DECISÃO ARBITRAL
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RELATÓRIO
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A..., contribuinte n.º..., com domicílio fiscal na Rua..., ..., em Lisboa (“Requerente”), apresentou em 13/03/2018, pedido de pronúncia arbitral, na qualidade de incorporante, por fusão, da sociedade entretanto extinta B...–, S.A., contribuinte n.º..., que tinha sede na mesma morada, no qual peticiona a declaração de ilegalidade do acto de indeferimento dos procedimentos de reclamação graciosa n.º ...2017..., n.º ...2017... e n.º ...2017... e dos actos tributários de liquidação de Imposto Único Automóvel (IUC), referentes ao ano de 2017, no valor de € 10.202,84.
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O Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou, em 28/03/2018, como árbitro singular o signatário desta decisão.
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No dia 24/05/2018 ficou constituído o tribunal arbitral.
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Cumprindo-se o disposto no n.º 1 do artigo 17.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) foi a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) notificada, em 25/05/2018, para, querendo, apresentar resposta e solicitar a produção de prova adicional.
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Em 25/06/2018 a AT apresentou a resposta, acompanhada do respectivo processo administrativo.
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O tribunal arbitral em 04/07/2018 decidiu dispensar a realização da reunião a que n.º 1 do artigo 18.º do RJAT se refere, com fundamento no princípio da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo, convidando ambas as partes para, querendo, apresentarem alegações escritas facultativas e agendou a data para prolação da decisão final.
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A Requerente e a Requerida não apresentaram alegações escritas facultativas.
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SANEAMENTO
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.
As partes têm personalidade e capacidade judiciária e são legítimas, não ocorrendo vícios de patrocínio.
Não existem nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito e de que cumpra oficiosamente conhecer.
Verificam-se, consequentemente, as condições para ser proferida a decisão final.
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POSIÇÕES DAS PARTES
São duas as posições em confronto, a da Requerente, vertida no pedido de pronúncia arbitral e a da AT na sua resposta.
Em síntese, a Requerente alicerça a sua pretensão com base em que adquire viaturas novas aos importadores nacionais e celebra contratos de locação financeira e locação operacional dessas viaturas a favor de terceiros, sendo que após o termo dos contratos procede à transmissão da propriedade aos locatários ou a terceiros, pelo valor residual. Pelo que defende a ilegalidade das liquidações de IUC referentes a esses veículos, objecto de contratos de locação celebrados pela Requerente.
A Requerente alega, ainda, que nas datas da exigibilidade do IUC respeitante às viaturas em causa, já havia locado esses veículos a favor de terceiros, através de contratos de locação financeira ou contratos de locação operacional com promessa de compra e venda. Sustenta que os actos tributários em apreço assentam em erro sobre os seus pressupostos, na medida em já não era a proprietária dos respectivos veículos no momento em que se venceu a obrigação de liquidação dos respectivos IUC, apesar do registo automóvel indicar a Requerente como proprietária daqueles.
Doutro modo, sustenta a AT, em síntese, que em matéria de locação financeira e para efeitos da elisão do artigo 3.º do Código do IUC, forçoso é que os locadores financeiros (como a Requerente) cumpram a obrigação ínsita no artigo 19.º do Código do IUC para se exonerarem da obrigação de pagamento do imposto.
A AT alega, ainda, que o entendimento propugnado pela Requerente incorre não só de uma
enviesada leitura da letra da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o Código do IUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre ainda de uma interpretação
que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o Código do IUC.
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MATÉRIA DE FACTO
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FACTOS QUE SE CONSIDERAM PROVADOS
Em face dos documentos carreados para o processo, dá-se como provado que:
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Em 01/06/2016, na sequência de um processo de fusão transfronteiriça por incorporação de todas as B... –, S.A. na C..., S.A., bem como todas as responsabilidades legais.
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A C..., S.A. é uma sociedade com sede em França, que possui uma sucursal em Portugal – a A... .
