Decisão Arbitral
I – Relatório
1.1. Banco A..., S.A., pessoa colectiva n.º..., com sede na Rua..., ..., ...-... Lisboa (doravante designada por «Requerente»), tendo sido notificada de 4 actos de liquidação adicional de IUC (identificados na listagem “Anexo A”), relativos a 4 veículos e referentes aos anos de 2014 e 2015, apresentou, em 21/3/2018, um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º e ss. do Dec.-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante somente designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista a “declaração de ilegalidade dos 4 actos de liquidação relativos a IUC em apreço, respeitantes aos 4 veículos identificados [...]; e, bem assim, dos actos de indeferimento das reclamações graciosas respeitantes aos sobreditos actos de liquidação. Requerendo-se, assim, o reembolso do montante de €901,90, respeitante ao imposto e juros compensatórios indevidamente pagos pela Requerente, bem como o pagamento de juros indemnizatórios, pela privação do referido montante de €901,90, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.”
1.2. Em 1/6/2018 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.
1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta. A AT apresentou a sua resposta em 21/6/2018, tendo argumentado no sentido da total improcedência do pedido da requerente.
1.4. Por despacho de 12/10/2018, o Tribunal considerou, nos termos do artigo 16.º, als. c) e e), do RJAT, ser dispensável a reunião do artigo 18.º do RJAT e que o processo estava pronto para decisão. Foi, ainda, fixada a data de 19/10/2018 para a prolação da decisão arbitral.
1.5. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.
II – Alegações das Partes
2.1. Vem a ora Requerente alegar, na sua petição inicial, que: a) “subjacente a estes autos encontra-se, essencialmente, uma única questão: a de saber se a circunstância de a transmissão do veículos descritos no Anexo A aos seus anteriores locatários (ou, em casos pontuais, a terceiros por aqueles indicados), findo o contrato de locação financeira ou de ALD, não ter sido registada junto da CRA, torna essa transmissão inoponível à AT, para os efeitos de proceder à cobrança do respectivo imposto junto do seu anterior proprietário”; b) “a responsabilidade para proceder ao pagamento das liquidações de IUC que ora se contestam não cabe, nem coube jamais, à Requerente”; c) “conforme a jurisprudência (mormente arbitral) tem destacado, nem mesmo durante a vigência de um contrato de locação financeira ou de ALD deve a entidade locadora ser considerada sujeito passivo do IUC. Assim sendo, e por maioria de razão, menos ainda o será após ter ocorrido o termo do contrato e o exercício, pela entidade locatária, do seu direito a adquirir o bem pelo valor residual, acrescido de despesas e IVA. É que, nestas circunstâncias, os locatários tornam-se proprietários dos veículos em questão, passado a aplicar-se-lhes o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC”; d) “a partir do momento em que os locatários adquirem os veículos, é apenas a estes, já enquanto proprietários dos mesmos, que incumbe pagar o IUC e demais encargos associados”; e) “assim sendo, as liquidações realizadas na esfera da Requerente apenas se compreenderiam [...] se para a AT tudo funcionasse como se não tivesse existido qualquer transmissão, uma vez que nenhuma foi objecto de registo. Neste cenário, cumpre então determinar se deveria proceder o argumento de que a falta de registo da transmissão operada entre a Requerente e os locatários a torna inoponível perante a AT”; f) “«estando em causa o pagamento do IUC, e não cabendo a Administração Fiscal no conceito de terceiro para efeitos de registo, uma vez que não adquire do mesmo transmitente direitos total ou parcialmente incompatíveis com os direitos do comprador, conclui-se tranquilamente que aquela não pode escudar-se na ausência do registo da transmissão para exigir o pagamento do imposto devido ao anterior proprietário, seja este uma locadora ou qualquer outra pessoa ou entidade.»”; g) “«Em suma, uma vez celebrado o contrato de compra e venda do veículo locado a favor do locatário, este adquire a propriedade do mesmo por mero efeito do contrato, e, concomitantemente, a qualidade de sujeito passivo do IUC, agora já não como locatário titular de uma opção de compra, mas como proprietário de pleno direito. Se o proprietário não proceder de imediato ao registo da propriedade a seu favor, presume-se que a propriedade continua a pertencer ao vendedor (art. 7.