Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 634/2017-T
Data da decisão: 2018-09-06  IRS  
Valor do pedido: € 104.679,77
Tema: IRS – Residência fiscal.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I.          RELATÓRIO

Em 04/12/2017, A..., contribuinte fiscal com o número ... (doravante designado por Requerente), veio, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) e da Portaria n.º 112-A, de 22 de março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) com o n.º 2016..., referente ao ano de 2012, no valor total a pagar de € 104.679,77.

O Requerente optou por não designar árbitro.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 05/12/2017 e notificado à Requerida em 12/12/2017. O Conselho Deontológico designou como árbitros os ora signatários que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 26/01/2018, as Partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Em conformidade com o preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 15/02/2018.

Notificada para se pronunciar, a AT apresentou resposta em que peticionou que o pedido de pronúncia arbitral fosse julgado improcedente, defendendo-se por excepção de inimpugnabilidade do estatuto de residente fiscal em território português, devendo manter-se na ordem jurídica o acto tributário impugnado e absolvendo-se, em conformidade, a entidade Requerida do pedido.

O Requerente e a AT apresentaram alegações no respectivo prazo, tendo a AT juntado, com as suas alegações, documentação adicional.

Após análise da documentação adicional submetida com as alegações, pela AT, e da resposta do Requerente após notificação para o efeito, decidiu o tribunal colectivo mandar desentranhar ambos por consubstanciarem uma junção extemporânea de prova e excederem o âmbito do presente pedido de pronúncia arbitral (“PPA”).

 

Síntese da posição das Partes

a.    Do Requerente:

Do pedido efectuado e alegações apresentadas resulta, no entender do Requerente, o seguinte:

Em Janeiro de 2007, o Requerente foi contratado pela empresa “B..., S.L” , com sede em ..., ..., ... Madrid, para trabalhar em Madrid, Espanha, tendo para o efeito celebrado contrato de trabalho por tempo indeterminado com a empresa mencionada supra para ali exercer a sua actividade profissional de consultor (partner).

Desde essa data, o Requerente estabeleceu a sua residência (factual e fiscal) em Espanha, não obstante residirem em Portugal a mulher e os dois filhos.

No ano de 2012 o Requerente auferiu, em Espanha, rendimentos de trabalho dependente no valor global de € 232.062,78 (duzentos e trinta e dois mil e sessenta e dois euros e setenta e oito cêntimos), tendo sido retidos na fonte, pela entidade patronal, o montante de € 57.435,51 (cinquenta e sete mil quatrocentos e trinta e cinco euros e cinquenta e um cêntimos).

Por conta desses rendimentos, além dos montantes retidos na fonte, o Requerente pagou o respectivo acerto, em Espanha, no valor de € 281,69 (duzentos e oitenta e um euros e sessenta e nove cêntimos), tendo ainda ali efectuado descontos para a Segurança Social em Espanha.

Não obstante residir efectivamente em Espanha desde 2007, o Requerente apenas em 2017 rectificou o seu estatuto fiscal, solicitando a inscrição como não residente, com efeitos retroactivos a 2007, entendendo não haver qualquer razão justificativa para se considerar residente fiscal em Portugal nos anos em causa.

Contudo, apesar de ter sido inicialmente aceite a solicitada inscrição retroactiva com efeitos a 2007, foi o Requerente notificado da liquidação ora contestada, a qual entende ilegal:

i) por falta de fundamentação na medida em que considera que “(...) a liquidação notificada ao Requerente é insuficiente quanto à necessária fundamentação, de facto e de direito, pois não permitiu conhecer o itinerário cognoscitivo que lhe subjaz, estando, por isso, inquinada de vício de violação de lei (...)”;

ii) por preterição de formalidade legal essencial (direito de audição) porquanto, conforme alega, o acto para o exercício do direito de audição, embora a si notificado, conter um acto de liquidação dirigido a sujeitos passivos distintos e com fundamentos distintos daqueles eventualmente aplicáveis ao Requerente. Assim, entende o Requerente que “(...) deveria ter sido notificado, expressamente, para, querendo, se pronunciar sobre a intenção da Administração tributária de proceder à liquidação contestada e sobre os pressupostos, de facto e de direito, dessa decisão.”, sendo que não tendo tal sucedido, “(...) o acto de liquidação em causa é, também, ilegal, não apenas por força da respectiva falta de fundamentação, mas ainda por preterição de uma outra formalidade legal essencial (...)”.;