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A B..., S.A. era uma instituição financeira que, no âmbito do seu objecto social, praticava operações permitidas aos bancos, com a excepção da recepção de depósitos, bem como celebrava com os seus clientes contratos de aluguer de longa duração, contratos de aluguer de curta duração e contratos de locação financeira de veículos automóveis.
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No âmbito da sua actividade comercial, a B..., S.A. celebrou contratos de natureza diversa com os seus clientes, entre os quais se destacam os contratos de aluguer de veículo sem condutor com promessa de compra e venda, contratos de locação financeira e contratos de financiamento.
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Após o termo destes contratos, por regra, a B..., S.A. procedeu à transmissão da propriedade das viaturas aos respectivos locatários ou a terceiros, por um valor residual.
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A B..., S.A. pagou voluntariamente o IUC relativo às viaturas identificadas nos quadros-resumo apresentados abaixo, tendo para o efeito, procedido à respectiva autoliquidação, através da emissão das respectivas notas de cobrança, as quais foram pagas.
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Não obstante ter procedido ao pagamento das notas de liquidação de IUC (€ 6.192,71 + € 981,34 + € 3.028,84, no total de € 10.202,84), a B..., S.A., apresentou em 18/10/2017, 20/10/2017 e em 15/11/2017, respectivamente, reclamações graciosas contra essas autoliquidações de IUC e respectivos juros compensatórios, as quais foram objecto de deferimento parcial por despacho do Exmo. Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa –..., em 22/11/2017 e em 15/12/2017, do Exmo. Chefe do Serviço de Finanças (SF) de Lisboa.
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FACTOS QUE NÃO SE CONSIDERAM PROVADOS
Não existem factos com relevo para a decisão que não tenham sido dados como provados.
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O DIREITO
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DA INCIDÊNCIA SUBJECTIVA DO IUC
De acordo com o disposto no artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC, na redacção aplicável, “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”.
Mais, nos termos do artigo 3.º, n.º 2 do Código do IUC, na redacção aplicável “são equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força de contrato de locação”.
Ora, o recurso ao registo automóvel como elemento estruturante do funcionamento deste imposto evidencia-se, de resto, ao longo de todo o Código do IUC.
Refira-se, ainda, o teor do artigo 6.º do Código do IUC, relativo à definição do facto gerador da obrigação de imposto, nos termos do qual, este “(…) é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional.”. [1]
Deste preceito, decorre igualmente que os veículos que não estejam, nem devam estar, sujeitos a registo em território português, apenas ficam sujeitos a este imposto se permanecerem no mesmo por um período superior a 183 dias. [2]
Trata-se, pois, de uma norma que, recorrendo ao elemento registal, estabelece, simultaneamente, o facto gerador do imposto e a respectiva conexão fiscal.
É, também, dos elementos do registo automóvel que se extrai o momento do início do período de tributação [3], bem como, de uma maneira geral, todos os elementos necessários à liquidação do imposto em causa, como é, designadamente, o caso da cilindrada, antiguidade da matrícula, tipo de combustível e nível de emissão de dióxido de carbono (CO2). [4]
Contudo, da dependência do regime de tributação do IUC em relação ao registo automóvel não se pode deixar de concluir, que a norma de incidência subjectiva na parte em que considera como proprietário a pessoa em nome do qual o veículo se encontre registado constitui uma mera presunção (legal) de incidência.
Importa, pois, recorrer a outros elementos interpretativos, em especial, à respectiva noção legal.
Atendendo ao teor literal do artigo 3.º do Código do IUC, na redacção aplicável, importa analisar, em especial, a expressão “considerando-se como tais”, em especial na perspectiva do disposto no artigo 9.º, n.º 2 do Código Civil, quando estabelece não poder ser compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo que não tenha na respectiva letra um mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expresso.