º do CRP), mas esta presunção é relativa, ou seja, pode ser afastada mediante prova em contrário. Só os terceiros para efeitos de registo que atuem de boa fé podem prevalecer-se da ausência de registo para (tentar) adquirir direitos sobre o bem não registado. Porém, a Administração Fiscal não preenche os requisitos legais do conceito de terceiro para efeitos de registo (previsto no art. 5.º, n.º 4, do CRP), razão pela qual não pode exigir ao vendedor o pagamento do imposto devido pelo comprador (proprietário) a partir do momento em que a presunção do art. 7.º seja afastada mediante a prova da respectiva venda.»”; h) “as considerações supra expostas – que a Requerente subscreve na íntegra, sem reservas – levam necessariamente à conclusão de que a AT não se pode servir do argumento da falta de registo de transmissão para vir exigir o imposto em falta à aqui Requerente”; i) “a falta de registo não afecta a validade do contrato de compra e venda mas apenas a sua eficácia, e, mesmo esta, unicamente perante terceiros de boa-fé para efeitos do registo; qualificação que a AT indubitavelmente não assume no caso em apreço. Conclui-se, pois, que o registo da aquisição de veículos automóveis junto da Conservatória do Registo Comercial não é condição para a transmissão da propriedade, nem afecta a sua validade”; j) “por este motivo, pois, os actos de liquidação de IUC imputáveis à ora Requerente devem ser considerados ilegais e consequentemente anulados, o que, nesta sede, expressamente se requer”; l) “as facturas já juntas pela Requerente afiguram-se suficientes para comprovar a transmissão do veículo automóvel em causa, gozando aliás da presunção de veracidade a que se aludiu supra”; m) “as mencionadas liquidações são da exclusiva e única responsabilidade da AT, que, assim, não poderá deixar de ser responsabilizada pelo pagamento de juros indemnizatórios e pela assunção das custas arbitrais.”
2.2. Conclui a ora Requerente que deve ser declarada a “ilegalidade dos 4 actos de liquidação relativos a IUC em apreço, respeitantes aos 4 veículos identificados [...]; e, bem assim, dos actos de indeferimento das reclamações graciosas respeitantes aos sobreditos actos de liquidação. Requerendo-se, assim, o reembolso do montante de €901,90, respeitante ao imposto e juros compensatórios indevidamente pagos pela Requerente, bem como o pagamento de juros indemnizatórios, pela privação do referido montante de €901,90, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.”
2.3. Por seu lado, a Requerida alega, na sua resposta, que: a) há “enviesada leitura da letra da lei” por parte da Requerente; b) a interpretação desta “não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC”; c) a interpretação da Requerente “ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço e, bem assim, em todo o CIUC”; d) “o legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1, quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados”; e) “se se entendesse que ao usar a expressão «considera-se» o legislador fiscal teria consagrado uma presunção, praticamente todas as normas de incidência em sede de IRC seriam afastadas precisamente porque a contabilidade prescreve soluções diferentes das do CIRC, sendo exatamente o fim do legislador afastar tais regras contabilísticas. A ser assim frustrar-se-ia todo o efeito útil das referidas normas”; f) “nestes termos, é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas] as pessoas em nome das quais os mesmos [os veículos] se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal”; g) “em face desta redação não é manifestamente possível invocar que se trata de uma presunção, conforme defende a Requerente. Trata-se, sim, de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel”; h) “em suma, o artigo 3.º do CIUC não comporta qualquer presunção legal”; i) “também o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio na lei”; j) “mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afeta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, nos termos estabelecidos no CIUC (que no caso em apreço constitui lei especial, a qual, nos termos gerais de direito derroga a norma geral), o legislador tributário quis intencional e expressamente que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados”; l) “à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela Requerente no sentido de que o sujeito passivo do imposto é o proprietário efetivo, independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade, é manifestamente errada. E é uma interpretação errada na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no CIUC que constitui prova clara de que aquilo que o legislador fiscal pretendeu foi criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel”; m) “os atos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, na medida em que à luz do disposto no artigo 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC e do artigo 6.