), promove a eficiência e a eficácia da administração tributária e reduz, por essa via, os custos da arrecadação de impostos com ganhos para todos os contribuintes e para a sociedade em geral .

101. Uma vez demonstrada, pela conduta omissiva do próprio sujeito passivo, a impossibilidade de utilização de métodos diretos, devidamente confirmada em sede de inspeção tributária, está verificado o pressuposto de que depende a legitimidade da aplicação dos métodos indiretos, para efeitos do n.º 3 do artigo 74.º da LGT, podendo a AT prosseguir para a introdução de correções de acordo com fórmula constante do Ponto 7 da Circular n.º 7/2004, para determinar o valor dos encargos financeiros que supostamente terão sido suportados com a aquisição de partes do capital.

102. Ao proceder deste modo, a AT está fazer uso do método avaliação indireta só nos casos expressamente enumerados no artigo 87.º da LGT e somente como mecanismo subsidiário relativamente à avaliação por métodos de afetação real e diretos, tal como preconizado pelo Supremo Tribunal Administrativo . Por outras palavras, a AT procedeu a correções por estar objetiva e suficientemente demonstrada a inviabilidade da determinação direta dos encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais [cfr. arts. 85.º, n.º 1 e 87.º, n.º 1, alínea b), da LGT], atuando em conformidade com o artigo 74.º n.º 3, da LGT.

 

Ponto 6 da Circular n.º 7/2004

103. Relativamente ao Ponto 6 da Circular n.º 7/2004, de 30 de março, afigura-se compreensível, em abstrato, a alegação, nos termos da qual estaria no espírito do legislador inferido a partir da norma que pretendia regular que, a existir uma eventual correção ao lucro tributável de uma SGPS, esta somente poderia ocorrer no momento em que se realizasse a eventual transmissão onerosa das participações sociais a que os encargos financeiros diriam respeito, uma vez que apenas dessa forma seria materialmente possível garantir que o objetivo almejado com a introdução do referido benefício (incremento da competitividade das sociedades holding) não seria comprometido.

104. Sucede, porém, que nos termos do Ponto 6 os aludidos encargos deveriam ser acrescidos no exercício em que se materializavam, não obstante a aplicabilidade do regime fiscal daquelas sociedades, definido no n.º 2 do artigo 32.º do EBF, ser apenas validada a posteriori (i.e., no momento em que se realizava a alienação das respetivas participações sociais). Este regime, poderia ser visto como obstáculo ao incremento da competitividade das sociedades holding, por se entender que a não-aceitação da dedutibilidade fiscal daqueles encargos prejudicava, de forma significativa, o enquadramento fiscal das mesmas, ao antecipar um ajustamento fiscal que apenas se demonstraria válido ou inválido em exercícios futuros (designadamente, no momento da transmissão onerosa das aludidas participações sociais).

105. No entanto, semelhante solução, mesmo que possa não corresponder à melhor opção do ponto de vista de política económica ou política fiscal, dificilmente poderá ser vista como uma compressão inadmissível dos princípios constitucionais relevantes no domínio fiscal, na medida em que os mesmos são exigências de otimização suscetíveis de ponderação razoável e proporcional com outros princípios e bens jurídicos constitucional e legalmente protegidos e admitindo, por conseguinte, diferentes graus de concretização.

106. Ora, semelhante solução, ainda que questionável, não deixa de poder ser considerada uma opção legítima do legislador, na medida em que pode razoavelmente ser encarada como uma contrapartida da isenção conferida na tributação das mais-valias realizadas com partes de capital (nos termos do regime fiscal das SGPS), e, inclusivamente, como garantia de igualdade material no ordenamento jurídico-tributário.

 

4             DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)            Julgar improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica o ato tributário de liquidação impugnado e absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido;

b)           Condenar a Requerente nas custas processuais.

 

5             Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €26.897, 31 nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

6             Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem a cargo da Requerente em € 1.530, 00 nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, nº 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 28 de fevereiro de 2019

 

O Árbitro

Jónatas Eduardo Mendes Machado