DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
1. A..., S.A., NIPC..., com sede em..., ...–... ..., ..., apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º e segs. do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do acto de liquidação adicional de IRC sob o n.º 2016... e de liquidação de juros compensatórios identificados na demonstração de juros sob o n.º 2016..., no montante global de € 7.221.619,35, e bem assim indeferimento tácito da reclamação graciosa deduzida contra o acto tributário de liquidação adicional.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos.
A correcção da liquidação de IRC baseou-se na desconsideração, pela Requerente, como rendimentos do exercício de débitos de juros de mora contabilizados em relação a diversos clientes por atraso no pagamento de facturas, na não aceitação de resultados de contratos de construção declarados e na contabilização de perdas por imparidade de créditos de clientes que não devem ter-se como aceites fiscalmente.
No que se refere aos débitos de juros, a Requerente alega que o processamento dos débitos funciona como forma de pressionar os clientes incumpridores, sendo que na maior parte dos casos os débitos são ulteriormente anulados e só quando são efectivamente recebidos é que são incluídos no lucro tributável, não havendo uma omissão intencional desses montantes para manipular os resultados do exercício. E, de outro modo, tendo em atenção que essa corresponde a uma prática comum da Requerente, haveria que abater ao lucro tributável no exercício de 2012 os valores debitados nos exercícios anteriores e cujo efectivo pagamento foi então objecto de diferimento.
Quanto à determinação dos resultados dos contratos de construção cuja execução se prolonga por mais de um ano, a Requerente refere que utilizou o método de percentagem de acabamento e que a Administração Tributária não introduziu quaisquer novos elementos de base contabilística para alterar o resultado indicado pelo sujeito passivo, acrescentando, a título subsidiário, que o acréscimo ao lucro tributável efectuado pela Autoridade Tributária relativamente ao ano de 2011 deve ser abatido em 2012 ao saldo inicial de rendimentos diferidos no exercício de 2011.
No tocante à desconsideração como gastos de perdas por imparidade de créditos, a Requerente invoca que é ao sujeito passivo que cabe identificar o risco de incobrabilidade e o momento em que esse risco se efectiva, não constituindo indício de não incobrabilidade a manutenção de relações comerciais com o devedor ou a natureza de empresa pública do devedor – como defende a Administração Tributária -, ficando ainda demonstrado, no que se refere aos créditos relativos à B... e C..., S.A., que a liquidez desses créditos estava dependente do desfecho das acções intentadas pela D..., S.A. e pela C..., S.A. contra o Município de E... .
A Autoridade Tributária, na sua resposta, considera que a inclusão no rendimento tributável de 2012 das notas de débitos de juros de mora emitidas no decurso desse ano corresponde à aplicação do princípio da periodização, previsto no artigo 18.º do Código de IRC. E, por outro lado, a dedução, nesse exercício, de juros que tenham sido recebidos nesse ano mas debitados em 2011 ou nos exercícios anteriores redundaria, na prática, na não tributação dessas importâncias por impossibilidade de acrescer ao lucro tributável de 2011.
Em relação aos contratos de construção, a correcção determinada pela Administração Tributária respeita a trabalhos já realizados mas ainda não facturados em resultado de um desfasamento existente entre os autos de medição reportados a 2012 e o grau de acabamento declarado pelo sujeito passivo, devendo entender-se que o apuramento do lucro tributável, também nesse caso, deve observar o princípio da periodização económica em função da percentagem do grau de acabamento.
No tocante às perdas por imparidade a Administração considera que não subsiste o risco de incobrabilidade, seja porque se trata de clientes habituais que mantiveram a relação comercial com a Requerente (F.../H...), seja porque o devedor é uma sociedade de capitais públicos (G..., S.A.), seja ainda porque o requisito da alínea b) do n.º 1 do artigo 36.º do Código de IRC apenas se verifica quando a reclamação judicial dos créditos seja accionada pelo sujeito passivo (B.../C..., S. A.).
Conclui pela improcedência do pedido.
2. No seguimento do processo, foi realizada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e houve lugar à produção de prova testemunhal requerida pelas partes.
Em alegações, as partes reiteraram as suas anteriores posições.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, os árbitros foram designados pelas partes, tendo cabido ao Conselho Deontológico a indicação do terceiro árbitro.
O tribunal arbitral colectivo ficou, nesses termos, constituídos pelos ora signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportunamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.ºs 4 e 5, do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 5 de março de 2018.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.
3. Foi realizada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e houve lugar à produção da prova testemunhal indicada pela Requerente.
As partes apresentaram alegações escritas por prazo sucessivo em que analisaram a matéria de facto e reiteraram as suas anteriores posições.
Cabe apreciar e decidir.
