DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
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A..., LDA, titular do número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva …, doravante designada por Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2º nº 1 a) e 10º nº 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a declaração de ilegalidade da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas relativa ao exercício de 2011, no valor de € 325.567,64.
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Para fundamentar o seu pedido alega, em síntese:
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A liquidação em crise teve origem na fiscalização efectuada pela Direcção de Finanças de Braga, a qual considerou como despesas não documentadas o valor de € 617.780,86;
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De acordo com o relatório de fiscalização, a Requerente considerou como custos a verba de € 820.021,24, gastos esses que, nos termos do disposto no artigo 23º nº 1 do CIRC, não podem ser aceites para efeitos fiscais já que duas das entidades que emitiram facturas à Requerente não dispõem de estrutura adequada a prestar os serviços incluídos nas facturas, existindo, assim, fortes indícios de que tais documentos não correspondem a serviços efectivamente prestados, mas a meras operações simuladas;
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O valor de € 617.780,86, considerado como despesas não documentadas, corresponde a pagamentos efectuados pela Requerente, relacionados com os gastos no valor de € 820.021,24, sendo certo que, de acordo com a Autoridade Tributária (AT), desconhecem-se os verdadeiros beneficiários de tais pagamentos;
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Assim, sobre o valor de despesas não documentadas, foi aplicada a tributação autónoma à taxa de 50%;
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O valor sobre o qual incidiu a tributação autónoma não são despesas confidenciais mas sim saídas de caixa para pagamento de gastos que a AT aceitou como custos;
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A AT reconheceu no relatório de fiscalização estarem reunidos os pressupostos para aplicação dos métodos indirectos para determinação da matéria tributável;
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Encontrando-se reunidos estes pressupostos, deveria a AT recorrer à aplicação de tais métodos, e não, como fez, considerar os pagamentos efectuados pela Requerente como despesas não documentadas com a consequente aplicação da tributação autónoma sobre tais despesas.
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A Requerente juntou 2 documentos, não tendo arrolado nenhuma testemunha.
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No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitros, pelo que, nos termos do disposto no artigo 6º nº 2 a) do RJAT, foram designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, os signatários, tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos.
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O tribunal arbitral colectivo foi constituído em 11 de Março de 2014.
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Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida apresentou resposta, invocando, em síntese, o seguinte:
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Através da fiscalização efectuada, obteve a AT provas concludentes de que a Requerente efetuou pagamentos no valor de € 617.780,86, pagamentos esses relacionados com facturas falsas;
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Não se encontrando tais gastos documentados (por serem falsas as facturas que a eles deram lugar), tais despesas teriam de ser, como foram, sujeitas a tributação autónoma, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 88º nº 1 do CIRC;
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Constituindo o recurso à avaliação indireta a ultima ratio e sendo o lucro tributável determinado por via da aplicação dos métodos indirectos igual ao declarado pela Requerente, o resultado de tal eventual correcção seria inócuo e a sua utilização desproporcional e despropositada;
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Acresce que, dispondo de informação e provas suficientes para aplicar os métodos directos, encontrava-se a AT impedida de recorrer aos métodos indirectos;
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A AT não reconheceu, nem poderia reconhecer por impossibilidade legal, estarem verificados os pressupostos para a aplicação dos métodos indirectos;
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Ainda que o tivesse feito, a tributação autónoma das despesas não documentadas é uma tributação da despesa e não do rendimento, pelo que sempre teria a AT de as sujeitar a tributação.
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A Requerida juntou dois documentos, não tendo arrolado nenhuma testemunha.
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Em 29/04/2014 teve lugar a primeira reunião do Tribunal Arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 18.º do RJAT, tendo sido lavrada acta, que se encontra junta aos autos.
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Na referida primeira reunião do Tribunal Arbitral, e não havendo qualquer outra prova a produzir, o Tribunal fez transitar de imediato o processo para a fase de prolação do acórdão final, sem necessidade de alegações complementares, que, aliás, foram prescindidas por ambas as partes.
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O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
Tudo visto, cumpre proferir
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FATO
A.1. Fatos dados como provados
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A requerente foi notificada da liquidação adicional de IRC do ano de 2011 no montante de € 325.567,64, com data limite de pagamento em 9 de Dezembro de 2013.
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Tal liquidação teve origem em acção inspetiva (referente ao exercício de 2011), inicialmente titulada pelo Despacho n° D… emitido em 2012-11-12, em nome de A... Ld.ª, aqui Requerente, para consulta, recolha e cruzamento de dados.
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No decurso daquela acção de controle a AT verificou que existiam irregularidades na elaboração da contabilidade da Requerente.
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Facto esse que levou à abertura da Ordem de Serviço n.º …, emitida em 25/02/2013, a qual foi levada a conhecimento e assinada pela Requerente em 16/04/2013, nos termos e para os efeitos do artigo 51.º do RCPIT.
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Aquela acção de inspeção foi prorrogada, nos termos e para os efeitos do artigo 36.º, n.º 3 e 4 do RCPIT, em 06/05/2013, tendo a Requerente sido notificada do fato, quer para o seu domicilio profissional, quer para o domicilio profissional do seu mandatário judicial, respectivamente em 07/05/2013 e 10/05/2013.
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A Requerente é uma pessoa coletiva, tributada em IRC pelo exercício de uma atividade comercial ou industrial com a Classificação de Actividade Económica (CAE) de construção de edifícios (residenciais e não residenciais), e enquadrada no regime geral para apuramento do lucro tributável.
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A referida fiscalização, efectuada pela Direcção de Finanças de Braga, procedeu às seguintes correcções:
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A correção do lucro tributável constante naquela tabela, foi objeto de correção, pela diferença entre o Valor Patrimonial Tributário (VPT) e o valor do contrato respeitante à venda de duas frações
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Aquele montante resultou de o valor da transmissão declarado de cada fração ter sido de €64.000,00, sendo o Valor Patrimonial Tributário (VPT) à data da transmissão de €65.507,75 para a fração DN, e €61.660,00 para a fração DS, existindo assim naquela transmissão de imóveis uma divergência entre o valor de venda e o VPT de €1.507,75, relativa à fração DN, dando origem à consequente correção fiscal.
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Sendo que o montante relativo a Tributações Autónomas incidiu sobre despesas consideradas não documentadas, na importância total de €617.780,86.
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Efetivamente, o Relatório de Inspeção Tributária (Relatório) apurou que a Requerente fez constar na sua contabilidade diversas faturas, que ascendem a € 1.008.626,13, emitidas por:
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D. B... Ld.ª, NIPC …;
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C..., Ld.ª, NIPC …;
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D... , Ld.ª, … .
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Designadamente, em relação à sociedade D.B…, foram contabilizadas pela Requerente as seguintes faturas:
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Em relação à sociedade C..., foi contabilizada pela Requerente a seguinte fatura:
Data Lanc.
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Doc.
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Data Fat.
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Fatura
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Valor
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IVA
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Local
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2011-10-31
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210013
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2011-10-30
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39
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36.000,00
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8.280,00
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V.N. Gaia
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Em relação à sociedade D..., foram contabilizadas pela Requerente, entre outras, as seguintes faturas:
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Em relação às faturas supra-referidas, emitidas pela sociedade D. B…, foram efetuados os seguintes pagamentos pela Requerente:
* no 2.º pagamento consta, seguramente por lapso, a data de 2012-05-31, quando deveria constar 2011-05-31.
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As quantias tituladas por cheque, constantes do quadro que antecede, foram levantadas por E..., NIF …, funcionário da Requerente entre 2002 e 2012, ou por F..., NIF …, filho do sócio-gerente da Requerente, L....
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Para além de outros recibos, relativamente aos pagamentos em dinheiro datados de 2011-05-31 (€7.571,31), 2011-05-31 (€7.557,40), 2011-09-30 (€147.064,95) e 2011-31-12 (€11.435,95), foram emitidos pela sociedade D. B…, respectivamente, os recibos n.º 030, 032, 037 e 048.