É certo que o texto não se socorreu do termo “presumem-se”, ao contrário do que constava do extinto Regulamento do Imposto Sobre Veículos. [5]
Poderá o facto de o legislador ter optado pela expressão “considerando-se” inviabilizar a possibilidade de estarmos perante uma presunção legal?
Ora, examinando o ordenamento jurídico português, encontramos diversos exemplos de normas que consagram presunções utilizando o verbo “considerar”, muitas das quais empregues no gerúndio (“considerando” ou mesmo “considerando-se”).
São disso exemplo as normas a seguir apresentadas. No Código Civil, entre outras, os artigos 314.º, 369.º, n.º 2, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 2 e 1629.º. Já no Código da Propriedade Industrial, a título meramente exemplificativo, o artigo 98.º onde também o termo “considerando” é usado num contexto presuntivo.
Também no ordenamento jurídico tributário podemos encontrar o verbo “considerar” com um sentido presuntivo.
Segundo Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, na anotação ao artigo 73.º, n.º 3 da Lei Geral Tributária (LGT) “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, revelada pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”, dando de seguida alguns exemplos de normas em que é utilizado o verbo “considerar” como é, designadamente, o caso do artigo 21.º, n.º 2 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), ao estabelecer que “para efeitos de determinação do lucro tributável, considera-se como valor de aquisição dos incrementos patrimoniais obtidos a título gratuito o seu valor de mercado não podendo ser inferior ao que resultar da aplicação das regras de determinação do valor tributável previstas no Código do Imposto do Selo”.
Sustentam os autores, a propósito deste artigo 21.º, n.º 2 do Código do IRC que “para além de esta norma evidenciar que o que está em causa em sede de tributação de mais-valias é apurar o valor real (o de mercado), a limitação ao apuramento do valor real derivada das regras de determinação do valor tributável previstas no CIS não poder deixar de ser considerada como uma presunção em matéria de incidência, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73.º da LGT”. [6]
Pode, ainda, referir-se a este propósito, o disposto no artigo 89-A.º, n.º 4 da LGT, no qual está, igualmente, consagrada uma presunção, sem que tenha sido usado o termo “presume-
-se”, mas sim “considera-se”. [7] [8]
Tendo em conta que o sistema jurídico deve formar um todo coerente, os exemplos acima referidos, acompanhados da doutrina e jurisprudência indicadas, por apelo ao elemento sistemático, permitem concluir que não é só quando é usado o verbo “presumir” que estamos perante uma presunção, mas também o uso de outros termos ou expressões podem, igualmente, servir de base a presunções, nomeadamente o termo “considera-se”, mostrando-se desta forma cumprida a condição estabelecida no artigo 9.º, n.º 2 do Código Civil.
Se é certo, porém, que o elemento literal, por si só, não pode ser considerado inteiramente decisivo, quando acompanhado de outros elementos é bastante relevante e indicador do verdadeiro sentido da norma em análise, apontando para que a expressão “considerando-se como tais” seja equivalente à expressão “presumindo-se como tais”.
Socorramo-nos, agora, do elemento racional ou teleológico o qual se reveste da maior importância para determinar o sentido da norma em apreço.
Sob a epígrafe “princípio da equivalência” estabelece o artigo 1.º do Código do IUC que “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.