iii) por violação de lei ao sustentar que deverá, in casu, afastar-se a aplicação do critério legal de residência então contido no artigo 16.º, número 2 (redacção do CIRS em vigor à data dos factos) e que consagrava a chamada “residência por dependência” ou “residência por atração”, por força da aplicação da Convenção para Evitar a Dupla Tributação (“CDT”) celebrada entre Portugal e Espanha, em particular do seu artigo 4.º, de acordo com a interpretação jurisprudencial e doutrinal amplamente defendida de que a remissão para o direito interno incluída naquele preceito não se deve estender às referidas situações previstas no então artigo 16.º, número 2 do CIRS. Ou seja, entende o Requerente que sendo a residência apurada nos termos da CDT aplicável, não pode a mesma ser aferida com base no, então vigente, artigo 16º, número 2 do CIRS, uma vez que, entende, a remissão contida no artigo 4.º da referida CDT para o direito interno não abrange o critério contido naquele normativo, mas apenas os contidos no número 1 daquele mesmo artigo. Assim, não se verificando quaisquer dos requisitos contidos no, então vigente, número 1 do artigo 16º do CIRS (permanência em território português por mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, ou existência de habitação em condições que façam supor a intenção de a manter e ocupar como residência habitual), e sendo este os únicos para os quais se deve entender a remissão constante do artigo 4.º da CDT aqui em causa, não poderia nunca o Requerente, ao abrigo dessa mesma CDT, sequer ser considerado residente fiscal em Portugal no ano em causa. Ainda a este respeito, e em resposta à exigência da Requerida em sede de procedimento administrativo quanto ao valor probatório dos documentos apresentados, entende o Requerente que “Quanto à questão das cópias, é requisito constante de circulares e não de lei, pelo que obviamente não se pode aplicar em detrimento da verdade material que já se encontrava comprovada!”.

Assim, vem ainda o Requerente justificar que apenas por lapso se declarou como residente fiscal em Portugal nas Declarações de Rendimento Modelo 3 apresentadas entre 2007 e 2015, tendo, contudo, já sido solicitada – e aceite – a rectificação desse lapso junto da Requerida.

Por último, e ainda em relação à liquidação ora contestada, vem o Requerente impugnar, também, a liquidação de juros compensatórios, por ser a mesma dependente da contestada dívida de imposto.

 

 

 

b.   Da Requerida:

Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou Resposta e fez juntar o processo administrativo (PA), defendendo a legalidade e a manutenção da liquidação objeto do presente PPA.

Já em sede de alegações, manteve a Requerida o entendimento anteriormente vertido, reforçando a defesa da legalidade e manutenção da liquidação objeto do presente PPA.

Quanto às questões formais, a Requerida não emitiu qualquer pronunciamento.

Quanto à questão material subjacente entende a Requerida, desde logo, que os elementos juntos ao processo pelo Requerente não são aptos a comprovar a sua residência fiscal em Espanha.

Assim, alega a Requerida, que “Na realidade, o mencionado documento 5 (certificado de registro de ciudadano de la unión) comprova somente que o Requerente se declarou perante o Registro Central de Estrangeiros espanhol como residente (não fiscal) naquele Estado, não consubstanciando tal documento uma declaração emitida e certificada pelas autoridades fiscais espanholas, no qual conste o rendimento efetivamente auferido e o imposto efetivamente pago a final pelo Requerente.

 

Mais continua a Requerida, “e o documento n.º 6 aparentemente certifica que o Requerente era residente fiscal em Espanha em 2012 (exclusivamente)”, explicando que “Aparentemente, porque conforme verificaremos infra (23 e ss.), gozando o Requerente efetivamente de plena residência fiscal em Espanha no ano de 2012, não faria sentido aquela Administração Fiscal informar a AT dos rendimentos obtidos em Espanha nesse ano, ao abrigo do artigo 26.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento (...)”.