º do mesmo código, era a Requerente, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC”; n) “aceitando-se ser admissível a ilisão da presunção à luz da jurisprudência já entretanto firmada neste centro de arbitragem, importará ainda assim, apreciar os documentos juntos pela Requerente e o seu valor probatório com vista a tal ilisão”; o) “constituirão os contratos de locação financeira e as faturas prova suficiente para abalar a (suposta) presunção legal estabelecida no artigo 3.º do CIUC? Claramente que não [...]. As faturas não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois tais documentos não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte dos pretensos adquirentes”; p) “a Requerente não juntou cópias do referido modelo oficial para registo da propriedade automóvel quando podia e devia tê-lo feito, ou seja, no requerimento do pedido de pronúncia arbitral, encontrando-se agora precludida a possibilidade de o fazer em momento ulterior”; q) “em suma, a Requerente não logrou provar a pretensa transmissão dos veículos aqui em causa”; r) “a ser aceite a interpretação veiculada pela Requerente, então a mesma mostra-se contrária à Constituição, na medida em que tal interpretação traduz-se na violação do princípio da confiança, do princípio da segurança jurídica, do princípio da eficiência do sistema tributário e do princípio da proporcionalidade”; s) “a transmissão da propriedade de veículos automóveis não é suscetível de ser controlada pela Requerida, pois inexiste qualquer obrigação acessória declarativa quanto a esta matéria, contrariamente ao controlo que é passível de ser realizado, por exemplo, por via do prévio pagamento de Imposto Municipal Sobre Transmissão de Imóveis em matéria de transmissão de prédios. Significa isto, portanto, que o IUC é liquidado de acordo com a informação registral oportunamente transmitida pelo Instituto dos Registos e Notariado. Dito de outra forma, o IUC não é liquidado de acordo com informação gerada pela própria Requerida”; t) “consequentemente, deverá a Requerente ser condenada ao pagamento das custas arbitrais decorrentes do presente pedido de pronúncia arbitral, nos termos do artigo 527.º/1 do CPC ex vi do artigo 29.º/1-e) do RJAT [...]. O mesmo raciocínio se aplica relativamente ao pedido de condenação ao pagamento de juros indemnizatórios formulado pela Requerente”; u) “de tudo quanto supra se expôs resulta claro que os atos tributários em crise são válidos e legais, porque conformes ao regime legal em vigor à data dos factos tributários, pelo que, não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços. Assim sendo, não se encontram reunidos os pressupostos legais que conferem o direito aos juros indemnizatórios.”
2.4. Conclui a Requerida que “deverá ser julgado improcedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os atos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a Requerida do pedido.”
III – Factualidade Provada, Não Provada e Respectiva Fundamentação
3.1. Consideram-se provados os seguintes factos:
i) Uma parte substancial da actividade da ora Requerente reconduz-se à celebração de contratos de locação financeira ou de aluguer de longa duração (ALD), destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis.
ii) Os veículos identificados na lista do “Anexo A” junto aos autos (e cujas matrículas constam da mesma e se dão aqui por reproduzidas) foram dados em locação financeira e em ALD, pela ora requerente, aos clientes também aí identificados (vd. contratos constantes dos docs. 1 a 4 apensos aos presentes autos).
iii) Na data do termo dos mencionados contratos, os locatários dos referidos veículos decidiram exercer a sua opção de compra, tal como legal e contratualmente previsto. Como se demonstra pela análise das facturas de venda juntas como docs. 5 a 8 juntos aos autos, os locatários tornaram-se proprietários dos veículos em causa, tendo procedido ao pagamento do respectivo valor residual.
iv) Face à referida listagem do “Anexo A”, constata-se, em síntese, que, à data da:
1) liquidação 2015..., de 2015 (mês da matrícula Outubro), o locatário e (o novo) proprietário do “veículo 1” era B... (vd. data da venda apontada) – vd. docs. 1 e 5 junto aos autos;
2) liquidação 2015..., de 2015 (Outubro), a locatária e (a nova) proprietária do “veículo 2” era a “C..., Lda.” (vd. data da venda apontada) – vd. docs. 2 e 6;
3) liquidação 2015..., de 2015 (Fevereiro), a locatária e (a nova) proprietária do “veículo 3” era D... (vd. data da venda apontada) – vd. docs. 3 e 7;
4) liquidação 2016..., de 2014 (Fevereiro), o locatário e (o novo) proprietário do “veículo 4” era E... (vd. data da venda apontada) – vd. docs. 4 e 8.
