DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
Acordam em tribunal arbitral
1. A..., S.A., pessoa colectiva n.º ..., apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º e segs. do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade do acto de liquidação de IRC n.º 2017 ... relativo ao exercício de 2012, na parte em que estabelece um adicional ao imposto no montante de € 5.637.538,95, bem como a legalidade do indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra esse acto tributário.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos.
O acto tributário impugnado pretende dar execução à decisão arbitral proferida no Processo n.º 191/2016-T, que julgou procedente o pedido de pronúncia arbitral aí formulado pela ora Requerente, e, em consequência, declarou parcialmente ilegal a liquidação nºs 2015..., referente ao ano de 2012, anulando-a na parte em que desconsiderou o crédito relativo ao Regime de Fiscal de Apoio ao Investimento no montante de € 5.637.538,95.
No entanto, a presente impugnação não tem por objecto a parte decisória que procede à execução do julgado, mas o segmento do acto que opera um aumento de imposto liquidado, no montante de € 5.637.538,95, que corresponde a uma liquidação adicional que, nessa parte, é susceptível de impugnação autónoma com base em vícios próprios.
A Requerente imputa a esse acto tributário de liquidação adicional o vício de caducidade do direito à liquidação, considerando que o facto gerador do imposto deve considerar-se reportado a 31 de Dezembro de 2012 (artigo 8.º, n.ºs 1 e 9, do Código do IRC) e o direito de liquidar os tributos caduca no prazo geral de quatro anos (artigo 45.º, n.ºs 1 e 4, da Lei Geral Tributária), que já se encontrava esgotado à data da prática do acto de liquidação, em 20 de Março de 2017, e da sua notificação, em 24 de Março de 2017.
Mas mesmo que se entendesse, seguindo a doutrina sufragada no acórdão proferido no Processo n.º 494/2016-T, que é aplicável o prazo para execução espontânea de decisões judiciais previsto no CPTA, o prazo para liquidação adicional de imposto também se encontraria transcorrido porquanto a decisão arbitral exequenda foi notificada em 12 de dezembro de 2016 e transitou em julgado em 27 de janeiro seguinte, pelo que o prazo de 30 dias para a execução espontânea terminou em 10 de março de 2017.
A interpretação normativa dos artigos 100.º da LGT e 175.º, n.º 3, do CPTA no sentido que a liquidação adicional de imposto pode ser efectuada sem limitação temporal será inconstitucional por violação do princípio do Estado de direito, previsto no artigo 2.º da Constituição, designadamente por violação do princípio da segurança jurídica.
O acto de liquidação em causa encontra-se ainda inquinado de vício de falta de fundamentação no ponto em que não pode considerar-se coberto pela decisão arbitral anulatória proferida no Processo n.º 494/2016-T e a Administração Tributária não explicita os fundamentos que justificam a decisão.
Além de que a prolação do acto tributário não foi precedido de audição prévia do interessado, incorrendo em preterição de formalidade essencial que é determinante de anulabilidade.
A Autoridade Tributária, na sua resposta, defende-se por exceção, invocando a incompetência material do tribunal arbitral para a apreciação de questões respeitantes à execução de julgado, atento o disposto no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, e também a incompetência material do tribunal arbitral para a apreciação do acto de rejeição liminar da reclamação graciosa, por considerar que o meio processual adequado para discutir a legalidade dessa decisão é a acção administrativa especial.
Quanto à matéria de fundo, a Autoridade Tributária sustenta que a liquidação controvertida é meramente correctiva e baseou-se nas conclusões do Relatório de Inspeção sobre o qual a Requerente se pronunciou em sede de audiência prévia, não carecendo o acto de liquidação de reproduzir esses fundamentos, mas indicar unicamente os elementos próprios da nota de cobrança. Além de que a Requerente teve oportunidade de participar no âmbito do procedimento inspectivo o que, por si só, concretiza o direito de audição, tal como se decidiu, em situação similar, na decisão arbitral proferida no Processo n.º 494/2016-T.
Quanto à caducidade do direito à liquidação, a Requerida invoca ainda o entendimento seguido na decisão arbitral proferida no Processo n.º 494/2016, considerando que, no âmbito da execução da decisão arbitral, a Administração não está condicionada pelos limites temporais definidos para a liquidação de tributos, mas antes pelos prazos aplicáveis no processo de execução de julgados, sendo que o prazo de execução espontânea, nos termos do artigo 175.º, n.ºs 1 e 3, do CPTA, é de 90 dias.
Conclui pela absolvição da instância, com base nas exceções invocadas, e, caso assim se não entenda, pela improcedência do pedido.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, os árbitros foram designados pelas partes, tendo cabido ao Conselho Deontológico a indicação do terceiro árbitro.
O tribunal arbitral colectivo ficou, nesses termos, constituídos pelos ora signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportunamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.ºs 4 e 5, do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 7 de junho de 2018.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
3. Não foi requerida a produção de prova testemunhal e, no prosseguimento do processo, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e ordenada a notificação das partes para alegações por prazo sucessivo.
Nas alegações, as partes reiteraram as suas anteriores posições.
Cabe apreciar e decidir.
II -Fundamentação
4. A matéria de facto relevante para a decisão da causa é a seguinte:
A) A Requerente foi notificada, em 24 de março de 2017, do acto de liquidação de IRC n.º 2017..., respeitante ao exercício de 2012, de que constam as seguintes referências:
Fundamentação
A liquidação efetuada corresponde à execução da decisão proferida no processo contencioso identificado, no âmbito do qual foi remetida a V. Exa. a respetiva fundamentação.
Notificação
Fica V. Exa. notificado(a) da liquidação de IRC relativa ao ano a que respeitam os rendimentos acima identificados - conforme nota demonstrativa - resultante da execução da decisão proferida no processo de Decisão Arbitral com o n.º 191/2016 T CAAD;
B) A decisão arbitral proferida no Processo n.º 191/2016-T decidiu julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, declarar parcialmente ilegal a liquidação nºs 2015..., referente ao ano de 2012, anulando-a na parte referente à desconsideração do crédito fiscal ao investimento resultante do Regime de Fiscal de Apoio ao Investimento de exercícios anteriores no total de € 5.637.538,95.
C) No n.º 12 da demonstração de liquidação, a Autoridade Tributária procede à correcção da importância correspondente à dedução de benefícios ficais à colecta do IRC de 2012 de € 22.204.077,84 para € 27.841.616,79.
D) No n.º 15 da demonstração da liquidação, a título de resultado da liquidação, foi fixada a importância corrigida de € 6.476.384,46
E) No n.º 15 da demonstração de liquidação de IRC sob n.º 2016..., que corresponde à liquidação de IRC inicial, referente ao exercício de 2012, foi apurado o montante de € 838.845,51;
F) Em 13 de julho de 2017, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra o acto de liquidação de IRC n.º 2017..., visando obter a anulação administrativa desse acto.
G) Em 23 de outubro de 2917, a Requerente foi notificada do projecto de indeferimento da reclamação graciosa para efeito de exercer o direito de audição.
H) Nesse projecto de decisão, vem referido que a Unidade de Grandes Contribuintes procedeu a execução da decisão arbitral proferida no Processo n.º 191/2016-T, tomando em consideração a limitação da dedução dos benefícios fiscais nos termos do disposto no artigo 92.º do Código de IRC;
I) Dá-se como reproduzido o quadro constante do ponto 33 do projecto de decisão de que consta as correcções introduzidas no apuramento do imposto;
J) A reclamação graciosa foi rejeitada liminarmente por despacho do Director do Serviço Central datado de 6 de novembro de 2017;
L) A rejeição liminar da reclamação graciosa teve por base o entendimento de que a liquidação impugnada é uma liquidação correctiva destinada a dar execução ao julgado na decisão arbitral proferida no Processo n.º 191/2016-T, da qual não cabe reclamação ou recurso administrativo;
M) A Requerente procedeu ao pagamento do imposto liquidado.
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e os constantes do processo administrativo apresentado pela Autoridade Tributária com a sua resposta.
Matéria de exceção
Incompetência material do tribunal arbitral para a apreciação de questões respeitantes à execução de julgado
5. A questão da competência suscitada pela Autoridade Tributária não pode deixar de ser analisada à luz do pedido arbitral tal como ele se encontra formulado no processo.
Na petição inicial, a Requerente sublinha reiteradamente que não pretende impugnar o acto de liquidação na parte em que procede à execução do julgado no âmbito do Processo n.º 191/2016-T que se reportava exclusivamente à desconsideração para efeitos da determinação da matéria colectável de benefício fiscal -, mas unicamente o segmento decisório desse acto que opera um aumento de imposto liquidado, no montante de € 5.637.538,95, e que é entendido como correspondendo a uma liquidação adicional.
Conforme resulta hoje do disposto no artigo 179.º, do CPTA, subsidiariamente aplicável em processo tributário, no âmbito da execução de sentenças de anulação de actos administrativos, cabe ao tribunal especificar, no respeito pelos espaços de valoração próprios do exercício da função administrativa, o conteúdo dos atos e operações a adotar para dar execução à sentença anulatória (n.º 1), e, sendo caso disso, declarar a nulidade dos atos desconformes com a sentença e anular os que mantenham, sem fundamento válido, a situação ilegal (n.º 2).
Deste modo, no actual regime de processo de execução de sentenças de anulação de actos administrativos, o objecto do processo não se limita à estrita observância do dever de executar o julgado, permitindo-se expressamente a formulação de pedidos que não têm a sua causa ou fundamento na decisão exequenda. Assim se compreende que o tribunal possa não apenas declarar a nulidade dos actos desconformes à sentença, mas também anular os actos que mantêm a situação ilegal, o que conduz a admitir, no âmbito da execução de julgado, a apreciação dos vícios subsequentes do acto renovado, que não decorrem da violação do caso julgado (neste sentido, o acórdão do TCA Sul de 12 de março de 2009, Processo n.º 2211/06).
Nesta última hipótese, o tribunal não se limita a dar cumprimento à determinação judicial contida na sentença exequenda, mas verifica a validade de actos praticados pela Administração que visam redefinir a situação jurídica com base em fundamentos diversos daqueles que foram analisados no processo declarativo.
A possibilidade que é reconhecida ao tribunal, no processo executivo, de apreciar novos actos que não são já caracterizáveis como actos de execução, mas como actos de uma diferente natureza, evidencia que as ilegalidades em que a Administração incorra, nesse circunstancialismo, não têm de ser necessariamente de ser sindicadas num processo autónomo de impugnação (Mário Aroso de Almeida/Carlos Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª edição, Coimbra, 2017, pág. 1305). Nada parece impedir, em todo o caso, como também tem sido reconhecido pela jurisprudência administrativa, que os actos administrativos não estritamente executivos, ainda que possam encontrar-se abrangidos pelo artigo 179.º, n.º 2, segunda parte, venham a ser objecto de impugnação autónoma, caso em que cabe ao interessado deduzir, não o competente processo de execução de julgados, mas um pedido de anulação contenciosa.
Note-se, para além disso, que a possibilidade de o tribunal “anular os [actos administrativos] que mantenham, sem fundamento válido, a situação ilegal”, nos termos do citado artigo 179.º, n.º 2, tem em vista as situações em que, na sequência da anulação, a Administração pratique um novo ato ilegal com o propósito ou, pelo menos, o alcance de se subtrair ao dever que se lhe imporia de reconstituir a situação de facto que deveria existir na ausência do ato anulado.
No entanto, esse não será o caso, quando se trate de uma situação de ilegalidade nova que não pode ser entendida como tendo visado obstar à execução do julgado. Essa outra hipótese – que foi analisada no acórdão do TCA Sul de 12 de março de 2015, Processo n.º 05144/09 – não cabe já no âmbito aplicativo do artigo 179.º, n.º 2, pelo que nenhum obstáculo se coloca quanto à possibilidade de o interessado lançar mão de uma acção declarativa que tenha em vista a impugnação autónoma desse acto.
É essa a situação do caso.
A Requerente alega que a Administração Tributária deu execução ao julgado no n.º 12 da liquidação ao proceder ao aumento da dedução à colecta de IRC de benefícios fiscais, relativamente ao exercício de 2012, e declara que não pretende pôr em causa o segmento decisório do acto de liquidação na parte em que se limita a dar execução à decisão arbitral. E torna claro que o objecto da impugnação deduzida perante o tribunal arbitral se refere ao n.º 15 da liquidação em que a Administração operou um aumento do imposto liquidado.
No pedido arbitral, a Requerente não invoca uma qualquer desconformidade entre a sentença exequenda e o acto de execução de julgado, nem pretende que seja praticada qualquer operação jurídica ou material de execução, nem alega que a nova liquidação mantém sem fundamento válido a situação jurídica que foi declarada ilegal. E alega que pretende apenas suscitar uma questão nova que não foi objecto de discussão na decisão arbitral proferida no Processo n.º 191/2016-T.
Como se impõe concluir, face aos termos em que foi deduzido o pedido, está em causa, não um mero pedido de execução de julgado, mas a declaração de ilegalidade de um acto de liquidação de tributos, que, como tal se encontra coberto pelo âmbito de competência dos tribunais arbitrais definido no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, pelo que nenhum motivo há para considerar verificada a invocada exceção da incompetência do tribunal.
Incompetência material do tribunal arbitral para a apreciação do acto de rejeição liminar da reclamação graciosa
6. A Autoridade Tributária invoca ainda a incompetência material do tribunal arbitral no que se refere ao indeferimento da reclamação graciosa, por considerar que, tendo sido a impugnação administrativa objecto de rejeição liminar, o meio processual próprio seria a acção administrativa especial, em aplicação do disposto no artigo 97.º, n.º 1, alínea p), do CPPT.
Aparentemente, a Requerida pretende referir-se à acção de condenação à prática de acto devido, regulada nos artigos 66.º e segs. do CPTA, que tem por objecto as situações de omissão ou recusa ilegal da prática de acto administrativo, e que, no domínio da reforma de contencioso administrativo de 2002, seguia a forma da acção administrativa especial.
Com a revisão de 2015, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, desapareceu a figura processual da acção administrativa especial e a única forma de processo declarativo aplicável quando não estejam em causa processos urgentes passou a ser a ação administrativa que inclui agora as pretensões materiais deduzidas em juízo que se reportam à prática ou omissão de ato administrativo ou à prática ou omissão de norma administrativa, que anteriormente correspondiam à forma da ação administrativa especial, a par daquelas que anteriormente correspondiam à forma da ação administrativa comum (cfr. artigo 37.º do CPTA, na redacção do Decreto-Lei n.º 214-G/2015).
O artigo 97.º, n.º 1, alínea p), do CPPT refere-se ao recurso contencioso, como um do meios susceptíveis de serem accionados no âmbito do processo judicial tributário, considerando-o aplicável, designadamente, quando estejam em causa “actos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação da legalidade do acto de liquidação”. E o n.º 2 esclarece que recurso contencioso dos actos administrativos em matéria tributária que não comportem apreciação da legalidade do acto de liquidação é regulado pelas normas sobre processo nos tribunais administrativos.
