Decisão Arbitral
Os árbitros Conselheira Maria Fernanda Maçãs (árbitro presidente), Prof. Doutor Manuel Pires e Dr. João Taborda da Gama, acordam:
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Relatório
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A..., LDA., com o número de pessoa coletiva..., com sede na Rua..., ..., ...-... Lisboa, veio, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT), e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, apresentar pedido de constituição de Tribunal Arbitral, para obter pronúncia arbitral sobre a legalidade:
a) dos atos de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), identificados com os n.ºs 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 32.023,02, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 34.996,58, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 39.680,91, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 34.175,06, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 39.473,70, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 35.743,87, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 32.787,47, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 32.649,55, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 30.702,36, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 35.908,26, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 32.666,32 e 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 26.519,81, referentes a 2012/01, 2012/02, 2012/03, 2012/04, 2012/05, 2012/06, 2012/07, 2012/08, 2012/09, 2012/10, 2012/11 e 2012/12, respetivamente, cujas datas limites de pagamento terminaram a 15.11.2016;
b) dos atos de liquidação adicional de IVA identificados com os n.ºs 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 34.664,34, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 32.062,12, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 33.537,28, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 40.734,65, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 42.754,22, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 37.660,55, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 41.480,10, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 34.929,43, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 33.740,28, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 37.232,29, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 34.984,86 e 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 27.493,72, referentes a 2013/01, 2013/02, 2013/03, 2013/04, 2013/05, 2013/06, 2013/07, 2013/08, 2013/09, 2013/10, 2013/11 e 2013/12, respetivamente, cujas datas limites de pagamento terminaram a 15.11.2016;
c) dos atos de liquidação adicional de IVA identificados com os n.ºs 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 35.787,12, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 33.502,53, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 37.347,20, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 36.116,90, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 43.117,71, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 40.930,04, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 44.253,98, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 31.640,10, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 35.103,46, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 39.580,43, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 37.674,77 e 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 31.266,04, referentes a 2014/01, 2014/02, 2014/03, 2014/04, 2014/05, 2014/06, 2014/07, 2014/08, 2014/09, 2014/10, 2014/11 e 2014/12, respetivamente, cujas datas limites de pagamento terminaram a 15.11.2016; e
d) dos atos de liquidação adicional de IVA identificados com os n.ºs 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 39.881,52, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 30.252,85, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 39.283,49, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 40.015,26, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 40.469,06, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 42.306,65, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 41.452,78, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 32.743,36, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 36.647,82, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 38.261,78, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 37.003,65 e 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 31.948,10, referentes a 2015/01, 2015/02, 2015/03, 2015/04, 2015/05, 2015/06, 2015/07, 2015/08, 2015/09, 2015/10, 2015/11 e 2015/12, respetivamente, cujas datas limites de pagamento terminaram a 18.11.2016;
- bem como
e) das respetivas liquidações de juros identificadas com os n.ºs 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 5.832,37, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 6.262,42, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 6.969,84, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 5.882,58, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 6.668,86, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 5.916,96, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 5.315,88, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 5.185,89, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 4.765,28, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 5.462,80, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 4.858,32 e 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 3.850,92, referentes a 2012/01, 2012/02, 2012/03, 2012/04, 2012/05, 2012/06, 2012/07, 2012/08, 2012/09, 2012/10, 2012/11 e 2012/12, respetivamente, cujas datas limites de pagamento terminaram a 15.11.2016;
f) das liquidações de juros identificadas com os n.ºs 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 4.926,93, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 4.451,38, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 4.545,63, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 5.377,93, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 5.508,32, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 4.715,49, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 5.061,57, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 4.147,08, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 3.887,25, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 4.170,92, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 3.799,99 e 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 2.892,66, referentes a 2013/01, 2013/02, 2013/03, 2013/04, 2013/05, 2013/06, 2013/07, 2013/08, 2013/09, 2013/10, 2013/11 e 2013/12, respetivamente, cujas datas limites de pagamento terminaram a 15.11.2016;
g) das liquidações de juros identificadas com os n.ºs 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 3.655,11, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 3.307,65, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 3.555,91, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 3.319,71, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 3.825,80, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 3.487,76, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 3.625,13, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 2.487,53, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 2.640,25, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 2.846,50, 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 2.572,83 e 2016..., de 15.09.2016, no valor de € 2.035,55, referentes a 2014/01, 2014/02, 2014/03, 2014/04, 2014/05, 2014/06, 2014/07, 2014/08, 2014/09, 2014/10, 2014/11 e 2014/12, respetivamente, cujas datas limites de pagamento terminaram a 15.11.2016; e
h) das liquidações de juros identificadas com os n.ºs 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 2.485,71, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 1.782,49, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 2.180,72, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 2.085,00, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 1.979,65, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 1.925,39, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 1.745,28, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 1.263,42, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 1.297,26, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 1.228,23, 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 1.057,69 e 2016..., de 19.09.2016, no valor de € 807,84, referentes a 2015/01, 2015/02, 2015/03, 2015/04, 2015/05, 2015/06, 2015/07, 2015/08, 2015/09, 2015/10, 2015/11 e 2015/12, respetivamente, cujas datas limites de pagamento terminaram a 18.11.2016;
- e, ainda,
i) do ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2017..., proferido, em 31.08.2017, por despacho do Diretor de Finanças Adjunto, em regime de substituição, e notificado através do Ofício n.º..., de 05.09.2017.
Pretende ainda que a AT seja condenada ao pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, nos termos do artigo 53.º da Lei Geral Tributária (LGT).
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O pedido de constituição do tribunal arbitral, no qual se identificava o Árbitro a designar pela Requerente (o Dr. João Taborda da Gama), foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade tributária e Aduaneira (AT) que indicou como árbitro o Prof. Doutor Manuel Pires.
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Os árbitros designados pelas partes designaram por acordo, a Conselheira Maria Fernanda Maçãs como árbitro presidente, tendo comunicado a aceitação do encargo dentro do prazo.
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Notificadas as partes dessa designação, não foi apresentada qualquer reserva pelo que, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 e no n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 8 de março de 2018.
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A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral a Requerente juntou um Parecer jurídico da Prof. XXX, e, depois de identificar o objeto do processo, invocar o preenchimento dos pressupostos processuais, e descrever a atividade de acupunctura e o seu enquadramento, alegou, em síntese, o seguinte:
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Considera inexistir “base legal impositiva” dos atos de liquidação indicados em 1, invocando vários elementos interpretativos nesse sentido:
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A isenção prevista no n.º 1 do artigo 9.º do CIVA (“as prestações de serviços efectuadas no exercício das profissões de médico, odontologista, parteiro, enfermeiro e outras profissões paramédicas”) depende da definição que seja feita em cada Estado Membro, mas está condicionada a uma teleologia comum;
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A ratio dessa isenção, por imposição da Diretiva relativa ao sistema comum do IVA (Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, publicada no Jornal Oficial n.º L 347, de 11 de Dezembro de 2006), é assegurar que os benefícios da assistência médica ou paramédica – em que, pelo menos desde a entrada em vigor da Lei n.º 45/2003, de 22 de Agosto, se incluem os proporcionados pelas Terapêuticas Não Convencionais (estando a acupunctura expressamente incluída nessas TNC: n.º 2 do seu artigo 3.º) – não se tornam inacessíveis em razão do acréscimo de custos resultante da tributação;
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Como o artigo 3.º, n.º 1 da Lei n.º 45/2003 determina que se consideram “terapêuticas não convencionais aquelas que partem de uma base filosófica diferente da medicina convencional e aplicam processos específicos de diagnóstico e terapêuticas próprias”, e é exatamente isso que acontece na acupunctura (sendo, de resto, expressamente integrada no elenco das TNC por força do artigo 2.º da Lei n.º 71/2013), não há dúvidas que a acupunctura é uma TNC. Como o artigo 13.º, n.º 1, da Lei n.º 45/2003 considera que os “cidadãos têm direito a escolher livremente as terapêuticas que entenderem”, há um paralelismo total entre as atividades de acupunctura e as atividades paramédicas. Assim, todo o enquadramento legal das TNC (e da acupunctura) implica uma igualdade de tratamento com as demais atividades paramédicas, que foi reconhecida no plano fiscal com o artigo 8º-A, introduzido pela Lei n.º 1/2017, de 16 de Janeiro, com natureza interpretativa, na Lei n.º 71/2013;
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A própria AT teria tido oscilações de entendimento: num Ofício datado de 17.12.2004 recusou a isenção à atividade de acupunctura, mas admitiu aceitá-la aquando da regulamentação da Lei n.º 45/2003; mais tarde, no “Oficio da DSIVA, datado de 14.01.2005, informou que o acto de saúde de acupunctura, quando efectuado por um licenciado em medicina, por um psicólogo ou por um fisioterapeuta, poderia de facto beneficiar da isenção de IVA”; em 2007, “o Subdirector-Geral dos Impostos, dirigiu um e-mail à DGCI-Serviços de Finanças clarificando que deveriam apenas permanecer enquadrados na norma de isenção do artigo 9.º do CIVA os sujeitos passivos que exercessem as actividades e detivessem as profissões constantes do Decreto-Lei n.º 261/93 e do Decreto-Lei n.º 320/99, de 1 de Agosto, por reunirem condições para o seu exercício e serem detentores de título profissional adequado”, mas cerca de um mês depois, “o Director-Geral dos Impostos dirigiu uma nova Informação a todos os Directores de Finanças, onde invocava a iminência da regulamentação da Lei n.º 45/2003 para recomendar a suspensão da reavaliação do enquadramento para efeitos de IVA dos profissionais das TNC, parando todos os procedimentos inspectivos em curso e a emissão de actos de liquidação de IVA sobre a actividade de acupunctura.”; em 2008, a Informação n.º 1764 (...) admitiu que “relativamente à questão do enquadramento das actividades terapêuticas não convencionais, refira-se tem sido entendimento destes Serviços, que após a regulamentação da Lei n.º 45/2003 pelas entidades competentes e tendo em vista um tratamento igual ao dos profissionais da medicina convencional, será efectivamente de admitir que deixem de existir razões justificativas da exclusão destas actividades, da isenção prevista no artigo 9.º do CIVA.”, acrescentando que “pela análise da Lei n.º 45/2003 de 22 de Agosto e dos Decretos-Lei n.ºs 261/93 de 24 de Julho e n.º 320/99 de 11 de Agosto (diplomas a observar para o exercício das actividades paramédicas) se poderá encontrar semelhanças, quer em conteúdo, quer em objectivo” e que “a opção pelo tipo de terapêutica pretendida (convencional ou não convencional) é um direito que assiste ao indivíduo, não repugnaria a ideia de, o exercício das actividades terapêuticas não convencionais, poderem beneficiar da isenção prevista no art. 9.º do CIVA.”; em 2015, porém, o Ofício-Circulado n.º 30174 veio estabelecer que “não obstante o grau de licenciatura conferido e o reconhecimento de que os profissionais que desenvolvem estas profissões o fazem no âmbito de actividades de saúde numa vertente não convencional, o enquadramento legal não lhes confere uma equiparação a profissões paramédicas, cuja noção e elenco, definidos nos Decretos-Lei n.ºs 261/93, de 24 de Julho e 320/99, de 11 de agosto, permanecem inalterados” ;