II -Fundamentação
Matéria de facto
4. A matéria de facto relevante para a decisão da causa é a seguinte:
a) Requerente foi alvo de uma inspeção externa incidente sobre o IRC, na sequência da Ordem de Serviço Externa n.º 0I2016... cujo procedimento se iniciou no dia 4 de agosto de 2016;
b) No Relatório de Inspeção Tributária propôs-se uma correção ao lucro tributável de € 20.938.689,00 que originou a liquidação adicional de IRC do exercício económico de 2012, com o n.º 2016..., datada de 14 novembro de 2016, e respetivas liquidações de juros sob os n.ºs 2016..., 2016... e 2016..., da mesma data, no montante global de € 7.221.619,35;
c) Em 11 de abril de 2017, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra os actos tributários de liquidação que não foi objecto de decisão no prazo legalmente previsto;
d) As correcções à matéria colectável resultantes da inspeção tributária referem-se a rendimentos não relevados respeitantes a juros de mora debitados a clientes por atrasos no pagamento, rendimentos não relevados relativos a contratos de construção plurianuais em função do grau de acabamento e desconsideração de gastos por perdas por imparidade;
e) No exercício de 2012, a Requerente emitiu notas de débitos de juros de mora por atraso no pagamento de facturas em relação a diversos clientes, no montante total de € 3.850.087,52;
f) Esses débitos não foram declarados como rendimento tributável referente a esse período, tendo sido incluídos na conta 2829 como constituindo proveitos diferidos;
g) A Requerente emite as notas de débito como forma de pressão relativamente aos clientes incumpridores e em diversas situações anula os débitos quando em negociações posteriores acorda com os clientes a efectiva cobrança das facturas;
h) Em 2012, a Requerente contabilizou como rendimentos tributáveis juros que haviam sido debitados em 2011 e que apenas foram cobrados no decurso daquele ano;
i) A Administração Tributária não questionou em relação aos exercícios anteriores a 2012 o procedimento utilizado pelo sujeito passivo de não considerar como rendimentos do exercício os juros de mora faturados, deixando a inclusão no rendimento tributável para o momento ulterior em que o valor dos juros debitados é efetivamente recebido;
j) Em 2012, as obras CO 10/..., CO 11/..., CO 11/..., CO 11/... e CO 12/... tinham um grau de acabamento declarado de 78,67%, 45,99%, 22,58%, 25,73% e 55,85%, respectivamente;
l) De acordo com os autos de medição, o grau de acabamento dessas obras era de 98,70%, 120,45%, 67,55%, 88,27% e 98,80, respectivamente;
m) No que se refere aos contratos de construção, a Administração Tributária efectuou uma correcção ao rendimento tributável, no montante de € 3.578.833,94, por considerar que a percentagem de acabamento declarada não corresponde ao grau de acabamento evidenciado pelos autos de medição;
n) No exercício de 2012, a Administração Tributária procedeu à correcção do rendimento tributável por desconsideração de gastos por perdas por imparidade, no montante global de € 13.826.093,34, relativamente aos seguintes clientes: F..., Lda. (€ 25.036,05), H..., SA (€ 177.719,07), G..., S.A. (€ 119.371,38), B... (€ 4.885.483,16), C..., S. A. (€ 4.880.171,49);
o) A Administração Tributária considerou não verificado o risco de incobrabilidade relativamente a essas empresas pelos seguintes motivos:
-F..., Lda.: é um cliente habitual que efectua regularmente pagamentos;
-H..., SA: é um cliente com uma relação comercial continuada que procedeu a pagamentos no decurso do ano de 2012 e a quem o sujeito passivo efectuou fornecimentos;
-G..., S.A: trata-se de sociedade anónima de capitais públicos relativamente à qual se não verifica o risco de incobrabilidade;
-B...,: não se verifica o requisito de incobrabilidade por pendência de acção judicial na medida em que a Requerente não é interveniente no processo;
-C..., S. A.: não se verifica o requisito de incobrabilidade por pendência de acção judicial visto que o processo em causa foi intentado pelos acionistas (incluindo a Requerente) contra o Município de E... e não contra a entidade devedora;
p) A Requerente fazia diligências de cobrança de dívidas através de funcionários próprios por fax ou telefone ou através de deslocação pessoal à sede das empresas devedoras.
q) A F..., Lda. estava envolvida construção de um hotel no Porto e em decorrência da crise em 2010 começou a ter dificuldades de recebimentos e de pagamento das suas dívidas;
r) A continuidade dos fornecimentos pela Requerente à F... era justificada para permitir à empresa a manutenção da sua actividade;
s) A H... estava envolvida na construção do centro comercial ..., obra que que foi suspensa por falta de pagamentos, só tendo sido retomada em 2013 depois do financiamento concedido pela I...;
t) A sociedade D..., S.A. intentou contra o Município de E... acção arbitral relativa aos contratos de empreitada de execução da rede de abastecimento de águas do município de E..., de que a B... era adjudicatária;
u) Os accionistas privados da C..., S.A., entre os quais se incluía a Requerente, intentaram acção arbitral contra o Município de E... para serem ressarcidos de gastos incorridos na execução de obras que constituíam o objecto social daquela sociedade;
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e os constantes do processo administrativo apresentado pela Autoridade Tributária com a sua resposta, bem como na prova testemunhal produzida.
II – Fundamentação
Questão prévia: suspensão da instância
5. A Autoridade Tributária requer a suspensão da instância arbitral, nos termos do disposto no artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, por considerar que as correcções negativas ao lucro tributável que estão em análise no processo arbitral, no tocante às perdas por imparidade, poderão ser influenciadas pela decisão a proferir em quatro processos de impugnação judicial que se encontram pendentes no Tribunal Administrativo e Fiscal de ..., referentes a anos económicos anteriores, entendendo assim que existe uma relação de prejudicialidade entre o presente processo e essas outras acções judiciais.