 

Assim, entende a Requerida que, não só a documentação junta não é apta a comprovar o alegado pelo Requerente na medida em que, sendo cópias, não cumprem com as exigências formais estabelecidas pela Requerida, como também não o é na medida em que não demonstra, de forma inequívoca, que o Requerente fosse efectivamente residente fiscal em Espanha.

 

Mais alega a Requerida, em defesa da sua posição, que ao ter recebido informação tributária relativa ao Requerente, por parte da Administração Tributária Espanhola, ao abrigo do artigo 26.º da CDT entre Portugal e Espanha, é a própria Administração Tributária Espanhola que está a reconhecer a qualidade de não residente fiscal em Espanha do Requerente. Em concreto, entende a Requerida que “Se Espanha entendesse que o Requerente era seu residente fiscal não enviaria a sua informação fiscal a Portugal, porquanto tal iria contra as disposições da Convenção.”.

Por outro lado, vem a Requerida invocar uma situação de venire contra factum proprium em que terá incorrido o Requerente na medida em que vem alegar a sua não residência fiscal em Portugal no ano em causa, tendo-se, contudo, declarado como residente fiscal, e aproveitado deduções à colecta e benefícios fiscais, em Portugal na Declaração de Rendimentos Modelo 3 apresentada anualmente entre 2007 e 2015, clarificando que “a ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas”.

Por último, vem a Requerida invocar uma excepção de inimpugnabilidade do estatuto de residente fiscal por extemporaneidade. De facto, alega a Requerida:

O que resultou da liquidação adicional de IRS promovida pela AT foi um acréscimo ao rendimento obtido pelo Requerente em território espanhol, por consideração de montantes comunicados pelas autoridades fiscais daquele Estado, no anexo J da DRM 3 de 2012.

Ou seja, a AT limitou-se a acrescer no anexo J da DRM 3 de 2012 a título de rendimento o montante de € 237.514,00.

A AT não promoveu qualquer outra alteração à DRM 3 de 2012 do Requerente, nomeadamente quanto ao estatuto de residência daquele.

Assim, salvo melhor entendimento, não podia o Requerente em 2017, quando os prazos de reclamação e de impugnação haviam terminado, pôr em crise um acto tributário que resultou de declarações do próprio.

Declarações essas que o Requerente reiterou relativamente aos anos de 2013 a 2015.

Na realidade o Requerente está a “venire contra factum proprium”, quanto a esta matéria.

Em 2016 o estatuto de residente fiscal em território português do Requerente com referência à DRM 3 de 2012, bem como às DRM seguintes, e respectivas liquidações daí resultantes, já se encontrava perfeitamente consolidada e inabalável por qualquer meio de defesa.

Defender o contrário poria em causa o princípio da segurança e certeza jurídica, decorrentes do princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da CRP.

Isto porque, a condição de residente fiscal em território português foi declarada pelo Requerente, cujos efeitos aceitou, por falta de impugnação tempestiva, e porque a liquidação daí decorrente resultou em reembolso que reflectiu essa condição de residente fiscal em território português.

Nem se diga que em 2017 ao venire contra factum proprium, quanto à questão da residência fiscal em território português, o Requerente estaria ainda dentro do prazo de quatro anos, após a liquidação, previsto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT, pois que esse prazo apenas seria aplicável caso se provasse “erro imputável aos serviços”, quanto a esta questão.

O que, face ao exposto, claramente não ocorreu, uma vez que quanto a esta matéria a AT se limitou a reiterar o declarado pelo Requerente, tanto quanto à DRM 3 de 2012, como quanto às DRM 3 de 2013 a 2015.

Assim, entendemos que o acto de liquidação adicional de IRS de 2016, com referência ao ano de 2012, só pode ser impugnado no segmento modificado, ou seja, quanto ao rendimento adicionado no anexo J, e nunca quanto ao segmento que já se encontra consolidado e estável na ordem jurídica, nomeadamente, quanto à residência fiscal em território português do Requerente.

Conclui assim a Requerida com o entendimento de que deve ser mantida a liquidação efectuada, recusando-se ainda o pagamento de quaisquer juros indemnizatórios.