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Tal entendimento seria ainda mais incompreensível face ao adotado para os psicólogos na Informação Vinculativa n.º 2933, de 02.01.2012, que invocava o Acórdão do Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia de 14 de Setembro de 2000, proferido no Processo 384/98, e face ao aditamento do artigo 8.º-A à Lei n.º 71/2013;
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Tendo tudo isso em conta, a recomendação feita ao Governo, em 2016, pela Autoridade da Concorrência (AdC) evidencia as distorções da concorrência (e a violação do princípio da neutralidade fiscal) que o entendimento da AT introduz no mercado de prestação de serviços de terapia por acupunctura (ao isentar os médicos ou paramédicos que a pratiquem, mas não os profissionais que não tenham essa outra formação), admitindo “ser inequívoco que, face ao atual quadro legal do acesso e exercício de TNC, estas atividades constituem «prestações de serviços de assistência» como de resto é reconhecido pela própria Autoridade Tributária e Aduaneira”;
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Como a AT persistia na sua posição, a Assembleia da República aprovou a Resolução n.º 217/2016, derivada de uma iniciativa do grupo parlamentar do CDS-PP que mencionava a recomendação, feita pela AdC, de formalizar a inclusão dos prestadores de TNC nas ““outras Profissões paramédicas”, para efeitos da isenção concedida ao abrigo da alínea 1) do artigo 9.º do CIVA”;
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Finalmente, a Lei n.º 1/2017, de 16 de Janeiro, veio, com carácter interpretativo, consagrar o entendimento de que “Aos profissionais que se dediquem ao exercício das terapêuticas não convencionais referidas no artigo 2.º[1] é aplicável o mesmo regime de imposto sobre o valor acrescentado das profissões paramédicas.”, introduzindo tal norma no diploma regulamentador da Lei n.º 45/2003, ou seja, em necessária consonância com as opções que dela já constavam;
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O que também foi já reconhecido pelos tribunais, designadamente:
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no âmbito do Processo de Impugnação n.º 734/14.2 BELLE, que correu termos junto da 2.ª Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé;
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na Decisão do CAAD emitida no Processo n.º 111/2017-T;
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Quanto à decisão da reclamação graciosa, imputa-lhe, além das mesmas deficiências interpretativas, o vício de fundamentação a posteriori, na medida em que introduz um requisito adicional para o reconhecimento da isenção de IVA nas TNC. Assim, “a Lei n.º 71/2013 – que regulamenta o exercício profissional das actividades de aplicação das terapêuticas não convencionais – limitou-se a desenvolver um princípio orientador que já constava da lei que visava enquadrar tais actividades, do qual resultava a equiparação do regime tributário das prestações de serviço das terapêuticas convencionais e não convencionais” ;
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Requisito esse que, em qualquer caso, entende não ser aplicável aos anos em causa nas liquidações impugnadas nos presentes autos, na medida em que não estavam disponíveis – por inércia do Estado – os mecanismos que este tinha previsto para credenciar os beneficiários da isenção, considerando que “em caso algum se poderá admitir que a AT possa condicionar o reconhecimento da isenção de IVA às actividades de acupunctura à entrega de cédulas profissionais quando, à data dos factos – leia-se, em 2013, 2014 e 2015 – nem sequer existia ainda a possibilidade de os referidos profissionais disporem de tal título profissional.” ;
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Alega ainda que a interpretação propugnada pela Requerida, isentando médicos ou outros profissionais de saúde considerados paramédicos, mas não os aplicadores de TNC que não tenham essas outras formações, padece de violação do princípio da igualdade e, na medida em que a sua aplicação estrita e literal produz efeitos que conduzem a um tratamento desigual de situações materialmente iguais ou semelhantes, padece de violação do princípio da justiça material;
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Finalmente, a mais de ter por consequencial a ilegalidade das liquidações de juros compensatórios,
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imputa-lhes falta de menção (e fundamentação) no RIT, o que também os tornaria autonomamente ilegais, qualquer que fosse a decisão sobre as liquidações do IVA de que estavam dependentes;
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bem assim como lhes imputa inexistente fundamentação, na medida em que nenhuma imputação de culpa foi feita à Requerente – e muito menos foi provada – como seria necessário para tais juros poderem ser exigidos.
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Na medida em que a AT determinou penhoras do saldo da conta bancária e de títulos na pendência da decisão do pedido de dispensa de garantia, pede ainda que seja fixada uma indemnização por prestação de garantia indevida, nos termos do artigo 53.º da LGT, “pelo valor correspondente aos constrangimentos que as referidas penhoras tiveram na actividade da Requerente”;
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A Requerida respondeu, invocando, também em síntese, o seguinte:
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Os argumentos da Requerente que se baseiam em fontes normativas – e não em pareceres, recomendações ou trabalhos preparatórios, que não vinculam o intérprete e o aplicador da lei – são contraditórios e inexatos:
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Desde logo, como “só a partir da entrada em vigor da Lei nº 71/2013 a acupunctura passou, legalmente, a integrar o conceito de TNC de forma regulamentada”, só a partir da data de entrada em vigor dessa lei poderia beneficiar da isenção de IVA “(cumprindo os demais requisitos legais, o que in casu não sucede (...)) face à introdução do artigo 8º-A na Lei nº 71/2013 (introduzida pela Lei nº 1/2017, de 16 de Janeiro)”;
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Tendo esse artigo 8.º-A natureza interpretativa, por força do disposto no artigo 3.º da Lei n.º 1/2017, seria “indiscutível que os efeitos de tal isenção só poderão retroagir até à data da entrada em vigor da Lei interpretada, mas não a momentos anteriores”;
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Ao contrário do invocado pela Requerente, a interpretação da lei feita pela AT foi coerente ao longo do tempo, sendo a referência à instrução interna da AT sobre a vantagem de um “compasso de espera” nas atividades de fiscalização sobre a prestação de serviços de TNC uma mera decisão de gestão, já que é “natural que a AT não esgote os seus recursos, natural e assumidamente limitados, a fiscalizar situações que possam, em breve, ser objecto de intervenção legislativa, no sentido de as desonerar de encargos tributários” – o que “não veio a suceder naquele momento…nem sucedeu depois nos termos esperados.”;
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Pese embora a existência de decisões jurisprudenciais em sentido divergente do entendimento da AT, “a jurisprudência não é Lei” ;
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De resto, as exigências introduzidas pela Lei n.º 1/2017 valiam já antes (as razões “invocadas para não operar qualquer isenção de IVA para o Requerente são válidas, quer para os períodos posteriores a Outubro de 2013, quer para os anteriores à mesma data, por igualdade de razões”) porque “a Lei nº 45/2003, que vigora desde 23/08/2003” previa que “a prática de TNC será credenciada e tutelada pelo Ministério da Saúde (artigo 6º do diploma legal referido), ainda acrescentando a mesma Lei, no artigo seguinte, que o Ministério da Educação definirá as condições de formação e certificação de habilitações para o exercício de TNC”, e estipulando o mesmo diploma legal que “a prática de TNC só pode ser exercida por profissionais detentores de habilitações legalmente exigidas e devidamente credenciados para o seu exercício”; o mesmo que foi exigido pela Lei n.º 71/2013, que impõe “que a cédula profissional terá de ser emitida pela Administração Central do Sistema de Saúde, IP (ACSS), que divulga os profissionais credenciados na Internet”. Ora, “O Requerente não refere um único profissional que reúna os requisitos para o exercício legal da profissão, escudando-se em prazos já largamente ultrapassados, não indicando qualquer reconhecimento pela ACSS.”
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Há uma diferença relevante entre o enquadramento geral das TNC na isenção prevista no artigo 9.º do CIVA e a subsunção da situação dos autos a essa norma; sublinhando essa diferença, escreve a AT: “se a isenção à actividade de acupunctura resulta do artigo 8º-A da Lei nº 71/2013, diploma que exige que o desempenho de actividades de TNC, isentas de IVA, esteja dependente da titularidade de grau de licenciado em áreas definidas nesse diploma (...), situação que, relembramos, não se verifica na caso sub judice, exigindo ainda o diploma legal a detenção de cédula profissional emitida pela ACSS, o que também não se verifica, nem percebemos como pode o Requerente sustentar o pedido na Lei”;
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A invocação, na decisão da reclamação graciosa, de um requisito não mencionado no RIT decorre de este ter sido introduzido supervenientemente: o RIT é de 31 de Agosto de 2016, ao passo que a Lei n.º 1/2017, é de 16 de Janeiro. Integrando, a partir dessa data o quadro legal aplicável, alega a AT que não poderia deixar de o aplicar;
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A propósito dos juros compensatórios distingue o RIT e a liquidação, considerando que “estando os juros indicados na liquidação, com referência ao preceito legal que concede esse direito ao Estado (35º da LGT), há uma remissão expressa para o preceito que fundamenta o dever de pagar tais juros”, e alega que “o Requerente conheceu ofícios a informar que a actividade que desempenhava estava sujeita a IVA, interpelou a AT que lhe respondeu que teria de liquidar e entregar IVA”, pelo que “sendo devido o imposto (...) obviamente serão devidos juros compensatórios”.
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A propósito da indemnização por prestação indevida de garantia, considera que, não havendo – como defende que não houve – “qualquer erro na liquidação do tributo”, “não opera o nº 2 do artigo 53º da LGT”; e “Não sendo a garantia mantida por período superior a três anos, a situação não se subsume ao nº 1 do artigo 53º da LGT”, e, sendo a indemnização pelas penhoras “matéria de responsabilidade civil extracontratual”, deverá ser dirimida noutra sede, entre outras partes (a Requerente e o Estado, representado pelo Ministério Público).
II. SANEAMENTO
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O tribunal arbitral foi regularmente constituído e o pedido de pronúncia contém-se no âmbito das suas atribuições (alínea a) do n.º 1 dos artigos 2.º e 4.º do RJAT e artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
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Não foram invocadas, nem se verificam, quaisquer exceções dilatórias que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa.
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O processo não enferma de nulidades.
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As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se regularmente representadas.
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A cumulação de pedidos está prevista no n.º 1 do artigo 3.º do RJAT que – à semelhança do disposto no artigo 104.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) – estabelece que a cumulação de pedidos, ainda que relativos a diferentes atos, é admissível “quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito”.
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Foi esse o caso, na medida em que os atos de liquidação do IVA, e os juros cobrados, têm idêntica fundamentação, aplicam as mesmas regras de Direito e resultaram da mesma Inspeção Tributária.
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Quanto ao ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2017..., proferido em 31.08.2017 pelo Diretor de Finanças Adjunto, em regime de substituição – que foi também incluído no objeto do processo – trata exatamente das mesmas questões, embora a fundamentação nele adotada não seja inteiramente coincidente com a que justificou os referidos atos de liquidação, como adiante melhor se verá.
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Sendo o pedido indemnizatório consequência da eventual procedência da pretensão da Requerente, também em relação a este se verificam todos os requisitos legais da cumulação de pedidos.
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Assim, tudo visto, cumpre decidir.