Entretanto, o artigo 191.º do CPTA determina que “as remissões que, em lei especial, são feitas para o regime do recurso contencioso de anulação de atos administrativos consideram-se feitas para o regime da ação administrativa”, o que significa que a remissão efectuada pelo artigo 97.º, n.º 1, alínea p), do CPPT se considera agora feita para a forma de processo que lhe corresponde no CPTA. O que conduziria, em tese geral, a considerar aplicável a acção de condenação à prática de acto devido quando estivesse em causa a omissão ou recusa da prática de acto administrativo.
A questão que, no entanto, se coloca é a de saber se é aplicável ao caso o recurso contencioso a que se refere a falada norma do artigo 97.º, n.º 1, alínea p), do CPPT .
Esse meio processual não assenta na dicotomia entre actos de conteúdo positivo e actos de conteúdo negativo e é antes utilizado - fora as situações elencadas na primeira parte da norma, que não têm aplicação ao caso -, para a impugnação de “actos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação da legalidade do acto de liquidação”. Para a hipótese em que esteja em causa a impugnação da liquidação de tributos, a lei prevê um meio processual específico que consiste na impugnação de liquidação de tributos a que alude o artigo 97.º, n.º 1, alínea a), do CPPT.
O recurso contencioso prende-se, portanto, com a caracterização da questão tributária que está em causa e é utilizado quando a questão não comporte apreciação da legalidade do acto de liquidação.
Ora, a Requerente, inequivocamente, deduziu um pedido de constituição de tribunal arbitral para a apreciação da legalidade de um acto de liquidação adicional de IRC e, precedentemente, nos termos do artigo 70.º do CPPT, deduziu uma reclamação graciosa contra o mesmo acto de liquidação, visando obter a sua anulação pela via administrativa.
O efeito útil e relevante do indeferimento da reclamação graciosa - independentemente de se ter tratado de uma rejeição liminar ou de um indeferimento por insubsistência dos fundamentos da impugnação - traduz-se na manutenção na ordem jurídica do acto tributário de liquidação.
Não pode, por conseguinte, deixar de reconhecer-se que o pedido de constituição de tribunal arbitral, tal como a impugnação administrativa deduzida perante a Administração Tributária, visaram a apreciação da legalidade de um acto de liquidação de tributo. E, em necessária decorrência, não pode afirmar-se que a rejeição liminar da reclamação graciosa cai sob a alçada da falada norma do artigo 97.º, n.º 1, alínea p), do CPPT, sendo que só nesse outro caso em que estivesse em causa uma questão tributária que não comporte apreciação da legalidade de acto de liquidação é que havia lugar ao recurso contencioso com a consequente remissão para as regras processuais do CPTA.
Nestes termos, a invocada exceção do tribunal arbitral para a apreciação do acto de rejeição liminar da reclamação graciosa mostra-se ser manifestamente improcedente.
Questões de fundo
7. A Requerente invoca a caducidade do direito à liquidação por considerar que o direito de liquidar os tributos caduca no prazo geral de quatro anos, nos termos do artigo 45.º da Lei Geral Tributária, e que esse prazo já se encontrava esgotado à data da prática do acto de liquidação, em 20 de Março de 2017, e da sua notificação, em 24 de Março de 2017, na medida em que o facto gerador do imposto deve considerar-se reportado a 31 de Dezembro de 2012.
Entende ainda que a caducidade do direito à liquidação também de verifica caso se considere aplicável, segundo o entendimento sufragado na decisão arbitral proferida no Processo n.º 494/2016-T, o prazo para execução espontânea de decisões judiciais previsto no CPTA, tendo em conta que a decisão arbitral transitou em julgado em 27 de janeiro de 2016 e o prazo para a execução espontânea da sentença é de 30 dias, nos termos do artigo 170.º, n.º 1, do CPTA, tendo terminado em 10 de março de 2017.
A Requerente imputa ainda ao acto de liquidação em causa os vícios de falta de fundamentação e de preterição do direito de audição prévia.
Conforme dispõe o artigo 124.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), na sentença a proferir no processo de impugnação, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação (n.º 1), havendo lugar, no primeiro grupo, à apreciação prioritária dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos, e, no segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público (n.º 2).
No presente caso, não são arguidos vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado ou outros que resultem do exercício da ação pública, estando apenas em causa vícios que conduzem à anulação do ato administrativo, além de que a Requerente não estabelece qualquer relação de subsidiariedade entre os vícios alegados.
Nesses termos, em aplicação do critério geral da ordem de conhecimento dos vícios, haverá que apreciar precedentemente o vício de caducidade do direito à liquidação por ser esse que, em princípio, assegura mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos, impedindo que, em caso de procedência, que venha ser proferido um acto renovatório.
Segundo o disposto no artigo 45.º, n.º 1, da LGT, “o direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de 4 anos, se a lei não fixar outro”.
A jurisprudência tributária tem, no entanto, vindo a distinguir, para esse efeito, entre a liquidação correctiva a favor do sujeito passivo resultante de um pedido de revisão oficiosa ou de anulação administrativa de um anterior acto de liquidação e a liquidação inovadora, que permita fixar um montante superior de imposto ao apurado na primeira liquidação sem que se correlacione com um anterior ato anulatório a que deva dar-se cumprimento. No primeiro caso, entende-se que o momento a atender para verificar a caducidade do direito à liquidação é o da emissão da liquidação inicial, pelo que não pode ter-se como ultrapassado o prazo de caducidade ainda que a liquidação correctiva ocorra para além do prazo de quatro anos contado a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário. No segundo caso, considera-se que a liquidação adicional corporiza um acto tributário autónomo e diverso do anterior, tendo-se como verificada a caducidade se, à data da emissão desse novo acto, tiver já decorrido o prazo de quatro anos por referência ao termo do ano em que se verificou o facto tributário (cfr., neste sentido, acórdãos do STA de 22 de março de 2006, Processo n.º 01284/05, de 9 de maio de 2007, Processo n.º 0133/07, de 8 de outubro de 2014, Processo n.º 1114/11, e de 14 de outubro de 2015, Processo n.º 11104/13).
Todavia, a decisão arbitral proferida no Processo n.º 494/2016-T, citada tanto pela Requerente como pela Requerida, e que se pronunciou sobre um caso similar ao dos presentes autos, sustenta um diferente entendimento quando esteja em causa a execução de sentença de anulação do acto tributário. Invocando o disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e 175.º, n.º 1, do CPTA, defende que o novo acto de liquidação expurgado do vício que originou a anulação contenciosa deve ser praticado dentro do prazo fixado para a execução espontânea das sentenças anulatórias dos tribunais judiciais tributários, que é o prazo procedimental de 90 dias. De acordo com este critério, o direito à liquidação caducaria se o novo acto tributário destinado a dar execução ao julgado não fosse proferido no referido prazo de 90 dias, contado nos termos do artigo 87.º do CPA a partir do trânsito em julgado da decisão arbitral.
À luz destes considerandos, a questão fulcral que se coloca é a de saber se o acto de liquidação impugnado corresponde à execução da decisão arbitral que anulou a liquidação inicial por desconsideração de um crédito proveniente do benefício fiscal, ou se se trata de uma liquidação adicional de natureza autónoma que não tem a ver com a execução de julgado. E esta questão torna-se relevante independentemente de saber se a caducidade do direito à liquidação tem de ser analisada à face da jurisprudência tradicional – que considera aplicável o prazo de quatro anos, distinguindo entre a liquidação correctiva e a liquidação inovadora – ou de acordo com o regime específico aplicável à execução de sentenças de anulação de actos administrativos, que pressupõe que o dever de executar seja cumprido no prazo procedimental de 90 dias a contar do trânsito em julgado da decisão exequenda.
8. Neste ponto de análise entrecruza-se o vício de falta de fundamentação também alegado pela Requerente.
A Requerente põe em causa o resultado da liquidação que consta do n.º 15 da demonstração de liquidação de IRC, no montante de € 6.476.384,46, que – segundo alega - determinou um aumento do imposto no montante de € 5.637.538,95, correspondendo à diferença entre esse valor e o resultado da liquidação que constava do acto tributário inicial em que é apurado o montante de € 838.845,51.
Na demonstração de liquidação de IRC que vem impugnada, a Autoridade Tributária apenas refere que “a liquidação efetuada corresponde à execução da decisão proferida no processo contencioso identificado, no âmbito do qual foi remetida (…) a respetiva fundamentação”, assim parecendo considerar satisfeito o dever de fundamentação do acto tributário por remissão para a própria decisão arbitral anulatória. Sobre a epígrafe “Notificação”, esclarece-se também que a liquidação de IRC respeita aos rendimentos que resultam da execução da decisão proferida no processo arbitral n.º 191/2016-T.
No projecto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa afirma-se que os serviços competentes da Administração Tributária deram cumprimento à reconstituição da situação jurídica violada, em aplicação do disposto no artigo 100.º da LGT, levando também em consideração o mecanismo previsto no artigo 92.º do Código de IRC. Ter-se-á chegado, assim, à demonstração de liquidação que consta do quadro inserto no ponto 33 desse projecto. Dela resulta um acréscimo do valor a considerar a título do RFAI, que passou a atingir o montante de € 8.647.466,03, mostrando-se esse valor justificado através da soma do benefício fiscal considerado na liquidação inicial (€ 3.009.927,68) com o benefício a considerar por efeito da sentença arbitral (€ 5.637.538,95) e do qual decorre uma correção do total de deduções de € 22.292.092,47 para € 27.929.631,42.
No entanto, ao abrigo do disposto no artigo 92.º do Código de IRC, surge ainda uma correcção da matéria colectável, traduzida num acréscimo a título de tributações autónomas no montante de € 465.434,87, e foi ajustado o resultado de liquidação de resultado, que passou de € 838.845,51 para € 6.476.384,46, correspondendo este valor à soma do resultado da liquidação anterior (€ 838.845,51) e o benefício fiscal que passou a ser considerado por efeito do julgado anulatório (€ 5.637.538,95).
9. Aparentemente, a Administração Tributária pretendeu dar execução à decisão arbitral - que anulou a desconsideração do benefício fiscal – mediante a limitação do imposto liquidado, que, nos termos do citado artigo 92.º, n.º 1, do Código de IRC, “não pode ser inferior a 90% do montante que seria apurado se o sujeito passivo não usufruísse de benefícios fiscais”. De acordo com esse regime, o imposto é calculado com e sem a dedução do benefício fiscal e se o imposto liquidado com benefícios for inferior a 90% do imposto liquidado sem benefícios, acresce ao imposto a apurar a diferença que existir de modo a que a dedução não ultrapasse o limite dos 90%.
Neste condicionalismo, o que não se percebe é que a correcção da matéria colectável, que era suposto proceder à execução do julgado quanto à dedução de benefício fiscal, tenha implicado um acréscimo a título de tributações autónomas, e que o resultado da liquidação que devia provir da limitação estatuída no artigo 92.º, n.º 1, do Código do IRC, corresponda agora à soma do resultado de liquidação anterior (€ 838.845,51) acrescido do valor da dedução do benefício fiscal que era imposta pela decisão arbitral (€ 5.637.538,95).
A Autoridade Tributária declara, no acto de liquidação, que procedeu execução do julgado anulatório. Todavia, a informação que pretendeu dar concretização prática à reconstituição da situação jurídica violada, através da demonstração da liquidação, não indica os fundamentos das correcções efectuadas, limitando-se a mencionar genericamente a norma do artigo 92.º do Código de IRC e a especificar as verbas que se consideram corrigidas. Sendo certo que a suficiência da fundamentação terá de ser aferida em relação ao novo acto tributário que pretende dar execução à anterior decisão arbitral e não em função de quaisquer outras considerações produzidas no âmbito do procedimento inspectivo que originaram o precedente acto tributário que veio a ser contenciosamente anulado.
Como é entendimento jurisprudencial corrente, a fundamentação do ato administrativo ou tributário é um conceito relativo que varia conforme o tipo de ato e as circunstâncias do caso concreto, sendo que a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do ato para proferir a decisão, isto é, quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do ato decidiu como decidiu e não de forma diferente. Como se depreende ainda do artigo 153.º, n.º 2, do CPA, subsidiariamente aplicável ao processo tributário, “equivale à falta de fundamentação a adoção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do ato”.
Não sendo possível compreender, no caso, quais as razões em que a Administração Tributária se baseou para o apuramento do imposto, haverá de concluir-se que acto de liquidação enferma de vício de falta de fundamentação.
10. Como se deixou entrever, para a apreciação da questão da caducidade do direito à liquidação, é decisivo determinar se a nova liquidação corresponde apenas a uma liquidação correctiva resultante da execução do julgado ou se se traduz numa liquidação inovatória suscetível de representar um adicional ao imposto liquidado que não se correlacione com o procedimento executivo.
Como tem sido sublinhado pela jurisprudência tributária em relação à norma do artigo 124.º, n.º 1, do CPPT – tal como pela jurisprudência administrativa no domínio da disposição paralela do artigo 57.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, que precedeu a reforma de contencioso administrativo de 2002 -, a referência legal ao prudente critério do julgador, para efeito da apreciação prioritária dos vícios cuja procedência determine mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos, tem de ser considerada em função do caso concreto, podendo existir razões de ordem lógica que imponham o conhecimento prevalecente de um vício de forma, mormente quando a fundamentação é de tal modo exígua que não permite compreender a motivação do acto nem entrar na apreciação dos aspectos substantivos da causa (cfr. acórdãos do STA de 22 de março de 2006, Processo n.º 0916/04, do TCA Sul de 19 de abril de 2007, Processo n.º 05394/01, e de 1 de fevereiro de 2001, Processo n.º 10007/00, e do TCA Norte de 31 de janeiro de 2008, Processo n.º 00195/02)
Esse mesmo princípio surge reforçado por via do novo critério legal definido no artigo 95.º, n.º 3, do CPTA, que, impondo ao tribunal o dever de pronunciar-se, nos processos impugnatórios, sobre todas as causas de invalidade que tenham sido invocadas contra o ato impugnado, admite que o juiz se encontre dispensado de analisar algum ou alguns dos vícios invocados quando não possa dispor dos elementos indispensáveis para emitir um juízo de procedência ou improcedência.
É essa a situação do caso.
Não sendo possível determinar, por insuficiência de fundamentação, a natureza do acto de liquidação, especialmente quanto a saber de se trata de uma liquidação correctiva ou inovatória, impõe-se conhecer prioritariamente o apontado vício de forma e julgar prejudicado o conhecimento do vício de caducidade do direito à liquidação e das questões de constitucionalidade que se encontram associadas.
Havendo lugar à eventual renovação do acto mediante a indicação dos fundamentos da decisão, que se encontrará sujeito, nos termos gerais, à audição do interessado, fica também prejudicado o vício de violação do direito de audição que vem alegado quanto ao acto agora impugnado.