A respeito da noção do princípio da equivalência defende Sérgio Vasques que “Em obediência ao princípio da equivalência, o imposto deve ser conformado em atenção ao benefício que o contribuinte retira da actividade pública, ou em atenção ao custo que imputa à comunidade pela sua própria actividade” [sublinhado nosso]. [9]
Prossegue, ainda, o autor, sustentando que “(…) um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também. Logo pelo que se diz se percebe que a concretização do princípio da equivalência dita especiais exigências no tocante ao desenho da matéria colectável e à estrutura das taxas”. [10]
Por outro lado, “Quando um tributo se prefigure como a contrapartida do custo provocado por um grupo determinado de contribuintes, há que buscar junto dos mesmos os indícios desse custo. Assim, no âmbito do imposto único de circulação, instituído pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho, a definição da base tributável e a estrutura de taxas está voltada também para uma regra de equivalência, pretendendo-se «procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária». E por isso, o Código do IUC toma como elementos fundamentais, na fixação das respectivas taxas, a cilindrada e o nível de emissões de CO2 dos veículos ligeiros, ou o peso bruto, número de eixos, tipo de suspensão e antiguidade dos veículos pesados, buscando, em vez da capacidade contributiva, a «capacidade contaminante» de cada veículo.” [sublinhado nosso]. [11]
Ora, no que ao desenho da matéria colectável e à estrutura das taxas diz respeito, aponta, ainda, Sérgio Vasques que “(…) no contexto da reforma do imposto automóvel (…), se sugere a delimitação da base de incidência e a fixação das taxas não apenas em função da cilindrada, mas em função também do peso dos veículos, do potencial poluidor e dos níveis de segurança apresentados. O novo imposto de circulação que se propõe afirma-se ter a mesma filosofia de base que os impostos de circulação e camionagem: destina-se a compensar o direito de circular na via pública, isto é, os efeitos nefastos resultantes da circulação de veículos” [sublinhado nosso]. [12]
Atentemos, por momentos, na exposição de motivos que acompanhou a Proposta de Lei n.º 118/X, de 1 de Março de 2007, a qual deu origem à Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho, que aprovou o Código do Imposto sobre Veículos e o Código do IUC.
Com efeito, na mencionada exposição de motivos, é referido que “A reforma a que a presente proposta dá corpo resulta, portanto, da necessidade imperiosa de trazer clareza e coerência a esta área do sistema fiscal e da necessidade, mais imperiosa ainda, de subordiná-la aos princípios e preocupações de ordem ambiental e energética que hoje em dia marcam a discussão da tributação automóvel”.
Ainda de acordo com a referida Proposta de Lei, ambos os impostos “constituem algo diferente, figuras já do século em que vivemos, com as quais se pretende, com certeza, angariar receita pública, mas angariá-la na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade”.
E este desígnio (de angariar receita pública na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade) encontra-se, de resto, bem vincado no Anexo II da referida Proposta de Lei quando, no que respeita especificamente ao Código do IUC, é afirmado “(…) como elemento estruturante e unificador (…) consagra-se o princípio da equivalência, deixando assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária”.
Assim, e no que ao princípio da equivalência diz respeito, somos levados a concluir ser este um princípio estruturante do IUC.
Como é, aliás, referido na mencionada Proposta de Lei, os veículos devem, pois, ser tributados em função, nomeadamente, do seu potencial poluidor e dos níveis de segurança apresentados. [13]
Por todo o exposto e atendendo, por um lado, ao lugar sistemático que o princípio da equivalência ocupa no Código do IUC, ao elemento histórico corporizado na Proposta de Lei n.º 118/X, de 1 de Março de 2007 e, bem assim, ao elemento racional subjacente à reforma da tributação automóvel referido nos parágrafos anteriores, só faz sentido conceber a expressão “considerando-se como tais”, no contexto do artigo 3.º do Código do IUC, como reveladora da presença de uma presunção ilidível.
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DA NOÇÃO DE PRESUNÇÃO
À luz do disposto no artigo 349.º do Código Civil, as “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”.
As presunções constituem, pois, meios de prova, tendo esta por função a demonstração da realidade dos factos. [14]
Assim, quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que a ela conduz.[15]
Não obstante “as presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos em que a lei o proibir”. [16]
Como refere o Acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ, relativo ao Processo n.º 002663, “a presunção representa o juízo lógico pelo qual, argumentando segundo o vínculo de causalidade que liga uns com outros os acontecimentos naturais e humanos, podemos induzir a existência ou o modo de ser de um determinado facto que nos é desconhecido em consequência de outro facto ou factos que nos são conhecidos.”.
