Decisão Arbitral
I – Relatório
1. No dia 21.12.2017, a Requerente, A..., contribuinte fiscal número..., com domicílio na Rua..., n.º..., escritório..., Lisboa, requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à anulação da liquidação do adicional ao imposto municipal sobre imóveis (AIMI) na importância de € 36.957,32, referente ao ano de 2017.
A Requerente peticiona, ainda, a restituição do valor da liquidação que alega ter pagado, acrescido dos juros indemnizatórios que se vencerem até à data do integral e efetivo reembolso do imposto.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes, nos prazos legalmente aplicáveis, foi designado árbitro o signatário, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo, no prazo regularmente aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído em 5.03.2018.
3. Os fundamentos apresentados pela Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, sinteticamente, os seguintes:
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A liquidação aqui em causa foi emitida sobre a soma dos valores patrimoniais tributários dos andares ou divisões com utilização independente dos prédios urbanos sitos em ..., freguesia de ..., concelho de..., que correspondem ao lote..., que integram o empreendimento turístico “B...” inscritos na respetiva matriz sob os artigos mencionados na dita liquidação e de que a impugnante é proprietária plena.
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Todos esses andares e divisões com utilização independente se acham afetos, desde a abertura, em finais dos anos oitenta, a serviços de alojamento turístico e classificados como “apartamentos turísticos”, reconhecidas pelo Turismo de Portugal, I.P., como apartamentos turísticos de 3 estrelas.
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Tratando-se de andares ou divisões que integram um estabelecimento turístico que se acha afeto a serviços de alojamento não há sujeição ao adicional ao imposto municipal sobre imóveis, nos termos do nº 2 do artigo 135º-B do Código do IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis).
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Sobre a soma dos valores patrimoniais tributários dos apartamentos turísticos foi liquidado o adicional ao imposto sobre imóveis previsto nos artigos 135º-A e seguintes do Código do IMI na redação que lhe foi dada pelo artigo 219º da Lei nº 42/2016, de 28 de Dezembro, à taxa de 0,4%, como se de habitações residenciais se tratassem.
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Porém, a classificação matricial dos andares ou divisões que compõem o estabelecimento não pode prevalecer sobre a sua vocação e aptidão exclusivamente turística, sendo a errada classificação um vício suscetível de ser invocado no âmbito da impugnação arbitral da liquidação do imposto que lhe é consequente.
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A circunstância de o ato de inscrição na matriz como andares ou divisões destinadas à habitação se afigurar imediatamente sindicável, não obsta a que, não tendo este sido o possa ser ainda em sede de impugnação judicial ou arbitral da liquidação do tributo que lhe é consequente.
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A errada inscrição matricial dos andares ou divisões do “B...” como destinados à habitação constitui um vício suscetível de ser invocado e conhecido no âmbito dos presentes autos, sob pena de inconstitucionalidade da norma em que um entendimento contrário se possa fundar, por violação do princípio da tutela efetiva e do princípio da justiça.
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Os estabelecimentos hoteleiros -como o empreendimento turístico da impugnante- que se destinam a proporcionar, mediante remuneração, serviços de alojamento e outros serviços acessórios ou de apoio, com ou sem fornecimento de refeições, e não se destinam manifestamente à habitação permanente dos seus proprietários ou clientes, estão excluídos do âmbito de incidência do AIMI.
4. A ATA – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente, defendendo-se por impugnação, em síntese, com os fundamentos seguintes:
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De cordo com a vontade expressa do legislador, no nº 1, do artigo 2º, do RJAT, fixam-se quais as matérias sobre as quais se pode pronunciar o tribunal arbitral através da enunciação taxativa da competência desta jurisdição e neste elenco de competências não cabe a apreciação de atos de indeferimento de natureza administrativa-tributária de correção de matrizes cadastrais.
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O artigo 129.º do CIMI não permite aos sujeitos passivos ignorarem em fase procedimental os erros materiais de que padecem as matrizes, permitindo-lhes aguardar pelo ato de liquidação a final e aí, em fase contenciosa, invocarem pela primeira vez – como in casu – os aludidos erros materiais que, em sua perspetiva, ferem de morte os atos de liquidação contestados.
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Conclui-se, com clareza, que as correções de matrizes não são passíveis de serem sindicados em jurisdição arbitral, muito simplesmente porque, nem no RJAT, nem na Portaria de Vinculação (Portaria n.º 112-A/2011) o legislador aí inseriu a apreciação da legalidade de atos daquela natureza.