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Os registos constantes do quadro que antecede ocorrem em duplicado para a fatura 36, uma vez que o seu total se encontra pago em numerário, em 2011-09-30, e parcialmente pelos cheques dos dias 2011-10-19, 2011-11-15, 2011-11-17 e 2011-12-01.
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Em relação à fatura supra-referida, emitida pela sociedade C..., foi efetuado o respetivo pagamento através do cheque n.º 01920341 de 2011-11-17, do BES, levantado por F..., NIF ..., filho do sócio-gerente da Requerente, L....
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Em relação às faturas supra-referidas, emitidas pela sociedade D..., foram efetuados os seguintes pagamentos pela Requerente:
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A quantia titulada por cheque, constante do quadro que antecede, foi levantada por E..., NIF ..., funcionário da Requerente entre 2002 e 2012
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Em declarações prestadas no procedimento de inspeção, no quadro do direito de audição da Requerente, G..., sócio-gerente da D..., declarou que o valor global dos serviços prestadas nesse ano, na obra de V.N. de Gaia, não terá ultrapassado os €15.000,00.
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Relativamente à sociedade D.B…, o Relatório considerou que a mesma “não dispunha de funcionários para prestar os serviços incluídos nas faturas emitidas para A..., Ld.ª e não adquiriu materiais nem subcontratou tais serviços”, pelo que concluiu “que a D B... Lda não dispunha de estrutura adequada para o exercício da atividade documentada pelas faturas emitidas pelo SP, existindo fortes indícios que tais faturas não correspondem a serviços efetivamente prestados, mas a operações simuladas.”
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Relativamente à sociedade C..., o Relatório considerou que a mesma “não dispunha de estrutura adequada para prestar os serviços incluídos na fatura emitida para A..., Lda., e não adquiriu materiais, nem subcontratou tais serviços”, pelo que concluiu “existirem fortes indícios de que a fatura emitida não corresponde a serviços efetivamente prestados, mas a uma operação simulada.”.
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Relativamente à sociedade D..., o Relatório considerou que a mesma “não dispunha de estrutura adequada para prestar os serviços incluídos nas faturas/vendas a dinheiro emitidas para A..., Lda., não adquiriu materiais, não subcontratou serviços, nem dispunha de funcionários.” e que “o único cheque emitido pelo SP para pagamento das faturas/ vendas a dinheiro, foi levantado por funcionário deste e não pela D….”, concluindo pela “existência de fortes indícios de que as faturas emitidas não correspondem a serviços efetivamente prestados, mas a operações simuladas.”.
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Não obstante, no mesmo Relatório, a AT considerou que outras faturas emitidas pela sociedade D..., relativas à obra em Trigal, se referiam a serviços efetivamente prestados.
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O Relatório considerou, em suma, que aquelas faturas acima aludidas não têm subjacentes serviços efetivamente prestados, tendo sido contabilizado pela Requerente o gasto no montante de €820.021,24, e deduzido o IVA no valor de €188.604,89, o qual foi considerado indevidamente deduzido.
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O lucro tributável, pela inclusão no mesmo de gastos em que o sujeito passivo não incorreu, não foi alterado pela AT, por esta ter considerado que o sujeito passivo terá tido outros gastos não contabilizados, e como tal o seu rendimento não seria alterado se, por métodos indirectos, os mesmos fossem estimados.
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Relativamente às referidas facturas, constatando que o sujeito passivo efetuou pagamentos que ascendem a €617.780,86, e considerando que tais despesas não se encontravam documentadas e tinham contribuído para a diminuição do resultado líquido, a AT sujeitou o referido valor a tributação autónoma em 50%, resultando numa correção de € 308.890,43.
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A folhas 25 do referido Relatório de Inspeção, consta que "os sujeitos passivos O B..., Lda, C..., Lda e D..., Lda, os mesmo não dispõem de estrutura adequada a prestar os serviços incluídos nas facturas por eles emitidas. Existem assim, fortes indícios de que tais documentos não correspondem a serviços efectivamente prestados, mas a meras operações simuladas".
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Nesse Relatório, a folhas 26, é dito que "no exercício de 2011 a Requerente apresentou um lucro tributável de €36.097,16, a que os serviços acresceram apenas a importância de €1.507,75, diferença entre os valores das escrituras de compra e venda de dois imóveis alienados e o VPT de tais imóveis, correcção essa efectuada com base na alínea a) do nº 3 do art.º 64º do CIRC", e que "se a este lucro tributável (o mencionado no número cinco), acrescentarmos os valor dos gastos acima referidos de €820.021,24, o sujeito passivo obteria no referido período um lucro tributável de €857.626,15, para um volume de negócios total de €3.058.306,38. O Rácio R04 - RFVENDAS passaria a ser de 28,4%, valor totalmente incompatível com os do sector de actividade em que o SP se encontra inserido, colocando em causa o apuramento, por via direta, da referida matéria tributável. Isto é os referidos documentos "falsos" terão constituído suporte contabilístico de custos efectivamente incorridos com a aquisição de bens e serviços e estão associados aos correspondentes proveitos gerados".
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Ainda no referido Relatório, a folhas 27, é dito que, "No entanto, considerando a necessidade de incorrer em custos, para a realização dos rendimentos obtidos, se a AT procedesse à correcção dos mesmos, de forma a que o sujeito passivo obtivesse um RFVENDAS adequado ao sector de actividade em que o mesmo se encontra inserido, teria de determinar o volume global dos gastos do período, socorrendo-se para isso da aplicação de métodos indirectos, de forma a corrigir o lucro tributável para o período. Isso originaria a que após ambas as correções (a diminuição dos gastos do SP após correção das faturas dos fornecedores DB…, C... e D..., e o aumento dos gastos que seriam calculados com recurso à aplicação de métodos indiretos) o resultado fiscal seria inócuo (uma vez que se aceita que ambas sejam de valor igual ou equivalente), pelo que, tais correções não serão efetuadas"
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E mais adiante, na mesma página, que "Os pagamentos acima referidos traduziram-se em despesas do SP, uma vez que originaram a diminuição de meios monetários disponíveis na empresa. No entanto desconhece-se quem foram os verdadeiros beneficiários de tais pagamentos, isto porque, mesmo os cheques emitidos à ordem de D. B…, … e D..., foram descontados e/ou levantados ao balcão por pessoas que dependem directamente de A..., Lda, o funcionário E..., NIF ..., e o filho do gerente L..., F..., NIF ....”.
A.2. Fatos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem fatos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de fato o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 659.º, n.º 2 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os fatos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 511.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os fatos acima elencados, de resto consensualmente reconhecidos e aceites pelas partes.
B. DO DIREITO
Conforme resulta dos factos acima dados como provados, na sequência do procedimento de inspeção dirigido ao exercício de 2011 da Requerente, foram efetuados três tipos de correção, a saber:
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IVA/dedução indevida;
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IRC/correção ao lucro tributável;
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IRC/tributações autónomas.
Como decorre do seu requerimento inicial, e do respetivo pedido, a Requerente apenas coloca em causa as correções relativas a IRC/tributações autónomas, não estando, portanto, em causa, nos presentes autos, as restantes.
Por outro lado, e conforme decorre do Relatório de inspeção tributária, a AT não retirou quaisquer consequências ao nível de eventuais correções ao lucro tributável, das considerações ali tecidas relativamente às despesas que tributou autonomamente.
Assim, e delimitando a questão a decidir no presente processo arbitral tributário, apenas cumpre apreciar o acerto da sujeição de tais despesas àquela tributação, e não da sua aptidão, ou falta dela, para serem atendidas como tal, no cômputo do lucro tributável da Requerente, no exercício de 2011.
Efetivamente – bem ou mal, para o caso não interessa – a AT optou por deixar intocado o lucro tributável da requerente, com exceção da pequena correção derivada da falta de consideração do VPT de um imóvel.