 

II. SANEAMENTO

1.    O Tribunal Arbitral é competente e foi regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.

2.    As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, do RJAT, e do artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

3.    O processo não padece de vícios que o invalidem.

4.    Quanto à excepção invocada pela Requerida, caberá dizer o seguinte:

         i) com a argumentação expendida na Resposta e Alegações apresentadas pela Requerida pretende-se obstar ao conhecimento da causa, no aspecto da determinação da residência fiscal do Requerente no ano em causa, com base no argumento de que tal facto seria, à presente data, inimpugnável por consolidado na ordem jurídica;

         ii) vem, assim, a Requerida, opôr ao conhecimento da causa, neste aspecto, a existência de uma excepção peremptória que importa apreciar;

         iii) e sustenta a Requerida o argumento com base no facto de ter sido o próprio Requerente a declarar-se como residente fiscal em Portugal nas respectivas Declarações de Rendimento Modelo 3, em sucessivos anos, não podendo agora vir alterar essas declarações;

         iv) ora, não obstante se deverem considerar verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes (nos termos do artigo 75.º da LGT), prevê o artigo 59.º do CPPT que erros de facto ou de direito declarados pelos contribuintes podem ser corrigidos pelos próprios, até ao termo do prazo legal de reclamação graciosa ou impugnação judicial do acto de liquidação, no caso de que da correcção resulte imposto de montante inferior ao liquidado com base na declaração (inicialmente) apresentada;

         v) ou seja, desde que respeitado o prazo acima referido, o Requerente poderia corrigir os elementos da sua declaração – nomeadamente a sua condição de residente em Portugal –, ainda que sobre ele impendesse o ónus de prova dos factos alegados (e que demonstrem a sua não residência fiscal em Portugal);

         vi) cumpre, para o efeito recordar que, segundo os documentos juntos aos autos, o prazo para pagamento voluntário da liquidação contestada terminava no dia 23/01/2017, tendo o pedido de alteração retroactiva da morada sido apresentado no dia 16/03/2017;

         vii) assim, verifica-se que o Requerente solicitou a rectificação do seu cadastro fiscal dentro do prazo legalmente previsto, pelo que deve o mesmo ser admitido, ainda que impenda sobre ele o ónus de comprovação da sua não residência fiscal em Portugal nos períodos em causa e, em particular, no ano de 2012, a que respeita a liquidação ora impugnada;

         viii) por outro lado, sempre se entende não ser de proceder o argumento de que o Requerente apenas poderia, agora, impugnar o segmento modificado pela liquidação adicional – e que se consubstancia no acréscimo de rendimentos de fonte estrangeira no Anexo J – uma vez que a tributação, e a própria obrigação de inclusão dos rendimentos no Anexo J, são indissociáveis do estatuto fiscal do Requerente;

         ix) nestes termos será de rejeitar a excepção de inimpugnabilidade do estatuto fiscal arguida pela Requerida, nada obstando ao conhecimento da causa;

         x) de facto, a própria Requerida reconhece tal facto ao ter inicialmente aceite o pedido de rectificação do cadastro fiscal submetido pelo Requerente, apenas posteriormente ter decidido revogar a decisão anterior.

 

III.      FUNDAMENTAÇÃO

III.1. MATÉRIA DE FACTO

A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta à petição inicial, do processo administrativo, da resposta e das alegações do Requerente e da Requerida, fixa-se como segue:

 

A – Factos Provados

 

1. Em Janeiro de 2007, o Requerente foi contratado pela empresa “B..., S.L”, com sede em..., ..., ... Madrid, para trabalhar em Madrid, Espanha;

 

2. O Requerente celebrou contrato de trabalho por tempo indeterminado com a empresa mencionada supra para ali exercer a sua actividade profissional de consultor (partner);

 

3. À data dos factos, residiam em Portugal a mulher e os dois filhos do Requerente;

 

4. No ano de 2012 o Requerente auferiu, em Espanha, rendimentos de trabalho dependente no valor global de € 232.062,78 (duzentos e trinta e dois mil e sessenta e dois euros e setenta e oito cêntimos), e reteve na fonte € 57.435,51 (cinquenta e sete mil quatrocentos e trinta e cinco euros e cinquenta e um cêntimos);

 

5. Por conta desses rendimentos além dos montantes retidos na fonte, o Requerente pagou o respectivo imposto (acerto de Imposto), em Espanha, no valor de € 281,69 (duzentos e oitenta e um euros e sessenta e nove cêntimos);

 