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Pelo exposto, verifica-se, no caso concreto, uma exceção dilatória que se traduz na incompetência material do tribunal arbitral, a qual prejudica o conhecimento do mérito da causa, devendo determinar a absolvição da Entidade Requerida da instância, atento o disposto nos artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
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Assim, se a lei não atribuiu ao Centro de Arbitragem Administrativa a competência para apreciar atos administrativos-tributários, como é o caso das retificações das matrizes, e se na decisão judicial o Tribunal Arbitral constituído vier a entender, não obstante, que é sua a competência, há, manifestamente, uma clara violação do teor do artigo 212.º, n.º 3 da CRP pois decide em matéria que vai para além daquilo que o legislador, a lei e as partes que à arbitragem aderiram, pretenderam desde o início: subjugar a apreciação dos atos de liquidação ao Centro de Arbitragem, isso em alternativa aos Tribunais Administrativos e Fiscais, mas salvaguardar outro tipo de atos ao exclusivo escrutínio daqueles mesmos Tribunais Administrativos e Fiscais.
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Convirá ainda alertar para o facto de nos termos do artigo 54.º do CPPT serem judicialmente impugnáveis todos os atos que sejam lesivos da esfera jurídica dos contribuintes, sendo impugnáveis todos aqueles que visem produzir efeitos jurídicos externos nas situações individuais e concretas.
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Tendo existido oportunidade impugnatória ao dispor da Requerente que podia, caso tivesse querido, reclamar administrativamente da matriz e, depois, na hipótese de indeferimento, lançar mão da ação administrativa competente, não mais é possível discutir matéria que se sedimentou, há muito, horizontal e definitivamente na ordem jurídica, pelo menos quanto aos atos de liquidação de anos transatos.
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Devem, por conseguinte, tais atos, ser atacados autonomamente, não podendo ser posteriormente atacados, aquando da correspetiva liquidação de imposto.
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Caso a decisão arbitral venha acolher a tese da Requerente, ao rejeitar assim a aplicação do artigo 54.º, primeira parte do CPPT, violará os princípios da tutela judicial efetiva e da justiça, designadamente na dimensão normativa de que a impugnação de um ato imediatamente lesivo se apresenta como verdadeiro ónus e não uma mera faculdade, que, omitido, coarta a impugnação da correspetiva liquidação com base naquele preciso vício.
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A 01-01-2017, data do facto tributário para efeitos de AIMI, a afetação era, tal como declarado desde início pela ora Requerente, habitacional.
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A Requerida, no estrito cumprimento das suas atribuições e deveres, subsumiu corretamente os factos tributários ao normativo fiscal em vigor pois que a Requerente era proprietária de prédios urbanos na data do facto tributário e, por conseguinte, sujeita a AIMI, uma vez que os imóveis não se encontravam excecionados pelo n.º 2 do artigoº 135.º-B.
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Pelo que, em suma e finalizando, não merecendo a liquidação impugnada qualquer censura, deve o pedido arbitral ser julgado improcedente, com as demais consequências legais.
5. Por despacho arbitral de 30.05.2018 foi julgada improcedente a exceção dilatória de incompetência do Tribunal arbitral suscitada pela Requerida.
Verificando-se a inexistência de qualquer situação prevista no artigo 18º, nº 1, do RJAT, que tornasse necessária a reunião arbitral aí prevista, foi dispensada a realização da mesma, com fundamento na proibição da prática de atos inúteis.
6. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.
O processo não padece de vícios que o invalidem.
7. Cumpre solucionar as seguintes questões:
1. Ilegalidade do ato de liquidação impugnado.
2. Direito da Requerente à restituição do imposto pago.
3. Direito da Requerente a juros indemnizatórios.
II – A matéria de facto relevante
8. Consideram-se provados os seguintes factos:
1.A liquidação objeto do presente processo foi emitida sobre a soma dos valores patrimoniais tributários dos andares ou divisões com utilização independente dos prédios urbanos sitos em ..., freguesia da ..., concelho de..., que corresponde ao Lote..., a norte da Rua ..., ..., inscritos na respetiva matriz predial sob os artigos identificados na notificação da liquidação objeto do presente processo, junta pela Requerente como documento número 1, que se dá por reproduzido. (Documento número 1 junto pela Requerente).
2. Estes andares ou divisões com utilização independente integram o empreendimento turístico “B...” (Documentos números 2 e 3 juntos pela Requerente).
3.A impugnante é proprietária plena inscrita na matriz de todos esses andares com utilização independente, como de todo o empreendimento turístico no qual se integram, que corresponde ao Lote ..., a norte da Rua ..., ..., inscritos na respetiva matriz predial sob os artigos identificados na notificação da liquidação (Documentos números nº 1 e 2, juntos pela Requerente).