Por outro lado, sempre se dirá desde logo que o acerto, ou falta dele, da AT no que a tal opção diz respeito, se terá por inócuo relativamente ao thema decidendum deste processo. Dito de outro modo, a bondade ou censurabilidade das tributações autónomas liquidadas pela AT não deverá ser condicionada pela posição que aquela assumiu quanto ao lucro tributável da Requerente, podendo, portanto, concluir-se que a tributação autónoma foi corretamente aplicada, não obstante não ter sido correta a inalteração do lucro tributável da Requerente, ou, pelo contrário, considerar-se que as tributações autónomas não foram corretamente aplicadas, não obstante ter sido correta a sua posição relativamente àquele referido lucro tributável.
Assim, se a AT errou quanto à não correção do lucro tributável da Requerente, tal não legitimará que, a coberto daquele, se sancione um novo erro, relativamente à tributação autónoma aplicada, anulando-a se tiver sido correta. Do mesmo modo, se a AT tiver andado bem no que à determinação do lucro tributável diz respeito, tal não implicará, por qualquer modo, que a sua posição relativamente à tributação autónoma se haja de manter.
Entende-se, assim e em suma, que a apreciação da tributação autónoma contestada deverá ser efetuada em si mesma, e não condicionada, de qualquer modo, pela formalmente consolidada determinação da matéria tributável da Requerente, ou seja, que a validade ou invalidade da tributação autónoma em crise, será independente do que se possa achar quanto ao acerto da posição AT quanto aqueloutra matéria.
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Assente que está o objeto dos presentes autos, será de todo conveniente, antes de prosseguir, traçar, ainda que sumariamente, o enquadramento legal ao abrigo do qual aquele deverá ser apreciado.
Quando se fala em tributações autónomas, como é o caso, deve-se desde logo ter presente que está em causa um conjunto de situações bastante díspares, que abrangerão, pelo menos, três tipos distintos, a saber:
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Tributação autónoma de determinados rendimentos (ex.: n.ºs 3, 5 e 6 do CIRS);
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Tributação autónoma de determinados encargos dedutíveis (ex. n.ºs 3 e 4 do artigo 88.º do CIRC);
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Tributação autónoma de outros encargos independentemente da respetiva dedutibilidade (ex.: artigos 1 e 2 do artigo 88.º do CIRC).
A dispersão e variedade das várias espécies de tributação autónoma que proliferam no ordenamento jurídico-tributário português, tornam, senão impossível, pelo menos extremamente difícil, o seu enquadramento doutrinal e teórico, assente na determinação de uma natureza unitária que lhes esteja subjacente.
No presente caso, tal tarefa, seria, para além do mais, inglória, na medida em que estando aqui em causa apenas um tipo de tributação autónoma – a tributação de despesas não documentadas, nos termos do artigo 88.º/1 do CIRC – não haverá qualquer necessidade de apurar mais do que o sentido, natureza e alcance do concreto tipo de tributação autónoma aqui em causa, para aferir da bondade ou não do ato tributário em crise.
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A genealogia da norma do atual artigo 88.º/1 do CIRC[1] remonta ao Decreto-Lei n.º 375/74 de 20 de Agosto, pelo qual se procedeu à “Reforma do Sistema Tributário, tendente à sua racionalização e à atenuação da carga fiscal sobre as classes desfavorecidas, com vista a uma equitativa distribuição do rendimento”, penalizando-se as despesas confidenciais com uma multa equivalente ao valor das despesas assim contabilizadas.
Este tipo de despesas – as despesas confidenciais – correspondem a uma antiga tradição contabilística, de enquadrar como tais determinados gastos efectuados pela empresas, que, na sua pureza, corresponderiam a despesas economicamente necessárias à actividade da empresa (despesas que supostamente têm de ser feitas para uma sociedade obter certas parcelas de mercado ou certos clientes) mas em que, por qualquer razão, não era possível ou conveniente identificar o beneficiário das mesmas.
Naturalmente que despesas desta natureza, que, sublinhe-se, corresponderam a uma prática social e legalmente aceite num passado não muito distante[2], encerram um elevado potencial anti-social, por darem evidente cobertura contabilística a práticas relacionadas quer com a corrupção (pagamento de subornos), quer com fraude e evasão fiscal.
A percepção desta realidade, aliada à crescente dependência da Coisa Pública em relação à receita tributária, levou a que, paulatinamente, com avanços e recuos[3], se fosse agravando cada vez mais a carga tributária sobre aquele tipo de despesas.
Concomitantemente, foi-se formando a ideia de que as despesas confidenciais seriam, na sua essência, despesas que não exteriorizavam o respetivo beneficiário, sendo, por isso, não uma espécie própria de despesa, mas um tipo de despesa não documentada (uma despesa relativamente à qual não se encontra documentado – pelo menos – o beneficiário), como tal contrária ao princípio da tendencial tributação das empresas pelo lucro real, entretanto constitucionalmente imposto, na medida em que o mesmo pressupõe não só um conhecimento demonstrável da situação financeira do sujeito passivo, como tal documentado ou, pelo menos, documentável, como também um juízo de correlação entre as despesas suportadas pela empresa e obtenção dos seus réditos, só susceptível de ser formulado desde que os elementos essenciais daquelas, incluindo os seus beneficiários sejam cognoscíveis.
Daí que a evolução do quadro legal e jurisprudencial relativo à matéria em causa tenha, aos poucos, aproximado ao conceito de “despesa confidencial” o conceito de “despesa não documentada”, tendo o Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de junho, passado a tributar as despesas confidenciais ou não documentadas, a uma taxa autónoma de 10%.
Esta evolução culminou na eliminação por completo do conceito “despesa confidencial” da legislação tributária relativa ao imposto sobre o rendimento, passando-se, com a Lei n.º 67/2007 de 31 de dezembro (OE para 2008), a fazer referência apenas a “despesas não documentadas”.
Da muito sumária resenha que se vem de fazer, serão, desde logo, de reter dois aspetos fundamentais, a saber:
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que as atuais “despesas não documentadas” a que se refere o n.º 1 do artigo 88.º do CIRC têm na raiz da sua ratio a prática histórica da contabilização das despesas confidenciais; e
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que o teor da atual redação decorre de um processo evolutivo associado à essencialidade da documentação dos encargos das empresas, para a sua efetiva tributação pelo lucro real.
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O atual regime de tributação autónoma das “despesas não documentadas”, interceciona-se, por força das opções terminológicas do legislador fiscal (e não só), com o regime da aceitabilidade dos encargos para efeitos da determinação do lucro tributável em sede de IRC, tal como resulta, essencialmente, dos atuais artigos 23.º e 45.º/1/g) do CIRC.
Efetivamente, e como se aludiu já, a tributação das empresas pelo seu lucro real postula que concorram exclusivamente para a determinação do seu lucro tributável os gastos comprovadamente indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora.
Desta exigência fundamental de comprovabilidade da indispensabilidade dos gastos aceitáveis decorre o princípio da não aceitabilidade dos “encargos não devidamente documentados”, corporizado na alínea g) do n.º 1 do atual artigo 45.º do CIRC.
Este último princípio, todavia, tem sido compreendido pela jurisprudência de forma não absoluta, acolhendo-se antes o seu lado funcional ou instrumental em relação à referida exigência da comprovada indispensabilidade dos gastos.
Nesta linha, tem-se entendido que insuficiente (aquém da forma devida) documentação de um gasto, de per si, não acarreta a sua inaceitabilidade para efeitos da determinação do lucro tributável sujeito a IRC.
Antes, tem entendido a jurisprudência que “Em sede de IRC, o documento comprovativo e justificativo dos custos para efeitos do disposto nos arts. 23º, nº1, e 42º, nº 1, alínea g), do CIRC, não tem de assumir as formalidades essenciais exigidas para as facturas em sede de IVA, uma vez que a exigência de prova documental não se confunde nem se esgota na exigência de factura, bastando tão-só um documento escrito, em princípio externo e com menção das características fundamentais da operação, uma vez que ao contrário do que se passa com o IVA, em sede de IRC, a justificação do custo consubstancia uma formalidade probatória e, por isso, substituível por qualquer outro género de prova.”[4], bem como que “VIII) -Mas na eventualidade de se provar que a recorrente efectuou o pagamento de serviços efectivamente realizados e indispensáveis para a obtenção de proveitos, tem de aceitar-se que os respectivos custos não estão documentados por aquelas facturas, mas sim provados por outro meio admissível, nomeadamente através da prova testemunhal.