III.MATÉRIA DE FACTO
III.1. FACTOS PROVADOS
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A Requerente é uma sociedade por quotas com o objeto social de “Exploração de estabelecimento de consultas e de tratamentos de acupunctura, naturopatia, homeopatia e de outras terapias não convencionais, comercialização de produtos naturais, dietéticos e afins”, a cuja atividade corresponde o CAE 86906 – Outras actividades de saúde humana, desenvolvendo as atividades de acupunctura e tui ná;
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Ao abrigo das Ordens de Serviço n.ºs OI2016..., OI2016..., OI2016..., e OI2016..., a atividade da Requerente foi objeto de um procedimento de inspeção externo, que abrangeu os períodos de 2012, 2013, 2014 e 2015;
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Nessa sequência, a AT propôs uma alteração do enquadramento tributário da Requerente para efeitos de liquidação do IVA, por considerar que os serviços por ela prestados não preenchem os requisitos previstos para aplicação da isenção constante do artigo 9.º, n.º 1, do CIVA;
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O referido entendimento, conduziu a que fossem propostas correções em sede de IVA no valor global de €1.735.187,36 (um milhão, setecentos e trinta e cinco mil, cento e oitenta e sete euros e trinta e seis cêntimos), conforme resulta do seguinte quadro:
Ano
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Base tributável
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IVA a liquidar - 23%
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2012
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€1.770.986,55
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€407.326,91
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2013
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€1.875.103,70
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€431.273,85
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2014
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€1.940.522,86
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€446.320,28
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2015
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€1.957.679,64
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€450.266,32
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Totais
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€7.544.292,75
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€1.735.187,36
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A Requerente apresentou a sua resposta em sede de audição prévia ao Projeto de Relatório de Inspeção Tributária (RIT);
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Não obstante as razões aí aduzidas, a Requerente foi notificada do RIT, datado de 31 de Agosto de 2016, o qual manteve, na íntegra, as correções inicialmente projetadas pela AT;
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No RIT refere-se, com base em documentos fornecidos pela Requerente, que a atividade desta é desenvolvida por prestadores de serviços, dos quais lhe foram facultados os processos de quinze, nominativamente identificados, “com diplomas/certificados de habilitações respeitantes à formação académica de “Curso Superior de Acupunctura e Fitoterapia Tradicional Chinesa” ou “Licenciatura de Chengdu em Medicina Chinesa”, certificados pela Associação Portuguesa de Acupunctura e Disciplinas Associadas (APA-DA) e pelo Instituto Português de Medicina Tradicional Chinesa (IPMTC) e pela APPA ou pela Universidade de Medicina Chinesa Zhong Yi Da Xue, Lda (UMC)”;
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Tais cursos não são reconhecidos oficialmente em Portugal, mas quatro dos ditos prestadores de serviços tinham também habilitações em atividades paramédicas (Bacharelato em Fisioterapia; Curso de Especialização em Nutrição Clínica; Licenciatura em Análises Clínicas e Saúde Pública; Licenciatura em Ciências Farmacêuticas).
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A Lei n.º 71/2013, de 2 de Setembro – que remetia para portaria a definição das regras para a obtenção da cédula profissional exigível – determinou que, entre outras, a atividade de acupunctura estava dependente da titularidade do grau de licenciatura e da detenção de cédula profissional atribuída pela Administração Central do Sistema de Saúde, IP (ACSS);
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O termo do prazo para cumprimento da obrigação constante na disposição transitória prevista no artigo 19.º da Lei n.º 71/2013 (reconhecimento dos profissionais que em 2 de Outubro de 2013 exercessem as atividades de Terapêuticas Não Convencionais - TNC) ocorreu 180 dias após a data de entrada em vigor da Portaria n.º 172.º-C/2015, de 5 de Junho, ou seja, em 2 de Dezembro de 2015;
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Em face dos fundamentos aduzidos no RIT, a AT fixou à Requerente correções em sede de IVA no valor total de € 1.735.187,36 (um milhão, setecentos e trinta e cinco mil, cento e oitenta e sete euros e trinta e seis cêntimos) como melhor referido em iv);
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Posteriormente, a Requerente foi notificada das correspondentes liquidações de imposto e juros que contesta nos presentes autos;
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A Requerente não efetuou o respetivo pagamento, tendo apresentado, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 52.º da LGT e do artigo 170.º do CPPT, um pedido de dispensa de prestação de garantia, o qual foi julgado procedente pelo Tribunal Central Administrativo Sul;
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Paralelamente, a Requerente apresentou Reclamação Graciosa dos atos de liquidação de IVA referentes aos anos de 2012 a 2015;
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Sobre esta, a AT emitiu decisão de improcedência;
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Em 22 de novembro de 2016 foi instaurado o processo de execução fiscal n.º ...2016..., a que foram apensos os demais processos de execução fiscal;
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Na sequência do mesmo a AT emitiu penhora no montante de €1.944.276, 75, tendo sido penhorado o saldo da conta da Requerente, no Banco B..., no valor de € 12.214,33, bem como de 1.433 títulos nominativos (doc n.º 13 junto com o Pedido);
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Essas penhoras foram levantadas por despacho datado de 16.02.2017 e notificado através do Ofício n.º..., por estar pendente pedido de apreciação de dispensa de prestação de garantia;
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A Requerente apresentou reclamação graciosa dos atos de liquidação e respetivos juros, relativos aos anos de 2012 a 2015, em 14 de março de 2017;
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Em 14 de julho de 2017 a Requerente foi notificada do projeto de indeferimento da reclamação graciosa apresentada;
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Em 6 de setembro de 2017 a Requerente foi notificada do despacho de indeferimento da reclamação graciosa;
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Relativamente à incidência do IVA, mas estando só em causa o ano de 2012, uma das sociedades do Grupo da Requerente que presta serviços de TNC, a C..., Lda., obteve decisão arbitral de procedência em 25 de outubro de 2017, com fundamento em que “a Assembleia da República pretendeu que a interpretação autêntica que foi efectuada pela Lei n.º 1/2017 e aplicasse retroactivamente à actividade profissional de exercício de terapêuticas não convencionais a que se reporta a Lei n.º 73/2013, com o sentido de lhe ser aplicável do mesmo regime de imposto sobre o valor acrescentado que era aplicado às profissões paramédicas, pelo menos a partir da entrada em vigor da Lei n.º 45/2003, de 22 de Agosto.”;
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Em 22 de março de 2017, dois prestadores de serviços de acupunctura obtiveram do Tribunal Administrativo e Fiscal de ... o reconhecimento da isenção de IVA para os anos de 2010, 2011 e 2012, “nos termos do art. 9º nº 1 do CIVA e art. 8ª-A da Lei 1/2017”;
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A AT procedeu a uma inspeção externa à sociedade D..., Lda., outra das sociedades do Grupo da Requerente que presta serviços de TNC, quanto aos anos de 2013 a 2016, sendo que apenas efetuou correções ao ano de 2013, tendo considerado que a isenção de IVA para serviços de TNC seria aplicável aos restantes anos, i.e, aos anos posteriores à entrada em vigor da Lei n.º 71/2013, de 2 de Outubro de 2013.
III.2. FACTOS NÃO PROVADOS
Inexistem outros factos com relevo para apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.
III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
A factualidade provada teve por base os documentos que foram juntos aos autos pela Requerente, o processo administrativo junto pela Requerida, bem como a posição adotada pelas partes e livremente apreciada pelo Tribunal.
No caso do facto (xxi), alheio ao presente processo, a AT escusou-se a “confirmar o alegado”, mas deu “por adquirido que tal tenha acontecido” (artigo 57.º da sua Resposta).
IV. MATÉRIA DE DIREITO
IV.1. Questões decidendas
A questão central a decidir consiste em saber se as prestações de serviços de acupunctura efetuadas pela Requerente, através de prestadores de serviços, devem, ou não, ser consideradas isentas de IVA, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 9.º do Código do IVA (CIVA) e do artigo 8.-A da Lei n.º 71/2013, aditado pela Lei n.º 1/2017, de 16 de Janeiro.
Argumenta a Requerente, no essencial, que as liquidações impugnadas carecem de base legal porquanto beneficia da isenção prevista no artigo 9.º, n.º 1, do CIVA, pelo menos desde a Lei n.º 45/2003, de 22 de agosto, cujo artigo 2.º inclui a acupuntura nas terapêuticas não convencionais, solução que vai ao encontro da ratio da Diretiva relativa ao sistema comum do IVA (Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, publicada no Jornal Oficial n.º L 347, de 11 de Dezembro de 2006), que é assegurar que os benefícios da assistência médica ou paramédica não se tornam inacessíveis em razão do acréscimo de custos resultante da tributação.
Segundo a Requerente, como o artigo 13.º, n.º 1, da Lei n.º 45/2003 considera que os “cidadãos têm direito a escolher livremente as terapêuticas que entenderem”, há um paralelismo total entre as atividades de acupunctura e as atividades paramédicas. Assim, todo o enquadramento legal das TNC (e da acupunctura) implica uma igualdade de tratamento com as demais atividades paramédicas, que foi reconhecida no plano fiscal com o artigo 8º-A, introduzido pela Lei n.º 1/2017, de 16 de Janeiro, com natureza interpretativa, na Lei n.º 71/2013.
A Requerida concorda com a delimitação da questão decidenda, mas acrescenta, além dos serviços de acupunctura, a “massagem “tui na” (...) pois também esse é um serviço prestado pelo Requerente sem cobrança de IVA”.
Por outro lado, em sentido contrário ao da Requerente, alega a Requerida, em síntese, que “se a Lei n.º 1/2017 altera a Lei n.º 71/2013, acrescentando uma norma que, na prática, isenta de IVA as TNC identificadas no diploma de 2013, e se a mesma Lei n.º 1/2017 afirma que tal normativo ali introduzido tem natureza interpretativa (…), a acupuntura (cumprindo com os demais requisitos legais) estaria isenta de IVA desde a entrada em vigor do diploma alterado por norma de natureza interpretativa” (artigo 11.º da Resposta).
Acrescenta a Requerida (a fundamentar o indeferimento da reclamação graciosa e na Resposta) que, além do mais, a prática de TNC só pode ser exercida por profissionais detentores de habilitações legalmente exercidas e devidamente credenciadas para o efeito, o que não acontece no caso dos autos.
A resposta às questões colocadas impõe que se aborde, desde logo, o âmbito da isenção legal e a sua eventual evolução ao longo do tempo.
Vejamos.
IV.2. Redação das normas aplicáveis
Para melhor compreensão do subsequente percurso argumentativo, reproduzem-se as normas que podem ser relevantes para o enquadramento da situação dos autos:
É a seguinte a redação da norma invocada para beneficiar da isenção – o n.º 1 do artigo 9.º do Código do IVA:
Isenções nas operações internas
Estão isentas do imposto:
-
As prestações de serviços efectuadas no exercício das profissões de médico, odontologista, parteiro, enfermeiro e outras profissões paramédicas;
(...)
O exercício das profissões paramédicas está regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 261/93, de 24 de julho, que determina no n.º 3 do seu artigo 1.º que “As actividades paramédicas a que se refere o n.º 1 são as constantes da lista anexa ao presente diploma”, a qual elenca as seguintes, procedendo para cada uma a breve descrição: “1 - Análises clínicas e de saúde pública (...) 2 - Anatomia patológica, citológica e tanatológica (...) 3 - Audiometria (...) 4 - Cardiopneumografia (...) 5 - Dietética (...) 6 - Farmácia (...) 7 - Fisioterapia (...) 8 - Higiene Oral (...) 9 - Medicina nuclear (...) 10 - Neurofisiografia (...) 11 - Ortóptica (...) 12 - Ortopróteses (...) 13 - Prótese dentária (...) 14 - Radiologia (...) 15 - Radioterapia (...) 16 - Terapia da fala (...) 17 - Terapia ocupacional (...) 18 - Higiene e Saúde ambiental (sanitarismo)”.