Conhecimento prejudicado
11. Face à solução a que chega quanto à matéria de fundo, fica prejudicado o conhecimento da questão de constitucionalidade que vem suscitada nas alegações da Requerente.
Juros indemnizatórios
12. A Requerente deduz ainda um pedido de juros indemnizatórios nos termos do disposto no artigo 43.º, n.º 1, da LGT e de reembolso do imposto pago.
O direito a juros indemnizatórios previsto nesse preceito, em resultado da anulação judicial de um acto de liquidação, depende de ter ficado demonstrado no processo que esse acto está afectado por erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à Administração Tributária.
No caso, a anulação de um acto de liquidação baseou-se em falta de fundamentação, nada obstando que a Administração, em execução de sentença, possa praticar um acto com o mesmo conteúdo, devidamente fundamentado, desde que respeite os princípios e as normas legais aplicáveis. Nestes termos, a anulação com o apontado fundamento não implica a existência de qualquer erro sobre os pressupostos de facto ou de direito do acto de liquidação, pelo que não existe o direito de juros indemnizatórios a favor do contribuinte (cfr., neste sentido, em situação paralela, o acórdão do STA de 12 de fevereiro de 205, Processo n.º 01610/13).
Por identidade de razão não há lugar ao reembolso do imposto liquidado.
III – Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e anular a liquidação de IRC 2017..., relativo ao exercício de 2012, no montante de € 5.637.538,95, e os correspondentes juros compensatórios no montante de € 305.618,71;
b) Em consequência, anular o despacho de 8 de agosto de 2017 que indeferiu a reclamação graciosa apresentada contra o ato de liquidação.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 5.943.157,66, que não foi contestado pela Requerida, e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar (artigo 97.º, n.º 1, alínea a), do CPPT).
Notifique.
Lisboa, 6 de novembro de 2018
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O Árbitro vogal
João Taborda da Gama
O Árbitro vogal
Fernando Borges de Araújo
(vota vencido nos termos da declaração que junta)
DECLARAÇÃO DE VOTO
SUMÁRIO:
1) Um Breve Enquadramento
2) A Natureza da Liquidação
3) A Fundamentação em Concreto
4) Aspectos Teóricos da Fundamentação
4.1) A Necessidade de Simplificação e a Co-Responsabilização Dialógica
4.2) A Impressão do Destinatário
5) De Regresso ao Caso
6) A Fundamentação e a Audição Prévia
7) A Fundamentação na Execução de uma Decisão Jurisdicional
8) A Fundamentação que Transparece no Argumento da Inconstitucionalidade
9) Síntese Conclusiva
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Votei vencido pelas razões que seguem.
1) UM BREVE ENQUADRAMENTO
São pedidas, no presente processo, a anulação, por ilegalidade, da liquidação oficiosa de IRC nº 2017..., respeitante ao exercício de 2012, na qual se continha liquidação adicional de imposto, contra a qual foi apresentada reclamação graciosa nº ...2017..., entretanto objecto de despacho de rejeição liminar datado de 27 de Dezembro de 2017; e a anulação, por ilegalidade, do indeferimento dessa reclamação graciosa.
A referida liquidação adicional tem o valor de €5.637.538,95 (o aumento de €838.845,51 para €6.476.384,46, entre a liquidação nº 2016 ... e a liquidação nº 2017...). Somados àquele valor €305.618,71 de juros compensatórios, isso perfaz um total de € 5.943.157,66.
Na pendência do procedimento de reclamação graciosa nº ...2017..., a Requerente apresentou nova reclamação graciosa contra o acto de liquidação de IRC nº 2017 ... referente ao exercício de 2012 do Grupo Fiscal B..., reiterando o pedido de anulação parcial anteriormente formulado, reclamação à qual foi atribuído o nº ...2017..., sendo que também essa foi objecto de despacho de rejeição liminar datado de 28 de Dezembro de 2017.
Entretanto, em 30 de Janeiro de 2018 a Requerente apresentou recurso hierárquico, o qual tem, novamente, como objecto o acto de liquidação de IRC nº 2017... .
Na notificação da liquidação oficiosa de IRC nº 2017... consta como fundamentação: “A liquidação efetuada corresponde à execução da decisão proferida no processo contencioso identificado, no âmbito do qual foi remetida a V. Exa. a respetiva fundamentação.” Esse processo é o nº 191/2016-T do CAAD.
A Requerente reconhece (arts. 14º-16º do Pedido de Pronúncia Arbitral - PPA) que a liquidação oficiosa nº 2017 ... executa a anulação, decretada pelo Tribunal Arbitral no referido Proc. nº 191/2016-T, da correcção e liquidação adicional anteriormente efectuada pela AT, no montante de €5.637.538,95, ao aumentar a dedução de benefícios ficais à colecta do IRC de 2012 de €22.204.077,84 para €27.841.616,79, diminuindo o IRC anteriormente liquidado no mesmo valor de €5.637.538,95.
Por isso não é sobre essa execução do julgado, nem sequer sobre a alegada falta de reembolso efectivo do montante de imposto acrescido de juros compensatórios e indemnizatórios em execução da decisão do Proc. nº 191/2016-T, que incidiu a reclamação graciosa, e agora incide o Pedido de Pronúncia Arbitral. Enfatiza a Requerente (art. 32º PPA), que “a precedente reclamação graciosa (tal como o presente pedido de pronúncia arbitral) não se dirigem a obter a execução de julgado arbitral anulatório de imposto anterior, mas a obter a declaração de ilegalidade, e respectiva anulação, de uma nova liquidação adicional de imposto, a título diferente do imposto que havia sido anulado por anterior decisão arbitral”.
Fica claro que a Requerente não imputa à liquidação impugnada qualquer deficiência, ou insuficiência em dar execução ao julgado, nem alega que o acto foi praticado com o intuito de obstar ilegitimamente à concretização do resultado visado no processo de execução, mantendo, sem fundamento válido, a situação ilegal existente; pelo que não está, em suma, a colocar uma questão de inexecução de decisão arbitral.
Insista-se: a Requerente admite que a liquidação oficiosa nº 2017 ... não é senão a execução da anulação, decretada no Proc. nº 191/2016-T, da correcção e liquidação adicional anteriormente efectuada pela AT – tanto assim que, logo no início do PPA, afasta qualquer pretensão de impugnar tal execução.
Nem tão-pouco se peticiona que, para além daquela alteração do valor do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI)[1], plasmado no incremento registado em sede de benefícios fiscais, devesse ser praticado qualquer outro acto ou operação de execução, nomeadamente de pagamento de qualquer quantia.
O aumento de €5.637.538,95 de imposto liquidado entre a liquidação nº 2016 ... e a liquidação nº 2017..., ambas referentes ao exercício de 2012, mais não seria, no entendimento da Requerente, do que uma liquidação de imposto novo a pretexto da execução de uma condenação em reembolso (pagamento de quantia certa) correspondente à decisão arbitral proferida no Processo nº 191/2016-T (art. 79º PPA).
Refira-se que o pedido formulado na acção arbitral nº 191/2016-T, de declaração da ilegalidade parcial da liquidação de IRC nº 2015..., foi julgado totalmente procedente por acórdão datado de 12 de Dezembro de 2016.
Para efeitos de cumprimento da decisão arbitral e do disposto no artº 100º da LGT, foi emitida a liquidação correctiva em apreciação na presente acção arbitral, da qual constam os valores corrigidos de €27.841.616,79, a título de «Benefícios fiscais», e de €6.476.384,46, a título de «Resultado da liquidação».
Explica a Requerente (art. 109º PPA): “Em resultados destes movimentos exactamente nos mesmos valores, mas de sinal contrário (execução de anulação de imposto determinada pela decisão arbitral vs liquidação adicional de imposto a outro título, mas no mesmo montante do anulado), nenhum montante adicional a pagar se gerou, uma vez que por acerto de contas o pagamento […] do montante entretanto anulado pela decisão arbitral em imposto e juros, passou a ser imputado ao igual montante adicionado em imposto e juros pela liquidação que aqui se impugna, conforme demonstração de acerto de contas anexada à mesma pela AT”
A Requerente reconhece (art. 38º PPA) que o mesmo se passou na liquidação de IRC relativa ao exercício de 2011, como consta do acórdão do Processo nº 494/2016-T, o qual por sua vez versou a execução, pela AT, do acórdão proferido no Proc. nº 400/2015-T: a AT alterou, em conformidade, a linha 12 com o acréscimo do benefício fiscal, mas depois alterou também o “resultado da liquidação” (na linha 14 de então, agora linha 15).
Não obstante, a Requerente sustenta que a liquidação adicional é anulável por, entre outras razões, não ter havido, no seu entendimento, fundamentação, em violação do quadro legal, e até constitucional, que a impõe.
Alega a Requerente (arts. 92º e 93º PPA) que “para a concreta liquidação de IRC aqui em causa não se conhece, no que respeita ao segmento que consubstancia imposto adicional, fundamentação, muito menos fundamentação contemporânea da mesma. Com efeito, o adicionamento de imposto na linha do resultado da liquidação não está evidentemente coberto pelo âmbito da decisão arbitral anulatória (de imposto) proferida no processo nº 191/2016-T”.
Releva ainda, para ponderação das razões de um completo entendimento sobre o caso, que a Requerente sustenta ainda que a liquidação adicional é anulável por alegadamente não ter havido audição prévia, novamente em violação do quadro legal aplicável.
A Requerida contra-argumenta que não se trata de um imposto novo, antes de uma mera liquidação correctiva em resultado da execução da decisão que determinou a procedência do pedido de anulação de uma liquidação anterior – e que na liquidação correctiva tiveram que se aplicar as normas que impõem limites ao acréscimo de benefícios fiscais resultantes dessa execução, sob pena de, por violação desses limites, ocorrer uma ilegalidade.
2) A NATUREZA DA LIQUIDAÇÃO
A Requerente afasta, logo no início do PPA, qualquer pretensão de impugnar a execução da anulação, decretada pelo Tribunal Arbitral no Proc. nº 191/2016-T, da correcção e liquidação adicional anteriormente efectuada pela AT, e reconhece que a liquidação oficiosa nº 2017 ... não é senão essa execução.
Mas na verdade a sua argumentação conduziria a uma interferência na referida impugnação, na medida em que pretende – como já pretendia relativamente ao exercício de 2011 – afastar da liquidação o montante que resulta da aplicação do “tecto de benefícios fiscais” aplicável ao RFAI, nos termos do art. 92º do CIRC.
Sucede, todavia, que a anulação, decretada no Proc. nº 191/2016-T, da correcção e liquidação adicional anteriormente efectuada pela AT, não poderia – nem poderá – ser executada em violação de normas legais, incluindo aquelas de que resulta a imposição do referido “tecto de benefícios fiscais” ao RFAI – um tecto que, por efeito cumulativo em sucessivos exercícios desde 2009, perfazia em 2012 o montante de €5.637.538,95.
Lembremos que é sempre do mesmo valor que se trata, como a Requerente reconhece no próprio PPA (arts. 14º-16º): os €5.637.538,95 que tinham sido liquidados adicionalmente pela AT relativamente ao exercício de 2012, por uma correcção que a Decisão Arbitral do Processo nº 191/2016-T anulou, e que a AT diminuiu do IRC anteriormente liquidado dando execução a essa decisão (uma liquidação “correctiva” efectuada pela AT ao abrigo do disposto nos artigos 24º do RJAT e 100º da LGT), são os €5.637.538,95 que ressurgem pela mesma razão pela qual tinham surgido na liquidação impugnada – por simples observância dos limites legais em vigor para os benefícios fiscais aplicáveis ao RFAI, e que balizam qualquer liquidação correctiva, já que, insista-se, nenhuma decisão judicial ou arbitral tem a virtualidade de perturbar a vigência de um regime legal – nomeadamente, o poder de derrogar o art. 92º do CIRC tal como ele vigorava à data dos factos.
Ou seja, na concretização dessa liquidação correctiva introduziu-se, como impunha o artigo 92º do CIRC, um limite legal à utilização de benefícios fiscais, não tendo sido efectuada qualquer liquidação adicional respeitante ao IRC do exercício de 2012 da Requerente.
Em termos conceptuais, tratou-se portanto de um acto tributário secundário ou de segundo grau, ou seja, de um acto que se reportou não já directamente à situação da vida em que o facto tributário se traduziu, mas à regulamentação jurídica operada por um acto tributário anteriormente praticado.
Sendo certo que essa anulação teve efeitos retroactivos, ela não significou que tivesse sido praticado um novo acto de liquidação em sua substituição, mas tão-só que foram destruídos os efeitos do acto incompatíveis com aquela decisão – já que, na execução da anulação decretada no Proc. nº 191/2016-T, acatando, como lhe competia, uma decisão jurisdicional, não podia a AT visar mais do que a mera reconstituição da situação que existiria se a ilegalidade que determinou a anulação não tivesse ocorrido (art. 100º LGT) – sendo que nessa situação plenamente reconstituída o “tecto de benefícios fiscais” imposto pelo art. 92º do CIRC ao RFAI continuaria ainda a estar em vigor.
Sublinhe-se que o resultado dessa liquidação correctiva não nasceu de um qualquer poder de conformação autónoma da situação jurídica que a AT detivesse, ou detenha, ao praticar o acto: daí que não tenha sido instaurado qualquer procedimento inspectivo relativo à execução de julgado, nem qualquer novo procedimento de liquidação, pois o poder/dever que exerceu ao efectuar nova liquidação em execução espontânea de julgado foi-lhe concedido pela decisão jurisdicional exequenda e pelas balizas normativas existentes.
Em suma, nessa execução não era dado a ninguém, e certamente não à AT, fazer desaparecer os €5.637.538,95 que correspondiam, em 2012, à aplicação de um “tecto” à cumulação de benefícios fiscais, por força do enquadramento legal sucessivamente aplicável: a Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro, que excepcionou da alínea c) do nº 2 do artigo 86º os benefícios previstos na Lei nº 40/2005, de 3 de Agosto; a Lei nº 67-A/2007, de 31 de Dezembro; o Decreto-Lei nº 159/2009, de 13 de Julho, que alterou o CIRC e renumerou o art. 86º como art. 92º; a Lei nº 3-B/2010, de 28 de Abril, que elevou a percentagem de colecta mínima prevista no artigo 92º do CIRC para 75% do imposto que seria liquidado se o sujeito passivo não usufruísse de benefícios fiscais; a Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro, que deu nova redacção ao artigo 92º, elevando a percentagem de colecta mínima para 90% do imposto que seria liquidado se o sujeito passivo não usufruísse de benefícios fiscais; a Lei nº 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que alterou a alínea d) do nº 2 do artigo 92º.
Como pretender, de facto, acatar o imperativo de reconstituição plena determinado pelo art. 100º da LGT, e ao mesmo tempo ignorar os efeitos limitativos absolutos do art. 92º do CIRC sobre o cômputo dos benefícios fiscais – um regime vigente no ano de 1992 a que se reportava a liquidação corrigida?