IX) -Assim, a ineficácia probatória da escrituração não impede o seu suprimento por outros meios de prova admitidos em direito e adequados a fundamentar a justeza do lançamento pela comprovação da operação comercial subjacente ao deficiente registo ou suporte documental desse registo contabilístico.”[5].
Coerentemente, aceita-se que “Nas despesas indocumentadas ou insuficientemente documentadas recai sobre o contribuinte o ónus de comprovar o respectivo custo, como lhe impõe o art. 23º do CIRC, pela demonstração de que as operações se realizaram efectivamente, sendo-lhe possível para o efeito recorrer a outros meios de prova (designadamente a meios complementares de prova documental e prova testemunhal) para o demonstrar e convencer da bondade do correspondente lançamento contabilístico e da ilegalidade da correcção que a A.Fiscal tenha levado a efeito por virtude dessa falta ou insuficiente documentação.”[6].
Isto porquanto “É no conceito de indispensabilidade ínsito no art.º 23º do CIRC que radica a questão essencial da consideração fiscal dos custos empresariais e que assenta o a distinção fundamental entre o custo efectivamente incorrido no interesse colectivo da empresa e o que pode resultar apenas do interesse individual do sócio, de um grupo de sócios ou do seu conjunto e que não pode, por isso, ser considerado custo.”[7].
Tem-se entendido, assim, que, não obstante a ausência ou insuficiência da documentação formalmente exigida, não fica o contribuinte vedado de, por qualquer meio probatório admissível[8], demonstrar a existência e imprescindibilidade do gasto – esta sim, conditio sine qua non da sua relevância para a determinação do respetivo lucro tributável – inclusive em fase de recurso[9].
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Temos assim dois conceitos semanticamente próximos – o de despesas “não documentadas”, a que se refere o artigo 88.º/1 do CIRC, e o de (encargos, onde se incluem) despesas “não devidamente documentadas”, a que se refere o artigo 45.º/1/g) do CIRC – que, contudo, têm um conteúdo, natureza e efeitos jurídicos substancialmente distintos.
É que, a contrário do que, de alguma forma, a AT parece considerar nos autos, a não aceitação de determinado encargo porquanto se entenda que – nos termos do artigo 45.º/1/g) do CIRC – o mesmo não se encontra devidamente documentado, não acarreta de forma necessária, direta e/ou automática, a tributação autónoma da correspondente despesa, como não documentada, nos termos do artigo 88.º/1 do CIRC.
Dito de outra forma, se todas as despesas “não documentadas”, para efeitos do artigo 88.º/1 do CIRC, serão despesas “não devidamente documentadas”, para efeitos do artigo 45.º/1/g) do mesmo diploma, o inverso já não será verdade.
Neste sentido, tem a jurisprudência entendido que “Despesas não documentadas são aquelas que não têm qualquer suporte documental a nível contabilístico. Por sua vez, as despesas não devidamente documentadas serão aquelas cujo suporte documental não obedece aos requisitos legalmente exigidos, embora permita identificar os beneficiários e a natureza da operação.”[10].
Efetivamente, na senda da evolução histórica do respetivo regime, tem-se entendido que “as expressões despesas confidenciais e despesas não documentadas têm "um alcance equivalente"”[11], considerando-se que “as despesas são de natureza confidencial ou não documentadas (...) nos casos em que não é possível identificar os reais beneficiários das mesmas.”[12].
Este entendimento, que põe a tónica do conceito do caráter indocumentado de uma despesa, para efeitos do artigo 88.º/1 do CIRC, na cognoscibilidade, ou não, do respetivo beneficiário, será, de resto, a mais conforme não só com o contexto histórico da génese do regime legal em questão, que, como se viu, remonta às despesas confidenciais, como, sobretudo, a mais conforme com a ratio legis desse mesmo regime legal.
Com efeito, a penalização das antigas despesas confidenciais (agora despesas não documentadas), através da sua tributação autónoma, bebe muita, senão a maior parte, da sua justificação numa presunção de evasão fiscal que lhes está subjacente, na medida em que, sendo desconhecidos os respetivos beneficiários, não será possível a tributação, na sua esfera, dos correspondentes rendimentos.
Ora, sendo cognoscível o destinatário da despesa incorrida pelo sujeito passivo de IRC, e ainda que tal despesa não seja, por qualquer outra razão, elegível para concorrer negativamente para a determinação do lucro tributável daquele, desfalece aquela referida justificação para a tributação autónoma da despesa em causa.
De fato, conhecendo – ou podendo conhecer – o Fisco quem se encontra na posição de receptor do encargo incorrido pelo sujeito passivo de IRC, poderá, nem que seja no uso dos poderes de fiscalização que lhe assistem, verificar e, se necessário, proceder à reposição da legalidade tributaria na matéria, não havendo qualquer fundamento para agravar a despesa em questão, ainda que não devidamente documentada.
Por outro lado, uma equiparação entre despesas não documentadas e despesas não devidamente documentadas, tornaria o regime da tributação autónoma daquelas num regime primacialmente sancionatório, que teria como primeira finalidade penalizar os sujeitos passivos pela deficiente documentação das operações que realizassem. Tal entendimento, não só seria claudicante no que à conformidade com os princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação, constitucionalmente impostos no que, além do mais, diz respeito ao direito sancionatório, seria contrário à Lei fundamental, na medida em que também faria tábua-rasa de qualquer juízo de censurabilidade/culpa, não é precedido de qualquer processo adequado, e violaria o princípio ne bis in idem, na medida em que a documentação não conforme é já objeto do sancionamento tido por devido no quadro do RGIT.
Deste modo, qualquer vertente sancionatória que, porventura, assista ao regime da tributação autónoma de despesas não documentadas, terá, necessariamente, que ser colateral e secundário, apenas se podendo legitimar tal regime, face a outros valores jurídicos dignos de tutela, como a referida necessidade de repor receitas fiscais efetivamente preteridas pela não documentação das despesas autonomamente tributadas.
Diga-se, por fim, que não se descortina como poderá ser aceitável o entendimento de que, para efeitos do artigo 88.º/1 do CIRC, se deva entender como despesas “não documentadas” aquelas despesas relativamente às quais o sujeito passivo não disponha, total ou parcialmente, de documentação.
Com efeito, e desde logo, se se entendesse que bastaria uma deficiência parcial na documentação da despesa, estaríamos perante uma equiparação entre o conceito de despesa “não documentada” e de despesa “não devidamente documentada”, a que alude o artigo 45.º/1/g), fazendo-se, para além do mais que se vem de dizer, tábua rasa da racionalidade própria da tributação autónoma em questão.
Por outro lado, se se entendesse que despesas “não documentadas”, para efeitos da sua tributação autónoma, são todas as despesas que simplesmente não estivessem suportadas por qualquer documento (indocumentação absoluta), estar-se-iam a excluir de tal conceito todas aquelas situações em que houvesse uma documentação parcial mas que, contudo, não permitisse identificar o beneficiário da despesa, situações essas que, como se viu, estão no epicentro da ratio legis do regime de tributação autónoma em causa.
Para além disso, estar-se-iam a incluir em tal conceito as situações em que não haja documentação (em sentido formal) da despesa, mas em que, no exercício da faculdade reconhecida de forma praticamente consensual, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, nos termos já atrás expostos, o sujeito passivo demonstrasse por qualquer outro meio probatório admissível os carateres essenciais da despesa que contabilisticamente deduzisse ou pretendesse deduzir ao seu lucro tributável, incluindo, obviamente, a identidade do respetivo beneficiário.
Deste modo, repete-se, afigura-se que o entendimento que realiza devidamente a racionalidade e intencionalidade próprias da juridicidade da tributação autónoma de despesas “não documentadas” é a que entende como tais aquelas relativamente às quais não é cognoscível o respetivo beneficiário.