6. O Requerente efectuou também descontos para a Segurança Social espanhola;

 

7. O Requerente consta no Registo Central de Estrangeiros de Espanha como residente comunitário permanente em Espanha desde 02/01/2007, tendo o seu domicílio em ..., ..., piso..., ..., Madrid;

 

8. As autoridades fiscais espanholas emitiram, em nome do Requerente, um certificado no qual declaram que este é residente fiscal em Espanha no exercício de 2012;

 

9. A segurança social espanhola emitiu um documento a informar que o Requerente está inscrito na segurança social há 10 anos, 1 mês e 23 dias, perfazendo um total de 3.706 dias;

 

10. O Requerente apresentou um requerimento a solicitar que o seu estatuto de não residente fosse contemplado no cadastro da Autoridade Tributária desde o ano de 2007, tendo o mesmo sido deferido.

 

B – Factos não provados

Não há factos relevantes para a decisão da causa que devam considerar-se não provados.

 

III.2. MOTIVAÇÃO

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido apresentado pela Requerente.

No tocante à apreciação da prova, o Tribunal formula o seu juízo, em atenção ao princípio da livre apreciação, a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência.

Assim a convicção do Tribunal fundou-se no acervo documental junto aos autos bem como nas posições assumidas pelo Requerente e pela Requerida.

 

 

III.3. DO DIREITO

1.    A questão decidenda:

Considerando as posições do Requerente e da Requerida, bem como a factualidade assente, a questão a que cumpre dar resposta será, em suma, a de saber se, in casu, o Requerente deverá ser considerado como residente ou não residente fiscal, daí se retirando a extensão da sua obrigação tributária.

Sem prejuízo da resposta que se dê à questão supra identificada, responderá ainda este Tribunal, por uma questão de completitude de análise, às questões formais suscitadas pelo Requerente.

Assim sendo, uma primeira referência se impõe quanto à ordem de análise das questões colocadas. Com efeito, tendo em conta o disposto no artigo 124.º, n.º 2, do CPPT, aqui aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, entende o Tribunal que deve conhecer primeiro dos vícios substanciais uma vez que essa ordem é a que assegura uma mais eficaz tutela dos direitos do contribuinte[1].

Começando, então, pela análise da questão da (não) residência fiscal em Portugal do Requerente no ano de 2012 importa, desde logo, clarificar a ordem de aplicação dos diversos instrumentos legais a que Requerente e Requerida aludem neste caso, em particular o CIRS e a CDT celebrada entre Portugal e Espanha, por meio da realização de um exercício de delimitação do âmbito de ambos os regimes e relação entre eles.

Estando em causa o estabelecimento da (não) residência de uma pessoa singular, esta deve ser, prima facie, aferida à luz do disposto no artigo 16.º do Código do IRS.

Quer isto dizer que a qualidade de (não) residente em Portugal, do Requerente, mesmo numa situação como aquela dos presentes autos, deve, única e exclusivamente, ser aferida à luz do disposto no CIRS, relevando o conceito de residência constante da CDT apenas para efeitos de aplicação da referida CDT, como em seguida se analisará.

De facto, o conceito convencional de residência não comporta um valor próprio autónomo aplicável de forma independente, estando antes limitado, apenas, aos efeitos necessários para e decorrentes da aplicação da CDT.

É a propria redacção do artigo 4.º da referida CDT que o confirma quando estabelece que o conceito de residência ali estabelecido apenas releva “Para efeitos desta (daquela) convenção (...)”.

Quer isto dizer que o conceito de residência estabelecido naquela CDT (nas CDT’s em geral) vale, na generalidade dos casos, e certamente no caso português, apenas para efeitos de aplicação da própria CDT, ou seja para efeitos de eliminação da dupla tributação (ou de outros aspectos relacionados com a CDT em causa), sem qualquer impacto no estatuto fiscal do sujeito à luz da lei doméstica.

Assim, a determinação da residência ou não num determinado país (neste caso em Portugal) ao abrigo dos critérios da CDT, não tem qualquer efeito na qualificação como (não) residente fiscal do sujeito ao abrigo da lei doméstica. Da mesma forma, do facto de uma pessoa não se considerar residente em Portugal ao abrigo da CDT e para os efeitos da CDT (por exemplo porque as regras denominadas tie-braker fazem prevalecer a residência no outro Estado) não pode resultar – não resulta – qualquer consequência legal quanto ao estatuto fiscal do sujeito em Portugal.