Por sua vez, o n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 320/99, de 11 de agosto (“Regulamenta as profissões técnicas de diagnóstico e terapêutica e cria o Conselho Nacional das Profissões de Diagnóstico e Terapêutica como órgão de apoio ao Ministro da Saúde”) estabeleceu a lista de profissões correspondentes a essas atividades:
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técnico de análises clínicas e de saúde pública;
-
técnico de anatomia patológica, citologia e tanatológica;
-
técnico de audiologia;
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técnico de cardiopneumologia;
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dietista;
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técnico de farmácia;
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fisioterapeuta;
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higienista oral;
-
técnico de medicina nuclear;
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técnico de neurofisiologia;
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ortoptista;
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ortoprotésico;
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técnico de prótese dentária;
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técnico de radiologia;
-
técnico de radioterapia;
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terapeuta da fala;
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terapeuta ocupacional;
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técnico de saúde ambiental.
Só posteriormente, em 2003, foram reconhecidas as Terapêuticas não Convencionais (TNC), através da aprovação da Lei n.º 45/2003, de 22 de agosto (“Lei do enquadramento base das terapêuticas não convencionais”)
Este diploma limitou-se a estabelecer o “enquadramento da actividade e do exercício dos profissionais que aplicam as terapêuticas não convencionais” (artigo 1.º), cujo conceito é definido no artigo 3.º.
É a seguinte a redação do artigo 3.º :
Conceitos
1 - Consideram-se terapêuticas não convencionais aquelas que partem de uma base filosófica diferente da medicina convencional e aplicam processos específicos de diagnóstico e terapêuticas próprias.
2 - Para efeitos de aplicação da presente lei são reconhecidas como terapêuticas não convencionais as praticadas pela acupunctura, homeopatia, osteopatia, naturopatia, fitoterapia e quiropráxia.
O referido diploma estabeleceu, desta forma, os princípios orientadores (artigo 4.º) e o enquadramento geral das TNC, quanto à qualificação e estatuto profissional, remetendo a restante regulamentação para diploma a ser aprovado posteriormente. Refere expressamente o artigo 7.º, sob a epígrafe “Formação e credenciação de habilitações”, que “A definição das condições de formação e de certificação de habilitações para o exercício de terapêuticas não convencionais cabe aos Ministérios da Educação e da Ciência e do Ensino Superior”. Por sua vez, o artigo 10.º, sob a epígrafe “Do exercício da actividade”, refere, no seu n.º 1, que “A prática de terapêuticas não convencionais só pode ser exercida, nos termos, desta lei, pelos profissionais detentores das habilitações legalmente exigidas e devidamente credenciados para os eu exercício.”
Acontece que só uma década depois é que a Lei n.º 45/2003 foi regulamentada. É a seguinte a redação da norma do artigo 2.º da Lei n.º 71/2013, de 2 de setembro (“Regulamenta a Lei n.º 45/2003, de 22 de agosto, relativamente ao exercício profissional das atividades de aplicação de terapêuticas não convencionais”):
Âmbito de aplicação
A presente lei aplica-se a todos os profissionais que se dediquem ao exercício das seguintes terapêuticas não convencionais:
a) Acupuntura;
b) Fitoterapia;
c) Homeopatia;
d) Medicina tradicional chinesa;
e) Naturopatia;
f) Osteopatia;
g) Quiropráxia.
Este diploma veio regulamentar, entre o mais, o acesso à profissão (artigo 5.º, submetendo o exercício das profissões referidas no artigo 2.º aos detentores de cédula profissional (artigo 6.º) e reservando o uso dos títulos profissionais aos detentores da correspondente cédula profissional (artigo 7.º).
Finalmente, com natureza interpretativa (artigo 3.º da Lei n.º 1/2017, de 16 de janeiro) foram os profissionais das TNC equiparados aos paramédicos para efeitos de tributação em IVA.
É a seguinte a redação da norma do artigo 8.º-A da referida Lei n.º 71/2013, de 2 de setembro, aditado pela Lei n.º 1/2017:
Regime de IVA
Aos profissionais que se dediquem ao exercício das terapêuticas não convencionais referidas no artigo 2.º é aplicável o mesmo regime de imposto sobre o valor acrescentado das profissões paramédicas.
IV.3. Âmbito das normas de isenção
No caso sub judicio estamos perante duas normas de isenção: a do n.º 1 do artigo 9.º do Código do IVA, e a do artigo 8.º-A da Lei n.º 71/2013, de 2 de setembro, aditado pela Lei n.º 1/2017, de 16 de janeiro, ambas transcritas acima.
A primeira norma de isenção (a do n.º 1 do artigo 9.º do Código do IVA) delimita a exclusão de aplicação do IVA a partir de três elementos: um material (“prestações de serviços”), outro contextual (“efectuadas no exercício”) e outro pessoal (“das profissões de médico, odontologista, parteiro, enfermeiro e outras profissões paramédicas”).
A segunda norma de isenção (a do artigo 8.º-A da Lei n.º 71/2013, introduzido em 2017) limita-se a estender aos profissionais que se dediquem ao exercício das terapêuticas não convencionais a isenção de IVA que já estava anteriormente prevista para as profissões paramédicas.
A propósito do âmbito da isenção legal colocam-se três problemas: i) quanto à possibilidade de as Terapêuticas Não Convencionais (TNC) poderem ser considerados incluídos na isenção do artigo 9.º do Código do IVA; ii) quanto à natureza (interpretativa ou inovadora) da segunda norma de isenção; e iii) quanto ao momento a partir do qual ela pode produzir efeitos.
i) Questão de saber se podiam as Terapêuticas Não Convencionais (TNC) ser consideradas incluídas na isenção do artigo 9.º do Código do IVA
Vejamos este problema por si só (ie: sem considerar a superveniência da segunda norma de isenção).
Defende a Requerente, nisso sendo apoiada pelo Parecer junto aos autos, que a teleologia da isenção do artigo 9.º do Código do IVA (assegurar a redução dos custos de cuidados de saúde com salvaguarda da neutralidade e não discriminação entre prestadores desses cuidados) é inerentemente aplicável às TNC. O dito Parecer, anterior à intervenção do legislador de 2017, invoca até que “negar a concessão da isenção prevista no n.º 1 do artigo 9.º do CIVA aos especialistas em medicina tradicional chinesa e aos acupunctores em geral com fundamento apenas na delimitação legal da profissão paramédica, configura uma ostensiva e grave violação do Direito da União Europeia e, antes do mais, um atentado ao direito constitucionalmente protegido à saúde pública dos portugueses, não sendo necessária qualquer legislação adicional para o efeito.”
Regressando ao elenco argumentativo apresentado pela Requerente, não é outra a sua posição: a ratio da isenção imposta pela Diretiva 2006/112/CE tanto vale para as profissões elencadas no n.º 1 do artigo 9.º do CIVA como para as que são desempenhadas pelos técnicos ao seu serviço, já que estes realizam atividades reconhecidas como TNC.
Contrapõe a Requerida que, como “só a partir da entrada em vigor da Lei nº 71/2013 a acupunctura passou, legalmente, a integrar o conceito de TNC de forma regulamentada”, o paralelismo invocado pela Requerente só tem sustentação a partir dessa altura.
É verdade que – contra a posição da Requerida – podia fazer-se remontar essa opção de isenção à Lei n.º 45/2003, de 22 de Agosto, que, no n.º 2 do seu artigo 3.º reconheceu “como terapêuticas não convencionais as praticadas pela acupunctura, homeopatia, osteopatia, naturopatia, fitoterapia e quiropráxia.”
Esta orientação enfrenta, porém, vários obstáculos.
Em primeiro lugar, é discutível se tal reconhecimento, feito em 2003 (se bem que só uma década depois seguido por legislação de regulamentação), era suficiente para considerar que estava adquirida na ordem jurídica nacional a recondução daquelas TNC a profissões médicas ou paramédicas.
Em segundo lugar, ainda teria de se desconsiderar uma distinção menor, mas importante para o caso dos autos: só na Lei n.º 71/2013 se incluiu a previsão da “medicina tradicional chinesa”, que não era considerada enquanto tal na Lei n.º 45/2003 – o que implicaria que a massagem tui na não estaria coberta na legislação de 2003.
Para além de sermos obrigados a atender ao mais exigente princípio da interpretação estrita das isenções em matéria de IVA, desenvolvido pela jurisprudência do TJUE (que exige um critério de interpretação literal (corroborado pelo Parecer junto aos autos, pp. 27 a 29), não é isso que resulta do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 132.º da Directiva 2006/112/CE.
O preceito dispõe que “As prestações de serviços de assistência efectuadas no âmbito do exercício de profissões médicas e paramédicas, tal como definidas pelo Estado-Membro em causa”.
Parece claro que – sobretudo numa matéria em que as normas de enquadramento do mais harmonizado dos impostos europeus deferem aos Estados a definição das profissões médicas e paramédicas – teria de ser a legislação estadual a assumir as opções da sua delimitação. Realce-se que o que está em causa para efeitos da norma de isenção não é o reconhecimento de uma atividade como TNC, mas sim o seu reconhecimento como profissão médica ou paramédica. Ora, assim sendo, tem de se concluir que esse reconhecimento – e por via de equiparação – só veio a ocorrer em 2017, com a adição do artigo 8.º-A à Lei n.º 71/2013.
Com efeito, afigura-se claro que uma coisa é o âmbito da norma de isenção do artigo 9.º do CIVA, outra bem diferente é o reconhecimento de atividades diversas como terapêuticas não convencionais. A este último aspeto se dedicaram, quer a Lei n.º 45/2003, quer a Lei n.º 71/2013, que se limitaram a tratar do reconhecimento das atividades suscetíveis de se subsumirem no conceito de TNC. Em relação ao primeiro aspeto só na Lei n.º 1/2017 o legislador cuidou de consagrar a isenção através da inserção da norma interpretativa na sede que entendeu mais apropriada.
Em suma, tendo em conta as específicas exigências em matéria de interpretação das isenções à incidência do IVA não parece razoável pretender que, só por si, a norma do n.º 1 do artigo 9.º do CIVA – complementada pelo Decreto-Lei n.º 261/93, que enumera as atividades consideradas paramédicas – pudesse abranger as TNC. Nem hoje, nem em 2017, nem em 2013, nem em 2003.
O que quer dizer que a isenção de IVA de que atualmente gozam os profissionais que se dediquem ao exercício das terapêuticas não convencionais tem como único fundamento a segunda norma de isenção: a do artigo 8.º-A da Lei n.º 71/2013, que lhe foi aditado pela Lei n.º 1/2017. Com efeito só aí se refere claramente que “Aos profissionais que se dediquem ao exercício das terapêuticas não convencionais referidas no artigo 2.º é aplicável o mesmo regime de imposto sobre o valor acrescentado das profissões paramédicas” (sublinhado nosso).
ii) Questão relativa à natureza (interpretativa ou inovadora) da segunda norma de isenção (a do artigo 8.º-A da Lei n.º 71/2013)
O âmbito temporal retroativo da segunda norma de isenção depende, prima facie, da natureza interpretativa que lhe foi atribuída pelo artigo 3.º da Lei n.º 71/2013, mas tem havido concordância genérica na doutrina e na jurisprudência que tal declaração do legislador se deve entender como uma cláusula de retroatividade onde tal declaração não corresponda à verdadeira natureza da norma.
Admitindo que a diferença possa ser relevante – e não obstante Requerente e Requerida estarem de acordo quanto à natureza interpretativa da norma do artigo 8.º-A da Lei n.º 71/2013 – a primeira questão a dilucidar é, portanto, essa: será a norma de isenção introduzida em 2017 na Lei n.º 71/2013 uma norma interpretativa? Ou é antes uma norma de extensão de regime, dotada do equivalente a uma cláusula de retroatividade?