Como ignorar esse “tecto de benefícios fiscais” e não cair numa reconstituição truncada e unilateral, resultando numa execução defeituosa e incompleta da sentença anulatória?
Como não incorrer numa ilegalidade, a violação do art. 173º, 1, do CPTA (aplicável ex vi art. 29º, 1, c), do RJAT), na parte em que impõe, no âmbito do dever de reconstituição da situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado, o dever de “dar cumprimento aos deveres que não tenha cumprido com fundamento naquele acto, por referência à situação jurídica e de facto existente no momento em que deveria ter actuado”?
Coisa diversa – e que não está directamente em causa no presente processo – é saber-se, mormente em sede de Direito Constitucional, se a alegada convencionalidade ou “para-contratualidade sinalagmática” do benefício fiscal previsto no RFAI gerava, ao menos por intermédio da “tutela da confiança”, uma expectativa atendível, ou mesmo um “direito”, à imutabilidade dos valores inicialmente estabelecidos naquele regime, que pudesse e devesse sobrepor-se aos limites resultantes do art. 92º, 1 do CIRC – ou até, em alternativa, uma expectativa ou direito referentes à imutabilidade do próprio art. 92º, 1 do CIRC, face às mutações legislativas que sucessivamente interferiram nesse regime, e que acabámos de elencar.
É que essas considerações extravasam, obviamente, do âmbito de apreciação da legalidade de uma liquidação correctiva em execução de uma sentença anulatória – pois, se não extravasassem, caberia também questionar-se, em contrapartida, como se coadunaria a “confiança” alegadamente gerada pela “para-contratualidade sinalagmática” do benefício fiscal previsto no RFAI com a circunstância de o Decreto-Lei nº 82/2013, de 17 de Junho, através de aditamento à alínea c), do nº 2 do artigo 92º, ter excluído o RFAI do âmbito do nº 1 do mesmo artigo.
Em síntese: entre a liquidação nº 2016 ... e a liquidação nº 2017 ... não há “imposto novo”, como pretendeu a Requerente, não havendo, portanto, qualquer aditamento legal às conclusões e correcções da inspecção tributária – porque, sendo recolocada juridicamente no momento em que deveria ter praticado o acto em conformidade com o julgado, e estando sujeita a praticar o novo acto como o deveria ter praticado inicialmente sem a ilegalidade, a AT tinha o dever de praticar em execução do acórdão proferido no processo nº 191/2016-T um acto de liquidação em que fosse reconhecido ao sujeito passivo o benefício fiscal do RFAI na medida em que foi decidido no acórdão arbitral, tendo pois de actuar na execução do julgado da forma como deveria ter actuado se tivesse reconhecido esse benefício fiscal no momento em que concluiu o procedimento inspectivo e emitiu a liquidação nº 2016..., inclusivamente decidindo na execução, como deveria decidir nesses anteriores momentos, se estão reunidas as condições para relevância desse benefício fiscal no exercício em causa, à face do regime do artigo 92º do CIRC.
3) A FUNDAMENTAÇÃO EM CONCRETO
Na notificação da liquidação oficiosa de IRC nº 2017... consta como fundamentação: “A liquidação efetuada corresponde à execução da decisão proferida no processo contencioso identificado [Proc. nº 191/2016-T do CAAD], no âmbito do qual foi remetida a V. Exa. a respetiva fundamentação.”.
Em cumprimento da Ordem de serviço nº OI2014... de 17 de Abril de 2014, realizou-se um procedimento de inspecção interno, de âmbito parcial, ao IRC do exercício de 2012, com o objectivo de verificar o cumprimento das obrigações fiscais na esfera individual da Requerente, tendo a Inspeção Tributária efectuado correcções à matéria tributável declarada em termos individuais no valor de € 17.691.831,71, e apurado IRC em falta no montante de €5.637.538,95.
Consta do RIT (fls. 12):
“III. 2.1 Regime Fiscal De Apoio Investimento (RFAI): 5.637.538,95 Euro
Na declaração de rendimentos Mod. 22 de IRC submetida em 2014-11-20 (nº C1380-18), a empresa invoca o direito a credito fiscal por dedução à coleta de imposto de benefícios fiscais nos termos da al. b) do nº 2 do art.90º do CIRC ao inscrever no Campo 355 do Quadro 10 o montante de 9.809.938,49 Euro que, de acordo com informação constante do Quadro 07 do Anexo 22-D à mesma declaração inclui credito fiscal por RFAI no total de 7.257.433,83 Euro decomposto por:
RFAI – reporte de períodos anteriores a 2012
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5.620.824,79
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RFAI – de investimento em 2012
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1.636.609,04
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RFAI incluído no Q10 C355, da Mod. 22
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7.257.433,83
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Da análise aos elementos justificativos do crédito fiscal por RFAI invocado pela empresa resulta que se considera indevida a dedução de benefícios fiscais de RFAI no valor total de 6.530.285,59 Euros nos termos que seguidamente se fundamentam. […]
O investimento que a C... SA considerou elegível para efeitos do RFAI no período de 2012 ascendeu a 11.366.090,37 Euro, repartindo-se entre os estabelecimentos de ... e de ... conforme atrás apresentado.
Tendo por base a decomposição dos investimentos por segmento de negócio, a C... efetuou investimentos que considerou elegíveis para efeitos do RFAI na fábrica de pasta de celulose e na central termoelétrica a biomassa […]
Neste sentido […] somos a considerar que o investimento relacionado com a atividade de produção de energia não constitui investimento relevante nos termos artigo 2º do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI) por corresponder a investimento concretizado em atividade diferente da sua atividade principal pelo que não é elegível nos termos do nº 1 do mesmo artigo 2º.
Assim, conclui-se que para efeitos de cálculo do benefício fiscal em causa o investimento qualificado como relevante é o que se apresenta relacionado com a atividade de produção de pasta de papel, no montante total de 3.606.489,79 Euro, conforme decorre do mapa anterior. […]
A C... SA considerou indevidamente como investimento relevante as adições de Ativos Fixos Tangíveis relacionados com a atividade acessória de produção de energia quando nos termos do RFAI/2009 apenas é objeto de incentivo o investimento afeto à atividade principal conforme descrito anteriormente.
Calculado o incentivo fiscal para o investimento elegível, tendo em consideração os limites regionais aplicáveis aos incentivos do investimento, é fixado em 639.040,18 Euro, o incentivo fiscal em sede de IRC relativamente ao período de 2012 por aplicação do RFAI.
O incentivo fiscal ao investimento realizado em 2012 por aplicação do RFAI/2009 no montante de 1.636.609,04 Euro corrige-se em 997.568,86 Euro, pelo impacto da redução do investimento elegível.
Na sequência da análise dos elementos trazidos em direito de audição o valor da correcção ao benefício fiscal por RFAI de 2012 é fixado em 16.714,16 Euro. […]
Conforme supra indicado, a empresa inscreveu no campo 713, a título de reporte de períodos anteriores de benefício fiscal de RFAI, o montante de 5.620.824,79 Euro. […]
o reporte considerado pela empresa corresponde a benefício fiscal não aceite pela AT e que foi corrigido em períodos anteriores (2009/2011) por se tratar de adições de Ativos Fixos Tangíveis relacionados com a atividade acessória de produção de energia quando nos termos do RFAI/2009 apenas é objeto de incentivo o investimento afeto à atividade principal, conforme fundamentação apresentada nos respetivos períodos.
Nos termos do RFAI 2009, os créditos fiscais apurados com a aplicação das taxas ao investimento qualificado como relevante é dedutível ao imposto do período em que o investimento se realizou, só podendo ser reportado para períodos seguintes, conforme dispõe o nº 3 do art. 3º do RFAI 2009, em caso de insuficiência de coleta. […]
considerando o RFAI validado pela AT para os investimentos elegíveis nos períodos de 2009, 2010 e 2011 e os créditos fiscais por RFAI utilizados pela empresa nesses períodos, na determinação do imposto do grupo e por aplicação do nº 6 do art. 90º do CIRC, não existe qualquer montante a reportar de períodos anteriores.
Deste modo não assiste à C... SA a possibilidade de deduzir RFAI em 2012, no montante de 5.620.824,79 Euro. […]
Em conclusão,
a) A C... SA considerou indevidamente como investimento relevante as adições de Ativos Fixos Tangíveis relacionados com a atividade acessória de produção de energia quando nos termos do RFAI/2009 apenas é objeto de incentivo o investimento afeto à atividade principal conforme descrito.
Calculado o incentivo fiscal para o investimento elegível, tendo em consideração os limites regionais aplicáveis aos incentivos do investimento, é fixado em 639.040,18 Euro, o incentivo fiscal em sede de IRC relativamente ao período de 2012 por aplicação do RFAI.
O incentivo fiscal ao investimento realizado em 2012 por aplicação do RFAI/2009 no montante de 1.636.609,04 Euro corrige-se em 997.568,86 Euro, pelo impacto da redução do investimento elegível;
b) A empresa considerou indevidamente a dedução de 5.620.824.79 Euro a título de RFAI de períodos anteriores nos termos do nº 3 do art. 3º do RFAI/2009, montante que corresponde a parte dos créditos fiscais que indevidamente calculou entre 2009 e 2011 sobre investimento não qualificado como relevante e corrigido pela inspeção aos períodos de 2010 e 2011.
Considerando a opção pelo Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades previsto nos artºs 69º a 71º do CIRC, a utilização do benefício fiscal apenas se concretiza nos termos do nº 6 do artº 90º do CIRC no apuramento do imposto do grupo.”
Em cumprimento da Ordem de Serviço nº OI2014..., de 18 de Novembro de 2014, realizou-se o procedimento de inspecção interno, de âmbito parcial, ao IRC do exercício de 2012 do grupo C... SA, com o objetivo de verificar o cumprimento das obrigações fiscais inerentes à aplicação do RETGS, e de fazer reflectir no lucro tributável do grupo as correções efectuadas no âmbito da acção inspectiva credenciada pela Ordem de Serviço nº OI2014... .
Do respectivo RIT consta:
“O total de correções proposto ao nível do cálculo do imposto do grupo no período, na sequência das conclusões da inspeção à sociedade do grupo e não consideradas na declaração indicada, ascende a 6.522.927,95 Euro, que se passa a discriminar:
III.2.1. Regime Fiscal de Apoio Investimento (RFAI): 5.637.538,95 Euro
Em cumprimento da Ordem de Serviço nº OI2014... de 2014-04-17 realizou-se o procedimento de inspeção interna, relativo ao período de 2012 […]
Na sequência da referida ação inspetiva, foram identificadas correções ao cálculo de Benefícios Fiscais dedutíveis à coleta de IRC em termos individuais à C... SA que se fixaram no montante total de 16.714,16 Euro, por dedução indevida à coleta de IRC, a título do benefício fiscal previsto no “Regime Fiscal de Apoio ao Investimento Realizado em 2009” (RFAI) aprovado pelo artº 13º da Lei nº 10/2009, de 10 de março e que foi sucessivamente prorrogado, mantendo-se em vigor até 31 de dezembro de 2012, conforme Lei que aprovou o Orçamento de Estado para 2012 (Lei nº 64-B/2011), por no cálculo do benefício fiscal não ter considerado a exclusão do investimento realizado na atividade de produção de energia em conformidade com a informação vinculativa que lhe foi prestada e como determina o nº 1 do artigo 2º da Lei nº 10/2009.
Assim, corrige-se o benefício fiscal dedutível nos termos da al. b) do nº 2 do artº 90º do Código do IRC na declaração do grupo com os fundamentos constantes do ponto III.2.1.1 do Relatório de Inspeção que se anexa e é parte integrante do presente Relatório. […]
a coleta de IRC apurada após as deduções das al. a) e b) do nº 2 do artº 90º do CIRC, considerando os impactos das correções ao Lucro Tributável do Grupo e ao RFAI dedutível no período descritos neste Relatório, se calculada sem o efeito dos benefícios fiscais não enumerados no nº 2 do artº 92º do CIRC é de 32.279.140,77 Euro sendo que 90% do seu valor ascende a 29.051.226,69 Euro, superior em 885.389,00 Euro ao valor apurado com o efeito dos benefícios fiscais.
Em conclusão, na determinação do Imposto de IRC a pagar pelo grupo C... com referência ao período de 2012, está em falta o montante de 885.389,00 Euro correspondente à parte em que a liquidação de imposto é inferior à que se apura nos termos do nº1 do artigo 92º do CIRC.
Conforme já referido a correção indicada neste ponto tem em consideração as correções ao Lucro Tributável e ao RFAI dedutível no período que se apresentam nos pontos anteriores deste Relatório. Qualquer ajustamento aqueles valores implica a correção do ajustamento aqui proposto.”
Como veremos de seguida em mais detalhe, a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal compreender o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto, ou seja, quando o destinatário possa conhecer as razões que levaram o autor do acto a decidir daquela maneira e não de outra.
Ora, no caso, as origens da liquidação reportam-se às conclusões vertidas no relatório final de inspecção tributária (RIT), no âmbito do qual a Requerente se pronunciou, em sede de direito de audição, sobre a aplicação do disposto no artigo 92º do CIRC.
Ao exercer o seu direito de audição prévia, a Requerente demonstrou o conhecimento da fundamentação e das suas implicações, contestando-as com o seu particular entendimento acerca do regime aplicável – e nomeadamente com a alegação de que o RFAI deve prevalecer sobre os limites previstos no art. 92º do CIRC de acordo com o princípio geral de prevalência da lei especial sobre a lei geral:
“Considera que esta atribuição que lhe é concedida pelo RFAI não deve ter em consideração o limite de utilização de benefícios fiscais previsto no artº 92º do CIRC. Resumindo, o enquadramento vai no sentido de que o limite de dedução específico previsto na legislação que regula o RFAI deverá prevalecer face ao limite geral de utilização de benefícios fiscais previstos no artigo 92º do CIRC.
De acordo com o seu entendimento, o CIRC dispõe o regime regra para o sector das relações que disciplina (lei geral), o legislador, em diploma próprio e autónomo (Lei nº 10/2009 de 10 de março) estabeleceu, de forma completa e expressa, toda a disciplina para um círculo mais restrito de situações, mais concretamente para o RFAI. Neste caso o conflito entre as duas normas terá de ser suprido através da aplicação do critério da especialidade segundo o qual a lei especial prevalece sobre a lei geral.