Ou seja, ainda que um determinado sujeito fosse de considerar não residente em Portugal ao abrigo da CDT, daí não decorreria qualquer conclusão quanto ao seu estatuto fiscal (de residente ou não residente) para efeitos da lei interna.

Poderia muito bem ser, assim, que uma pessoa que acabasse por ser qualificada como não residente para efeitos de aplicação da CDT continuasse, para efeitos de aplicação do CIRS e demais legislação interna, a ser considerado residente fiscal em Portugal.

Ao focar a sua argumentação no facto de o artigo 4.º da CDT, na interpretação mais amplamente acolhida pela doutrina e jurisprudência portuguesas, afastar o conceito de residência por dependência enquanto critério relevante para estabelecimento de residência para efeitos da CDT, o Requerente incorre num erro de raciocínio, de onde não se pode retirar a conclusão que defende sobre a sua não residência em Portugal.

De facto, não só a norma da CDT – e a sua interpretação – aduzida pelo Requerente não tem o efeito que pretende – de impossibilitar a sua classificação como residente fiscal em Portugal – como a própria invocação da CDT sempre ficará esvaziada de sentido quando a análise se esgota na determinação da residência (para efeitos da CDT, recorda-se) do sujeito em causa.  

Assim, e estabelecido este importante ponto prévio, importa então determinar os elementos, legais e factuais, que se entendem relevantes para a análise que se exige.

Na linha do que se vem argumentando, a qualidade de (não) residente do Requerente em Portugal deverá, então, ser aferida à luz do CIRS então em vigor.

Dispunha então o artigo 16.º do CIRS, sobre a residência, em vigor à data dos factos:

1-São residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitem os rendimentos:

a) hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados;

b) tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, em 31 de Dezembro desse ano, de habitação em condições que façam supor a intenção de a manter e ocupar como residência habitual;

c) (...)

d) (...)

2-São sempre havidas como residentes em território português as pessoas que constituem o agregado familiar, desde que naquele resida qualquer das pessoas a quem incumbe a direcção do mesmo.

3-A condição de residente resultante da aplicação do disposto no número anterior pode ser afastada pelo cônjuge que não preencha o critério previsto na alínea a) do número 1, desde que efectue prova da inexistência de uma ligação entre a maior parte das suas actividades económicas e o território português, caso em que é sujeito a tributação como não residente (...).”

É, assim, este o normativo à luz do qual a questão há-de ser apreciada.

Tendo ficado assente, em sede de discussão probatória, que o Requerente não permaneceu, em 2012, mais de 183 dias em Portugal, por desenvolver a sua actividade profissional em Espanha, aí mantendo habitação permanente conforme documentos juntos ao PPA, não estará preenchida a primeira condição, de natureza objectiva (exige-se presença física no território português), para que se verifique a residência fiscal em Portugal.

Assim também será, quanto ao segundo critério, agora de natureza essencialmente subjectiva (exige-se presença física no território português mas, especialmente, a intenção de aí manter uma residência habitual), aliás facilitado por um juízo de prognose póstuma, na medida em que é hoje óbvio que o Requerente pretendeu manter a sua vida profissional em Espanha, aí fixando a sua residência habitual nos anos seguintes àquele que aqui se discute.

Poder-se-ia, contudo, argumentar que o facto de o Requerente se ter declarado como residente fiscal em Portugal nas Declarações de Rendimento Modelo 3, nomeadamente na relativa ao ano de 2012, poderia demonstrar a intenção de o mesmo manter a sua residência habitual em Portugal.

Contudo, sempre se discordaria de tal raciocínio na medida em que as evidências da referida intenção devem ser buscadas, segundo a lei, nas condições em que é mantida a habitação – nomeadamente se a mesma se encontra operacional e utilizável – e ainda no facto de que, à data de hoje, facilmente se afere que a intenção do Requerente foi manter-se em Espanha, sem prejuízo de a família estar localizada em Portugal e de aí poder ter, efectivamente, uma habitação à sua disposição.

Resta, então, analisar a invocada “residência por dependência”.