Aplicam-se aqui, assim, os ensinamentos do Prof. Saldanha Sanches, no seu trabalho “Custos mal documentados e custos não documentados”[13] onde referia que:
“O que quer dizer que temos aqui um conjunto de requisitos de natureza formal que tem como objectivo permitir o controlo de todas as operações apontando para uma economia do esforço administrativo: se a factura não contiver todos aqueles elementos não apenas será mais difícil comprovar a verdade da declaração, como podem faltar à Administração fiscal elementos sobre a necessária contraprova.”
E, mais adiante[14]:
“Em termos mais gerais e indo para além da factura, trata-se sempre de proceder a uma avaliação sobre o dano, o grau de prejuízo que a violação de um dever de cooperação provocou para a determinação administrativa ou comercial dos factos fiscalmente relevantes. (...)
O ponto essencial é que o fim da formalidade exigida por lei é evitar a fraude fiscal (...)”.
Concluindo, então[15]:
“Que as regras de natureza formal que implicam a documentação dos custos devem ser interpretadas em atenção aos fins para que foram criadas - permitindo mesmo que o lançamento de uma despesa com um "documento interno" se tal se mostrar justificado - parece-nos questão incontroversa.
Que o princípio contabilístico da especialização de exercício, como todos os demais princípios contabilísticos há-de ter uma interpretação conforme com a constituição, também.
Em ambos os casos deverá prevalecer o princípio da tributação segundo o lucro real.
Mas quando é que este princípio cede perante os fins sancionatórios que são um componente básico do ordenamento jurídico-tributário?
Parece-nos que isso deverá acontecer quando a não-documentação da despesa resulta da intenção da empresa de conservar uma certa despesa oculta: nalguns casos por dificuldades objectivas.
Como sucede por exemplo com uma empresa de construção que recorre aos serviços de um empreiteiro que resiste à passagem de documentos ou que contrata empregados em situação irregular.” (sublinhado nosso).
*
A traçada distinção entre o conceito de despesas “não documentadas”, a que se refere o artigo 88.º/1 do CIRC, e o de (encargos, onde se incluem) despesas “não devidamente documentadas”, a que se refere o artigo 45.º/1/g) do CIRC, tem reflexos aos mais variados níveis, como seja, desde logo, na circunstância, atrás aludida, de as despesas não devidamente documentadas, poderem, apesar disso, ser consideradas para o cômputo do lucro tributável, desde que, por outro meio de prova admissível, sejam demonstrados os requisitos materialmente necessários para o efeito. Neste caso, as despesas não perdem a sua qualidade de “não devidamente documentadas” (não se tornam devidamente documentadas, se, por exemplo, por meia de prova testemunhal se demonstrar a sua efectiva realização e empresarialidade), não obstante serem aceites como encargos dedutíveis. Já as despesas não documentadas, entendendo-se como tais as despesas cujo beneficiário não é cognoscível, por natureza ou o serão ou não. Ou seja, ou o beneficiário das mesmas não é cognoscível, e estar-se-á perante despesas não documentadas, ou aquele é cognoscível e não serão as correspondentes despesas consideráveis como não documentadas.
Outro aspeto em que os dois tipos de despesas em análise se distinguem é na circunstância de que, para que determinadas despesas se reputem como não devidamente documentadas, a AT não carece de demonstrar que elas ocorreram efetivamente. Com efeito, na medida em que a teleologia subjacente ao conceito de despesas não devidamente documentadas se prende com a sua insuficiência para comprovar a respetiva imprescindibilidade para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, o juízo de não suficiência de suporte documental da despesa é meramente negativo, reportando-se a uma constatação do incumprimento de um ónus contabilístico do sujeito passivo. Não carece tal juízo, portanto, que se demonstre que a despesa em questão ocorreu na realidade, já que a finalidade prosseguida, a sua desconsideração como encargo, não se vê afetada por tal circunstância.
Já o reconhecimento de uma despesa como não documentada, em ordem a sujeitá-la a tributação autónoma enquanto tal, não poderá prescindir da demonstração da efetiva ocorrência da mesma. Com efeito, “Cabe à AT, enquanto fundamentação formal do acto de liquidação, a invocação do preenchimento dos concretos pressupostos legais de que depende o seu direito à liquidação, com elementos claros, suficientes e congruentes, de molde a permitir ao administrado ajuizar da correcção/legalidade da mesma de molde a com ela se possa conformar ou vir a impugná-la, graciosa ou judicialmente, se a entender eivada de algum vício que a afecte na sua legalidade”[16], pelo que “As despesas confidenciais ou não documentadas pressupõem a existência das operações a que respeitam . Daí a sua tributação autónoma;”[17].
Esta constatação leva-nos para outro veio diferenciador das duas figuras que nos vêm ocupando e que se prende com a distribuição do ónus da prova.
Sob este prisma, no que diz respeito à aferição da devida documentação das despesas, e como se referiu no Ac. do TCA-Sul, de 16-03-2005, proferido no processo 00340/03, já citado, “Nas despesas devidamente documentadas há que presumir a veracidade do custo para efeitos de determinação do lucro tributável em sede de IRC, razão pela qual compete à A.Fiscal alegar a existência de elementos susceptíveis de pôr em causa essa veracidade, designadamente pela enunciação de indícios objectivos, sólidos e consistentes, que traduzam uma probabilidade elevada de que esses documentos não titulam operações reais.”, enquanto que “Nas despesas indocumentadas ou insuficientemente documentadas recai sobre o contribuinte o ónus de comprovar o respectivo custo, como lhe impõe o art. 23º do CIRC, pela demonstração de que as operações se realizaram efectivamente, sendo-lhe possível para o efeito recorrer a outros meios de prova (designadamente a meios complementares de prova documental e prova testemunhal) para o demonstrar e convencer da bondade do correspondente lançamento contabilístico e da ilegalidade da correcção que a A.Fiscal tenha levado a efeito por virtude dessa falta ou insuficiente documentação.”.
Já no que diz respeito à tributação de despesas não documentadas, e na sequência do que se vem de dizer, deverá a AT demonstrar que:
-
As despesas em questão ocorreram efetivamente;
-
Que o respetivo beneficiário não é conhecido, nem cognoscível.
Com efeito, na problemática relativa à suficiência ou não da documentação das despesas está em causa o direito do contribuinte à dedução daquelas, competindo-lhe, consequentemente e de acordo com as regras aplicáveis (artigos 74.º/1 da LGT e 342.º do CC), a demonstração dos pressupostos do direito que pretende fazer valer, seja lançando mão da presunção de veracidade da sua declaração, assente na retidão da respetiva contabilidade, seja por prova direta, nos termos admitidos pela jurisprudência anteriormente citada.
Já na problemática relativa à tributação autónoma de despesas não documentadas, está em causa o direito da AT de tributar agravadamente esse tipo de despesas, pelo que, em cumprimento das mesmas regras relativas à distribuição do ónus probatório, deverá aquela demonstrar, efetivamente, os pressupostos dos quais a lei faz depender a admissibilidade da tributação em causa.
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Aqui chegados, e voltando à matéria em causa nos presentes autos, já acima delimitada, compreender-se-á que a resposta a dar passará, justamente, pelo aspeto que se acaba de expor.
Com efeito, e como se referiu previamente, não está aqui em causa apurar se as despesas em apreciação estão, ou não, devidamente documentadas, na medida em que não está em questão nos autos a sua dedutibilidade ao lucro tributável da Requerente.
Está em causa, isso sim, apurar da legalidade da sujeição de tais despesas à tributação autónoma estatuída no artigo 88.º/1 do CIRC, pelo que, sequência do acima discorrido, se deverá apurar se, in casu, a AT deu cabal cumprimento ao ónus probatório que sobre si impendia.
Relativamente a esta matéria, e devidamente compulsada a matéria de facto acima dada como assente, verifica-se que a totalidade das despesas cuja tributação a AT almeja tem desde logo correspondência documental, que se pode reconduzir, essencialmente, a três tipos de documentos, a saber:
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Faturas (todas as despesas);
-
Recibos;
-
Cheques.