4. Todos esses andares e divisões com utilização independente sobre que incidiu a liquidação se acham licenciados pela Câmara Municipal de ... para utilização turística, como “apartamentos turísticos” (Documento nº 3, junto pela Requerente).
5. Tratam-se de unidades de alojamento reconhecidas pelo Turismo de Portugal, I.P., como apartamentos turísticos de 3 estrelas, que integram empreendimento turístico que inclui ainda bar, ginásio, SPA e piscinas interior e exterior (Doc.º n.º 4 junta pela Requerente).
6. Os andares ou divisões independentes sobre que incidiu a liquidação objeto do presente processo encontram-se, desde a inscrição na matriz, com a menção de afetação habitacional de acordo com as participações fiscais para inscrição matricial efetuadas pela Requerente (Documento nº 2 junto pela Requerente e declarações modelo 129 constantes do Processo Administrativo 2).
7.O empreendimento turístico “B...” abriu ao público em 1988 (Documento nº 4 junto pela Requerente).
8.Na informação prestada pelo Serviço de Finanças de ... no âmbito do processo administrativo associado ao presente processo consta, designadamente, o seguinte:
“(…) pela consulta à matriz predial constata-se que os prédios sobre os quais incide a liquidação de AIMI, embora integrem um empreendimento turístico destinado ao alojamento turístico, estão afetos a habitação”.
(…)
Considerando que se trata de unidades de alojamento turístico reconhecidas pelo Turismo de Portugal, IP, a impugnante deveria ter solicitado avaliação dos andares ou divisões com utilização independente que compõem o empreendimento turístico, com afetação “serviços”.” (Processo Administrativo1)
9. A Requerente pagou o valor da liquidação em 29.09.2017 (Documento nº 1 junto pela Requerente).
Com interesse para a decisão da causa inexistem factos não provados.
9. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se nos documentos constantes do processo supra indicados, juntos pela Requerente e constantes do processo administrativo junto pela Requerida, que não foram objeto de impugnação por nenhuma das partes, sendo de observar ocorrer total concordância das partes relativamente à matéria de facto, cingindo-se o desacordo à matéria de direito.
-III- O Direito aplicável
10. O artigo 135.º-B, do CIMI, aditado pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, tem a seguinte redação:
“1 – O adicional ao imposto municipal sobre imóveis incide sobre a soma dos valores patrimoniais tributários dos prédios urbanos situados em território português de que o sujeito passivo seja titular.
2 – São excluídos do adicional ao imposto municipal sobre imóveis os prédios urbanos classificados como «comerciais, industriais ou para serviços» e «outros» nos termos das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 6.º deste Código.”
Por sua os nºs 1 e 2 do artigo 6º do mesmo Código têm o seguinte teor:
“1 – Os prédios urbanos dividem-se em:
a) habitacionais;
b) comerciais, industriais ou para serviços;
c) terrenos para construção;
d) outros.
2 – Habitacionais, comerciais, industriais ou para serviços são os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins.”
Os imóveis sobre que incidiram as liquidações objeto do presente processo são, conforme licença de utilização emitida pela Câmara Municipal de ..., apartamentos turísticos inseridos em empreendimento turístico.
É, assim, indubitável, que estamos perante imóveis licenciados para serviços.
A própria Requerida o reconhece ao afirmar, na informação prestada pelo Serviço de Finanças de ..., no âmbito do processo administrativo associado ao presente processo que “os prédios sobres os quais incide a liquidação de AIMI, embora integrem um empreendimento turístico destinado ao alojamento turístico, estão afetos a habitação”.
E entende que “(…) a impugnante deveria ter solicitado avaliação dos andares ou divisões com utilização independente que compõem o empreendimento turístico, com afetação “serviços”.”
Nesta linha, em sede de resposta, a Requerida alega que a Requerente deveria ter solicitado a correção da inscrição matricial nos termos do artigo 130º do CIMI e, em caso de indeferimento, impugnado judicialmente tal decisão. E não o tendo feito, entende a Requerida que a Requerente não poderá invocar na impugnação da liquidação a verdadeira espécie ou natureza dos imóveis em questão, por força do artigo 54.º, primeira parte do CPPT, sob pena de violação dos princípios da tutela judicial efetiva e da justiça, designadamente na dimensão normativa de que a impugnação de um ato imediatamente lesivo se apresenta como verdadeiro ónus e não uma mera faculdade, que, omitido, coarta a impugnação da correspetiva liquidação com base naquele preciso vício.