Assim, para a determinação do limite máximo dedutível do benefício do RFAI em determinado período, seria de aplicar a norma especial, ou seja, a prevista na alínea a) do nº 1 do artº 3º do RFAI pelo que as alterações legislativas ocorridas na norma do resultado da liquidação não devem ser aplicáveis ao caso concreto, pois, o limite de dedução à coleta do benefício corresponderá, em todo o caso, a 25% do montante da coleta do período, conforme expressamente definido na Lei nº 10/2009 de 10 de março.” (pp. 13-14 do RIT)
Os serviços de inspecção subscreveram o entendimento oposto: não só o de que o art. 92º foi introduzido no CIRC precisamente para estabelecer um “limite à redução da taxa efetiva de tributação por utilização de benefícios fiscais”, como ainda que:
“Conforme é dado verificar o RFAI não está previsto nas exclusões registadas no nº 2 do artº 92º do CIRC, em vigor em 2012, pelo que, é-lhe aplicável o disposto no nº 1 da mesma norma;
Relativamente à conflitualidade entre as normas, considera-se que tendo âmbitos e objetivos diferentes, o RFAI e o artº 92º do CIRC, não existe conflitualidade entre os dois normativos até porque são aplicados em fases diferentes, em que primeiramente se aplica as normas do RFAI para apurar o montante do benefício e posteriormente, na fase da autoliquidação do IRC, em que se apura o montante de “coleta mínima” resultante dos Benefícios Fiscais, tendo em consideração o disposto no artº 92º do CIRC”
Com efeito, qualquer liquidação reportada à utilização de benefícios fiscais em sede de IRC exige a aplicação desta metodologia de cálculo, sendo que o art. 92º,1 do CIRC remete para o processo de liquidação normal do IRC, mas se encontra influenciado pelos benefícios fiscais que o sujeito passivo teria direito a usufruir.
Assim, a liquidação emitida, que nada contém de inovador, visa apenas concretizar a decisão do Tribunal arbitral que determinou um aumento do montante dos benefícios fiscais que a Requerente teria direito a usufruir no exercício de 2012.
A Requerente não ignorava o preceito legal, tendo apenas a pretensão de dar-lhe uma interpretação própria. Mas mesmo que o desconhecesse, essa ignorância de uma norma aplicável não lhe aproveitaria, nos termos gerais do art. 6º do Código Civil.
Voltando à fundamentação, comecemos por recordar o disposto no art. 153º do CPA:
“1- A fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituem, neste caso, parte integrante do respetivo ato.
[…]
3- Na resolução de assuntos da mesma natureza, pode utilizar-se qualquer meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde que tal não envolva diminuição das garantias dos interessados.”
Por outro lado, conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, deve considerar-se fundamentado o acto de liquidação “baseado em relatório dos serviços de fiscalização tributária, que, ainda que lhe não faça referência expressa, se situa, indubitavelmente, no respectivo quadro legal e fáctico, perfeitamente claro, esclarecedor e devidamente notificado”[2].
Na jurisprudência dos tribunais Administrativos, está também adquirido que “se do Relatório da fiscalização é possível conhecer o iter cognoscitivo que levou a AT à prática do acto, este está fundamentado. É nesta visão de conjunto que o impugnante encontrará a fundamentação dos actos tributários”[3].
4) ASPECTOS TEÓRICOS DA FUNDAMENTAÇÃO
Impõe-se, neste ponto, uma reflexão mais genérica e abstracta acerca daquilo que, juridicamente, se entende por “fundamentação”.
Comecemos por destacar-lhe a dupla função, nas palavras de um ilustre e saudoso cultor do Direito Fiscal:
“A exigência de fundamentação (a exposição dos motivos por que se decidiu de um certo modo e não de outro) existe também como condição de racionalidade e de criação de condições materiais para o exercício das competências administrativas e judiciais de re-exame de uma decisão e de uma situação jurídica tributária”[4].
Por força dessa dupla função, exige-se que a fundamentação revista as seguintes características:
-
Oficiosidade: deve partir sempre da iniciativa da administração, não sendo admissíveis fundamentações a pedido;
-
Contemporaneidade: deve ser coeva da prática do acto, não podendo haver fundamentações diferidas ou supervenientes[5];
-
Clareza: deve ser acessível e compreensível por um destinatário médio, evitando tecnicismos e ambiguidades, e mais ainda obscuridades, erros, contradições ou insuficiências, na enunciação dos pressupostos e, no que respeita à liquidação, na explicitação dos montantes calculados e das formas de cálculo;
-
Suficiência ou plenitude: deve permitir identificar todos os elementos determinantes da decisão tomada (as disposições legais aplicáveis, a qualificação dos factos tributários, a quantificação dos factos tributários, as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo), e nomeadamente a justificação encontrada no quadro normativo – o domínio da legalidade –, e, quando intervenham margens de discricionariedade ou oportunidade, a motivação e as valorações prevalecentes[6].
A inexistência ou insuficiência da fundamentação torna, assim, o acto tributário (maxime a liquidação) anulável por vício de forma, porque materialmente ficaram comprometidas a racionalidade da decisão e a criação das condições materiais para o adequado exercício dos direitos de defesa por parte dos contribuintes[7].
Essa fundamentação não deve, nem pode, ser abstractamente apreciada – porque será sempre funcionalizada à situação concreta e ao tipo de acto, servindo em primeira linha para remover, junto do destinatário da decisão, qualquer impressão de que houve arbítrio nessa decisão[8]: “Fundamentar um ato, uma decisão, uma deliberação, consiste em indicar, concretamente, as razões de direito e de facto por que se tomou uma decisão em determinado sentido”[9].
As características da fundamentação concorrerão para que, numa liquidação de imposto, seja “compreensível, para um destinatário médio colocado na posição do real destinatário, face aos elementos efectivamente notificados, o porquê da inscrição nos cálculos apresentados daqueles valores, e não de outros quaisquer”; não bastando, para convalidá-lo, que as motivações de um acto tributário impugnado possam ser, ou tenham sido, intuídas pelo contribuinte: “não será aceitável que, perante uma fundamentação inexistente ou insuficiente, se ponha a cargo do contribuinte o ónus de adivinhar aquela, atribuindo ao palpite certeiro um efeito convalidante do défice de cumprimento dos respectivos deveres pela Administração Tributária”[10].
O art. 77º, 1 da LGT estabelece que “a decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária”.
É um princípio genérico, que não se cinge aos actos “em série”, ou “de massa”, alargando-se, antes, a todos os tipos de actos tributários o dever de fundamentação sucinta, e a faculdade de remissão, com “mera declaração de concordância” com fundamentações precedentes[11], bastando que se identifique claramente, sem obscuridade ou ambiguidade, quais os documentos ou peças para que se remete – como o estabelecia já o Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do STA, de 19 de Janeiro de 1993: “A fundamentação, mesmo por remissão, deve ser expressa no próprio acto, por indicação da peça do processo cujas razões o acto assume, não podendo na ausência dessa indicação no próprio acto, ser buscada em qualquer peça do processo administrativo.”
Em suma, como há muito se tem por estabelecido,
“A jurisprudência dos nossos Tribunais superiores tem consagrado o entendimento de que um acto se encontra suficientemente fundamentado quando dele é possível extrair qual o percurso cognoscitivo seguido pelo agente para a sua prática. É também pacificamente aceite que não preenche a exigência legal de fundamentação o recurso a meras fórmulas tabelares que não esclareçam devidamente a motivação de facto e de direito que presidiu ao acto da administração. Ponto é que a fundamentação responda às necessidades de esclarecimento do contribuinte informando-o do itinerário cognoscitivo e valorativo do acto de liquidação, permitindo-lhe conhecer as razões, de facto e de direito, que determinaram a sua prática. Acresce dizer, na senda do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11.12.2007, recurso 615/04 «que a lei exige uma exposição apenas sucinta dos fundamentos da decisão a fundamentar; que, por isso, não deve ser um “máximo” o conteúdo exigível da declaração fundamentadora; e que o grau de fundamentação há-de ser o adequado ao tipo concreto do acto e das circunstâncias em que o mesmo foi praticado, de molde a satisfazer a divergência existente entre a posição da Administração Fiscal e a do contribuinte».”[12]
E a doutrina converge com esse entendimento:
“Como o STA vem entendendo, a exigência legal e constitucional de fundamentação visa, primacialmente, permitir aos interessados o conhecimento das razões que levaram a autoridade administrativa a agir, por forma a possibilitar-lhes uma opção consciente entre a aceitação da legalidade do acto e a sua impugnação contenciosa. Para ser atingido tal objectivo a fundamentação deve proporcionar ao destinatário do acto a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela autoridade que praticou o acto, de forma a poder saber-se claramente as razões por que decidiu da forma que decidiu e não de forma diferente.”[13]
4.1) A NECESSIDADE DE SIMPLIFICAÇÃO E A CO-RESPONSABILIZAÇÃO DIALÓGICA
Decorre das considerações precedentes que a fundamentação, até por causa do imperativo da clareza, deve ser simples – sem deixar de ser plena –.
Se a fundamentação se encontra já formulada completamente num determinado passo de um procedimento ou processo, é mais do que desnecessário, por redundância, repeti-la: pode ser até contraproducente, convertendo-se numa penosa reformulação de tudo o que já foi dito, de tudo o que já foi argumentado, de tudo o que já foi documentado – contribuindo presumivelmente para a entropia informativa por excesso, redundando, no final, em desinformação e vulnerabilização daquele a quem a informação deveria precipuamente aproveitar, que é o seu destinatário.
É, como vimos, o que acabou consagrado no nº 1 do art. 77º da LGT.
Nesse mesmo sentido reconheceu-se já, em sede de arbitragem tributária, que “quando o ato tributário (liquidação adicional de imposto, por exemplo) surge na sequência e em consequência dum procedimento inspetivo levado a cabo pela Administração Fiscal, a dialética ou diálogo que necessariamente se estabelece entre o contribuinte e a inspeção tributária, hão-de tornar difícil, em princípio, o não cumprimento ou até o cumprimento deficiente desse ónus de fundamentação na medida em que a decisão final se vai construindo ao longo desse processo com a participação do contribuinte”[14].
Essa edificação “dialógica” de uma fundamentação tem acolhimento crescente na doutrina e na jurisprudência, embora não tenha ainda o reconhecimento que lhe seria devido, em todas as suas implicações – pioneiramente formuladas, de modo lapidar, por Saldanha Sanches: “Ao co-responsabilizar o sujeito passivo pela decisão final, a participação deste na audição prévia pode também contribuir para uma distinção entre as suas posições que merecem e não merecem tutela jurídica”[15].
Um outro corolário da edificação “dialógica” de uma fundamentação é a admissão de uma possibilidade que de outro modo se entenderia como uma derrogação do princípio da contemporaneidade: a possibilidade de a cumulação de informação ao longo do processo deixar transparecer de forma mais completa uma fundamentação inicial, sem que isso constitua uma fundamentação sucessiva ou a posteriori de actos tributários ou administrativos. Como se lê numa decisão arbitral,
“decorre do pedido de pronúncia arbitral e das impugnações administrativas que o precederam que a Requerente se apercebeu de que o Relatório da Inspecção Tributária estava subjacente às correcções efectuadas, cuja fundamentação foi expressamente assumida nas decisões da reclamação graciosa e do recurso hierárquico, que precederam a apresentação do pedido de pronúncia arbitral. […] No caso em apreço, apesar da falta de referência expressa à fundamentação no acto de liquidação, a Requerente impugnou-o através de reclamação graciosa e de recurso hierárquico, em cujas decisões ficou claro que a fundamentação do acto de liquidação é a que consta do Relatório da Inspecção Tributária que antecedeu a liquidação, que foi adoptada, no essencial, por último, na decisão do recurso hierárquico […] Por outro lado, quanto ao IRS, a quantia liquidada é exactamente a que foi indicada no Relatório da Inspecção Tributária, pelo que não há razão para duvidar que foi com base neste Relatório que foi efectuada a liquidação e, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado na sequência da notificação da decisão do recurso hierárquico, tem de se concluir que pode considerar-se convalidado o acto de liquidação do IRS, na linha da jurisprudência citada. Para além disso, esta fundamentação foi levada ao conhecimento da Requerente a tempo de exercer adequadamente o direito de impugnação contenciosa, que a Requerente efectivamente exerceu, como se constata pelo pedido de pronúncia arbitral.”[16]
O contexto procedimental / processual não é, em suma, indiferente para se aferir em concreto a adequação da fundamentação produzida. Como se conclui numa outra decisão arbitral,
“Deverá, desde logo, ser afastada a hipótese de existência de nulidade por falta de fundamentação, já que é bem patente a existência de um processo administrativo com junção de elementos probatórios, funcionamento do contraditório, fundamentação, conclusões […] Ou seja, todos os despachos decisórios que conduziram à liquidação contestada ou à confirmação da sua correcção, foram precedidos de informações dos serviços contendo todos os fundamentos, de facto e de direito, necessários à plena compreensão de como foi calculado o valor [§] Assim, verifica-se que o acto foi praticado num contexto procedimental susceptível de permitir ao seu destinatário ficar a saber as razões de facto e de direito […]”[17].
Por outro lado, é a desnecessidade, ou até mesmo a inconveniência da repetição de fundamentações que ditam a possibilidade de fundamentação “por relação”, “por remissão” ou “por referência”, tal como elas encontram tradução no art. 77º da LGT. Daí infere a doutrina:
“devem ter-se por fundamentadas as liquidações derivadas das correcções da inspecção quando do relatório constam as razões dessa correcção e posterior liquidação. Nesse caso, para se saber se o acto da liquidação está ou não fundamentado, não pode o intérprete alhear-se do relatório da inspecção, uma vez que este constitui o culminar de um procedimento que um conceito amplo de liquidação necessariamente comporta. […] No plano do procedimento inspectivo tributário, admitindo a modalidade de fundamentação «per relationem» ou «per remissionem», o artigo 63.º, n.º 1, do RCPIT prevê que os actos tributários ou em matéria tributária que resultem do relatório poderão fundamentar-se nas suas conclusões, através da adesão ou concordância com estas, devendo em todos os casos a entidade competente para a sua prática fundamentar a divergência face às conclusões do relatório.[…] A importância da motivação de facto e de direito constante do procedimento de inspecção tributária, posteriormente absorvida pela decisão tributária, compreende-se tendo em vista que o acto de liquidação stricto sensu representa o culminar e um extenso e complexo procedimento administrativo assente nos actos preparatórios praticados pelos serviços de inspecção tributária que integram o procedimento de liquidação lato sensu (artigo 11.º do RCPIT)”[18].
A repetição, se fosse exigida, suscitaria até novas dificuldades, forçando à detecção da mais pequena divergência, mesmo por lapso, entre fundamentações completas e sucessivas – gerando ruído, e até possivelmente litigância, à margem da apreciação directa do mérito das decisões fundamentadas. A clareza, a acessibilidade, da fundamentação ficariam comprometidas – novamente por excesso.