Na decisão proferida no CAAD no Proc. n.º 111/2017-T considerou-se “inequívoco que a Assembleia da República pretendeu que a interpretação autêntica que foi efectuada pela Lei n.º 1/2017 se aplicasse retroactivamente à actividade profissional de exercício das terapêuticas não convencionais a que se reporta a Lei n.º 73/2013”, mas com um voto de vencido, que, entre o mais[2], contrapôs que
o próprio sumário do diploma proclama que é feita “Primeira alteração à Lei n.º 71/2013, de 2 de setembro, que regulamenta a Lei n.º 45/2003, de 22 de agosto, relativamente ao exercício profissional das atividades de aplicação de terapêuticas não convencionais, estabelecendo o regime de imposto sobre o valor acrescentado aplicável a essas atividades”. O artigo 1º estipula que “A presente lei procede à primeira alteração à Lei n.º 71/2013, de 2 de setembro, que regulamenta a Lei n.º 45/2003, de 22 de agosto, relativamente ao exercício profissional das atividades de aplicação de terapêuticas não convencionais.“. Em nenhum local se vislumbra qualquer intenção de interpretar o CIVA, que é um código, com todas as implicações interpretativas que as codificações têm.
Por outro lado, a própria redação do artigo 8º-A introduzido pela lei citada é bem claro: “Aos profissionais que se dediquem ao exercício das terapêuticas não convencionais referidas no artigo 2.º é aplicável o mesmo regime de imposto sobre o valor acrescentado das profissões paramédicas”. Quer dizer, as profissões paramédicas têm um regime (constante do CIVA) e aos profissionais que se dediquem ao exercício das terapêuticas não convencionais é aplicável o mesmo regime do IVA. Dito de outro modo: não se pretendeu fixar novo sentido às normas que comportam o regime do IVA; pretendeu-se que o mesmo regime que vigora para as profissões paramédicas passasse a vigorar para as terapêuticas não convencionais. Não se pretendeu alterar o regime do IVA; pretendeu-se que o regime do IVA aplicável a determinadas profissões passasse a abranger outras.
Embora haja, portanto, indícios opostos quanto à natureza da norma do artigo 8.º-A da Lei n.º 71/2013, tem de se dar preferência ao disposto no artigo 3.º da Lei n.º 1/2017 que, com força normativa, a considera interpretativa. Tal norma, porém, sempre seria necessária para obter a retroatividade da norma do n.º 2 do mesmo diploma: não fosse ela, e o aditamento introduzido na Lei n.º 71/2013 valeria apenas para futuro.
Na verdade, não é por se introduzir uma norma nova num diploma antigo que essa norma tem efeitos retroativos: isso só acontecerá se lhe for atribuída natureza interpretativa ou se estiver dotada de uma cláusula de retroatividade. A norma do artigo 3.º da Lei n.º 1/2017 serviu, portanto, esse propósito, tendo de se atribuir ao legislador uma intenção coerente com a da escolha da sede legislativa do aditamento realizado (cfr. o que se escreve na alínea seguinte).
Outra coisa é saber se se trata de uma norma interpretativa material (correspondendo aos requisitos geralmente reconhecidos das normas interpretativas: uma intenção interpretativa, esclarecedora de uma prévia controvérsia, e com a adoção de um entendimento a que o intérprete já poderia, por si só, ter chegado[3]) ou meramente formal (como se escreveu no Acórdão n.º 157/88 do Tribunal Constitucional: “enquanto intérprete autêntico da sua própria lei, o legislador não está sequer adstrito a fazer interpretação autêntica "material": pode fazer interpretação autêntica simplesmente formal, conferindo a normas por ele anteriormente editadas um sentido diverso de qualquer dos que a doutrina e os operadores jurídicos poderiam fixar.”).
Já acima se concluiu que a interpretação do n.º 1 do artigo 9.º do Código do IVA não admitia a solução que o legislador veio a aprovar e a considerar interpretativa em 2017 – ie, a de que as atividades realizadas por profissionais de TNC estavam isentas de IVA, pelo que tem de se reconhecer que o segundo requisito das normas interpretativas materiais (firmarem estas um entendimento que os intérpretes poderiam ter, por si sós, alcançado) não está preenchido.
Em qualquer caso, ainda que se entenda diferentemente, seguindo o recente entendimento do Tribunal Constitucional (firmado no Acórdão n.º 395/2017), o primeiro requisito material das normas interpretativas (existir uma controvérsia prévia) não se pode dar como preenchido no presente caso: “para que se verifique uma controvérsia jurisprudencial, não basta que recaiam sobre uma determinada questão de interpretação decisões divergentes; é necessário que exista um corpo desenvolvido de pronunciamentos judiciais (ou arbitrais) no seio do qual se estabeleceram correntes opostas e não reconciliadas dentro da ordem jurisdicional a que respeitem.”
Ora, tirando a decisão judicial do caso mencionado no Parecer junto aos autos, não se conhecem precedentes de decisões sobre a aplicação do regime de isenção do artigo 9.º do Código do IVA a Terapêuticas Não Convencionais. (As duas decisões mencionadas nos Factos provados são posteriores à vigência da lei interpretativa de 2017). Isso implica, segundo a nova jurisprudência do Tribunal Constitucional, que não havia controvérsia jurisdicional prévia – e sem esta não há normas interpretativas.
Por uma ou outra razão – ou pelas duas – deve concluir-se que a dita “norma interpretativa” do artigo 8.º-A da Lei n.º 71/2013 (assim considerada pela norma do artigo 3.º da Lei n.º 1/2017) é apenas uma norma interpretativa meramente formal – e, portanto, equivale a uma norma retroativa.
Realce-se, porém, que tal circunstância no caso não impede que a norma introduzida pela Lei n.º 1/2017 tenha efeitos equivalentes ao de uma lei interpretativa.
Com efeito, com Baptista Machado, “o legislador pode declarar interpretativa certa disposição da LN, mesmo quando essa disposição é de facto inovadora (…) em tais casos, tratar-se-á de um disfarce da retroatividade da LN”. Mas o Autor acrescenta, “Quando não existe norma de hierarquia superior que proíba a retroactividade, tal qualificação do legislador deve ser aceite para efeito de dar a tal disposição um efeito equivalente ao de uma lei interpretativa, nos termos do art. 13.º. Na verdade, o legislador teria, na hipótese, o poder de declarar retroativa a LN e definir os limites desta retroatividade” (Introdução ao Direito e ao Discurso do Legitimador, Almedina, Coimbra, 1994, p. 245).
Ora, é precisamente o que acontece no caso dos autos. Apesar de se tratar de uma norma inovadora, como estamos perante uma situação de retroatividade favorável aos sujeitos passivos de impostos, estamos fora do âmbito de proibição do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República. O que tal norma proíbe é a cobrança de impostos “que tenham natureza retroativa”, não a retroatividade de normas de isenção.
O legislador encontrava-se, desta forma, livre para declarar a retroatividade e definir os seus limites. No entanto, preferiu optar por atribuir esse efeito através da qualificação do artigo 8.º-A aditado à Lei n.º 71/2013 como norma interpretativa.
Em suma, estando nós perante uma lei retroativa favorável o problema da distinção entre leis interpretativas formais e materiais dissolve-se, devendo respeitar-se a qualificação do legislador sobre a natureza interpretativa do artigo 8.ºA (aditado à Lei n.º 71/2013) feita no artigo 3.º da Lei n.º 1/2017.
Estamos agora em condições de enfrentar o terceiro problema acima identificado.
iii) Questão de saber a partir de que momento pode a norma do artigo 8.º-A da Lei n.º 71/2013 produzir efeitos
A retroatividade da norma de isenção foi expressamente determinada pelo legislador quando escolheu o diploma em que a integrou: a Lei n.º 71/2013, de 2 de setembro.
Note-se que havia pelo menos cinco diplomas em que tal norma (ou uma equivalente) podia ser integrada: o Código do IVA (como um novo número do artigo 9.º, ou um aditamento à redação dos seus n.ºs 1 e 2 para abranger as TNC)[4]; o Decreto-Lei n.º 261/93 (como um novo artigo sobre a inclusão das TNC nas atividades paramédicas, ou um aditamento à lista anexa que as incluísse)[5]; o Decreto-Lei n.º 320/99 (como um novo conjunto de profissões paramédicas)[6]; a Lei n.º 45/2003 (até com a mesma redação que foi adotada para introduzir o artigo 8.º-A na Lei n.º 71/2013); e a Lei n.º 71/2013[7].
Se se tiver presente a Recomendação de 2016 da Autoridade da Concorrência (AdC), e se se pensar que ela deve ter interferido na formação da vontade do legislador de 2017, também dela se retira um argumento adicional para a escolha legislativa. Dizia ela que “ainda que anteriormente à entrada em vigor da Lei n.º 71/2013 se pudesse questionar se as prestações de serviços de assistência em TNC ofereciam um nível de qualidade aos utentes equivalente ao que é oferecido pelos médicos, aquela lei e a regulamentação adotada em 2014 e 2015 (...) criaram um quadro que se afigura completo no que diz respeito às qualificações profissionais das pessoas que estejam habilitadas a exercer atividades no âmbito das TNC.”
Note-se que esta exata passagem da Recomendação de junho de 2016 da AdC, que assinala a Lei n.º 71/2013 como um marco na evolução da regulamentação das TNC, constava da Exposição de Motivos do “Projeto de Lei n.º 289/XIII/1.ª apresentado por Deputados do PSD, que deu origem ao processo legislativo que conduziu à aprovação daquela Lei n.º 1/2017” (citamos a decisão proferida no CAAD no Processo n.º 111/2017-T, que transcreveu aquela Exposição de Motivos).
E também não pode desatender-se, neste contexto, aos exatos termos da Recomendação da AdC, que encerravam as 23 páginas de fundamentação: “vem esta Autoridade recomendar ao senhor Ministro das Finanças e ao senhor Ministro da Saúde que seja promovida, no âmbito das competências constitucionalmente conferidas ao Governo, a regulamentação do enquadramento fiscal a que estão sujeitas as prestações de serviços de acupunctura, de modo a assegurar a neutralidade da tributação destas prestações de serviços em sede de IVA, independentemente de as mesmas serem fornecidas por médicos, no âmbito das competências reconhecidas pela respetiva Ordem, ou por profissionais de TNC, nos termos da Lei n.º 71/2013, formalizando a classificação destes profissionais enquanto “outras profissões paramédicas” para efeitos da isenção concedida ao abrigo da alínea 1) do artigo 9.º do CIVA.”
Assim, quando o legislador, pretendendo inequivocamente produzir efeitos retroativos em 2017, determina a inserção de uma norma, que declara interpretativa, na Lei n.º 71/2013 e lhe atribui natureza interpretativa – o que sempre teria de fazer para que tal alteração não produzisse apenas efeitos para futuro –, a única conclusão que o intérprete está autorizado a tirar é a de que a retroatividade pretendida vai até à data da entrada em vigor desse diploma – que era o que a AdC recomendava, e o que o projeto de lei dos deputados do PSD, aparentemente, seguira.
Acresce que ia no mesmo sentido o projeto apresentado por deputados do Bloco de Esquerda (301/XIII/2.ª) onde se escrevia o seguinte: “As atividades decorrentes das terapêuticas não convencionais reconhecidas e regulamentadas por lei, nomeadamente as descritas no artigo 2.º da Lei n.º 71/2013, de 2 de setembro, deveriam estar, por isso, isentas do pagamento de IVA, uma vez que esse tem sido o enquadramento de IVA para a prestação de serviços efetuada no exercício de profissões na área da saúde.” (destacou-se a referência à Lei n.º 71/2013).