Não se acompanha, porém, tal tese e entende-se que a interpretação sustentada pela Requerida do artigo 54º do CPPT, que impedisse a Requerente de discutir e demonstrar a verdadeira natureza dos imóveis em questão para efeitos de subsunção à norma de delimitação negativa da incidência do imposto é que, ao invés, violaria os princípios da tutela judicial efetiva e da justiça.
Na verdade, conforme decidiu o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 410/2015, Processo n.º 92/14, mencionado pela Requerente[1]:
“No caso presente, a posição sustentada pela AGT tem como consequência, com o se assinalou já, que o contribuinte que não impugnou autonomamente o ato de cessação do benefício fiscal, como podia ter feito, deixa de poder impugnar a liquidação do imposto com fundamento em vícios daquele ato.
Não pode deixar de se reconhecer que se trata de uma consequência muito onerosa para o contribuinte, permitindo a consolidação na ordem jurídica de atos que o prejudicam gravemente, como sucedeu no caso, com a impossibilidade de impugnar o ato de cessação do benefício fiscal, no âmbito do processo de impugnação do ato de liquidação do imposto.
Este prejuízo causado ao contribuinte ocorreu num contexto legal em que vigora inquestionavelmente o princípio da impugnação unitária e em que a impugnação autónoma de atos lesivos ou interlocutórios praticados no âmbito do procedimento administrativo tributário é configurada pela lei como uma faculdade do contribuinte, apenas justificada no quadro do reforço das suas garantias.
O contribuinte poderia ter impugnado autonomamente a cessação do benefício fiscal. A sua escolha em não o fazer, porém, foi, naquele quadro legal, perfeitamente legítima: não só não se encontra qualquer norma legal que tenha operado a transformação da faculdade de impugnar em ónus de impugnar, como, tratando-se, como se tratou, de ato lesivo, nem sequer seria admissível a existência de tal norma.
A conclusão a extrair somente pode ser uma: ao impedir que a impugnação do ato de liquidação do imposto se funde em vícios próprios do ato de cessação do benefício fiscal, a interpretação que a decisão recorrida fez do artigo 54.º do CPPT desprotege gravemente os direitos do contribuinte, assim ofendendo princípio da tutela judicial efetiva e o princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP.
(…)
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a interpretação do artigo 54.º do Código de Procedimento e Processo Tributário que, qualificando como um ónus e não como uma faculdade do contribuinte a impugnação judicial dos atos interlocutórios imediatamente lesivos dos seus direitos, impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles, por violação do princípio da tutela judicial efetiva e do princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa;[2]
Acresce que a correção da matriz tanto poderia ocorrer por impulso da Requerente, como da Requerida, ou ainda da Câmara Municipal ou ainda da Junta de Freguesia, sendo a tese da Requerida sobre um eventual efeito preclusivo decorrente da ausência de impugnação da inscrição matricial, ainda, incompatível com o artigo 130º do CIMI, cujos números 3 e 5 dispõem o seguinte:
“(…)
3 –O sujeito passivo, a câmara municipal e a junta de freguesia podem, a todo o tempo, reclamar de qualquer incorreção nas inscrições matriciais, nomeadamente com base nos seguintes fundamentos:
(…)
5 – O chefe do serviço de finanças competente pode, a todo o tempo, promover a retificação de qualquer incorreção nas inscrições matriciais, salvo as que impliquem alteração do valor patrimonial tributário resultante de avaliação direta com o fundamento previsto na alínea a) do n.º 3, caso em que tal retificação só pode efetuar-se decorrido o prazo referido no número anterior.
(…)”.
Daqui decorre, desde logo, que, podendo as incorreções matriciais ser corrigidas a todo o tempo[3], inexiste a pretendida preclusão[4]. Vamos até mais longe e entendemos que a expressão “pode” do nº 5 do referido artigo 130º deve ser entendida, naqueles casos como o que nos ocupa, em que inexistem dúvidas sobre a incorreção, como um “poder-dever” do Chefe do Serviço de Finanças e não como uma faculdade, atentos os princípios da justiça, da igualdade e da legalidade a que a administração tributária está adstrita na globalidade da sua atividade.[5]
Em consequência, reconhecendo a Administração Tributária que os imóveis em causa estão afetos a atividade turística, deveria ter procedido oficiosamente à promoção da respetiva correção (independentemente da Requerente, a Câmara Municipal e a Junta de Freguesia terem, também, legitimidade para reclamar da mesma).
Há que observar, ainda, que independentemente do sentido da decisão a proferir nos presentes autos, a mesma não implicará, em si mesma, como é apodítico, qualquer alteração na matriz predial.