Assenta, essencialmente, a AT a sua pretensão, de acordo com o Relatório de Inspeção Tributária, acima transcrito na matéria de fato assente, no entendimento de que:
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Relativamente à sociedade D. B…, a mesma “não dispunha de funcionários para prestar os serviços incluídos nas faturas emitidas para A..., Ld.ª e não adquiriu materiais nem subcontratou tais serviços”, pelo que concluiu “que a D B... Lda não dispunha de estrutura adequada para o exercício da atividade documentada pelas faturas emitidas pelo SP, existindo fortes indícios que tais faturas não correspondem a serviços efetivamente prestados, mas a operações simuladas.”;
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Relativamente à sociedade C..., a mesma “não dispunha de estrutura adequada para prestar os serviços incluídos na fatura emitida para A..., Lda., e não adquiriu materiais, nem subcontratou tais serviços”, concluindo “existirem fortes indícios de que a fatura emitida não corresponde a serviços efetivamente prestados, mas a uma operação simulada.”;
-
Relativamente à sociedade D..., a mesma “não dispunha de estrutura adequada para prestar os serviços incluídos nas faturas/vendas a dinheiro emitidas para A..., Lda., não adquiriu materiais, não subcontratou serviços, nem dispunha de funcionários.” e que “o único cheque emitido pelo SP para pagamento das faturas/ vendas a dinheiro, foi levantado por funcionário deste e não pela D....”, concluindo pela “existência de fortes indícios de que as faturas emitidas não correspondem a serviços efetivamente prestados, mas a operações simuladas.”.
Conclui o referido Relatório que “Existem assim, fortes indícios de que tais documentos não correspondem a serviços efectivamente prestados, mas a meras operações simuladas", na sequência do que, concluiu a AT na sua Resposta apresentada nos autos, que “o sujeito passivo efectuou pagamentos, no montante de € 617.780,86, relacionados com as facturas falsas cujo gastos pretendiam documentar, e não se encontrando tais gastos documentados, tais despesas teriam de ser, como foram, sujeitas a tributação autónoma, nos termos do n.º 1 do art. 88.º do CIRC.” (artigo 34.º da resposta).
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Face aos elementos carreados pela AT, em sede de procedimento de inspeção e do presente processo arbitral tributário, coloca-se, então, a questão de aferir se os mesmos preenchem, cabalmente, o ónus probatório que sobre aquela Autoridade impende, em ordem a, legalmente, tributar autonomamente despesas não documentadas, nos termos do artigo 88.º/1 do CIRC.
Nota-se, desde logo, que, na senda de tudo o que anteriormente se foi expondo, o juízo a formular é substancialmente distinto daquele que se colocaria se estivesse em questão aferir da devida documentação das despesas, necessária para a sua dedutibilidade ao lucro tributável. Com efeito, como se disse já, neste caso, bastaria à AT, face aos documentos integrados na contabilidade da Requerente, “alegar a existência de elementos susceptíveis de pôr em causa essa veracidade, designadamente pela enunciação de indícios objectivos, sólidos e consistentes, que traduzam uma probabilidade elevada de que esses documentos não titulam operações reais.”.
Não sendo esse o caso, nem o que ora se discute, estará em causa verificar se a AT logrou demonstrar, para além de qualquer dúvida razoável, que:
i. as despesas que pretende tributar ocorreram na realidade; e
ii. o respetivo beneficiário não é conhecido nem cognoscível.
Ressalvado o respeito devido por opinião contrária, afigura-se que a AT terá claudicado na tarefa que lhe incumbia.
Com efeito, o raciocínio de que existem fortes indícios – essencialmente relacionados com uma aparente falta de estruturas materiais e humanas dos prestadores de serviços documentados – de que os documentos integrados na contabilidade têm subjacentes operações simuladas, poderá ser aceitável numa perspetiva de aferir a aceitabilidade ou não das despesas por aqueles tituladas, como componente negativa do lucro tributável.
Contudo – bem ou mal, não interessa, porquanto não está isso, por qualquer forma, em questão nos autos – a AT optou por não repercutir tais considerandos na quantificação daquele.
Já numa perspetiva de aferição da legalidade da tributação autónoma de despesas não documentadas, o raciocínio adotado, e o respetivo sustentáculo factual, deverá ser tido por insuficiente, sob ambas as perspetivas pertinentes, ou seja, quer quanto à demonstração da efetiva ocorrência da despesa, quer quanto à demonstração da incognoscibilidade do seu beneficiário.
Assim, e relativamente às despesas tituladas, para além do mais, por cheques (referidas nos pontos 16, 19 e 21 da matéria de fato), são devidamente conhecidos os destinatários (imediatos) das mesmas, não havendo dúvidas de quem foi o sujeito que, pelo menos em primeira mão, as recebeu.
Neste quadro, incumbia à AT desencadear, relativamente àqueles referidos e identificados destinatários, os procedimentos necessários à verificação e regularização da situação fiscal de tais despesas, e não acantonar-se numa dúvida cartesiana, e pretender com ela submeter a Requerente a uma tributação agravada.
Efetivamente, sem prejuízo de, eventualmente, até se poderem considerar simuladas as operações subjacentes à documentação em questão, daí não decorrerá, de forma necessária ou, até, provável, que as pessoas que constam como beneficiários dos cheques, não tenham sido quem, efetivamente, haja recebido os montantes titulados por aqueles. É que, não obstante, por exemplo, os serviços que na contabilidade da Requerente aparecem como tendo sido prestados pela sociedade C..., possam não ter sido efetivamente prestados, daí não decorre, por qualquer forma, que o filho do sócio gerente não haja, efetivamente, sido o destinatário da correspondente despesas, podendo – e devendo – como tal ser tributado.
Repete-se aqui, uma vez mais, que, estando em causa a tributação autónoma das despesas, e não a sua mera desconsideração como gasto, não era suficiente a “enunciação de indícios objectivos, sólidos e consistentes, que traduzam uma probabilidade elevada de que esses documentos não titulam operações reais.”. E, se não se saberá, ao certo, a que título as pessoas que procederam ao levamento dos cheques receberam os correspondentes montantes (em nome próprio, por conta de terceiro, em representação de alguma entidade), o certo é que não se sabe porque a AT não o indagou, conforme lhe competia.
Neste sentido, de resto, decidiu-se no Ac. do STA de 21-10-2009, proferido no processo 0583/09, em cujo sumário se pode ler que:
“I – Apresentando o contribuinte como prova de pagamentos feitos a um empreiteiro por trabalhos por este realizados num imóvel apenas o comprovativo de cheques (únicos documentos na sua posse) é legítimo que a AF não aceite, como comprovativo daquele pagamento, os referidos cheques.
II – As despesas devem ser documentadas através de factura / recibo.
III – Porém, e na decorrência do princípio do inquisitório, a AF pode exigir ao contribuinte outras provas e efectuar, face a tal princípio, as diligências tendentes a demonstrar a afectação de tais pagamentos àquela finalidade.
IV – No limite, pode efectuar uma inspecção à escrita do empreiteiro, diligência que está vedada ao contribuinte.”.
Ora, no caso, e no limite, as quantias tituladas pelos cheques disponíveis nos autos até poderão ter sido devidamente declaradas por algum ou alguns dos sujeitos que, face à documentação que integra a contabilidade da Requerente, surgem como destinatários mediatos ou imediatos das despesas, já que nada em contrário consta dos autos. E mesmo que assim não fosse, sempre, como se disse, a AT poderia desencadear os correspondentes procedimentos de liquidação dos tributos devidos, tendo por base a documentação em causa.
Daí que, in casu, não se encontre demonstrada, nesta matéria, uma omissão do sujeito passivo (a Requerente) susceptível de comprometer, nas supra-citadas palavras do Prof. Saldanha Sanches “o controlo de todas as operações apontando para uma economia do esforço administrativo”, tornando “mais difícil comprovar a verdade da declaração” ou susceptíveis de “faltar à Administração fiscal elementos sobre a necessária contraprova.”. Não se encontra demonstrado, em suma, que “a não-documentação da despesa resulta da intenção da empresa de conservar uma certa despesa oculta”, nem qualquer dano ou prejuízo “que a violação de um dever de cooperação provocou para a determinação administrativa ou comercial dos factos fiscalmente relevantes.”.