Este projeto de lei tinha uma particularidade adicional: visava a alteração do artigo 9.º do Código do IVA[8]. Como se referia na sua Exposição de Motivos, “se é necessário clarificar, então clarifique-se de uma vez por todas: é neste sentido que o Bloco de Esquerda apresenta este Projeto de Lei propondo que o Código do IVA passe a isentar os profissionais de TNC de cobrança de IVA.”
O que significa, por tudo o quanto vai exposto, que não foi por imprevidência que o legislador que podia ter alterado o Código do IVA o não fez: face às alternativas que teve, tem de se entender que não o fez de caso pensado. E foi assim porque o legislador ainda que quisesse ir mais longe na retroactividade da isenção, e fosse qual fosse o diploma escolhido para o fazer, estava sempre limitado pelo início de vigência da Lei n.º 71/2013.
Com efeito, recorde-se que a Lei n.º 45/2003 configura, como ficou dito, uma mera lei do enquadramento base das TNC, que carecia, para ser plenamente exequível, de ser regulamentada, o que apenas veio a acontecer, como vimos, com a Lei n.º 71/2013. Nomeadamente não nos podemos esquecer que os requisitos subjetivos do exercício da atividade só vieram a ser fixados neste diploma e que, por outro lado, apenas este diploma passou a incluir também a “medicina tradicional chinesa”, que não constava no diploma de 2003. Por conseguinte, ainda que o diploma escolhido para consagrar a isenção fosse o Código do IVA, a norma de isenção apenas podia reportar os seus efeitos ao início de vigência da Lei n.º 71/2013, momento partir do qual o regime jurídico se considera consolidado.
Refira-se, por último, mas apenas como mero elemento corroborante de que a regulamentação das TNC que colhia consenso parlamentar era a de 2013, a Resolução da Assembleia da República n.º 207/2016, publicada no Diário da República, I Série, de 24 de outubro de 2016, em que se recomendava ao Governo “que assegure a nulidade da interpretação feita pela Autoridade Tributária e Aduaneira relativamente à cobrança retroativa de imposto sobre o valor acrescentado nas prestações de serviços no âmbito das terapêuticas não convencionais (TNC) regulamentadas pela Lei n.º 71/2013, de 2 de setembro, quando as mesmas foram prestadas por profissionais das TNC reconhecidos pela Administração Central do Sistema de Saúde, I. P.” (destaque acrescentado).
Não faria qualquer sentido, aliás, que, para remediar as dificuldades hermenêuticas dos aplicadores de uma certa lei, o legislador viesse a integrar a sua “explicitação” numa lei diversa dessa – ainda para mais sem mencionar qual seria a lei interpretada.
Integrar-se a lei interpretativa na lei interpretada tem de ter o sentido de fazer da lei interpretativa uma parte da lei interpretada – não de a fazer parte de uma outra lei qualquer (no caso, do Código do IVA), não nomeada pelo legislador.
A isso obriga o cânone interpretativo do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil – o de que “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.” –, para o qual somos remetidos pelo disposto no n.º 1 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária (“Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”).
Aliás, outro entendimento violaria claramente o disposto no n.º 4 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária: “As lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República não são susceptíveis de integração analógica.” Ora, para todos os efeitos práticos, o que se pretende quando se defende a retroação dos efeitos da norma interpretativa a situações ocorridas antes da entrada em vigor da lei expressamente interpretada é a sua aplicação analógica em matéria que, segundo o disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 164.º da CRP (conjugado com o n.º 2 do seu artigo 103.º) está abrangida na reserva de lei da Assembleia da República.
Estando nós a falar de uma norma de isenção outros princípios constitucionais, tais como o da igualdade, impõem que seja o legislador a determinar o alcance da lei interpretada, estando vedado ao intérprete substituir-se ao mesmo.
Acresce que deixar ao intérprete escolha da lei interpretada conduziria a resultados não compatíveis, quer com os critérios de hermenêutica jurídica explanados (sobretudo estando em causa normas de isenção), quer com os princípios do Estado de direito, devido ao arbítrio e à insegurança jurídica que tal situação originaria.
Não há, de resto, nenhum apoio doutrinal ou precedente jurisdicional que permita defender que a lei interpretativa pode fazer retrotrair os seus efeitos a períodos anteriores aos da lei (que o legislador entendeu) interpretada.
Finalmente, tal solução seria, aliás, também desadequada tendo em conta que se pretendia evitar uma mudança – também ela com efeitos retroativos – da orientação da AT: foi por esta ter iniciado um conjunto de correções respeitantes aos últimos 4 anos (aqueles em relação aos quais ainda o podia fazer), e por estar na disposição de o continuar a fazer – que a questão se tornou premente. Ora, é perfeitamente possível presumir que fazer retrotrair para mais longe no tempo a alteração desejada para travar uma atuação da AT com efeitos também limitados no tempo, possa ter parecido desproporcionado e inútil.
É verdade que, no caso dos autos, isso implica que não há fundamento legal para invalidar as liquidações adicionais referentes a períodos anteriores ao da entrada em vigor da Lei n.º 71/2013, em 2 de outubro desse ano, e que não se pode presumir (bem ao contrário) que o legislador tenha tido essa intenção. Acontece, porém, que o que conta na interpretação e aplicação da lei não é a vontade presumida do legislador (na expressão de um jurista brasileiro, o que conta é o texto, não a testa), e um tal desvio pontual às intenções conhecidas do legislador é uma consequência muitas vezes inevitável da generalidade e abstração da lei.
Finalmente, a subsistência da imposição fiscal sobre os períodos mais distantes, naturalmente só exigíveis aos primeiros visados pelas inspeções, poderia até ser entendida como uma lei-medida.
Invoca também a Requerente que “a imposição de diferenças no enquadramento fiscal do exercício da acupunctura quando efectuada por terapeutas não convencionais e quando efectuada por médicos viola de forma directa o princípio da igualdade”, e que também o violaria “relativamente a parte do ano de 2013 e aos anos de 2014 a 2016, quando numa situação fáctica idêntica à ora em apreço decide pela isenção de IVA relativamente a prestações de serviços de TNC praticadas em parte do ano de 2013 e 2014 a 2016, sem recorrer à argumentação das cédulas profissionais”.
Em ambos os casos se imputa à atuação da AT a desigualdade no tratamento da Requerente, mas esta última dimensão desse tratamento desigual já não é relevante nos autos face ao juízo já formulado sobre a ilicitude da cobrança de IVA subsequentemente à entrada em vigor da Lei n.º 71/2013 – por força dos efeitos retroativos da disposição interpretativa inserida neste diploma pela Lei n.º 1/2017.
Resta a primeira dimensão da impugnada desigualdade: a possibilidade de médicos ou paramédicos recorrerem a TNC no tratamento dos seus pacientes e não serem sujeitos a IVA por isso. Sobre o ponto, retorquiu a AT que “Um cidadão pode dirigir-se a um cabeleireiro, que afirma que o seu cliente tem caspa (diagnóstico), pelo que deve usar o amaciador X (terapêutica); como pode recorrer aos serviços de uma esteticista que lhe indica que ele tem um eczema (diagnóstico), que deverá ser tratado com o creme Y (terapêutica, que pode ser prescrita ou mesmo aplicada pela esteticista).” Nesses casos as respetivas atividades estavam sujeitas a IVA, mesmo que idênticos diagnósticos e orientações terapêuticas, feitas por médicos ou paramédicos, não estivessem. Não há, em qualquer dos casos, violação do princípio da igualdade porque ela só ocorreria se a tríplice condição (material, contextual e pessoal) da norma de isenção do artigo 9.º do CIVA (supra, IV.3) estivesse presente em todos os casos. Ora, mesmo que se admita que o ato é materialmente o mesmo, não o é o profissional que o realiza e ele tem lugar, portanto, num diferente contexto profissional. A norma de isenção do artigo 9.º do CIVA, porém, depende do preenchimento das três condições, pelo que a desigualdade sobreviria da sua aplicação onde apenas uma estivesse preenchida, nunca da sua estrita aplicação apenas nos casos em que os três índices selecionados pelo legislador estão verificados. Como o próprio Requerente reconhece o princípio da igualdade reclama que se trata de modo igual o igual, mas de forma diferente o que é diferente. Ora, dentro da latitude da discricionariedade legislativa, é o legislador que tem de selecionar o que é igual e o que é diferente.
Por fim, invoca a Requerente que “O conceito de justiça material, tal como definido, pode ser entendido como um travão legislativo aos poderes concedidos à Autoridade Tributária, impedindo-a de, através das suas competências em matéria interpretativa e de direito circulatório, introduzir regras aptas a efectivar um tratamento diferenciado de sujeitos passivos em situações idênticas, o que claramente sucedeu no caso em análise!”
Tenha-se em conta que o que estava em causa – pelo menos até a AT iniciar a exigência de comprovativos da incidência da norma de isenção do artigo 8.º-A da Lei n.º 71/2013, não era a utilização dos poderes da AT no sentido de restringir a aplicação de normas legais prévias: era tão só a não-criação, por via interpretativa e de direito circulatório, de uma nova isenção, prometida pelo legislador, e que este acabou por criar, com efeitos retroativos limitados.
Nessa medida, a invocação do princípio da justiça material – ainda para mais sustentado em conceções de igualdade que já se mostrou serem mistificadoras –, invocação que poderia até ter cabimento em relação a uma omissão legislativa, é desadequadamente dirigida à atuação da AT, sujeita que está ao princípio de estrita legalidade. Também por isso, não há mérito na imputação do desrespeito do conceito de justiça material pela AT.
Finalmente alega a Requerente que, na decisão definitiva da reclamação apresentada, a Requerida veio defender um novo requisito para o reconhecimento da isenção de IVA das TNC: a detenção de cédula profissional.
Não tendo a exigência de cédula profissional sido anteriormente invocada pela Requerida como pressuposto para a atribuição da isenção de IVA e não constando do Relatório fundamentador dos atos de liquidação impugnados, tal exigência é ilegal.
Constitui jurisprudência pacífica que estando em causa o controlo da legalidade das operações de liquidação, que foram fundamentadas no RIT, é à sua fundamentação que tem de se atender, não à que posteriormente tenha sido desenvolvida para justificar de outra forma o que antes não tinha sido decidido. Como se escreveu no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 10 de maio de 2011, citando vários acórdãos do STA, “lançar mão de uma fundamentação a posteriori, [...] consubstanciaria gritante ilegalidade, em virtude de, no contencioso de mera legalidade, onde nos encontramos, o tribunal se ter de limitar a ajuizar da legalidade do acto sindicado nos estritos moldes em que este ocorreu, ou seja, apreciando a respectiva conformidade legal em face da fundamentação contextual, contemporânea e integrante do próprio acto. Efectivamente, implicando o direito à fundamentação dos actos administrativos, especificamente, dos tributários, atribuir ao particular a faculdade de se defender dos pressupostos que nos mesmos são enunciados e de que resultaram os efeitos lesivos da sua pretensão, não é possível aproveitar um qualquer acto quando para tanto seja preciso valorar razões de facto e/ou de direito que não constam da fundamentação inicial, integrante dele, que não foram invocadas para conduzir ao acto impugnado.”