v) A Requerente foi notificada para proceder ao pagamento dos IUC a que respeitam os actos de liquidação adicional identificados na tabela constante do “Anexo A”, tendo sido pagas as verbas em causa, no valor global de €901,90, como se atesta pelos comprovativos de pagamento juntos como docs. 9 a 12.
vi) Inconformada com as referidas liquidações adicionais, a ora Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral em 21/3/2018.
3.2. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.
3.3. Os factos considerados pertinentes e provados (v. 3.1) fundamentam-se na análise das posições expostas pelas partes e da prova documental junta aos autos.
IV – Do Direito
No presente caso, são quatro as questões de direito controvertidas: 1) saber se o art. 3.º do CIUC contém uma presunção e se a ilisão da mesma foi feita; 2) saber se, como alega a AT, a interpretação da ora Requerente não atende aos elementos sistemático e teleológico de interpretação da lei; 3) saber se, como também alega a AT, “a interpretação veiculada pela Requerente [...] mostra-se contrária à Constituição”; e 4) saber se são devidos os peticionados juros indemnizatórios. Uma nota final tratará da questão da responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais.
Vejamos, então.
1) e 2) As duas primeiras questões de direito confluem na direcção da interpretação do art. 3.º do CIUC, pelo que se mostra necessário: a) saber se a norma de incidência subjectiva, constante do referido art. 3.º, estabelece ou não uma presunção; b) saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal viola a “unidade do regime”, ou desconsidera o elemento sistemático e o elemento teleológico; c) saber - admitindo que a presunção existe (e que a mesma é iuris tantum) - se foi feita a ilisão da mesma.
a) O art. 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC, tem a seguinte redacção, que aqui se reproduz:
“Artigo 3.º – Incidência Subjectiva
1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.
A interpretação do texto legal citado é, naturalmente, imprescindível para a resolução do caso em análise. Nessa medida, afigura-se necessário recorrer ao art. 11.º, n.º 1, da LGT, e, por remissão deste, ao art. 9.º do Código Civil (CC).
Ora, nos termos do referido art. 9.º do CC, a interpretação parte da letra da lei e visa, através dela, reconstituir o “pensamento legislativo”. O mesmo é dizer (independentemente da querela objectivismo-subjectivismo) que a análise literal é a base da tarefa interpretativa e os elementos sistemático, histórico ou teleológico são guias de orientação da referida tarefa.
A apreensão literal do texto legal em causa não gera - ainda que seja muito discutível a separação desta relativamente ao apuramento, mesmo que mínimo, do respectivo sentido - a noção de que a expressão “considerando-se como tais” significa algo diverso de “presumindo-se como tais”. De facto, muito dificilmente encontraríamos autores que, numa tarefa de pré-compreensão do referido texto legal, repelissem, “instintivamente”, a identidade entre as duas expressões.
Confirmando a indistinção (tanto literal como de sentido) das palavras “considerando” e “presumindo” (presunção), vejam-se, por ex., os seguintes artigos do Código Civil: 314.º, 369.º, n.º 2, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 2, e 1629.º. E, com especial interesse, o caso da expressão “considera-se”, constante do art. 21.º, n.º 2, do CIRC. Como assinalam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, a respeito desse artigo do CIRC: “para além de esta norma evidenciar que o que está em causa em sede de tributação de mais valias é apurar o valor real (o de mercado), a limitação ao apuramento do valor real derivada das regras de determinação do valor tributável previstas no CIS não poder deixar de ser considerada como uma presunção em matéria de incidência, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73.º da LGT” (Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª ed., 2012, pp. 651-2).
b) Estes são apenas alguns exemplos que permitem concluir que é precisamente por razões relacionadas com a “unidade do sistema jurídico” (o elemento sistemático) que não se poderá afirmar que só quando se usa o verbo “presumir” é que se está perante uma presunção, dado que o uso de outros termos ou expressões (literalmente similares) também podem servir de base a presunções. E, de entre estas, as expressões “considera-se como” ou “considerando-se como” assumem, como se viu, destaque.