O citado artigo 272.º, subsidiariamente aplicável, determina no seu n.º 1 que “o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”, entendendo-se que se trata aí de um mero poder do juiz que poderá ser exercitado facultativamente de acordo com as circunstâncias do caso.
Ora, a suspensão da instância com fundamento na pendência de processos com idêntico objecto nos tribunais judiciais seria susceptível de pôr em causa, antes de mais, o princípio da celeridade processual, neutralizando o interesse da Requerente de ver solucionado em tempo côngruo, pelo recurso à arbitragem tributária, o litígio que a opõe à Administração Tributária. Sobretudo porque dificilmente se poderia prever quando se encontraria estabilizada, em termos definitivos, a situação jurídica em apreciação nas causas prejudiciais, de modo a permitir na causa subordinada uma decisão consentânea com o julgado precedente.
Por outro lado, a sistemática suspensão da instância por prejudicialidade em relação a outros processos já intentados em que se discute a mesma questão de direito, ainda que reportada a diferentes anos económicos, inviabilizaria na prática o direito à tutela jurisdicional efectiva, implicando que o interessado ficasse impedido de obter uma apreciação jurisdicional autónoma em relação a cada das diferentes pretensões judiciárias que tenha suscitado.
E, de todo modo, estando em causa a correcção de rendimento tributável por perdas por imparidade, nada obsta que a questão de direito subjacente possa ser decidida em termos divergentes de acordo com a factualidade que, em cada caso, venha a ser apurada, sem que se verifique uma necessária dependência entre as sucessivas pronúncias judiciais.
Cabe por fim recordar que, em caso de julgado anulatório, será sempre possível à Administração Tributária proceder à prática dos actos e operações necessários à reconstituição da situação jurídica violada, promovendo as correcções à matéria colectável que se tornem justificáveis para dar execução à sentença que venha a ser proferida quer no âmbito do presente processo arbitral quer no âmbito de qualquer dos processos judiciais ainda pendentes.
Não motivo, por conseguinte, para que se determine a pretendida suspensão da instância.
Questões de fundo
Débitos de juros de mora
6. A primeira questão que vem colocada refere-se a juros de mora por atraso no pagamento de facturas, em relação a diversos clientes, que a Requerente não contabilizou como rendimento tributável no exercício económico correspondente à data do lançamento da nota de débito, mas como crédito na conta de “proveitos diferidos”, com base no entendimento de que os juros moratórios apenas relevariam como rendimento quando aceites pelos clientes, o que apenas aconteceria pelo seu efectivo recebimento.
A Administração Tributária entende que esse procedimento contabilístico viola o princípio da especialização económica dos exercícios (hoje, periodização do lucro tributável) a que se refere o artigo 18.º, n.º 1, do Código de IRC.
O referido artigo 18.º do Código do IRC, na parte que mais interessa considerar, dispõe o seguinte:
1 - Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.
2 – As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.
(…).
Consigna o n.º 1 o princípio contabilístico da especialização económica dos exercícios, que consiste em incluir nos resultados fiscais os proveitos e custos (hoje, rendimentos e ganhos) correspondentes a cada ano económico, independentemente do seu efectivo recebimento ou pagamento. O n.º 2 permite que proveitos ou custos respeitantes a exercícios anteriores sejam imputáveis a um outro exercício apenas quando à data do encerramento das contas daquele eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos.
Trata-se de um critério contabilístico que reflecte o princípio da periodização anual do imposto e que significa que o custo ou proveito está tendencialmente associado ao momento da emissão do documento de suporte.
No caso vertente, tem-se como provado que a Requerente emitiu notas de débitos de juros de mora por atraso no pagamento de facturas, no exercício de 2012, que não foram declarados como rendimento tributável relativamente a esse período, e lançados contabilisticamente como rendimentos diferidos. Tem-se ainda como assente que esse procedimento é utilizado como forma de pressão relativamente aos clientes que se encontram em incumprimento e que, por vezes, esses débitos acabam por ser anulados com base no entendimento de que os juros moratórios apenas relevariam como rendimento quando aceites pelos clientes, o que, no entender da Requerente, apenas aconteceria com o pagamento. Ficou ainda demonstrado que a Requerente contabilizou como rendimentos tributáveis, no ano de 2012, juros que haviam sido debitados em 2011 e que a Administração Tributária não questionou nos exercícios anteriores a 2012 o procedimento utilizado pelo sujeito passivo de diferimento dos juros de mora para o momento do seu efectivo recebimento.
Como tem sido reconhecido pela jurisprudência, nem sempre se justifica interpretar o princípio da periodização a que se refere o falado artigo 18.º do Código de IRC em sentido estritamente literal, especialmente quando da imputação do proveito ou custo a um exercício diverso daquele a que respeitava não resultar prejuízo para a Fazenda Nacional e a correcção poder vir a traduzir-se num agravamento fiscal do contribuinte.