E nem se argumente com a entrada em vigor da Lei n.º 1/2017, uma vez que este diploma se limitou a consagrar uma norma de isenção, sem qualquer referência a requisitos ou exigências de qualificação profissional, os quais como ficou dito, constam essencialmente da Lei n.º 71/2013.
Acresce que a haver alterações legais substantivas supervenientes as mesmas imporiam, então, à Requerida refazer o exercício do direito de audiência dando oportunidade à Requerente de se defender.
Por tudo o quanto vai exposto, considera-se parcialmente procedente o pedido de declaração de ilegalidade das liquidações adicionais de IVA, bem como dos respetivos atos de liquidações adicionais de juros, referentes aos anos de 2013 (a partir de outubro), 2014 e 2015, identificados supra (na alínea c) e d) do Ponto I..1., as da alínea b) do mesmo ponto correspondentes a prestações de serviço posteriores a 2 de outubro de 2013), com a consequente anulação, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.
IV.4. O pedido de juros compensatórios
A Requerente imputa vícios autónomos à liquidação de juros em cada uma das liquidações adicionais de IVA: a não menção de tais juros no RIT (nas alegações finais escreveu: “o RIT é a decisão na qual deve constar toda a fundamentação da AT que origina a emissão de actos de liquidação adicional”), a ausência de culpa sua (na mesma peça processual, invocando um acórdão do STA de 1999, escreveu que “inexiste qualquer comportamento culposo por parte da Requerente, o que inviabiliza, de igual modo, a liquidação de juros compensatórios, pois “a exigência de juros compensatórios pressupõe a culpa do sujeito passivo””), e, invocando uma decisão proferida no CAAD, a preterição de formalidade legal por falta de audiência prévia (ainda na mesma peça processual reproduziu o aí decidido acrescentando os negritos e sublinhados:
“a exigência de juros compensatórios que foi efectuada nas liquidações impugnadas tem ínsita um juízo sobre a imputabilidade à Requerente do retardamento das liquidações, o que consubstancia invocação de factos novos, para efeitos do artigo 60.º, n.º 3, da LGT.
Assim, não se está perante uma situação de dispensa de audição prévia quanto aos juros compensatórios, pelo que a falta de audição prévia constitui preterição de formalidade legal, que justifica a anulação das liquidações, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável, por força do disposto no artigo 2.º, alínea c), da LGT.””).
A AT tinha invocado que os juros eram uma decorrência da dívida de imposto e que “estando os juros indicados na liquidação, com referência ao preceito legal que concede esse direito ao Estado (35º da LGT), há uma remissão expressa para o preceito que fundamenta o dever de pagar tais juros”. Por outro lado, invocou que a culpa decorre do conhecimento da Requerente de informações vinculativas da AT no sentido de ser devido IVA pelas suas atividades. Sobre a ausência de audição prévia, porém, nada referiu, muito embora o Requerimento inicial lhe fizesse referência (artigos 416.º a 429.º).
Assim, qualquer que seja o mérito dos demais fundamentos invocados, certo é que a AT não deu à Requerente a possibilidade de se pronunciar sobre a cobrança de juros nas liquidações adicionais a que procedeu, com isso preterindo o seu direito a sobre isso ser ouvida.
Seguimos aqui de perto, por com ela concordarmos, a jurisprudência fixada na Decisão Arbitral relativa ao processo n.º 198/2017-T, onde pode ler-se que: “(…) a liquidação de juros compensatórios não decorre directa e automaticamente da lei. Na verdade, tanto o artigo 102.º, n.º1, do CIRC como o artigo 35.º da LGT (…) fazem depender a exigência de juros compensatórios de ser retardada a liquidação «por facto imputável ao sujeito passivo».
“A responsabilidade objectiva é excepcional, só ocorrendo nos casos especificados na lei (art. 483.º, n.º2, do código Civil) e, por isso, deverá entender-se que, para efeitos de responsabilidade por juros compensatórios, só se está perante um «facto imputável ao sujeito passivo» quando puder formular-se um juízo de censura em relação à conduta do próprio sujeito passivo.
“Nesta linha, o Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a entender, uniformemente, que a imputabilidade exigida para responsabilização pelo pagamento de juros compensatórios depende da existência de culpa, por parte do contribuinte.
“Por isso a exigência de juros compensatórios que foi efectuada nas liquidações impugnadas tem ínsito um juízo sobre a imputabilidade à Requerente do retardamento das liquidações, o que consubstancia invocação de factos novos, para efeitos do artigo 60.º, n.º3, da LGT.”
Assim sendo, ao contrário do defendido pela Requerida, e tal como se conclui na Decisão Arbitral que vimos seguindo, “não se está perante uma situação de dispensa de audiência prévia quanto aos juros compensatórios, pelo que a falta de audiência prévia constitui preterição de formalidade legal, que justifica a anulação das liquidações, nos termos do artigo 163.º, n.º1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável por força dos disposto no artigo 2.º, alínea c), da LGT.”
Termos em que dá-se procedência ao pedido de anulação dos juros compensatórios, mesmo nas situações em que se concluiu serem devidos os montantes de IVA liquidados.
IV.5. O pedido de indemnização por garantia indevida
No caso dos autos, não foi prestada garantia, mas como resulta do probatório, na sequência da instauração do processo de execução, a AT emitiu penhora no montante de €1.944.276, 75, tendo sido penhorado o saldo da conta da Requerente, no Banco B... no valor de € 12.214,33, bem como de 1.433 títulos nominativos. Ficou também provado que essas penhoras foram levantadas por despacho datado de 16.02.2017.
A Requerente pede que lhe seja fixada uma indemnização por prestação de garantia indevida.
Ainda que não se possa falar em prestação por ato voluntário da garantia, afigura-se tal circunstância irrelevante, porquanto a verdade é que a AT penhorou valores da Requerente para o efeito de suspensão da execução.
Relativamente ao pedido de condenação no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, o art. 171.º do CPPT estabelece que «a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda» e que «a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência».
O pedido de constituição do tribunal arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido art. 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.
O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do art. 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:
Artigo 53.º
Garantia em caso de prestação indevida
1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.
2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.
3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.
4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.
No caso em apreço, os atos de liquidação de IVA e juros compensatórios padecem, como já vimos, de vício de violação de lei, o que invalida parcialmente as liquidações impugnadas, tendo sido da exclusiva iniciativa da Administração Tributária, sem que a Requerente tenha contribuído para que elas fossem efetuadas e, muito menos, nos termos em que o foram.
Por outro lado, a Requerida teve oportunidade, pelo menos na decisão que recaiu sobre a reclamação graciosa de reponderar a sua decisão e corrigir as ilegalidades.
A Requerente tem, assim, direito a indemnização pelos prejuízos que se demonstrar terem resultado das penhoras mencionadas em relação às liquidações anuladas.
Acontece que dos autos não resultam elementos que permitam determinar o montante da indemnização, pelo que a condenação terá de ser efetuada com referência ao que vier a ser liquidado em execução do presente acórdão (arts. 609.º, n.º 2, do CPC e 565.º do CC).
V. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
-
Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência,
-
Anular (parcialmente) os atos de liquidação adicional de IVA objeto de impugnação identificados na alínea c) e d) do Ponto I..1., bem como as da alínea b) do mesmo ponto correspondentes a prestações de serviço posteriores a 2 de outubro de 2013;
-
Anular todos os atos de liquidação de juros impugnados nos presentes autos (identificados nas alíneas e) a h) do ponto I.1. da presente decisão);
-
Anular, nos precisos termos das alíneas anteriores, o ato de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente;
-
Julgar procedente o pedido de indemnização por garantia indevida, quanto às liquidações anuladas, e condenar a Requerida a pagar a indemnização que for liquidada em execução de sentença, nos termos supra.
VI. VALOR DO PROCESSO
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RJAT) fixa-se ao processo o valor de € 1.905.872,09.
Notifique.
Lisboa, 24 de setembro de 2018.
Os Árbitros
(Maria Fernanda Maçãs)
(Manuel Pires)
Vencido conforme declaração que se segue
(João Taborda da Gama)
Parcialmente vencido. Teria julgado o pedido totalmente procedente, nos exatos termos da decisão do CAAD 111/2017-T, que subscrevi.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Estando de acordo com o entendimento sobre o âmbito temporal da lei interpretativa nº 1/2017 constante da decisão do presente processo – aplicasse em conexão com a Lei nº 71/2013, de 2 de Setembro, e não com a Lei nº 45/2003, de 22 de Agosto-, importaria ter sido exigida a ocorrência de todos os pressupostos da isenção em causa, o que implica não poder dar a minha concordância ao modo como foi tratado e decidido, no presente aresto, o
requisito subjectivo da isenção. Tem necessariamente de estar presente a preocupação garantística da defesa da saúde pública relevada inquestionavelmente pelas legislações portuguesa (“A defesa da saúde pública no respeito do direito individual de protecção da saúde” e “A defesa dos utilizadores, que exige que as terapêuticas não convencionais sejam
exercidas com um elevado grau de responsabilidade, diligência e competência, assentando na qualificação profissional de quem as exerce e na respectiva certificação “são princípios orientadores das referidas terapêuticas, segundo o artigo 3º da Lei nº 45/2003, e, no concernente às exigências para atingir essas preocupações, os requisitos de “acesso à profissão”, incluindo a “cédula profissional”, conforme os artigos 5º e 6º da Lei nº 71/2013) e da União Europeia [a disposição da directiva comunitária origem do artigo do CIVA, cujo regime foi tornado extensivo aos profissionais da acunpuctura, “visa garantir que a isenção se aplica apenas ás prestações de serviços de assistência efectuadas por prestadores com as qualificações profissionais exigidas (acórdão Klüger já referido nº 27). Por conseguinte nem todas as prestações de serviços de assistência beneficiam de tal isenção, pois esta abrange unicamente as prestações que apresentam um nível de qualidade suficiente tendo em conta a formação profissional dos prestadores” e mais adiante sobre o fundamento de exclusão de profissão ou actividade específica de assistência do escopo da disposição sob referência: “deve poder ser justificada por razões objectivas fundadas nas qualificações profissionais dos prestadores de assistência e, portanto, por considerações relativas à qualidade dos serviços prestados” (nºs 37 e 38 do acórdão do Tribunal de Justiça, de 27 de Abril de 2006, Processos apensos C- 443/04 e C-444/04, mencionado nas p.p. 26 e 30 do “Relatório da Inspeção Tributária” (RIT)]. Aliás, a Resolução da AR e o texto último do CDS, como prequelas da concessão do benefício, exigem muito claramente o aspecto subjectivo. Não será ainda irrelevante sublinhar estar a exigência subjectiva reforçada na diferença entre as redacções da lei de 2017 e do artigo 9º nº 1 do CIVA: este isenta “as prestações de serviços efectuadas no exercício da profissão...”, aquela preceitua “Aos profissionais que se dediquem ao exercício das terapêuticas não convencionais...”. Portanto, não se vê, no caso sob julgamento, como se respeita o escrito, posto que estando em causa uma entidade colectiva. Aliás, o que é um profissional? Quando o exercício de uma profissão exige cumprimento de requisitos, poderá dizer-se que se está perante um respectivo profissional quando a pessoa não os cumpriu? O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, define profissão como “Actividade(…) que exige certo grau de formação ou especialização “. De outro modo, qualquer pessoa com curiosidade sobre a acunpuctura que praticasse essa terapia, numa Clínica da respectiva especialidade, mesmo de entidade colectiva, ainda que dirigida por um profissional adequado, seria o profissional em vista? Mais, a concorrência não é ferida ou, de outro modo, a igualdade não é desrespeitada quando alguém, cumprindo os requisitos, que implica a garantia necessária, é beneficiado e alguém que os não cumpre também é beneficiado? Pode dizer-se que, nesse caso, tem de se obedecer à neutralidade fiscal? Sintetizando, está garantida a saúde pública por uma entidade cujos actuantes não dispõem das habilitações legais? Aliás, é admissível o início de uma actividade requerendo legalmente exigências, antes de essas exigências estarem estabelecidas e cumpridas, invocandose, nessas circunstâncias, a actividade para serem aplicados benefícios fiscais? Nesse contexto, deve propiciar-se o não encarecimento do preço das prestações, através do não pagamento do imposto, que, no caso de cumprimento dos requisitos, resulta justificadamente da lei para facilitar o acesso aos cuidados de saúde? Refere-se, porém, que inicialmente a Requerida não relevou o requisito subjectivo. No entanto, já do RIT resulta a necessidade, a preocupação de formação e habilitações das pessoas prestadoras dos serviços, enfim de qualificaçōes para existir o benefício, mencionando profissões reconhecidas, e, no caso concreto, nas respectivas pp. 9 a 11[solicitação pela Requerida de “cópias dos diplomas/habilitações para o exercício das profissões e cópias das cédulas profissionais (emitidas pela ACSS)”, resposta deficiente da Requerente e o comentário sobre o conteúdo da resposta], concluindo-se nesse escrito base da liquidação, na p. 34 (sob a epígrafe “Apuramento das correções propostas em sede IVA”) com remissão para tudo o anteriormente nele escrito: “Tendo em consideração os fundamentos expostos”. Mas mais, é primacial atender que a Lei nº 1/ 2017, que estabeleceu o benefício dos profissionais, não existia por ocasião do RIT e, antes dela, a AT entendia e bem que o artigo 9º nº 1 do CIVA não se aplicava. Estava-se, pois, apenas no domínio objectivo : se a
prestação de serviços da acunpuctura não beneficiava da isenção, não existia razão de integrar na discussão o aspecto subjectivo dos requisitos necessários aos respectivos profissionais. Só quando a lei, estabelecendo a isenção, surgiu, reconhecendo o profissional no domínio da isenção, tinha de ser também decisivo o requisito subjectivo. Com a lei de 2017 houve, portanto, novidade e daí já ser bem diferente o contexto legislativo quando surgiu, posteriormente à liquidação, a decisão da reclamação visada no
processo e que ao requisito se referiu mais claramente tendo a lei de 2017 já sido publicada, era indispensável relevar a não verificação da isenção no caso de não exibição das habilitações e cédula correspondentes, posto que esteja em causa ente colectivo em que exerça actividade. Por tudo o que se escreveu, não ocorrendo a prova dos necessários requisitos para a aplicação da isenção, o pedido em causa teria de ser julgado totalmente improcedente, atenta a inaplicabilidade da isenção ao mero exercício da acunpuctura por qualquer pessoa com ausência das requeridas qualificações, ainda que uma entidade colectiva surja como sujeito passivo, mas exercendo obviamente a actividade através de pessoas que devem satisfazer os requisitos legais.