Prossegue o referido Acórdão que “as presunções legais são juris et de jure, quando não admitem prova em contrário; juris tantum, quando podem ser afastadas por prova que se lhes oponha. No primeiro caso, impede-se a prova em contrário; no segundo, inverte-se o ónus de prova.”.
Ora, “as presunções funcionam como modo de ultrapassar as dificuldades de prova, por se referirem, por exemplo, a factos que não se objectivam pela sua própria natureza, havendo uma aparência que merece protecção - oponibilidade a terceiro de acção de simulação registada, seja também quando é mais difícil de produzir para quem teria normalmente que suportar o ónus probatório (relevatio ab onere probandi).” [sublinhado nosso].
Conclui o STJ que “(…) as presunções juris tantum constituem a regra, sendo as presunções juris et de jure a excepção. Na dúvida, a presunção legal é juris tantum, por não se dever considerar, salvo referência da lei, que se pretendeu impedir a produção de provas em contrário, impondo uma verdade formal em detrimento do real provado.” [sublinhado nosso].
Tratando-se de presunções de incidência tributária, estas são sempre ilidíveis. [17]
Assim, não poderá deixar de entender-se que a expressão “considerando-se como tais” utilizada no artigo 3.º do Código do IUC, na redacção aplicável, configura uma presunção legal, a qual é ilidível, nos termos gerais e, em especial, por força do disposto no artigo 73.º da LGT.
Conforme referido anteriormente, as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.
Segundo José Maria Fernandes Pires (Coordenador), Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal e Maria João Menezes, em anotação ao artigo 73.º da LGT, “Quando respeitem a normas de incidência, as presunções são sempre relativas” [sublinhado nosso]. [18]
Ora, as presunções de incidência tributária podem ser ilididas através do procedimento contraditório próprio previsto no artigo 64.º do CPPT ou, em alternativa, por via da reclamação graciosa ou da impugnação judicial dos actos tributários que nelas se baseiem.
No caso em apreço, a Requerente não utilizou o referido procedimento próprio, pelo que o presente pedido de pronúncia arbitral consubstancia o meio próprio para ilidir a presunção de incidência subjectiva do IUC que suporta as liquidações tributárias cuja anulação constitui o objecto do presente pedido.
Assim, uma vez concluído que o artigo 3.º do Código do IUC, na redacção aplicável, consagra uma presunção ilidível, cumpre, ainda, analisar se esta presunção foi, ou não, efectivamente ilidida por parte da Requerente.
No caso em apreço, a Requerente produziu prova documental, tendo junto ao processo cópia de “contratos de aluguer de veículos sem condutor e promessa de compra e venda” e “contratos de locação financeira”.
Com efeito, não sendo questionada a validade formal dos contratos juntos pela Requerente, considera-se documentalmente provado que, à data da exigibilidade do imposto os veículos a que os mesmos se referem, sendo embora propriedade da Requerente, se encontravam por esta dados em regime de locação financeira ou de locação com opção de compra.
Assim, nas situações em que os veículos, à data da ocorrência do facto tributário, se encontrem cedidos aos locatários, ao abrigo de contratos de locação financeira ou outras locações que envolvam opção de compra, o sujeito passivo da obrigação de imposto não é o proprietário locador mas sim, nos termos artigo 3.º, n.º 2 do Código do IUC, o respectivo locatário, por ser quem tem o gozo do veículo. E tal se verifica independentemente do facto de ter ou não ter sido cumprido o disposto no artigo 19.º do Código do IUC e da circunstância de o registo de propriedade permanecer em nome do locador, sem que no mesmo tenha sido inscrito o contrato de locação.
Por todo o exposto, conclui-se não haver fundamento legal para os actos de liquidação de IUC e de juros compensatórios relativamente aos veículos e períodos identificados que, à data da exigibilidade do imposto, se encontravam cedidos aos respectivos locatários ao abrigo de contratos de locação financeira ou de locação com opção de compra.