Como se afirma no acórdão do STA de 13 de outubro de 1996 (Processo n.º 20404), sem pôr em causa a relevância fiscal do princípio da especialização dos exercícios, é de admitir a imputação de custos a outros exercícios económicos, quando ela não tenha resultado de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios, como é o caso em que está prestes a acabar ou iniciar um período de isenção, quando há interesse em reduzir prejuízos de determinado exercício ou retirar benefícios do seu reporte e quando se pretende reduzir o montante dos lucros tributários. O mesmo princípio pode entender-se aplicável à imputação de ganhos.
Não parece, contudo, que este entendimento jurisprudencial - que permite articular o princípio da especialização de exercícios com o princípio da justiça - tenha relevância para o caso.
Havendo uma obrigação de juros moratórios, o correspondente rendimento deve ser imputado ao período de tributação em que foi lançada a nota de débito, independentemente do seu recebimento. Alega, contudo, a Requerente que, de acordo com a prática que tem vindo a adoptar, os juros de mora debitados no decurso de 2012 poderão não corresponder a rendimentos efectivamente percebidos, como sucederá quando tenham sido anuladas as notas de débito, e, noutros casos, poderá tratar-se de réditos que se destinam a ser incluídos nos anos económicos subsequentes em que venham a ser objecto de efectiva cobrança. Tratando-se esse de um procedimento habitual que se destina a funcionar como meio de pressão em relação aos clientes que se encontram em incumprimento, a Requerente conclui que o diferimento dos rendimentos não constitui uma omissão voluntária e intencional que tenha em vista manipular rendimentos e operar a transferência de resultados entre os exercícios.
O ponto é que a aplicação do critério de periodização dos rendimentos não pode ficar dependente de decisões de gestão empresarial que a Administração Tributária não pode controlar. A periodização do rendimento tributável permite definir o momento em que o rendimento deve ser efectivamente levado à tributação e destina-se a facilitar a obtenção de informação, não só por parte do Estado, mas também das empresas, que poderão calcular os seus custos e proveitos, numa base anual, para efeitos financeiros e fiscais. Apesar da maior flexibilidade do princípio da periodização no direito contabilístico quanto ao momento do reconhecimento dos réditos (cfr. nomeadamente, parágrafos 18 e 22 da NCRF 20), o certo é que tal não pode justificar, no plano fiscal, o uso de um critério aleatório em que a imputação dos gastos ou dos proveitos a um certo ano económico é determinada com base em meras opções de gestão do empresário.
Como antes se anotou, o princípio da periodização dos rendimentos, em IRC, pode ser flexibilizado, em certas circunstâncias, por razões de justiça material. Mas não é essa a situação do caso. Se o sujeito passivo entende que deverá prescindir da cobrança dos juros de mora debitados a certos clientes, os montantes correspondentes poderão ser levados a custos no ano económico em que perdeu a vantagem patrimonial. Não há aí um qualquer agravamento fiscal ou a desconsideração de proveitos de que o contribuinte deixou de beneficiar. O que sucede é que os rendimentos e os custos são imputados aos anos económicos em que contabilisticamente foram obtidos ou suportados.
A Requerente alega ainda, a título subsidiário, que, tendo a Administração Tributária questionado em relação ao ano de 2012, pela primeira vez, a prática de diferimento dos rendimentos respeitantes a juros de mora, então haveria que corrigir o rendimento tributável mediante a dedução dos valores reconhecidos como rendimento em 2012, mas que correspondem a montantes debitados nos anos anteriores.
Em primeiro lugar, haverá que assinalar estarmos perante uma situação de diferimento do momento do pagamento de imposto, ou seja, algo de que a Requerente retirou vantagem, pelo que a iniciativa de uma tal correção apenas poderia incumbir, logicamente, à Administração Tributária. Acresce que a aplicação do princípio de justiça em matéria de periodização do rendimento tributável, atrás referido, sempre obstaculizaria a uma tal correção, na medida em que esta resultaria na “transferência” de rendimentos para exercícios em relação aos quais já se operou a caducidade do direito à liquidação
Mais, encontrando-se o objecto do processo arbitral delimitado pela liquidação adicional referente ao exercício de 2012, não cabe ao tribunal pronunciar-se sobre actos tributários relativos a exercícios anteriores, nem poderá fazer relevar na apreciação do presente pedido as incidências de liquidação pretérita que está coberta pelo caso decidido.
Por tudo, o pedido mostra-se ser, nesta parte, improcedente.
Contratos de construção – grau de acabamento
7. A Administração Tributária determinou a correção do lucro tributável referente a um conjunto de obras de construção de natureza plurianual em relação ao ano de 2012 por considerar existir um desfasamento entre a percentagem de acabamento declarada com base na proporção entre os gastos incorridos e os gastos estimados e o grau de execução da obra revelada pelos autos de medição, sendo que a divergência em causa é a que resulta das alíneas j) e l) da matéria facto tida como assente.
A questão prende-se com o princípio da periodização do rendimento a que se refere o artigo 18.º do Código de IRC e o critério específico de determinação dos resultados de contratos de construção fixado no subsequente artigo 19.º
O artigo 18.º, n.º 1, estabelece o princípio pelo qual “os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica”, e, para esse efeito, a alínea c) do n.º 3 desse artigo especifica que “os réditos e os gastos de contratos de construção devem ser periodizados tendo em consideração o disposto no artigo 19.º”.