Se a análise literal é apenas a base da tarefa, afigura-se, naturalmente, imprescindível a avaliação do texto à luz dos demais elementos (ou subelementos do denominado elemento lógico). A este propósito, a AT alega que “também o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio na lei”, e “à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela Requerente [...] é manifestamente errada”.
Justifica-se, portanto, averiguar se a interpretação que considere a existência de uma presunção no art. 3.º do CIUC colide com o elemento teleológico, i.e., com as finalidades (ou com a relevância sociológica) do que se pretendia com a regra em causa. Ora, tais finalidades estão claramente identificadas no início do CIUC: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária” (vd. art. 1.º do CIUC).
O que se pode inferir deste artigo 1.º? Pode inferir-se que a estreita ligação do IUC ao princípio da equivalência (ou princípio do benefício) não permite a associação exclusiva dos “contribuintes” aí referidos à figura dos proprietários mas antes à figura dos utilizadores (ou dos proprietários económicos). Como bem se assinalou na Decisão Arbitral do processo n.º 73/2013-T: “na verdade, a ratio legis do imposto [IUC] antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o «proprietário económico» no dizer de Diogo Leite de Campos, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade.”
Com efeito, se a referida ratio legis fosse outra, como compreender, p. ex., a obrigação (por parte das entidades que procedam à locação de veículos) - e para efeitos do disposto no art. 3.º do CIUC e no art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 22-A/2007, de 29/6 - de fornecimento à DGI dos dados respeitantes à identificação fiscal dos utilizadores dos referidos veículos (vd. art. 19.º)? Será que onde se lê “utilizadores”, devia antes ler-se, desconsiderando o elemento sistemático, “proprietários com registo em seu nome”...?
c) Do exposto retira-se a conclusão de que limitar os sujeitos passivos deste imposto apenas aos proprietários dos veículos em nome dos quais os mesmos se encontrem registados - ignorando as situações em que estes já não coincidam com os reais proprietários ou os reais utilizadores dos mesmos -, constitui restrição que, à luz dos fins do IUC, não encontra base de sustentação. E, ainda que a AT alegue que a “opção [...] acolhida pelo legislador [...] foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários aqueles que, como tal, constem do registo automóvel”, é necessário ter presente que tal registo, em face do que foi acima dito, gera apenas uma presunção ilidível, i.e., uma presunção que pode ser afastada se apresentada prova em contrário. Neste sentido, ver, por ex., o Acórdão do TCA Sul de 19/3/2015, proc. 8300/14: “O [...] art. 3.º, n.º 1, do CIUC, consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, sendo que tal presunção é ilidível”.
Seria, aliás, injustificada a imposição de uma espécie de presunção inilidível, uma vez que, sem uma razão aparente, estar-se-ia a impor uma (reconhecidamente discutível) verdade formal em detrimento do que realmente podia e teria ficado provado; e, por outro lado, a afastar o dever da AT de cumprimento do princípio do inquisitório estabelecido no art. 58.º da LGT, i.e., o dever de realização das diligências necessárias para uma correcta determinação da realidade factual sobre a qual deve assentar a sua decisão (o que significa, no presente caso, a determinação do proprietário actual e efectivo do veículo).
Acresce que, se não se permitisse ao vendedor a ilisão da presunção constante do art. 3.º do CIUC, estar-se-ia a beneficiar, sem uma razão plausível, os adquirentes que, na posse de formulários de contratos de aquisição correctamente preenchidos e assinados, e usufruindo das vantagens associadas à sua condição de proprietários, se tentassem eximir, por via de um “formalismo registral”, ao pagamento de portagens ou coimas.
A este propósito, convém notar, também, que o registo de veículos não tem eficácia constitutiva, funcionando, como antes se disse, como uma presunção ilidível de que o detentor do registo é, efectivamente, o proprietário do veículo. Neste sentido, vd., v.g., o Ac. do STJ de 19/2/2004, proc. 03B4639: “O registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível, (presunção «juris tantum») da existência do direito (art.s 1.º, n.º 1 e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º 2, do C.Civil) bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constantes.”