Fica assim prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pela Requerente, por ter sido declarada a ilegalidade das liquidações supra identificadas, por vício substantivo que impede a renovação dos actos, assegurando-se eficazmente a tutela dos direitos da Requerente, de harmonia com o preceituado no artigo 124.º do CPPT. [19]
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DOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS
A par da anulação das liquidações, e consequente reembolso das importâncias indevidamente pagas, a Requerente solicita ainda que lhe seja reconhecido o direito aos juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT.
Com efeito, nos termos da norma do n.º 1 do referido artigo, são devidos juros indemnizatórios “quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”. Para além dos meios referidos na norma que se transcreve, entendemos que, conforme decorre do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral e, assim, se conhece do pedido.
O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT acima referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT. No presente caso, mostram-se preenchidas ambas as condições, constituindo-se, pois, a obrigação de juros indemnizatórios a favor do sujeito passivo, que assim se declara.
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DECISÃO
Nestes termos e com a fundamentação acima descrita, o tribunal arbitral decide:
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Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade dos actos tributários de liquidação de IUC, referentes ao ano de 2017; e
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Julgar procedente o pedido de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios.
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Condenar a AT a pagar as custas do presente processo.
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VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 10.202,84 (dez mil, duzentos e dois euros e oitenta e quatro cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
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CUSTAS
Custas a suportar pela AT, no montante de € 918 (novecentos e dezoito euros), nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos do n.º 2 do artigo 22.º do RJAT.
Notifique.
Lisboa, 26 de Novembro de 2018
O árbitro,
(Hélder Filipe Faustino)
Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 131.º, do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
[1] Cfr. artigo 6.º, n.º 1 do Código do IUC.
[2] Cfr. artigo 6.º, n.º 2 do Código do IUC.
[3] Cfr. artigo 4.º do Código do IUC.
[4] Cfr. artigos 7.º e 9.º do Código do IUC.
[5] De acordo com a redacção do então artigo 3.º, n.º 1 do Regulamento do Imposto Sobre Veículos (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/78, de 12 de Junho e revogado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho), “o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontram matriculados ou registados.” [sublinhado nosso].
[6] Cfr. “Lei Geral Tributária Comentada e Anotada”, pp. 651 e 652.
[7] Op. cit., anotações 7 e 12 aos artigos 75.º e 89-A.º da LGT, respectivamente, pp. 667 e 782, e, bem assim, os Acórdãos de 2 de Maio de 2012, Processo n.º 0381/12 e de 17 de Abril de 2013, Processo n.º 0433/13.
[8] Segundo José Maria Fernandes Pires (Coordenador), Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal e Maria João Menezes, “O rendimento padrão não coincide com o valor despendido, sendo determinado de acordo com uma presunção de rendimento, legalmente definida, tido por razoável face ao tipo e ao montante da despesa efectuada. No desenho legal deste n.º 4 do artigo 89.º-A o legislador não pretende tributar rigorosamente o valor despendido.” [sublinhado nosso], Op. cit., pág. 945.
[9] Cfr. “Os Impostos Especiais de Consumo”, Almedina, 2000, pág. 110 e segs.
[11] Cfr. Sérgio Vasques e Tânia Carvalhais Pereira, “Os Impostos Especiais de Consumo”, Almedina 2016, pág. 94 e segs.
[13] Vide Sérgio Vasques, Op. cit., pág. 124.
[14] Cfr. artigo 341.º do Código Civil.
[15] Cfr. artigo 350.º, n.º 1 do Código Civil.
[16] Cfr. artigo 350.º, n.º 2 do Código Civil.
[17] Cfr. artigo 73.º da LGT.
[18] Cfr. “Lei Geral Tributária Comentada e Anotada”, Almedina, 2015, pág. 810.
[19] Subsidiariamente aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.