Esse artigo 19.º, aplicável à tributação e periodização do lucro tributável dos contratos de construção plurianuais, na redacção vigente à data dos factos, estabelecia o seguinte:
1 - A determinação dos resultados de contratos de construção cujo ciclo de produção ou tempo de execução seja superior a um ano é efetuada segundo o critério da percentagem de acabamento.
2 – Para efeitos do disposto no número anterior, a percentagem de acabamento final de cada período de tributação corresponde à proporção entre os gastos suportados até essa data e a soma desses gastos com os estimados para a conclusão da obra.
(…).
Como resulta do transcrito n.º 2, a solução da lei fiscal assenta na determinação da percentagem de acabamento através da proporção entre os gastos suportados até à data do balanço e a soma desses gastos com os estimados para a conclusão do contrato, tomando uma clara opção entre os possíveis métodos de periodização do rendimento dos contratos de construção que constam da Norma Contabilística e de Relato Financeiro (NCRF).
A regra contabilística, reconhecendo a dificuldade de imputação dos réditos e dos custos do contrato aos períodos contabilísticos em que o trabalho de construção se encontre a ser executado (NCRF 19, parágrafo 1), aponta para três possíveis métodos da determinação da percentagem de acabamento nos contratos de construção: a) a proporção entre os custos do contrato incorridos no trabalho executado e os custos estimados totais do contrato; b) levantamento do trabalho executado; c) a proporção física do trabalho contratado (NCRF 19, parágrafo 30).
E, como se viu, a norma do artigo 19.º, n.º 2, do Código do IRC, ao estipular, para a determinação dos rendimentos dos contratos de construção, uma regra baseada na percentagem de acabamento reportada aos custos incorridos e estimados, manifesta preferência por um dos critérios admissíveis no plano da contabilidade, afastando a possibilidade de a correcção do resultado líquido ser efectuada através da percentagem física do acabamento que possa ser revelada por autos de medição ou qualquer outra forma de inspeção ao local da obra.
No caso em análise, como resulta do Relatório de Inspeção Tributária, a Administração Tributária verificou uma divergência entre o grau de acabamento declarado pelo sujeito passivo e o valor do trabalho executado com base nos três seguintes factores: i) em relação a um conjunto de obras o gasto estimado é idêntico ao valor total adjudicado; ii) para as cinco obras em causa, os autos de medição revelam, em 2012, um grau de acabamento significativamente diferente para mais; iii) em visita física aos locais de duas obras, obtiveram-se evidências de que estas já se encontravam concluídas em 2013, mas continuavam em 2015 com um grau de acabamento de cerca de 50%. Com esses fundamentos, a Administração Tributária determinou a correcção ao rendimento tributável, no montante de € 3.578.833,94, por considerar que o grau de acabamento declarado era inferior à percentagem de execução das obras, pretendendo, desse modo, imputar ao período de 2012 rendimentos que já tinham sido realizados mas não tinham sido ainda objecto de tributação.
Deve começar por fazer-se notar que a aferição do grau de acabamento por inspeção ao local não tem relevo para o caso, visto que o Relatório de Inspeção Tributária se refere a um grau de acabamento reportado a 2013 e, por conseguinte, a um exercício económico posterior àquele que está sob escrutínio no presente processo. E, assim sendo, os motivos determinantes da correcção do lucro tributável assentam, por exclusão, na constatação de um desfasamento entre a percentagem de acabamento declarada e a percentagem de acabamento executada que é revelado pelos autos de medição e, aparentemente, confirmado pelo argumento adicional de, em alguns casos, o gasto estimado da obra corresponder ao total do valor adjudicado.
Esta última circunstância não se encontra comprovada pelos elementos dos autos, e, especialmente, pelo quadro constante do anexo 6 do Relatório de Inspeção Tributária, que é reproduzido a fls. 16 desse Relatório. Em qualquer caso, a demonstração, por via da incoerência dos dados contabilísticos ou dos resultados dos autos de medição, da existência de um desfasamento entre a percentagem de acabamento declarada e a percentagem de acabamento executada, não é, por si, justificativa da correcção do rendimento tributável.
Como se deixou esclarecido, o critério de determinação do rendimento tributável a que haverá de atender-se, nos termos do falado artigo 19.º, n.º 2, do Código do IRC, não é o da percentagem de execução da obra em termos físicos, mas o de percentagem de acabamento em termos contabilísticos, em função dos custos suportados até ao final do período de tributação e os custos estimados até à conclusão da obra. O que significa que a Administração Tributária teria de transpor a realidade evidenciada pelos autos de medição para a fórmula contabilística que é enunciada pela lei, de modo a estabelecer por essa via o grau de acabamento de obra a considerar para efeitos fiscais.
Certo é que, ao invocar o desfasamento existente entre o grau de acabamento definido com base nos registos contabilísticos e o grau de acabamento revelado pelos autos de medição, a Administração põe em causa a presunção de veracidade dos dados e apuramentos constantes da contabilidade, implicando que recaia sobre o sujeito passivo o ónus da prova dos factos que constam da escrita (artigo 75.º, n.º 1, e n.º 2, alínea a)).