O que vem de se dizer é igualmente válido para as despesas relativas a pagamentos a dinheiro, discriminadas na matéria de fato supra, relativamente às quais existem recibos.
Com efeito, os beneficiários de tais despesas, prima facie, pelo menos, encontram-se identificados, são conhecidos, não se sabendo se os mesmos as declararam ou não como rendimentos, nem qual a razão – caso não tenham sido declaradas – pela qual não foram desencadeados, relativamente aos sujeitos em causa, os correspondentes procedimentos de liquidação. E – repete-se – a tal não obstaria a circunstância de os serviços que, face à contabilidade da Requerente justificariam tais pagamentos não terem sido prestados, uma vez que os pagamentos poderão ter sido feitos, na mesma, aos mesmos sujeitos, por outra, ou até sem qualquer justificação ou, até, não sendo assim, poderão nem ter sido feitos, de todo, caso em que os documentos de suporte seriam absolutamente simulados[18].
Isto que vem de se dizer é aplicável, inclusivamente, aos pagamentos duplicados, a que se refere o ponto 18 da matéria de facto. Tais pagamentos, na medida em que são duplicados, não foram feitos, seguramente, em função da causa constante dos respetivos documentos de suporte. Mas daí não decorre, de forma necessária, ou, sequer, minimamente segura, nem que os pagamentos não hajam sido efetivamente feitos à pessoa que os declarou receber (no caso das quantias suportadas em recibo), ou que em primeira linha os recebeu (no caso dos pagamentos efetuados por cheque), nem, muito menos, que hajam sido efetivamente feitos, mas a um terceiro desconhecido.
Nesta parte, tal como acontece relativamente ao grupo de despesas anteriormente abordadas (liquidadas por meio de cheques), não demonstrou a AT, em suma, que os destinatários das despesas em questão não lhe eram cognoscíveis, o que passaria, desde logo, pela análise das declarações de rendimentos pertinentes e pelo desencadear dos necessários procedimentos de liquidação, relativamente aos casos em que aquelas declarações se revelassem omissas.
Por fim, existe um último grupo de despesas, correspondente aos pagamentos contabilizados como devidos à sociedade D..., e como tendo sido efetuados em numerário, relativamente aos quais não existem cheques ou recibos mas, unicamente faturas, reputadas de “simuladas” ou “falsas” pela AT.
Nesta parte, incorre, desde logo, em contraditoriedade o raciocínio subjacente à liquidação impugnada. É que, aparte a documentação “falsa” ou “simulada”, nada mais apresenta a AT que demonstre que as despesas em questão foram efetivamente realizadas. Concretamente, e dos elementos disponibilizados nos autos, apenas se poderá retirar que a Requerente realizou efetivamente as despesas em causa da inscrição das mesmas na sua contabilidade e dos documentos (faturas e vendas a dinheiro) prima facie emitidos pela D.... Fora estes elementos, nada mais aponta no sentido da efetiva realização das despesas em causa pela Requerente, sendo que, recorde-se, tal demonstração é imprescindível à legalidade da sua tributação autónoma.
Ora, se a documentação em questão é “falsa” ou “simulada”, como é que poderá a mesma ser apta a demonstrar que a despesa ocorreu? Na verdade, apenas face a algum elemento adicional (cheque, recibo, prova testemunhal) se poderia admitir, conforme atrás se expendeu, que não obstante os serviços justificativos da despesa não terem sido prestados, o pagamento (falsa ou simuladamente) documentado possa ter ocorrido. Na ausência de tais elementos, nada se descortina que possa demonstrar, com a necessária segurança, que o mesmo se tenha dado.
É que, como se escreveu no sumário do Ac. do TCA-Sul de 20-01-2004, proferido no processo 00589/03, já citado:
“III- As despesas confidenciais ou não documentadas pressupõem a existência das operações a que respeitam. Daí a sua tributação autónoma;
IV- As facturas falsas respeitam a operações ou serviços não existentes. Não são assim passíveis de tributação por inexistência de facto tributário.”
Admitindo que os documentos em questão sejam “falsos” ou “simulados”, continuar-se-á sem saber, ainda assim, se a Requerente:
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os utilizou para deduzir despesas em que não incorreu;
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os utilizou para esconder pagamentos que fez efetivamente a terceiros e que pretende ocultar; ou
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os utilizou para justificar pagamentos que fez, a outro título, ao sujeito que identifica.
Nenhuma destas três hipóteses se apresenta, face aos elementos disponibilizados nos autos, mais plausível que as restantes, sendo que à AT competia, em ordem a validar a tributação autónoma operada, demonstrar que a correta era a segunda daquelas elencadas hipóteses.
Daí que, face às supra-indicadas normas relativas ao ónus da prova, bem como face ao princípio consagrado no artigo 100.º/1 do CPPT[19], se deverá considerar como insuficientemente demonstrados, também quanto a esta parte, os pressupostos que a lei faz depender a legalidade da imposição de tributação autónoma sobre despesas não documentadas.
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O entendimento que se vem de expor, tem correspondência em diversas decisões dos tribunais superiores, dos quais se citam:
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Ac. do TCA-Norte de 12-04-2007, proferido no processo 00297/04 – VISEU:
“1. Enquanto o art. 41.º n.º 1 al. h) CIRC (redacção em vigor nos anos de 1994 e 1995) prescreve não serem dedutíveis para efeito de determinação do lucro tributável, ainda que contabilizados como custos ou perdas, entre outros, “os encargos não devidamente documentados e as despesas de carácter confidencial”, o art. 4.º do DL. 192/90 de 9.6., ressalvando, expressamente, o estabelecido neste normativo, o que aponta no sentido da possibilidade de se cumularem efeitos decorrentes de uma aplicação sucessiva dos dois artigos, determina a tributação autónoma, específica, a uma taxa concreta e individualizada, das “despesas confidenciais ou não documentadas”.
2. Por definição, despesas confidenciais são as “não especificadas, ou identificadas, quanto à sua natureza, origem e finalidade”, que, pela sua própria natureza, não são documentadas, devendo qualificar-se como despesas não documentadas aquelas “relativamente às quais não existe prova documental, embora não haja ocultação da sua natureza, origem ou finalidade”.
3. Ambas têm, portanto, como denominador comum, o facto de serem despesas não comprovadas por documentos.
4. Em sede de IRC, a contabilidade é eleita como o sustentáculo primeiro e potencialmente decisivo para o apuramento, a determinação, do lucro tributável – cfr. art. 17.º n.º 1 CIRC, impondo-se, em ordem a permitir o controlo deste, que seja organizada nos termos da lei comercial e fiscal, exigência que, designada e prevalecentemente, implica o cumprimento da regra segundo a qual “Todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e susceptíveis de serem apresentados sempre que necessário” – cfr. art. 98.º n.º 1 e 3 al. a) CIRC.
5. Na medida em que a dedutibilidade dos custos constitui operação determinante, normal e habitualmente motivando divergência, no estabelecimento final do lucro tributável das pessoas colectivas, o art. 23.º n.º 1 CIRC exige, além do mais, a respectiva comprovação, a qual, regra geral, deve assentar em documentos justificativos de origem externa.
6. In casu, considerados os elementos documentais disponíveis e passíveis de valoração judicial, julgamos impor-se a conclusão de que estamos em presença de encargos, contabilizados como custos, não devidamente, insuficientemente, documentados.
7. Efectivamente, mais do que a ausência de qualquer documentação externa de suporte e correspondência, o conteúdo dos documentos em apreço não fornece os mínimos elementos de informação sobre diversos aspectos relevantes para a ulterior e imprescindível aferição e conferência da efectiva realização das apontadas deslocações.
8. Contudo, em função da existência e apresentação da documentação vinda de considerar e escalpelizar o respectivo conteúdo, não podemos reputar correcto o entendimento, avançado pelos serviços de fiscalização da Administração Tributária/AT, no sentido de se rotularem e valorarem os custos em causa como “despesas não documentadas”.