A este respeito, verificando-se os requisitos de que depende a aplicação da presunção (residência em Portugal de uma das pessoas a quem incumbe a direcção do agregado familiar) importa avaliar da eventual elisão da presunção, nos termos do número 3 do artigo 16.º do CIRS então vigente.

Ora, aqui chegados, resulta amplamente demonstrado que o centro de interesses económicos do Requerente estava localizado em Espanha, sendo ali que se localizava a principal fonte dos seus rendimentos e onde era exercida a sua actividade profissional.

Nestes termos, dúvidas não restam de que, ao abrigo do CIRS então vigente, o Requerente não poderia ser considerado como residente fiscal em Portugal no ano em causa.

Acresce a isto, como já se referiu, que, embora recaia sobre o Requerente o ónus da prova dos factos que alega para comprovação da sua situação como não residente – uma vez que ele próprio se declarou como residente na Declaração Modelo 3 apresentada em relação a 2012 – não parece ser de excluir que tal possa ainda ser feito, como o foi aliás no pedido, deferido pela Administração Tributária, de rectificação do cadastro fiscal passando o mesmo a contar como não residente em Portugal desde 2007[2].

Assim, entende-se ser admissível que o Requerente possa, a posteriori, rectificar o seu estatuto fiscal, conquanto logre demonstrar, como se entende que fez, que não se encontraram preenchidas as condições para que se considerasse como residente fiscal em Portugal.

E nem se diga que a esta conclusão obsta o facto de o Requerente ter aproveitado – conclui-se agora, indevidamente – deduções à colecta e outros benefícios fiscais. Sobre estes poderá a Administração Tributária, nos condicionalismos legalmente previstos, actuar. Não poderá é negar a possibilidade de rectificação de elementos declarados por os mesmos resultarem numa diminuição da colecta de imposto teoricamente exigível.

A este respeito, cabe ainda uma nota para o exercício probatório levado a cabo pela Administração Tributária, ao desconsiderar todos os elementos factuais juntos pelo Requerente, com o argumento de que os mesmos não provam de forma inequívoca a não residência fiscal em Portugal, incluindo o próprio certificado de residência fiscal emitido pelas autoridades fiscais espanholas e junto pelo Requerente, com o argumento de que o mesmo é uma cópia, não observando assim os requisitos documentais estabelecidos pela própria Administração Tributária por via de “direito circulatório”.

Sendo compreensível, legítima e por demais defensável a preocupação da Administração Tributária com a qualidade e autenticidade dos documentos submetidos pelos sujeitos passivos, não podem essas exigências tornarem-se desproporcionais, particularmente quando está em causa um conjunto de elementos de amplidão tal que dificilmente podem levar a outra conclusão que não a de que o Requerente, no ano em causa, residiu efectivamente em Espanha, tendo aí sido considerado como residente fiscal e aí pago os seus impostos.

Não se quer com isto dizer que não se pudesse verificar uma situação de dupla residência fiscal (caso em que a CDT seria útil para se encontrar uma solução para eliminação da dupla tributação). Outrossim, adianta-se que não se pode levar a presunção de residência a tal ponto que obrigue a um encargo probatório impossível de cumprir. De facto, parece a Administração Tributária fazer depender, as mais das vezes, a comprovação da residência de documentos concretos – como o certificado de residência fiscal emitido pelas autoridades fiscais do outro país – como se de um requisito legal e imprescindível se tratasse. Note-se que o artigo 16.º do CIRS em lugar nenhum faz referência aos elementos probatórios necessários, nem estabelece qualquer noção de residência por defeito. De facto, o foco é colocado na situação concreta do sujeito passivo – do Requerente – a qual pode ser demonstrada pelos meios disponíveis e que possam suportar, com um elevado grau de certeza, a convicção de que não se encontram preenchidos nenhum dos critérios de residência legalmente previstos.

Por último, sempre haverá que notar o argumento apresentado pela Requerida de que a própria administração tributária espanhola considera o Requerente como não residente na medida em que partilhou informação com a Requerida ao abrigo da cláusula sobre troca de informações da CDT entre os dois países.