O ponto é que, apesar disso, a Administração não poderia substituir o critério legalmente definido, para apurar o grau de acabamento, por um outro que assente no levantamento de execução da obra – e que, como tal, se baseie unicamente nos autos de medição -, havendo antes de apurar o rendimento tributável através do critério legal aplicável, que, como vimos, se baseia no cálculo contabilístico dos gastos incorridos e dos gastos estimados (neste sentido, o acórdão arbitral proferido no Processo n.º 724/2016-T, que se pronunciou sobre um caso similar).
O acto tributário de liquidação viola, por conseguinte, o disposto no artigo 19.º, n.º 2, do Código de IRC.
Perdas por imparidade
8. Coloca-se ainda a questão da desconsideração de gastos por perdas por imparidade em relação a diversas empresas relativamente às quais a Administração Tributária considerou não verificado o risco de incobrabilidade. A não aceitação fiscal dos gastos ficou a dever-se, no caso, a diversas ordens de razões: manutenção de uma relação comercial continuada com a Requerente (F..., Lda./H..., SA); qualificação jurídica da entidade devedora como empresa de capitais exclusivamente públicos (G..., S.A); inaplicabilidade do critério de reclamação judicial do crédito a que se refere o artigo 36.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRC (B.../C..., S. A).
O regime legal aplicável resulta das disposições conjugadas dos artigos 35.º e 36.º do Código do IRC.
Dispunha o artigo 35º, nº 1, alínea a), do Código do IRC, na redação em vigor à data dos fatos, que podem ser deduzidas para efeitos fiscais as perdas por imparidade contabilizadas no mesmo período de tributação ou períodos de tributação anteriores “relacionadas com créditos resultantes da atividade normal que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade”.
Para efeitos de determinação das perdas de imparidade previstas nesse dispositivo, o subsequente artigo 36.º, na parte que mais interessa considerar, dispunha o seguinte:
1 - Para efeitos de IRC são créditos de cobrança duvidosa aqueles em que o risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado, o que se verifica nos seguintes casos:
a) Quando o devedor tenha pendente processo de execução, processo de insolvência, processo especial de revitalização ou procedimento de recuperação de empresas por via extrajudicial;
b) Quando os créditos tenham sido reclamados judicialmente ou em tribunal arbitral;
c) Quando os créditos estejam em mora há mais de 6 meses desde a data do respectivo vencimento e existam provas objectivas de imparidade e de terem sido efectuadas diligências para o seu recebimento.
(…)
3. Não são considerados créditos de cobrança duvidosa:
a) Créditos sobre o Estado, regiões autónomas, autarquias e entidades públicas em geral ou créditos em que estas tenham prestado aval;
b) Créditos cobertos por seguro;
c) Créditos sobre pessoas singulares ou colectivas que detenham, directa ou indirectamente, mais de 10% do capital;
d) Participadas detidas, directa ou indirectamente, em mais de 10% do capital”
No caso vertente, está essencialmente em causa o critério de incobrabilidade vertido nas alíneas b) e c) do n.º 1 e na alínea a) do n.º 3 do artigo 36.º. Nos termos da referida alínea b) do n.º 1, considera-se devidamente justificado o risco de incobrabilidade quando os créditos tenham sido reclamados judicialmente ou em tribunal arbitral, e segundo o disposto na alínea c) desse número, haverá de comprovar-se que existem créditos em mora há mais de mais de 6 meses e existem provas objetivas de imparidade e de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento. Por sua vez, a alínea a) do n.º 3 desconsidera como créditos de cobrança duvidosa, em especial, os créditos sobre o Estado, regiões autónomas, autarquias e entidades públicas em geral.
Como se vê, para que as perdas por imparidade possam ser aceites como gastos fiscais terão que estar contabilizadas e respeitarem a créditos de cobrança duvidosa como tal evidenciados na contabilidade, sendo que o n.º 1 do artigo 36.º elenca diversas situações indiciárias de incobrabilidade, ao passo que o n.º 3 identifica outras situações em que é afastado o risco de incobrabilidade.
Preliminarmente, cumpre ainda sublinhar que é ao sujeito passivo que cabe avaliar, ao decidir a constituição de imparidades, se o risco de incobrabilidade é normal, ou se, em determinado momento, se tornou excessivo. De todo o modo, não compete à Administração Tributária sobrepor ao empresário o seu critério de avaliação do risco, mas unicamente aferir se em atenção aos factos considerados a decisão se mostra razoável e suficientemente fundamentada.
No caso, está provado que a Requerente fazia diligências de cobrança de dívidas através de trabalhadores próprios por fax ou telefone ou através de deslocação pessoal à sede das empresas devedoras.
Para além disso, e relativamente ao primeiro grupo de clientes, tem-se como assente que a empresa F... estava envolvida na construção de uma unidade hoteleira no Porto e deparou-se com dificuldades financeiras em resultado da suspensão de pagamentos dos trabalhos executados, e a empresa H... estava igualmente envolvida na construção do centro comercial, obra que veio a ser suspensa por falta de pagamentos e foi retomada apenas em 2013.
O argumento invocado pela Autoridade Tributária para desconsiderar fiscalmente as perdas por imparidade, nesse caso, centra-se na manutenção das relações comerciais com os clientes por via da regularidade da efectuação de fornecimentos e de pagamentos parciais dos montantes em dívida.