No mesmo sentido, referiu, a este respeito, a Decisão Arbitral de 15/10/2013, proferida no processo n.º 14/2013-T, em termos que se acompanham: “a função essencial do registo automóvel é dar publicidade à situação jurídica dos veículos não surtindo o registo eficácia constitutiva, funcionando (apenas) como mera presunção ilidível da existência do direito, bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constante. A presunção de que o direito registado pertence à pessoa em cujo nome está inscrito pode ser ilidida por prova em contrário. Não preenchendo a AT os requisitos da noção de terceiro para efeitos de registo [circunstância que poderia impedir a eficácia plena dos contratos de compra e venda celebrados], não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda e para exigir ao vendedor (anterior proprietário) o pagamento do IUC devido pelo comprador (novo proprietário) desde que a presunção da respectiva titularidade seja ilidida através de prova bastante da venda.”
Ora, verifica-se, no caso aqui em análise, que a ilisão da referida presunção, mediante apresentação de prova em contrário (vd. art. 73.º da LGT e art. 350.º, n.º 2, do Cód. Civil), foi realizada, dado que foram apresentadas as facturas de venda (vd. docs. 5 a 8), assim como os contratos de locação financeira (vd. docs. 1 a 4).
Ainda que essas facturas não tenham sido acompanhadas de qualquer comprovativo de pagamento (mas também é certo que nenhum elemento foi apresentado nestes autos de modo a permitir duvidar, fundadamente, da veracidade das mesmas), a apresentação e a análise dos contratos de locação permite concluir – tal como sucedeu, por exemplo, na recente Decisão Arbitral de 24/11/2017, proferida no processo n.º 430/2017-T – que “tais contratos fazem supor a transferência da propriedade e uso dos veículos em causa, [pelo que se] entende [...] que a responsabilidade pelo pagamento de IUC é imputável aos locatários desses veículos e não à Requerente, como resulta do disposto no artigo 3.º, n.º 2, do Código do IUC, devendo ser anulados os actos de liquidação correspondentes aos veículos identificados”.
Note-se, ainda, que, apesar do que se disse sobre a ausência de recibo comprovativo de pagamento, as facturas juntas aos autos não deixam de constituir, também, prova dos factos alegados pela Requerente. Com efeito, como bem se refere, por exemplo, na recente Decisão Arbitral de 18/12/2017, proferida no processo n.º 425/2017-T: “desde que [as facturas sejam] emitidas na forma legal e constituam elementos de suporte dos lançamentos contabilísticos em contabilidade organizada de acordo com a legislação comercial e fiscal, os dados que delas constem são abrangidos pela presunção de veracidade a que se refere o artigo 75.º, n.º 1, da LGT. Considerada, pois, a relevância atribuída pela legislação tributária às facturas emitidas, nos termos legais, pelas empresas comerciais no âmbito da sua atividade empresarial e a presunção de veracidade das operações por elas tituladas, não pode deixar de considerar-se que as mesmas podem constituir, só por si, prova bastante das transmissões invocadas pela Requerente”.
Neste mesmo sentido, vd., ainda, por exemplo, a recente Decisão Arbitral de 8/1/2018, proferida no processo n.º 258/2017-T: “O afastamento da presunção legal obedece à regra constante do art. 347.º, do C. Civil, nos termos do qual a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto. O que significa que não basta à parte contrária opor a mera contraprova - a qual se destina a lançar dúvida sobre os factos (cfr. art 346.º do C.Civil) que torne os factos presumidos duvidosos; pelo contrário, ela tem de mostrar que não é verdadeiro o facto presumido, de forma que não reste qualquer incerteza de que os factos resultantes da presunção não são reais. Ora, a factura constitui documento contabilístico elaborado no seio da empresa e que se destina ao exterior, mormente, à AT, que dela extrai todos os efeitos inerentes em sede de valoração para incidência de diversos impostos. Logo, a menos que se demonstre a sua falsidade, as facturas presumem-se válidas para todos os efeitos legais, não podendo deixar de o ser, apenas e só, como meio de prova da transacção, relevante para efeitos de incidência de IUC. [...]. Conclui-se, assim, pela admissão da prova da venda de veículo automóvel através da demonstração da existência de emissão de fatura válida. [...]. Os elementos documentais juntos aos autos gozam da presunção de veracidade que lhes é conferida pelo sobredito art. 75.º, n.º 1, da LGT, tendo, assim, idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que suportou as liquidações efetuadas com base exclusivamente, como a Lei prevê, no registo automóvel. Estas operações de transmissão de propriedade aparente são oponíveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, porquanto, embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos em relação a terceiros quando registados, face ao disposto no art. 5.º, n.º 1, do Código do Registo Predial [aplicável por remissão do Código do Registo Automóvel], a Autoridade Tributária não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que não se encontra na situação prevista no n.º 2 do referido art. 5.º do Código do Registo Predial, aplicável por força do Código do Registo Automóvel, ou seja, não adquiriu de um autor comum direitos incompatíveis entre si.” (Itálicos nossos.)