2. Quanto aos juros compensatórios, mesmo que devesse haver procedência parcial, o que se admite apenas a benefício de raciocínio, deveriam ser devidos proporcionalmente ao não vencimento. É devido imposto, ocorreu retardamento do cumprimento da inerente obrigação, há imputabilidade do atraso à actuação (omissāo) da Requerente, o que implica o nexo de causalidade entre a actuação e o retardamento e consequente formulação de um juízo de culpa, isto é, de censura à actuaçāo da Requerente, visto a Requerida ter respondido a uma consulta vinculativa, no sentido de ser devido imposto, o que torna inadmissível a exclusão da culpa. Como consequência “aparecem [tais juros] como um agravamento ex lege (...) ao imposto” (acórdão do STA, de 27.11.1996, no recurso nº 20775). Quanto á necessidade da audiência prévia, já se pronunciou também o STA e no que ora interessa: “I- Ouvido o contribuinte em qualquer fase do, procedimento, é dispensada de novo a sua audição, salvo no caso de serem invocados novos factos sobre os quais o contribuinte não se tenha ainda pronunciado (artigo 60º, nº 3 da LGT, na redacçāo dada pela lei nº 16-A/2002, de 31 de Maio); IIA liquidação de juros compensatórios é mera operação aritmética decorrente da lei, pelo que nāo constitui “facto novo” determinante de audição do contribuinte para esse fim expresso, no caso de anteriormente ter sido notificado da liquidação nāo contempla(n)do esses juros; ...” (acórdão de 28.09.201, no processo nº 0562/11). Noutra decisão, o mesmo Tribunal acordou:“I-Tendo o contribuinte, no decurso de uma acção de fiscalização, sido notificado nos termos do artigo 60º da LGT, do projecto de conclusões do relatório de inspecção, sendo ouvido numa das fases do procedimento inspectivo, não tem que ser de novo ouvido antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos em relação aos quais ainda não tenha tido oportunidade de se pronunciar; (...); III- A liquidação de juros compensatórios nāo constitui “facto novo” para os efeitos referidos em I;...“( acórdão de 16.05.2012, no processo nº 0675/ 11). Ainda no texto da primeira decisão citada, pode ler-se: “A verdade, porém, é que a liquidação dos juros compensatórios não pode considerar-se um “facto novo” para efeitos do direito de audição, até porque os mesmos variam consoante o período de tempo a considerar | Por “facto novo” deve entender-se aquele que possa determinar a alteração do imposto, das correções, etc. A liquidação dos juros traduz-se apenas numa mera operação aritmética pelo que só por si não justifica o direito de audição. Deste modo ainda que na altura do convite para o exercício do direito de audição os juros compensatórios não estivessem liquidados, a Administração Tributária não estava obrigada a ouvir de novo a Recorrida só por terem sido liquidados juros”.. No outro acórdão citado e com ampla jurisprudência nele
mencionada, escreveu-se: “por tudo o que ficou dito podemos dar como certo que, (...), tendo sido facultado à contribuinte o direito da audiência antes da conclusão do relatório da inspecção tributária, é dispensável que lhe fosse dada a faculdade de ser ouvida antes da liquidação, salvo no caso de invocação de factos novos em relação aos quais ainda não tivesse tido oportunidade de se pronunciar”. E mais adiante: “Não é assim, porque a
liquidação de juros compensatórios não assenta em quaisquer factos novos.”
3.Também a decisão relativa à aplicação do artigo 53º da LGT, no processo em causa, ainda que devesse haver procedência parcial, o que se admite como mera hipótese, não mereceria o nosso acordo. Basta atentar não se estar face sequer a garantia em sentido próprio e, mesmo que o fosse, não estaria compreendida nas garantias incluídas na previsão legal, mas, mesmo que assim não fosse, nāo teria sido oferecida nem prestada pelo sujeito passivo. Mais, a AT fez a penhora, acto executivo, não actuando um poder discricionário, cumprindo o que a lei determina. Deste modo, no caso de se entender ser devida indemnização, a via não será o artigo 53º da LGT. Às mesmas conclusões se chega lendo um texto de Lima Guerreiro: “O presente preceito [artigo 53º da LGT] compreende apenas o prejuízo sofrido pela prestação de garantia bancária ou equivalente (como o seguro-caução), não abrange o prejuízo sofrido pela prestação de outro tipo de garantia (ver, por exemplo, a constituição de penhor ou hipoteca legal), o que resulta da muito maior dificuldade em se configurar então a existência de um prejuízo efectivo sofrido pelo executado nesse tipo de circunstâncias, o que não significa que tal não possa ocorrer, devendo, então, o ressarcimento do lesado fazer-se pelos meios indemnizatórios gerais” (Guerreiro, António Lima, Lei Geral Tributária anotada, Lisboa: Rei dos Livros, s/d.p.245)
Manuel Pires
[1] O artigo 2.º da Lei n.º 71/2013, de 2 de Setembro delimita o âmbito de aplicação da lei aos profissionais que se dediquem ao exercício das seguintes terapêuticas não convencionais: acupunctura, fitoterapia, homeopatia, medicina tradicional chinesa, naturopatia, osteopatia e quiropráxia.
[2] O que reputava mais decisivo – e era aliás contraditório com o argumento do texto – era a diferença entre o órgão que editou a norma que, afinal, sempre teria sido interpretada (do Código do IVA – aprovado pelo Governo, ao contrário do transcrito em texto) e a norma interpretativa (que também o não seria – aprovada pela Assembleia da República): “Creio que não provindo do mesmo órgão legislativo, a nova norma pode até alterar, revogar ou derrogar a norma anterior, mas não poderá interpretá-la, pois incorporando-se a norma interpretativa na norma interpretada, só o seu “autor” originário o pode fazer.” Não parece que esta posição possa merecer acolhimento, até porque a jurisprudência do Tribunal Constitucional invocada em abono parece depender de uma simplificação (a transcrição que faz do Acórdão n.º 176/2017 – “só tem legitimidade para tal interpretação – ou seja para impor a injunção nela contida – o próprio autor da norma interpretada” vinha do Acórdão n.º 801/2014, nele transcrito, e neste vinha de outros, sempre com transcrições sucessivas até ao original: o Acórdão n.º 32/87, de onde provinham todas as citações. Ora o que neste acórdão seminal se escrevia – e, portanto, o que dele se citava – era o seguinte: “só tem legitimidade para tal interpretação – ou seja, para impor a injunção nesta contida – o próprio autor da norma interpretada, isto é, o órgão que detém competência para, ab initio, produzi-la. O que significa – necessária e obviamente – que, em se tratando de normas que versem sobre matéria da competência reservada da Assembleia da República, só esta, ou o Governo por ela autoridade, podem interpretá-las autenticamente.” Ou seja: o entendimento era aí claramente no sentido de que tanto a AR quanto o Governo podiam fazer reciprocamente interpretação autêntica desde que tivessem para isso competência).
[3] Cfr. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1993, p. 247.
[4] Foi isso, aliás, que se entendeu na anterior decisão do CAAD sobre esta mesma matéria (a proferida no Proc. n.º 111/2017-T): “a norma que é autenticamente interpretada pela Lei n.º 1/2017 é o artigo 9.º, n.º 1, alínea a), do CIVA e não a Lei n.º 71/2013, que não contém qualquer norma de natureza fiscal, designadamente sobre a incidência do IVA.” Não se vê como é que se pode compatibilizar o respeito pela intervenção interpretativa do legislador quanto à isenção de IVA com o desrespeito pela determinação expressa do diploma em que tal solução deve ser consagrada – ie, com a dimensão retroativa dessa intervenção interpretativa. De resto, como se referiu acima, a redação da norma indicia claramente uma extensão do regime do artigo 9.º do CIVA, não a sua re-interpretação.
[6] Era essa, expressamente, a recomendação da Autoridade da Concorrência junta aos autos: “formalizando a classificação destes profissionais enquanto “outras Profissões paramédicas”, para efeitos da isenção concedida ao abrigo da alínea 1) do artigo 9.º do CIVA”.
[7] Já acima se notou que a massagem tui na (tal como outras práticas da medicina tradicional chinesa que não as aí elencadas) não estava contemplada na Lei n.º 45/2003, tendo sido introduzida – embora nalgumas dessas práticas redundantemente – na Lei n.º 71/2013. Esse complemento pode também ter pesado na escolha deste diploma para sede da norma interpretativa.
[8] No mesmo sentido ia também o projeto do CDS-PP (293/XIII).