Todavia, a manutenção de relações comerciais com devedores em situação de mora, bem como a assunção do risco de concessão de crédito aos clientes, constitui uma decisão de gestão empresarial em que a Administração Tributária não tem de interferir. O que releva, considerando o disposto no artigo 36.º, n.º 1, alínea c), é se os créditos se encontram em mora há mais de 6 meses e foram realizadas diligências para o recebimento das importâncias em dívida e ainda se existem provas objetivas de imparidade. Encontrando-se comprovados, no caso, os dois primeiros requisitos, cabe averiguar se subsistem provas objectivas de imparidade.
Nesse plano, tem particular relevo a NCRF 27 - Instrumentos financeiros –, aplicável por força do princípio da dependência parcial do apuramento do lucro tributável relativamente ao do lucro contabilístico, que descreve alguns dos indicadores que poderá justificar a decisão empresarial de imparidade.
Dispõe nos seguintes termos:
23 - À data de cada período de relato financeiro, uma entidade deve avaliar a imparidade de todos os ativos financeiros que não sejam mensurados ao justo valor através de resultados. Se existir uma evidência objetiva de imparidade, a entidade deve reconhecer uma perda por imparidade na demonstração de resultados.
24 - Evidência objectiva de que um activo financeiro ou um grupo de activos está em imparidade inclui dados observáveis que chamem a atenção ao detentor do activo sobre os seguintes eventos de perda:
(a) Significativa dificuldade financeira do emitente ou devedor;
(b) Quebra contratual, tal como não pagamento ou incumprimento no pagamento do juro ou amortização da dívida;
(c) O credor, por razões económicas ou legais relacionados com a dificuldade financeira do devedor, oferece ao devedor concessões que o credor de outro modo não consideraria;
(d) Torne-se provável que o devedor irá entrar em falência ou qualquer outra reorganização financeira;
(e) O desaparecimento de um mercado activo para o activo financeiro devido a dificuldades financeiras do devedor;
(f) Informação observável indicando que existe uma diminuição na mensuração da estimativa dos fluxos de caixa futuros de um grupo de activos financeiros desde o seu reconhecimento inicial, embora a diminuição não possa ser ainda identificada para um dado ativo financeiro individual do grupo, tal como sejam condições económicas nacionais, locais ou sectoriais adversas.
No caso, foram dados como assentes factos (alíneas q) e s) da matéria de facto) que evidenciam que as empresas em causa atravessaram uma significativa dificuldade financeira que poderá ser atribuída às condições económicas nacionais adversas, o que permite enquadrar a situação nas alíneas a) e f) do n.º 24 da NCRF 27. E, por outro lado, a manutenção da relação comercial com as empresas devedoras – que a Autoridade Tributária interpreta como um indício de inexistência de risco de incobrabilidade - pode ser vista, ao contrário, como uma evidência objectiva de imparidade enquadrável na alínea c) desse n.º 24 da norma contabilística, na medida em que revela o propósito por parte do credor de facilitar a relação comercial em razão da dificuldade financeira do devedor.
E, sendo assim, não há motivo para desconsiderar as perdas por imparidade nesses casos.
9. Uma outra questão que se coloca, neste âmbito, prende-se com a perda por imparidade respeitante a facturas que se encontram em dívida por parte da G..., S. A.
A este propósito, a Autoridade Tributária limita-se a afirmar que a G... é uma empresa de capitais exclusivamente públicos, relativamente à qual não podem considerar-se verificados os pressupostos do artigo 36.º do Código do IRC quanto ao risco de incobrabilidade, o que faz supor que a G... é tida como entidade equiparada ao Estado para efeitos do disposto no artigo 36.º, n.º 3, alínea a), do Código do IRC.
Ora, a G..., constituída pelo Decreto-Lei n.º 32/95, de 11 de fevereiro, e cujo regime jurídico se encontra actualmente definido no Decreto-Lei n.º 42/2007, de 22 de fevereiro, caracteriza-se como uma empresa pública, que se rege pela lei comercial e pelo regime do sector empresarial do Estado.
É justamente a circunstância de se tratar de uma entidade de natureza societária relativamente à qual o Estado exerce uma influência dominante em virtude, designadamente, da detenção da maioria do capital social, que determina sua qualificação como empresa pública. Uma empresa pública, apesar de exercer poderes de autoridade que lhe sejam especialmente atribuídos por diploma legal ou contrato de concessão, é constituída nos termos da lei comercial, dispõe de personalidade jurídica própria e está sujeita um regime de direito privado (artigos 14.º, n.º 1, e 22.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de outubro).
É assim a todos os títulos evidente que a G..., apesar de qualificada como empresa pública, é uma entidade sob a forma jurídica privada, não podendo confundir-se com o Estado, e, consequentemente, não pode considerar-se abrangida pela regra do artigo 36.º, n.º 3, alínea a), do Código do IRC. Pelo que os créditos que a Requerente disponha relativamente a essa entidade não podem deixar de ser incluídos no risco de incobrabilidade para efeitos de determinação das perdas de imparidade se se verificarem os requisitos gerais definidos na alínea c) do n.º 1 desse preceito.