Em face do supra exposto, e tendo em conta os elementos trazidos aos presentes autos e (também) acima identificados, considera-se que a Requerente ilidiu a presunção constante do art. 3.º do CIUC – pelo que, consequentemente, devem ser anulados os actos de liquidação de IUC aqui impugnados.
3) Conclui-se, atendendo ao supra exposto [vd. 1) e 2)], que não existiu interpretação “contrária à Constituição”, ao contrário do que é alegado pela Requerida nos pontos 107.º a 115.º da sua resposta.
4) Cabe agora apreciar, ao abrigo do art. 24.º, n.º 5, do RJAT, o pedido de pagamento de juros indemnizatórios a favor da requerente (art. 43.º da LGT e 61.º do CPPT).
A este respeito, lembrou, com acerto, a Decisão Arbitral de 19/7/2013, proferida no processo n.º 26/2013-T (decisão relativa a situação semelhante à que está em apreciação): “O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT. [...] ainda que se reconheça não ser devido o imposto pago pela requerente, por não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, determinando, em consequência, o respectivo reembolso, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito [a juros indemnizatórios] a favor do contribuinte. Com efeito, ao promover a liquidação oficiosa do IUC considerando a requerente como sujeito passivo deste imposto, a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do art. 3.º do CIUC, que, como acima abundantemente se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.”
Atendendo a esta justificação, com a qual se concorda, conclui-se, também no presente caso, pela improcedência do mencionado pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
Responsabilidade pelo Pagamento das Custas Arbitrais
Defende a Requerida, no ponto 129.º da sua resposta, que “a Requerente [deverá] ser condenada ao pagamento das custas arbitrais”, dado que “de tudo quanto supra se expôs resulta claro que os atos tributários em crise são válidos e legais, porque conformes ao regime legal em vigor à data dos factos tributários, pelo que, não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços.” (vd. ponto 132.º da mencionada resposta).
Ora, a este respeito, é necessário ter presente que, como bem refere a Decisão Arbitral de 6/10/2014 (no processo n.º 241/2014-T), “a lei é taxativa na imputação da responsabilidade pelo pagamento das custas à parte que for condenada, face ao disposto nos nºs 1 e 2, do art. 527.º do Código do Processo Civil, aplicável por força do art. 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.” (No mesmo sentido, ver, por ex., a Decisão Arbitral de 4/11/2014, no proc. n.º 231/2014-T, ou a Decisão Arbitral de 17/11/2014, no proc. n.º 171/2014-T.)
No caso destes autos, tendo procedido o pedido da Requerente (vd. supra), conclui-se que a Requerida é a inteira responsável pelo pagamento das custas.
***
V – DECISÃO
Em face do supra exposto, decide-se:
– Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação, com todos os efeitos legais, das liquidações de IUC impugnadas e o reembolso das importâncias indevidamente pagas.
– Julgar improcedente o pedido na parte que diz respeito ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor da requerente.
Fixa-se o valor do processo em €901,90 (novecentos e um euros e noventa cêntimos), nos termos do art. 32.º do CPTA e do art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
Custas a cargo da requerida, no montante de €306,00 (trezentos e seis euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique.
Lisboa, 19 de Outubro de 2018.
O Árbitro
(Miguel Patrício)
***
Texto elaborado em computador, nos termos do disposto
no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.