9. Na nossa perspectiva, existiam e existem documentos, pelo que, se nos apresenta inviável afirmar estar-se em presença de despesas estritamente não documentadas. Mas, porque a documentação disponibilizada apresentava e apresenta as deficiências e carências que lhe apontamos, é adequado e legal reputar tais despesas como não devidamente documentadas.
10. Firmada esta premissa, torna-se consequente, em primeira linha, que julguemos correcto e legal o entendimento da AT, sufragado pela sentença aprecianda, no sentido de desconsiderar as despesas escrutinadas como custos fiscais dos dois exercícios inspeccionados.
11. Num segundo plano, a circunstância de havermos assentado que estas despesas se devem qualificar como indevidamente e não como totalmente não documentadas, somente podendo cair no âmbito de aplicação do art. 4.º do DL. 192/90 de 9.6. as “despesas confidenciais ou não documentadas”, na medida em que, aqui, estamos na presença de despesas suportadas por documentação insuficiente, não ocorre fundamento (“despesas não documentadas”) para as sujeitar, além da não relevação como custos fiscais, a tributação autónoma.
12. Em nenhuma medida as questionadas despesas são confidenciais, dado saber-se, destacadamente, a sua natureza e finalidade; pagamentos em dinheiro efectuados, pela impugnante, alegadamente, a quatro identificados indivíduos, para satisfazer despesas ocorridas com deslocações destes ao serviço daquela. Saber se são ou não verdadeiras estas deslocações e se foram efectuadas pelas pessoas em causa, nada releva para a confidencialidade ou não dos gastos declarados feitos pela impugnante.”
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Ac. do TCA-Sul de 30-01-2007, proferido no processo 01486/06:
“VI.- Assim, a relevância fiscal de um custo depende da prova da sua necessidade, adequação, normalidade ou da produção do resultado (ligação a um negócio lucrativo), sendo que a falta dessas características poderá gerar a dúvida sobre se a causação é ou não empresarial.
VII.- À luz dos princípios expostos não constituem encargos dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável os encargos não devidamente documentados (existem quando não se encontram apoiados em documentos externos, em termos de possibilitar conhecer fácil, clara e precisamente, a operação, evidenciando a causa, natureza e montante) e as despesas de carácter confidencial, (existem quando não são especificadas ou identificadas, quanto à natureza, origem e finalidade, sendo não documentadas por natureza).
VIII.- Por não se provar por documento externo ou outro idóneo meio de prova que os custos em causa estavam directamente relacionados com a actividade normal da impugnante, não se configura, em tal situação, o nexo causal de "indispensabilidade" que deve existir entre os custos e a obtenção dos proveitos ou ganhos. E, não estando devidamente documentados, não podem ser tributados, autonomamente, à taxa de 30%, nos termos do art. 4.° do Decreto-Lei n.° 192/90, de 9/6 (na redacção da Lei n.° 52-C/96, de 27/12).”
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Ac. do STA de 03-12-2003, proferido no processo 01283/03:
“São despesas confidenciais as que não especificam a sua natureza, origem e finalidade.
Tais despesas são, por natureza, indocumentadas.
Não é confidencial a despesa, titulada por documento, do qual constam as identidades do vendedor e do adquirente e a designação do bem transmitido e respectivo preço.
Esta despesa não é susceptível de tributação autónoma nos termos do artº nº 4 do D.L. 192/90, de 9/6.”
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O decidido não é, por qualquer forma, contrário aos artigos 104.º/2 e 103.º/1 da CRP, ao contrário do que aventa à Requerida na sua resposta.
Efetivamente, em relação à primeira daquelas normas, que impõe que as empresas sejam tributadas pelo rendimento real, nem sequer se compreende a alegação em causa, tendo em conta o entendimento veiculado pela Requerida, na mesma resposta, onde refere que a tributação autónoma incide sobre a despesa.
Sem que se tome posição na matéria de saber se a tributação autónoma em causa no presente processo arbitral incide sobre a despesa ou se, mediatamente, ainda tem, de alguma forma, em vista um determinado rendimento, sempre se dirá que não se compreende como é que o incumprimento pela Requerida do ónus probatório que sobre ela impende possa pôr em causa a tributação das empresas pelo seu rendimento real, ou a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas, bem como uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza.
Não obstante, naturalmente que uma interpretação das normas em causa que, nos termos acima expostos, tem subjacente o entendimento de “Que as regras de natureza formal que implicam a documentação dos custos devem ser interpretadas em atenção aos fins para que foram criadas”, não só não será contrária à CRP como, antes, será a mais conforme a esta.
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Por todo o acima exposto, entendendo-se não estarem devidamente demonstrados os pressupostos que, legalmente, condicionam a tributação autónoma de despesas não documentadas, deverá proceder o pedido formulado nos autos pela Requerente.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
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Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência anular o acto tributário impugnado, na parte correspondente à tributação autónoma no valor de €309.782,30, e respetivos juros compensatórios e moratórios;
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Condenar a Requerida nas custas do processo, no montante de €5.814,00.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em €325.193,70, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €5.814,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa
28 de Maio de 2014
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho - Relator)
O Árbitro Vogal
(Alberto Amorim Pereira)
O Árbitro Vogal
(Maria Celeste Cardona)
[1] “As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50%, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos do artigo 23.º.”
[2] O POC de 89 (Decreto-Lei 410/89 de 21 de novembro) previa, inclusive, uma rúbrica própria para este tipo de despesas – Código 653.
[3] Para uma perspetiva histórica da evolução do regime legal em questão, bem como para uma sumária perspetiva de direito comparado, cfr. o Ac. do CAAD proferido no processo 7-2011T, disponível em www.caad.org.pt.
[4] Ac. do STA de 05-07-2012, proferido no processo 0658/11, disponível em www.dgsi.pt (tal como todos os restantes acórdãos doravante citados sem indicação de proveniência).
[5] Ac. do TCA-Sul, de 20-04-2010, proferido no processo 03632/09.
[6] Ac. do TCA-Sul, de 16-03-2005, proferido no processo 00340/03.
[7] Entre outros, Ac. do TCA-Sul de 30-01-2007, proferido no processo 01486/06.
[8] Cfr. neste sentido o Ac. do TCA-Sul de 01-06-2004, proferido no processo 06615/02.
[9] Neste sentido, cfr. Acs. do TCA-Sul de 27/01/2009 (processo 02576/08) e de 24/03/2009 (processo 02794/08).
[10] Ac. do TCA-Sul de 07-02-2012, proferido no processo 04690/11.
[11] Cfr. Ac. do STA de 03-12-2003, proferido no processo 01283/03.
[12] Cfr. Ac. do TCA-Sul de 10-07-2012, proferido no processo 05303/12. No mesmo sentido os Acs. do mesmo Tribunal de 30-10-2012, proferido no processo 05400/12, e de 20-11-2012, proferido no processo 05335/12. Neste sentido, ainda, o Ac. também do TCA-Sul de 02-10-2012, proferido no processo 05284/12. Também o Ac. do STA de 18-02-2009, proferido no processo 0600/08, citado quer pela Requerente quer pela Requerida, refere, no seu corpo (transcrito na resposta da AT) que “Isto é, o encargo não estará devidamente documentado quando não houver a prova documental exigida por lei que demonstre que ele foi efectivamente suportado pelo sujeito passivo e a despesa será confidencial quando não for revelado quem recebeu a quantia em que se consubstancia a despesa.”.
[13] In “Fiscalidade”, 3 (2000), p. 86.
[16] Ac. do TCA-Sul de 02-10-2012, proferido no processo 05284/12.
[17] Ac. do TCA-Sul de 20-01-2004, proferido no processo 00589/03.
[18] Relativamente à distinção entre simulação absoluta e relativa, cfr. p. ex. Carlos Alberto da Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 3.ª Ed. Actualizada, Coimbra Editora, 1990, p. 473 e s..
[19] “Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado.”