Não questionando a Administração Tributária a verificação desses requisitos, visto que apenas invocou a circunstância de se tratar de empresa de capitais exclusivamente públicos, não há motivo para afastar, no caso, as perdas por imparidade declaradas.
10. Veem ainda discutidas as perdas de imparidade relativamente à B... e à C..., S. A, por ter sido entendido pela Administração Tributária que os créditos em causa se não enquadram no disposto no artigo 36.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC.
A justificação avançada pela Requerente para considerar verificada as imparidades é similar. Num caso, baseia-se na decisão proferida por tribunal arbitral num litígio que opôs a B... ao Município de E... que tinha por objecto vários contratos de empreitada de execução de abastecimento de água em que aquela entidade era adjudicatária. Noutro caso, as entidades que detinham parte do capital social da C..., S. A, entre as quais se incluía a Requerente, propuseram uma acção em tribunal arbitral contra o Município de E... para serem ressarcidas de danos resultantes do incumprimento contratual relativamente a obras de infraestrutura desportiva e cultural que constituíam o objecto da parceria público-privada.
No primeiro caso, a Requerente figurava como subempreiteira relativamente aos contratos que eram objecto do litígio. No segundo caso, a Requerente era acionista da C..., S. A e nessa qualidade interpôs a acção conjuntamente com outos accionistas.
A já transcrita norma do artigo 36.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC, então vigente, considerava como créditos de cobrança duvidosa aqueles que “tenham sido reclamados judicialmente ou em tribunal arbitral”. É pressuposto que a demanda judicial se refira aos próprios créditos que são objecto de perdas por imparidade e que a acção seja proposta contra a entidade devedora. É a própria circunstância de o credor se sentir na necessidade de deduzir uma pretensão judiciária contra o devedor, por incumprimento, que permite qualificar o crédito como sendo de cobrança duvidosa.
Não é esse o caso quando o meio processual é accionado, não contra o devedor, mas contra uma terceira entidade, pelo que a situação não pode considerar-se como enquadrada na falada norma do artigo 36.º, n.º 1, alínea b). Poderia a Requerente ter deduzido tais imparidades, pelo menos parcialmente, ao abrigo do disposto na alínea a) de tal norma, desde que verificados os seus demais pressupostos, mas o certo é que não o fez.
Juros compensatórios
9. A Requerente impugna igualmente a liquidação de juros compensatórios em relação a qualquer dos actos tributários de liquidação de IRC.
Nos termos do artigo 35.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, “são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária”.
Como tem sido entendimento corrente, os juros compensatórios devidos nos termos da referida disposição constituem uma reparação de natureza civil que se destina a indemnizar a Administração Tributária pela perda de disponibilidade de uma quantia que não foi liquidada atempadamente. Tratando-se de uma indemnização de natureza civil, ela só exigível se se verificar um nexo de causalidade entre a actuação do sujeito passivo e o atraso na liquidação e essa actuação possa ser censurável a título de dolo ou negligência.
Ora, no que se refere aos juros de mora, ficou demonstrado que o diferimento de juros de mora debitados por atraso no cumprimento constituía uma prática habitual do sujeito passivo que a Administração Tributária nunca tinha questionado em relação aos exercícios anteriores a 2012. O atraso na liquidação relativamente aos débitos de juros não pode, por conseguinte, ser imputável a erro censurável do sujeito passivo quando este se limitou a utilizar um procedimento contabilisticamente aceitável e que a Administração sempre tinha validado nos anos económicos anteriores.
A improcedência do pedido de pronúncia arbitral quanto a essa liquidação adicional não é determinante, por consequência, do reconhecimento do direito a juros compensatórios.
Por outro lado, não há lugar a juros compensatórios no que se refere ao grau de acabamento nos contratos de construção e às situações de perdas por imparidade em que a Requerente obteve vencimento.
III – Decisão
Termos em que se decide
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Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e anular o acto de liquidação adicional de IRC sob o n.º 2016 ... no decorrente das correções à matéria coletável relativas ao grau de acabamento de contratos de construção, no montante global de € 3.578.833,94, e a perdas por imparidade com referências às empresas F..., Lda., no montante de € 25.036,05, H..., SA, no montante de € 177.719,07, e G..., S.A, no montante de € 119.371,38;
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Consequentemente, julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e anular os actos de liquidação de juros compensatórios correspondentes, bem como o acto de liquidação de juros compensatórios referentes ao débito de juros de mora;
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Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral e confirmar o acto de liquidação adicional de IRC sob o n.º 2016 ... nos segmentos respeitantes a débitos de juros de mora, no montante global de € 3.850.087,52, e a perdas por imparidade com referências às empresas B..., no montante global de € 4.855.483,16, e C..., S. A., no montante global de € 4.880.171,49;
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Cabe à Administração Tributária, em cumprimento do disposto no artigo 24.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, rever, no necessário, as liquidações relativas a exercícios posteriores, anulando os rendimentos relativos às notas de débito objeto do presente processo que neles hajam sido considerados pela Requerente.
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Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e anular parcialmente o acto de indeferimento tácito da reclamação graciosa deduzida contra o acto tributário de liquidação adicional.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 7.221.619,35, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Notifique.
Lisboa, 17 de outubro de 2018
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O Árbitro vogal
Rui Duarte Morais
O Árbitro vogal
Henrique Fiúza