Daí que seja entendimento firmado na própria jurisprudência arbitral que a alusão a “sucinta exposição” no art. 77º, 1 é para ser tomada à letra:
“Entende o Tribunal Arbitral não ser necessária grande explanação sobre o sentido e extensão do dever de fundamentação expressa e contextual dos atos tributários. Por isso, aborda a matéria apenas na perspetiva da aplicação ao caso concreto, pondo o acento tónico nos aspetos aqui relevantes. De acordo com o n.º 2 do art.º 77.º da LGT, a fundamentação pode ser efetuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento de matéria tributável e do tributo”. Entre as várias razões que justificam a exigência da fundamentação, como as de propiciar ao decisor um momento de reflexão antes de emitir a sua vontade funcional, de garantir a transparência da atuação administrativa, de assegurar a possibilidade e eficácia do controlo hierárquico ou jurisdicional, sobressai a de possibilitar ao interessado administrado a formulação de um juízo consciente sobre a conveniência de aceitar ou impugnar graciosa ou contenciosamente o ato. […] a possibilidade de intelecção dos fundamentos do ato tributário, e consequentemente da capacidade significante do discurso fundamentador, não é a mesma em todas as situações em que os mesmos são praticados. [§] Daí que o discurso fundamentador para poder ser entendido não careça de especial densidade significante. [§] No caso dos atos tributários, cuja prolação acontece após um “diálogo” estabelecido anteriormente com o administrado, nomeadamente através da sua notificação para apresentação de documentos ou prestação de informações ou, ainda, da sua audição sobre os relatórios efetuados nos procedimentos de inspeção tributária à sua concreta atividade, a possibilidade de apreensão dos fundamentos do ato aumenta e, consequentemente, diminui a exigência da espessura da sua declaração formal.”[19]
Ou, numa formulação ela própria mais sucinta:
“o que importa é que, ainda que resumidamente ou de forma sucinta, se conheçam as premissas do ato e se refiram todos os motivos determinantes do conteúdo resolutório”[20]
As mesmas razões de economia e racionalidade de meios, aditadas à consciência de que a fundamentação se vai, não raro, adensando “dialogicamente” ao longo do processo, têm levado a jurisprudência a reconhecer que a fundamentação excessivamente minuciosa pode ser o contrário daquilo que teleologicamente se visa com uma verdadeira fundamentação – dispensando minúcias ainda onde elas notoriamente não contribuíssem já para a partilha de informação entre administração e contribuintes, numa espécie de efeito de “rendimento marginal decrescente” da própria informação. Daí que a referência a princípios, a regimes, ou a quadros normativos, possa dispensar a enunciação completa de tudo o que corresponde a esses princípios ou a esses regimes ou a esses quadros normativos.
Assim, por exemplo, para que a fundamentação de direito se considere suficiente, o Supremo Tribunal Administrativo tem decidido que
“não é sempre necessária a indicação dos preceitos legais aplicáveis, bastando a referência aos princípios pertinentes, ao regime jurídico ou a um quadro legal bem determinado, devendo considerar-se o acto fundamentado de direito quando ele se insira num quadro jurídico-normativo perfeitamente cognoscível – entre tantos outros, os acórdãos proferidos pela 1ª Secção do STA […] Conforme se dá nota no acórdão da Secção do Contencioso Administrativo proferido em 27/05/2003, no proc. n.º 1835/02, «tem sido entendimento deste Supremo Tribunal Administrativo que, na fundamentação de direito dos actos administrativos não se exige a referência expressa aos preceitos legais, bastando a referência aos princípios jurídicos pertinentes, ao regime legal aplicável ou a um quadro normativo determinado […]. Mais do que isto, tem sido dito que em sede de fundamentação de direito, dada a funcionalidade do instituto da fundamentação dos actos administrativos, ou seja, o fim meramente instrumental que o mesmo prossegue, se aceita um conteúdo mínimo traduzido na adução de fundamentos que, mau grado a inexistência de referência expressa a qualquer preceito legal ou princípio jurídico, possibilitem a referência da decisão a um quadro legal perfeitamente determinado […] Orientação que, aliás, foi acolhida pelo Pleno daquela Secção, no acórdão de 25/03/93, no proc. n.º 27387, no qual se afirma que o dever de fundamentação fica assegurado sempre que, mau grado a inexistência de referência expressa a qualquer preceito legal ou princípio jurídico, a decisão se situe num determinado e inequívoco quadro legal, perfeitamente cognoscível do ponto de vista de um destinatário normal, concluindo-se, assim, que haverá fundamentação de direito sempre que, face ao texto do acto, forem perfeitamente inteligíveis as razões jurídicas que o determinaram.”[21].
Com limites, naturalmente:
“Enferma de vício de falta de fundamentação de direito o acto que não contém, nem em si mesmo nem nas informações para que remete, a citação dos preceitos legais ou a invocação dos princípios jurídicos que determinaram o indeferimento da pretensão do requerente.”[22]; e “mesmo admitindo, excecionalmente e em casos muito atípicos (dificilmente compatíveis com a natureza da obrigação jurídica tributária de origem estritamente legal), que na fundamentação do ato não sejam mencionados os normativos legais em concreto subjacentes à decisão, sempre se terá de indicar o quadro legal que conduziu ao ato ou decisão, e este deve ser perfeitamente cognoscível do ponto de vista de um destinatário normal, de modo que sejam perfeitamente inteligíveis as razões jurídicas que o determinaram”[23].
No mesmo sentido da fundamentação sucinta, minimalista até, contra a fundamentação “quilométrica”[24], tem-se entendido que os requisitos da fundamentação devem ser reponderados face às necessidades dos “processos de massa”, compreendendo-se e aceitando-se que a fundamentação associada a tal produção de actos em massa se faça em moldes crescentemente padronizados, aproveitando-se as possibilidades tecnológicas, desde que, por essa via, não se coloque em causa o disposto no art. 77º da LGT ou as finalidades que se visam com o direito à fundamentação[25].
Admite-o com grande amplitude a doutrina e a jurisprudência, referindo-se à massificação genérica do fenómeno tributário e à padronização e informatização implicadas nessa massificação:
“Nos actos de liquidação de IRS, atenta a sua natureza de “processo de massa”, o dever de fundamentação é cumprido pela Administração fiscal de forma “padronizada” e “informatizada”, mas sem que possa deixar de observar o disposto no n.º 2 do artigo 77.º da LGT ou de pôr em causa as finalidades do direito à fundamentação.”[26].
Admite-o também a Lei. Lembremos a consagração desse mesmo princípio no nº 3 do art. 153º do CPA:
“Na resolução de assuntos da mesma natureza, pode utilizar-se qualquer meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde que tal não envolva diminuição das garantias dos interessados.”
4.2) A IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
Por uma questão de igualdade de armas, o conhecimento do itinerário cognoscitivo, valorativo e volitivo que culminou na escolha dos valores da liquidação, e não de outros quaisquer, incumbe à entidade autora do acto, não sendo concebível que recaia sobre o contribuinte o ónus de enunciar ele próprio os argumentos fundamentadores do acto impugnado, para de seguida os poder aceitar ou contradizer[27]: esse o sentido do dever de fundamentação consagrado genericamente no art. 268º da Constituição e no art. 77º da LGT.
Nem se aceitará que o dever de fundamentação seja tão atenuado na presença de um destinatário sofisticado que isso levasse a entender-se que caberia a esse destinatário convalidar a ausência de fundamentação através da sua própria iniciativa: mesmo que o contribuinte seja uma estrutura organizativa de grande dimensão e tecnicamente muito sofisticada, é de entender-se “que o cumprimento deficiente do dever de fundamentação a cargo da AT não pode ser convalidado pela acção do contribuinte, independentemente da dimensão organizativa ou da sofisticação dos seus serviços”[28]
Em contrapartida, não poderá deixar de se levar em conta que o discernimento do concreto destinatário da fundamentação é um elemento a ser ponderado para se aferir se, sim ou não, a fundamentação lhe propiciou a ele, em concreto a ele e naquelas precisas circunstâncias – e não noutras mais remotas ou abstractas – a formulação de um juízo consciente sobre a conveniência de aceitar ou impugnar, graciosa ou contenciosamente, o acto: daí que, em decisões arbitrais, se tenha concluído que houve fundamentação nos termos exigidos porque
“da leitura do Relatório Inspetivo, da sua descrição dos factos e da conclusão jurídica que deles foi retirada, resulta a enunciação clara da via que conduziu à decisão procedimental. Esta conclusão é, aliás, confirmada pela atuação da Requerente, que só poderia ser assumida por quem entendeu perfeitamente a decisão e a sua fundamentação.”[29]; ou que “de tudo isso ficou absolutamente ciente e consciente a impugnante já que doutro modo não se compreenderia a invocação dos fundamentos da liquidação para, de seguida, os impugnar nesta ação arbitral. [§] Ou dito doutro modo: não era possível a requerente assumir a posição impugnatória que assumiu neste processo sem ter entendido perfeitamente a decisão de liquidação objeto de impugnação e as razões que nortearam a Autoridade Tributária nesse sentido”[30].
Na verdade, a fundamentação envolve também uma aferição pela sua eficácia, ou seja, pela “impressão do destinatário” – não no sentido de ela dispensar a verificação dos requisitos objectivos da sua verificação (até porque, lembremos, não é somente da protecção dos interesses do destinatário, da “função garantística” da fundamentação, que se trata, estando também em jogo a própria transparência e correcção objectiva do processo decisório, a “função endógena” da fundamentação[31]), nem no sentido psicologista de se remeter a uma indagação dos estados subjectivos de convicção do destinatário (o que seria impossível), mas sim no sentido de essa fundamentação ter a respectiva clareza avaliada pelo padrão do declaratário médio ou do declaratário concreto se este dispuser de mais informação do que o declaratário médio – como resulta do princípio geral consagrado no art. 236º, 1 e 2, do Código Civil.
É aliás, no nosso entendimento, esse princípio geral da “impressão do destinatário” que confere autonomia à questão formal da fundamentação, que é essencialmente uma questão de acesso à informação relativa aos motivos que levaram a Administração a actuar como actuou, as razões em que fundou a sua actuação – e que tem que ser separada dessa outra dimensão material da fundamentação, que se refere à validade substancial do acto, respeitante à correspondência desses motivos à realidade, e à suficiência dessa correspondência para legitimar a concreta actuação administrativa[32].
Sendo que é no plano formal – demarcando-o por sua vez do tema da notificação, que não se confunde com ele[33] – que se indaga autonomamente sobre o cumprimento do dever de fundamentação, remetendo as questões materiais para a apreciação do mérito.
Como lapidarmente se estabelece numa decisão arbitral,
“No caso em apreciação, verifica-se que a Requerida Autoridade Tributária deu a conhecer, através do relatório de inspeção, a fundamentação pela qual, na perspetiva daquela, a Requerente não podia deixar de incluir no valor tributável para efeitos de IVA o valor relativo à subvenção em apreço. [§] Ora, do teor do relatório de inspeção que subjaz à liquidação de IVA e JC, resultam de forma expressa, suficiente e congruente as razões de facto e de direito em que se respalda tal posicionamento da Autoridade Tributária. [§] Se estes pressupostos e razões aportados pela Autoridade Tributária para o relatório inspetivo são ou não substantivamente válidos é questão que tem a ver com o mérito e já não com a forma e que, portanto, se coloca numa outra dimensão de que não cumpre, neste ponto, conhecer. [§] In casu, fica patenteado o critério (mal ou bem) trilhado pela Autoridade Tributária.”[34].
Por outras palavras, tem-se entendido que, no que concerne aos vícios de forma de actos administrativos – como o acto tributário – as irregularidades devem considerar-se como não essenciais desde que seja atingido o objetivo visado pela lei com a sua imposição[35].
Afigura-se pacífico na jurisprudência, assim, que
“não ocorre o vício formal de falta de fundamentação se a própria impugnante expressamente revela ter compreendido perfeitamente o processo lógico e jurídico que conduziu à decisão de tributação, reconhecendo ter percebido os pressupostos concretamente levados em conta pelo autor do acto e as razões por que foram alcançados os valores tributados, denunciando o percurso cognoscitivo e valorativo percorrido”[36].
E quando o STA estabelece que “Não vale como fundamentação a motivação apresentada posteriormente à prática do acto, nem a constante de peças instrutórias anteriores para as quais não tenha sido feita remissão, expressa ou implícita.”[37], isso equivale a admitir-se que a remissão possa ser implícita, ou seja, decorrente do próprio contexto do acto tributário, ou do qual este emerge[38].
Admitamos, em contrapartida, que não seria razoável daí inferir que toda a reacção jurídica do contribuinte revelaria, ipso facto, a “impressão do destinatário” demonstrativa da suficiência da fundamentação – até pela elementar razão de que entender uma fundamentação não é aceitar essa fundamentação, nem considerá-la sequer verdadeira, adequada ou completa.
Como já se observou em sede arbitral,
“Este argumento, tal como é apresentado, improcede e podia mesmo conduzir, em tese, à inadmissibilidade da invocação (ou à irrelevância da consideração) do vício de falta de fundamentação dos actos caso o sujeito passivo recorresse aos Tribunais (fossem arbitrais ou judiciais). O facto de se apresentar um pedido de pronúncia não permite demonstrar, por si, que o acto estava devidamente fundamentado”[39].
Ou, pelo já aludido prisma respeitante à correcção do próprio processo decisório,
“o legislador quis que a administração não decidisse imponderadamente, obrigando-a a plasmar na fundamentação as razões da sua opção, de tal modo que a própria administração se aperceba, ao fundamentar, do bem ou mal fundado da sua escolha, a tempo de emendar a mão, se disso for caso, e que o acto se apresente transparente. Isto para concluir que não é decisivo o argumento, aliás, frequente, de acordo com o qual só o facto de o acto ter sido contenciosamente recorrido, com a decorrente imputação de vícios, já demonstra que ele estava devidamente fundamentado”[40].
Mas, de acordo com o princípio geral da relevância do conhecimento, pelo declaratário, da vontade real do declarante, como estabelecido no nº 2 do art. 236º do Código Civil, não pode ser juridicamente indiferente, para a aferição da suficiência da fundamentação, a conduta do declaratário que seja reveladora da compreensão concreta, real, contextual, daquilo que foi transmitido juntamente com a decisão.
A doutrina afirma-o, aceitando que esteja cumprido o dever de fundamentação se, pela posição que toma e argumentos que utiliza, se evidencia que o contribuinte apreendeu as razões ou motivações, de facto e de direito, do autor do acto[41].
Compreende-se a essa luz a “ratio decidendi” de arestos como estes:
“é patente do articulado da contribuinte que a mesma compreendeu, na íntegra, os diversos motivos fácticos que determinaram as correcções aritméticas propostas pela AT no Relatório de Inspecção. [§] Na verdade, as divergências existentes entre a AT e a contribuinte, são, como resulta do processo, questões de Direito”[42]; ou “uma vez que se trata de uma correcção aritmética, derivada da acção de inspecção […], foi possível à Requerente conhecer o itinerário valorativo e cognoscitivo seguido pela AT para proceder à liquidação. Do teor do argumentário ínsito do presente processo resulta ter efectivamente a Requerida conhecimento desse itinerário”[43].