Parece, deste argumento, resultar o entendimento de que a possibilidade de troca de informações se encontra limitada à situação em que o Estado da Residência pede informação ao Estado da Fonte sobre a quantidade e/ou qualidade dos rendimentos de um seu residente, de onde se faria presumir que, respondendo, o Estado questionado consideraria, ipso facto, o sujeito em causa como não sendo residente fiscal no seu território. 

A ser assim, sempre haverá aqui que recordar os comentários da OCDE à Convenção Modelo, em particular ao seu artigo 26.º, onde, de forma clara e expressa, se refere que a informação a trocar entre os Estados Contratantes ao abrigo daquela norma deverá ser da maior amplitude necessária atentas as finalidades tributárias de cada Estado, podendo incluir informação relevante para aplicação da legislação interna, inclusive em sede de impostos ou situações não cobertas pela própria CDT aplicável.

Assim, também aqui haverá que refutar o argumento aduzido por se entender que a resposta dada pelo Estado espanhol ao pedido de informações elaborado ao abrigo do artigo 26.º da CDT Portugal – Espanha não comporta nenhum juízo de valor, por parte deste último país, sobre o estatuto fiscal do Requerente.

Analisada a questão substancial objecto do presente litígio, sempre haverá que analisar as questões formais também levantadas.

No que à falta de fundamentação respeita, importa referir que a mesma deve ser expressa, clara, congruente, suficiente e contemporânea do acto. Ou seja, deve conter a explicitação das razões de facto e de direito que motivam o acto (os pressupostos tidos em conta pelo autor do acto), as quais não podem ser confusas ou ambíguas, tendo o conteúdo do acto uma relação lógica com os fundamentos invocados.

Para o acto estar fundamentado, mostra-se essencial que o discurso contextual lhe dê a conhecer todo o percurso da apreensão e valoração dos pressupostos de facto e de direito que suportam a decisão ou os motivos por que se decidiu num determinado sentido e não noutro.

Ora de toda a economia do processo desde a fase administrativa, com a audição da Requerente, nos termos do artigo 60.º da Lei Geral Tributária, resulta evidenciada a clara percepção pela Requerente das razões invocadas pela AT para a prática do acto.

E, tanto assim é, que no exercício do invocado direito de audição, não se surpreende na posição da Requerente qualquer indício de justificada impossibilidade ou dificuldade de apreensão quanto ao percurso argumentativo da AT para concluir pela liquidação adicional. Naturalmente que existe a discordância; todavia esta não se confunde com falta de fundamentação.

Improcede assim a invocada ilegalidade formal.

Do exposto resulta também a improcedência da seguinte ilegalidade formal apontada ao acto relativa à preterição de formalidade essencial.

De facto, ainda que tenha ficado demonstrado que a notificação para direito de audição continha elementos e situações respeitantes a outro contribuinte, resulta de todo o procedimento administrativo junto aos autos que o Requerente bem apreendeu o sentido e justificação da liquidação efectuada, não sendo, assim, sustentável a imputação do vício pretendido ao acto.

 

IV. DECISÃO

Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados e, nos termos do artigo 2.º do RJAT, decide o Tribunal Arbitral:

I) Julgar integralmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, anular a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) com o n.º 2016..., referente ao ano de 2012, no valor total a pagar de € 104.679,77;

II) Condenar a Requerida na restituição do valor do imposto anulado;

III) Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios a favor da Requerente, nos termos dos artigos 43.º e 100.º, ambos da LGT; e

IV) Condenar a Requerida no pagamento da totalidade das custas, atenta a procedência integral do pedido.

VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 104.679,77 (cento e quatro mil, seiscentos e setenta e nove euros e setenta e sete cêntimos).

CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 3.060,00 (três mil e sessenta euros).

Lisboa, 06 de Setembro de 2018

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

José Poças Falcão

(Presidente)

 

Luís M. S. Oliveira

(Vogal)

 

José Calejo Guerra

(Vogal)

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

    A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990. 



[1] Cfr. os Acórdãos do STA de 12 de Julho de 2010, 7 de Junho de 2011 e 9 de Julho de 2011, proferidos, respectivamente, nos processos n.ºs 0569/10, 0355/11 e 023/11

[2] Cfr., admitindo esta possibilidade, Acórdão do TCA Sul, de 28 de Novembro de 2013, proferido no processo n.º 06935/13.