É da “impressão do destinatário”, para pedirmos emprestada a categoria civilística, que se trata neste critério de ponderação quanto ao preenchimento dos requisitos da fundamentação, ao menos na sua teleologia “garantística”; e isso fica perfeitamente plasmado na fórmula canónica da jurisprudência dos tribunais superiores:
“Segundo a jurisprudência uniforme deste STA, e atendendo à funcionalidade do instituto da fundamentação dos actos administrativos, ou seja, ao fim instrumental que o mesmo prossegue, um acto estará devidamente fundamentado sempre que um destinatário normal possa ficar ciente do sentido dessa mesma decisão e das razões que a sustentam, permitindo-lhe apreender o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pela entidade administrativa, e optar conscientemente entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação”[44].
Releva, portanto, não só que o contribuinte tenha recebido, em notificações precedentes que conduziram à liquidação em crise, os elementos que habilitariam o destinatário médio, na situação em que a Requerente se encontrava (conhecedora das liquidações originais relativas aos anos em causa e do relatório da inspecção), a aperceber-se das razões por que foram efectuadas as liquidações; mas também que, fruto de uma protraída e complexa interacção com a AT sobre o tema em que volta a centrar-se o presente litígio, estejamos numa situação em que o destinatário da fundamentação dispõe de elementos informativos relevantes, para lá daqueles que seriam de esperar estivessem acessíveis, com clareza, ao contribuinte médio.
Da co-responsabilização que emerge de uma tal visão “dialógica” sobre a fundamentação, nos termos da qual a decisão final da Administração se vai construindo ao longo de um processo com a participação do contribuinte e em diálogo com ele, resultam corolários que, como dissemos, se encontram ainda insuficientemente explorados, como este que é apontado logo, de forma pioneira:
“Na medida em que algum dos sujeitos tomar numa qualquer fase do processo uma posição claramente contraditória com a posição tomada anteriormente no mesmo processo, ele está pelo menos a venire contra factum proprium e a violar o princípio da boa fé”[45].
Voltaremos, no final, a este ponto.
5) DE REGRESSO AO CASO
Tecidas estas considerações de ordem mais abstracta, que ajudaram a esclarecer os pressupostos do nosso entendimento, cumpre regressar à consideração do caso em apreço.
Notificado que foi o sujeito passivo da fundamentação das correcções em sede de procedimento de inspecção, não necessitariam os actos de liquidação que lhe seguiram de reproduzir novamente todos os fundamentos já invocados, devendo a nota de cobrança remetida ao sujeito passivo conter apenas os elementos próprios do acto de liquidação, ou seja a referência à decisão judicial objecto de execução / concretização, e a menção de que “A liquidação efetuada corresponde à execução da decisão proferida no processo contencioso identificado, no âmbito do qual foi remetida a V. Exa. a respetiva fundamentação”, como precisamente sucedeu com a notificação da liquidação oficiosa de IRC nº 2017... .
No que respeita ao exercício de 2012, a Requerente sabe que o montante considerado a título de resultado da liquidação está dependente do aumento do montante dos benefícios fiscais que, nos termos da decisão de procedência da acção arbitral nº 191/2016-T, lhe foi reconhecido.
O valor de €5.637.538,95, insiste-se, é o valor do RFAI que estava já em causa no processo nº 191/2016-T, como se constata no próprio PPA.
Assim, no contexto em que foi efectuada a notificação, conhecendo a Requerente o RIT que foi elaborado na acção inspectiva referente ao exercício de 2012 e a decisão arbitral proferida no processo nº 191/2016-T, é de concluir que era perfeitamente possível à Requerente aperceber-se das razões de ter sido efectuado aquele aumento de €5.637.538,95 a título de «resultado da liquidação», em relação ao valor que constava da liquidação anterior, nº 2016... .
Mais do que possível, visto que a Requerente discutiu e contestou essas razões, apercebendo-se efectivamente delas, portanto.
Na verdade, a Requerente sabia que a AT entendia que o benefício fiscal do RFAI estava sujeito ao limite que resulta do artigo 92º do CIRC (como defendera já no RIT) e que o limite máximo de utilização de benefícios fiscais por dedução à colecta, resultante da aplicação do artigo 92º do CIRC, já tinha sido atingido mesmo sem o benefício fiscal do RFAI, que, no processo nº 191/2016-T, se entendeu poder usufruir.
A Requerente tinha a sua própria interpretação sobre as relações de especialidade entre as normas do RFAI e a norma do CIRC – uma interpretação dificilmente coadunável com a natureza de excepcionalidade que têm todos os benefícios fiscais, e com o condicionamento que impende sobre todos eles, o de visarem a promoção de interesses públicos extrafiscais somente na medida em que tais interesses sejam superiores aos interesses públicos da tributação (art. 2º, 1 do EBF).
Mas é muito claro que essa interpretação se formou numa oposição dialéctica com a interpretação oposta perfilhada pela AT em sucessivos litígios judiciais e arbitrais – uma interpretação que a Requerente conhecia, pois, detalhadamente.
Por isso, assim, era dado à Requerente aperceber-se das razões por que foi aumentado o valor do «resultado da liquidação», na medida em que aumentou o valor do benefício fiscal do RFAI.
Com efeito, se a AT entendia que, já mesmo sem esse benefício fiscal do RFAI no montante de €5.637.538,95, cujo direito veio a ser reconhecido à Requerente no processo nº 191/2016-T, o montante de benefícios fiscais por dedução à colecta excedia o limite permitido pelo artigo 92º do CIRC, é evidente que qualquer aumento dos benefícios fiscais sujeitos a esse regime tinha de se traduzir num aumento do impacto de benefícios fiscais no CIRC, isto é, um aumento do «resultado da liquidação».
6) A FUNDAMENTAÇÃO E A AUDIÇÃO PRÉVIA
De novo: ao exercer o seu direito de audição prévia, a Requerente demonstrou o conhecimento necessário da fundamentação e das suas implicações, contestando-as com o seu particular entendimento acerca do regime aplicável – e nomeadamente com a alegação de que o RFAI deve prevalecer sobre os limites previstos no art. 92º do CIRC de acordo com o princípio geral de prevalência da lei especial sobre a lei geral.
Uma vez mais, nas palavras da própria Requerente:
“Considera que esta atribuição que lhe é concedida pelo RFAI não deve ter em consideração o limite de utilização de benefícios fiscais previsto no artº 92º do CIRC. Resumindo, o enquadramento vai no sentido de que o limite de dedução específico previsto na legislação que regula o RFAI deverá prevalecer face ao limite geral de utilização de benefícios fiscais previstos no artigo 92º do CIRC.
De acordo com o seu entendimento, o CIRC dispõe o regime regra para o sector das relações que disciplina (lei geral), o legislador, em diploma próprio e autónomo (Lei nº 10/2009 de 10 de março) estabeleceu, de forma completa e expressa, toda a disciplina para um círculo mais restrito de situações, mais concretamente para o RFAI. Neste caso o conflito entre as duas normas terá de ser suprido através da aplicação do critério da especialidade segundo o qual a lei especial prevalece sobre a lei geral.
Assim, para a determinação do limite máximo dedutível do benefício do RFAI em determinado período, seria de aplicar a norma especial, ou seja, a prevista na alínea a) do nº 1 do artº 3º do RFAI pelo que as alterações legislativas ocorridas na norma do resultado da liquidação não devem ser aplicáveis ao caso concreto, pois, o limite de dedução à coleta do benefício corresponderá, em todo o caso, a 25% do montante da coleta do período, conforme expressamente definido na Lei nº 10/2009 de 10 de março.” (pp. 13-14 do RIT)
Em ponto nenhum destes argumentos surge a mais leve dúvida sobre o que estava – e está – em causa na liquidação nº 2017..., e sobre o valor de €5.637.538,95 que nela consta.
A Requerente demonstra familiaridade com o quadro normativo e com a factualidade que se lhe subsume: não há, portanto, liquidação nova, nem inesperada, nem infundamentada.
Pode a Requerente argumentar agora que não houve audição prévia, porque alega que há uma tributação nova, inesperada e não-fundamentada. Mas a verdade é que essa audição prévia ocorreu.
Na sequência do procedimento de inspecção interno que cumpriu a ordem de serviço nº OI2014..., de 2014-11-18 (por sua vez subsequente ao procedimento de inspecção interno que cumpriu a ordem de serviço nº OI2014..., de 2014-04-17), e em cumprimento do disposto no art. 60º da LGT e no art. 60º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária (RCPIT), a Requerente foi notificada através do ofício nº..., de 2015-02-26, para exercer no prazo de 15 dias o direito de audição sobre as correções propostas no projeto de relatório.
A Requerente exerceu esse direito.
Ora, estando assente que a liquidação controvertida resulta de procedimento inspectivo, em que foram observadas todas as formalidades legais, e consubstancia a concretização da decisão proferida na acção arbitral nº 191/2016-T, procedendo a meras correcções que resultam da aplicação estrita das normas legais aplicáveis, nenhuma audição prévia foi preterida.
No acórdão proferido no Processo nº 494/2016-T – que, lembremos mais uma vez, tem pleno paralelismo com o actual processo, com a diferença de que se reporta ao exercício de 2011 da Requerente (a Requerente deduziu um PPA contra a liquidação que deu execução à decisão arbitral proferida no Proc. 400/2015-T, em matéria referente ao exercício de 2011 – sendo que a decisão no Proc. nº 494/2016-T foi objecto de recurso para uniformização de jurisprudência[46] e de impugnação[47] e de recurso para o Tribunal Constitucional[48]) –, esclarece-se que:
“Em execução de julgado, quando não é proferida decisão sobre matérias novas, a possibilidade de participação dos contribuintes na formação da decisão executiva do julgado já ocorreu antes, no próprio processo em que for proferida a decisão exequenda, pelo que não se justificaria uma nova audição, como se conclui da regra do nº 3 do artigo 60º da LGT.
É isso que sucede no caso em apreço, pois a Requerente já se havia pronunciado no procedimento tributário sobre a questão da aplicação do regime do «resultado da liquidação», que foi a única alteração à liquidação anterior que a Autoridade Tributária e Aduaneira concretizou na execução, para além da alteração do montante dos benefícios fiscais, que resulta directamente da decisão anulatória.
Assim, não tendo havido em execução do julgado a formação da vontade da Administração Tributária sobre qualquer questão não colocada previamente à apreciação da Requerente, nomeadamente a da aplicação do regime do «resultado da liquidação», não ocorreu preterição do direito de audição.”
7) A FUNDAMENTAÇÃO NA EXECUÇÃO DE UMA DECISÃO JURISDICIONAL
Mas mesmo que das circunstâncias não resultasse inequívoco que a fundamentação existe, com todos os seus requisitos preenchidos, desde o RIT, consideremos adicionalmente que os próprios requisitos de fundamentação surgiriam atenuados nas circunstâncias específicas a que se reportam os autos, as da execução da anulação decretada no Proc. nº 191/2016-T, cabendo aqui uma reflexão mais profunda sobre o que significa fundamentar aquilo que não consiste senão numa tal execução.
No Acórdão proferido no Processo nº 494/2016-T, dado o paralelismo com os presentes autos, retiram-se conclusões sobre o que significa a fundamentação num tal contexto, e subscrevemo-las sem reservas – aditando, pois, novos argumentos àqueles que retirámos da demonstração de que a fundamentação era, e é, efectivamente conhecida pela Requerente:
“na medida em que um acto de liquidação dá execução a uma decisão jurisdicional, em cumprimento do dever de execução que é imposto à Administração Tributária pelos artigos 100º da LGT e 24º, nº 1, do RJAT, não se está perante uma actividade de natureza declarativa, mas sim executiva, pelo que não lhe são aplicadas todas as regras que se prevêem para o procedimento tributário destinado a declarar os direitos dos contribuintes.
Designadamente, quanto à fundamentação do acto de liquidação praticado em execução de julgado, não são exigidos todos elementos de fundamentação indicados no artigo 77º, nº 2, da LGT, pois, na medida em que uma liquidação praticada em execução de julgado executa a decisão exequenda, a fundamentação desta liquidação é irrelevante, pois decorre da Constituição e da lei (artigos 205º, nº 2, da CRP. 100º da LGT e 24º, nº 1, do RJAT), o dever de executar o que foi decidido nos precisos termos em que foi decidido, independentemente do entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira sobre a correcção do decidido, sobre quais as disposições legais que sustentam o sentido da decisão e sobre a qualificação adequada dos factos tributários.
Assim, um acto de liquidação praticado em execução de julgado anulatório, cujo conteúdo é total ou parcialmente determinado pelo decidido na decisão exequenda, apenas tem de ser fundamentado se tiver alguma parte inovatória, pois apenas em relação a ela é relevante a vontade da Administração.”
Acompanhamos, em suma, também quanto a este ponto central do litígio, o entendimento perfilhado no acórdão proferido no Processo nº 494/2016-T – e vemos nisso um valor em si mesmo:
"Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito", eis a regra estabelecida no art. 8º, 3 do Código Civil.
Entendemos, pois, estar abundantemente provado que houve fundamentação – toda a fundamentação exigível de acordo com o que resulta da lei e da jurisprudência dos tribunais superiores e dos tribunais arbitrais.
8) A FUNDAMENTAÇÃO QUE TRANSPARECE NO ARGUMENTO DA INCONSTITUCIONALIDADE
Um último ponto.
A familiaridade com a fundamentação do acto impugnado – e a contradição que se abriga na posterior invocação da sua inexistência ou insuficiência – é ainda manifestada pela Requerente num momento mais avançado do presente processo.
No Acórdão nº 309/2018, de 7 de Junho de 2018, o Tribunal Constitucional julgou “inconstitucional, por violação do princípio da protecção da confiança, ínsito no artigo 2.° da Constituição da República Portuguesa, a norma extraída do n.° 1 do artigo 92.° do Código do IRC, na redacção introduzida pelo n.° 1 do artigo 99.° da Lei n.° 55- A/2010, de 31 de Dezembro, na interpretação segundo a qual diminui para 10% a margem da colecta do IRC susceptível de ser utilizada pela dedução à colecta do IRC concedida ao abrigo do Regime Fiscal de Apoio ao Investimentos (RFAI), aprovado pela Lei n.° 10/2009, de 10 de março, por investimentos efectuados antes da entrada em vigor daquela alteração”.
A questão é suscitada pela Requerente em Alegações (arts. 116º segs.). E o que sustenta ela?
“está aqui em causa (neste fundamento adicional, de inconstitucionalidade) um montante de RFAI indevidamente arredado da sua utilização em 2012 por aplicação da margem de 10% do artigo 92º do CIRC que só em 2011 entrou em vigor, no montante de € 5.620.824,79, que a tanto monta o RFAI aqui implicado adquirido (mediante os correspondentes investimentos) nos anos anteriores de 2009 e 2010, em que a margem de utilização legalmente anunciada no artigo 92º do CIRC era uma bem diferente margem de 40% (2009) e 25% (2010).
Deve, pois, esta liquidação adicional de IRC ser anulada, por mais este fundamento legal, que quantitativamente se traduz num montante de € 5.620.824,79, a que acrescem os correspondentes juros compensatórios no montante de € 304.712,61 (€ 305.618,71 x € 5.620.824,79 / € 5.637.538,95), tudo num total de € 5.925.537,40.” (arts. 123º - 124º das suas Alegações)
A Requerente acaba de enunciar, de forma sucinta, no primeiro dos dois parágrafos transcritos, a fundamentação do acto que pretende impugnar – impugnar com o argumento, entre outros, de que essa fundamentação, acabada de enunciar sucintamente, não existe…
Aliás, como poderia a Requerente proceder a estes cálculos, e chegar a estas conclusões, se desconhecesse a fundamentação da decisão que pretendeu impugnar, se desconhecesse as normas fundamentantes, os factos relevantes e o processo de cálculo – e recálculo – dos valores a liquidar?
O acórdão do Tribunal Constitucional foi proferido num processo de fiscalização concreta iniciado por recurso interposto pela ora Requerente contra a decisão do processo arbitral nº 702/2014-T, e por isso a decisão do recurso fez caso julgado no processo quanto à questão da inconstitucionalidade suscitada, e implicou a reforma da decisão arbitral recorrida, nos termos do art. 80º, 1 e 2 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (na redacção da Lei Orgânica nº 1/2018, de 19 de Abril).
A decisão do Tribunal Constitucional abarca apenas uma fase da vigência do art. 92º, 1 do CIRC e um modo muito específico de interpretar essa fase de vigência, porque o recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade se reportou somente à “norma constante do artigo 99º, nº 1, da Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro, na alteração que faz ao artigo 92º, nº 1, do Código do IRC, o mesmo é dizer, norma constante do nº 1 do artigo 92º do Código do IRC na redação que lhe foi dada pelo artigo 99º, nº 1, da Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro, redação esta entrada em vigor em 2011, na medida em que diminui a margem da coleta do IRC suscetível de ser consumida por benefícios fiscais, incluindo o Regime Fiscal de Apoio ao Investimentos (RFAI), de 25% (em vigor em 2010) para 10% da coleta do IRC”.
O próprio Tribunal Constitucional, em sede de “Fundamentação / Delimitação do objecto do recurso”, estabeleceu que “a identidade normativa que deve existir entre a interpretação da norma e a interpretação que o tribunal, ao julgar o caso, fez de tal norma, implica que se restrinja a formulação da recorrente aos benefícios fiscais concedidos em sede RFAI por investimentos efetuados antes da entrada em vigor da Lei nº 55-A/2010, de 31 de dezembro, ou seja, pelos que foram realizados em 2009 e 2010”; e depois, na parte relativa ao “Mérito do recurso”, esclarece que “não se questiona a constitucionalidade da norma da “limitação de benefícios fiscais” extraída do nº 1 do artigo 92º, do CIRC, na redação que lhe foi dada pela Lei nº 55-A/2010, de 31 de dezembro, mas tão-somente os efeitos retroativos que tal norma determina.”.
Ora – como poderia a Requerente, sem conhecer a fundamentação que expressamente enunciou de forma sucinta, sem conhecer perfeitamente os factos e o direito fundamentadores da decisão impugnada nos presentes autos, sem conhecer as bases de cálculo dos montantes liquidados, chegar tão agilmente, tão seguramente, à conclusão de que a liquidação em crise seria agora de €5.620.824,79, em vez dos originais €5.637.538,95? Ou que o valor total em causa, por adição dos juros compensatórios, seria agora – alegadamente – de €5.925.537,40, em vez dos originais €5.943.157,66?
Como fazê-lo, sem contraditoriamente assumir que a fundamentação existe e foi perfeitamente entendida?
Há sim, sabemo-lo, um conflito de interpretações quanto ao regime aplicável aos benefícios fiscais do RFAI, em matéria de articulação e prevalência desse regime face ao disposto no art. 92º do CIRC. A Requerente discorda da fundamentação apresentada pela AT, e já explicitamente veiculada no RIT, e que converge para a prevalência desse art. 92º CIRC – prevalência que a Requerente contesta desde que exerceu o seu direito de audição prévia.
Mas contestar uma fundamentação é a prova de que essa fundamentação existe, não o contrário.
9) SÍNTESE CONCLUSIVA
No meu entender,
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O que materialmente está em jogo é a execução espontânea de uma sentença, processo durante o qual um dos resultados necessários de subordinação ao enquadramento legal foi a liquidação correctiva cuja legalidade o PPA coloca em questão. Trata-se de uma liquidação meramente correctiva, podendo discernir-se com clareza e detalhe, na fundamentação disponível, o processo de cálculo que a ela conduziu.
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Houve abundante fundamentação, sendo que a notificação da liquidação remete adequadamente para um extenso e denso acervo informativo e justificativo que permitiu à Requerente aperceber-se, minuciosamente, de todos os passos seguidos na liquidação – o que é ilustrado ainda, seja pela circunstância de este processo ser apenas um passo mais numa sequência de litígios nos quais as fundamentações, e as contestações às fundamentações, foram copiosamente produzidas e exploradas, reproduzidas e re-exploradas das mais diversas formas e nas mais variadas instâncias; seja pela circunstância de todo o processo administrativo antecedente ao PPA, em especial o RIT para o qual a liquidação remete, conterem fundamentação que é entendida como suficiente e adequada por uma jurisprudência consolidada pelos tribunais superiores.
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Houve audição prévia, tendo a Requerente participado na formação da decisão executiva do julgado, como está documentado, tendo aí ocasião de expor a maior parte dos argumentos que retoma no PPA – argumentos que não perderam a sua validade, já que a AT não praticou mais nenhum acto em execução do julgado para lá daqueles que, sujeitos à apreciação da Requerente, vieram a consubstanciar-se na liquidação em crise.
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É contraditório, e não se coaduna com uma visão dialógica e co-responsabilizadora do processo, que se discuta o teor de uma fundamentação no exercício do direito de audição prévia, para mais tarde se alegar que essa fundamentação não existe.
(Fernando Araújo)
[1] O RFAI surgiu, como uma medida conjuntural, transitória e de âmbito regional, com vocação de estímulo anti-cíclico em determinados sectores de actividade tidos por vulneráveis ou críticos, no âmbito do programa orçamental designado «Iniciativa para o Investimento e Emprego», aprovado pela Lei nº 10/2009, de 10 de Março (Orçamento Suplementar para 2009), sendo sucessivamente prorrogado pelos Orçamentos do Estado para 2010 (artigo 116º da Lei nº 3-B/2010, de 28 de Abril), para 2011 (artigo 134º da Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro) e para 2012 (artigo 162º da Lei nº 64-B/2011, de 30 de Dezembro). Em 2013, pelo nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 82/2013, de 17 de Junho, o RFAI foi transferido para o Código Fiscal do Investimento (CFI), aprovado pelo Decreto-Lei nº 249/2009, de 23 de Setembro. Atualmente encontra-se previsto no Decreto-Lei nº 162/2014, de 31 de Outubro, que aprovou o novo CFI e procedeu à revisão dos regimes de benefícios fiscais ao investimento produtivo, com regulamentação estabelecida no Decreto-Lei nº 297/2015, de 21 de Setembro.
[2] Acórdão do STA, de 05 de Setembro de 2001, Processo nº 025832.
[3] Acórdão do TCA Sul, de 31 de Outubro de 2006, Processo nº 122/04 (sublinhado nosso).
[4] J.L. Saldanha Sanches & João Taborda da Gama, “Audição-Participação-Fundamentação: A Co-Responsabilização do Sujeito Passivo na Decisão Tributária”, in Homenagem José Guilherme Xavier de Basto, p. 290.
[5] “A única fundamentação dos actos tributários a atender nos processos impugnatórios é a que consta do acto, directamente ou por remissão, pois está-se perante um contencioso de mera legalidade, em que se visa apreciar a legalidade da actuação da Administração Tributária tal como ela ocorreu, não podendo o tribunal aferir da sua legalidade com base em fundamentos que dele não constam.” - Processo n.º 144/2014 - T do CAAD.
[6] Acórdão do TCA-Sul de 4 de Dezembro de 2012, Processo nº 6134/12. Processos n.º 394/2014-T, n.º 703/2016-T, n.º 543/2017-T e n.º 10/2018-T do CAAD.
[7] Acórdão do STA de 14 de Fevereiro de 2013, Proc. nº 645/12. Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento e de Processo Tributário, 3.ª ed., pp. 113-114.
[8] Processo n.º 30/2012-T do CAAD.
[9] Acórdão do STA de 6 de Fevereiro de 1991 (sublinhado nosso).
[10] Processo n.º 30/2012-T do CAAD.
[11] Processo n.º 116/2012-T do CAAD.
[12] Acórdão do STA, Processo n.º 667/10; Proc. nº 109/2012 –T do CAAD.
[13] Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária. Anotada e Comentada, anotação ao art. 77º da LGT.
[14] Processo nº 131/2012 - T do CAAD.
[15] J.L. Saldanha Sanches & João Taborda da Gama, “Audição-Participação-Fundamentação: A Co-Responsabilização do Sujeito Passivo na Decisão Tributária”, in Homenagem José Guilherme Xavier de Basto, pp. 295ss., 304.
[16] Processo n.º 120/2015 -T do CAAD.
[17] Processo n.º 124/2015 - T do CAAD.
[18] Paulo Marques e Carlos Costa, A Liquidação de Imposto e a Sua Fundamentação, pp. 146ss.; Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento e de Processo Tributário, 3.ª ed., pp. 113ss.. (sublinhado nosso)
[19] Processos n.os 8/2011-T e 130/2012-T do CAAD.
[20] Processo nº 131/2012 – T do CAAD.
[21] Acórdão do STA, de 17 de Novembro de 2010, Proc. n.º 01051/09; Processos n.º 394/2014 -T e n.º 10/2018-T do CAAD.
[22] Acórdão do STA de 18 de Abril de 1996, Proc. n.º 36830; Processo n.º 245/2016-T do CAAD.
[23] Processo n.º 703/2016-T do CAAD.
[24] J.L. Saldanha Sanches & João Taborda da Gama, “Audição-Participação-Fundamentação: A Co-Responsabilização do Sujeito Passivo na Decisão Tributária”, in Homenagem José Guilherme Xavier de Basto, p. 291.
[25] Processo n.º 137/2013-T do CAAD.
[26] Acórdão do STA de 17 de Junho de 2009, Proc. n.º 0246/09. No mesmo sentido, os Acórdãos do TCA-Sul de 28 de Fevereiro de 2012, Proc. nº 4893/11, e de 16 de Novembro de 2004, Proc. nº 879/03.
[27] A fundamentação abrangerá tanto actos favoráveis como desfavoráveis para o contribuinte: “Diferentemente do texto constitucional (artigo 268º-4, da Constituição), em que se exige a fundamentação dos atos “(…) quando afetem direitos e interesses legalmente protegidos (…)”, em sede de procedimento tributário (art 77º, da LGT), não se entendeu restringir a exigência de fundamentação da decisão apenas aos atos desfavoráveis ao contribuinte, embora deva existir, naturalmente, uma maior densidade da fundamentação nestes últimos casos” - Processo nº 131/2012 - T do CAAD. “Esta exigência compreende-se em face da pluralidade de razões que impõem a exigência de fundamentação dos actos administrativos, que vão desde a necessidade de possibilitar ao administrado a formulação de um juízo consciente sobre a conveniência ou não de impugnar o acto, até à garantia da transparência e da ponderação da actuação da administração e à necessidade de assegurar a possibilidade de controle hierárquico e jurisdicional do acto” - Diogo Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária – Comentada e Anotada, 4ª ed., 675-676.
[28] Processo n.º 116/2012-T do CAAD.
[29] Processo n.º 130/2012-T do CAAD.
[30] Processo nº 131/2012 - T do CAAD.
[31] “Não se visa, pois, e apenas, que o particular fique ciente das razões por que a Administração decidiu de uma e não de outra maneira; quer-se, também, impor à Administração, por, esta via, uma necessária reflexão e ponderação explícitas das razões e argumentos em confronto, que a fundamentação do acto deve patentear, assim tornando transparente a actividade administrativa. Daí que não baste dizer, em demonstração do cumprimento do dever de fundamentar, que o administrado reagiu contra o acto administrativo, revelando, com essa reacção, ter atingido o alcance e razões do acto” - Processo n.º 39/2014-T do CAAD. Cfr. Processo n.º 355/2017-T do CAAD.
[32] Processos n.º 394/2014 -T e n.º 248/2016 - T do CAAD.
[33] Estabelece-o o Supremo Tribunal Administrativo: “Como este Supremo Tribunal tem vindo a dizer, uma coisa é a fundamentação do acto e outra é a comunicação desses fundamentos ao interessado: enquanto aquela constitui um vício susceptível de determinar a anulação do acto que dela padeça, o incumprimento ou cumprimento defeituoso do dever de comunicação dos fundamentos não se podem reflectir na validade do acto comunicando” – Acórdão do STA de 16 de Novembro de 2016, Proc. n.º 0954/16.
[34] Processo n.º 338/2015-T do CAAD. E acrescenta-se nesse mesmo acórdão: “A fundamentação que o nosso ordenamento jurídico impõe como condição de validade do acto que se destine a suportar, reveste tão só uma dimensão formal, que não uma dimensão substancial e consubstancia-se na explanação dos motivos aptos a suportarem a decisão final.”
[35] Processo nº 131/2012 - T do CAAD.
[36] Acórdão do STA de 30 de Janeiro de 2013, Proc. nº 0105/12; Processo nº 746/2014 - T do CAAD.
[37] Acórdão do STA de 19 de Maio de 2004, Proc. nº 0228/03 (sublinhado nosso).
[38] Como se infere no Acórdão do Processo n.º 10/2018-T do CAAD.
[39] Processos n.º 39/2014-T e n.º 339/2017-T do CAAD.
[40] Acórdão do TCA-Sul de 28 de Fevereiro de 2012, Proc. nº 4893/11.
[41] Diogo Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária – Comentada e Anotada, 3ª ed., pp. 381-382.
[42] Processo n.º: 60/2013-T do CAAD.
[43] Processo n.º 162/2014 - T do CAAD.
[44] Acórdão do STA de 2 de Dezembro de 2010, Processo n.º 0554/10.
[45] J.L. Saldanha Sanches & João Taborda da Gama, “Audição-Participação-Fundamentação: A Co-Responsabilização do Sujeito Passivo na Decisão Tributária”, in Homenagem José Guilherme Xavier de Basto, p. 302
[46] Acórdão do Pleno do STA de 07 de Junho de 2017, Proc. nº 0237/17.
[47] Acórdão do TCA de 28 de Setembro de 2017, Proc. nº 31/17.1BCLSB.
[48] Acórdão do TC nº 309/2018, de 7 de Junho de 2018.