Tal não impede, porém, como resulta do exposto, que o tribunal, para efeito de apreciação da ocorrência do facto tributário, pressuposto da legalidade da liquidação, conheça da verdadeira natureza dos prédios em causa, tanto mais que, em rigor, não se trata apenas de uma incorreção da matriz mas do apuramento de realidade indispensável à verificação do facto tributário. Neste caso, está em causa o elemento objetivo de incidência face ao artigo 135º-B, nº 2, do CIMI, sendo de salientar que o AIMI é imposto com sistema interno próprio e distinto do IMI, em cujo código apenas formalmente se encontra inserido.
Acresce ainda que, o artigo 135º-B, nº 2, do CIMI ao determinar que “ São excluídos do adicional ao imposto municipal sobre imóveis os prédios urbanos classificados como «comerciais, industriais ou para serviços» e «outros» nos termos das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 6.º deste Código.”, estabelece como critério legal para a classificação dos imóveis -no caso do AIMI, essencial para a verificação da ocorrência do próprio facto tributário- o do licenciamento ou na falta dele o do seu destino normal, nos termos do artigo 6º, nº 2, do CIMI. [6]
Ora, os imóveis em causa estão licenciados para estabelecimento hoteleiro na modalidade de apartamentos turísticos, o que se enquadra, inquestionavelmente na destinação de serviços o que merece a concordância da Requerida que, em substância, apenas discorda da pretensão da Requerente por entender que decorre do artigo 54º do CPPT esta tinha o ónus de requerer a alteração da inscrição matricial, sob pena de não poder discutir em sede de liquidação a natureza do prédio, conclusão que, todavia, não tem fundamento legal, sendo inconstitucional interpretação daquela norma em tal sentido, como acima se referiu.
Da matéria de facto provada e não contestada por nenhuma das partes emerge, pois, inquestionavelmente, que os imóveis da Requerente estão excluídos da incidência objetiva do imposto.
Como se pode ler na decisão arbitral proferida no processo n.º: 205/2013-T, de 7 de Março de 2014:
“No caso em apreço, a afetação do imóvel para habitação consta da matriz predial com base em modelo 1 de IMI entregue em 23.10.2008.
Por outro lado, consta da matéria de facto provada que o imóvel em questão, resultante de
emparcelamento, não se encontra, nem nunca se encontrou, apto para habitação, tendo sido objeto, desde Dezembro de 2008, de diversos atos administrativos no sentido da concretização da edificação duma unidade hoteleira.
Provou-se, assim, uma realidade substantiva diversa da constante da matriz predial urbana, não podendo a verdade material deixar de prevalecer.
Não parece, aliás, curial entender que as matrizes prediais tenham força probatória plena,
quando o próprio CIMI prevê, para efeito deste imposto, a possibilidade do sujeito passivo
reclamar a todo o tempo de qualquer incorreção nas inscrições matriciais, nos termos do artigo 130º, nº 3 deste Código dispondo, na mesma linha, o nº 5 deste artigo que “O chefe do Serviço de Finanças competente pode, a todo o tempo, promover a retificação de qualquer incorreção nas inscrições matriciais, salvo as que impliquem alteração do valor patrimonial tributário resultante de avaliação direta com o fundamento previsto na al. a) do nº 3 (…)”.
Escrevendo sobre as informações oficiais refere Rui Duarte Morais que “foi abolida a força probatória plena que, antes, era atribuída às informações oficiais prestadas pelas administrações tributária. Estão também sujeitas à livre apreciação pelo juiz (artº 76º, nº 1 da LGT e artº 115º, nº 2 do CPPT), pelo que o seu relevo probatório dependerá da respetiva fundamentação, sendo que bastará ao interessado lograr a contraprova de factos suscetíveis de gerar dúvida razoável quanto à correspondência à verdade do afirmado em tais informações” (MANUAL DE PROCEDIMENTO E PROCESSO TRIBUTÁRIO, Almedina, 2012, pág. 258).
Por sua vez, diz-nos JORGE LOPES DE SOUSA que “A razão de ser da omissão de
referência no C.P.T. e neste C.P.P.T. a esta especial força probatória, só susceptível de ser contrariada por prova do contrário, está no facto de estes diplomas não a reconhecerem em alguns casos, que são enquadráveis no seu artigo 121º e 100º, respectivamente.
Na verdade, nestes artigos estabeleceu-se a regra de que, nos processos de impugnação
judicial, as dúvidas fundadas sobre a matéria fáctica quanto à existência e quantificação do facto tributário são valoradas a favor do contribuinte, conduzindo à anulação do acto impugnado.
Isto significa que, no processo de impugnação judicial, relativamente às informações
oficiais concernentes à existência e quantificação do facto tributário, não é necessário provar o contrário, mas apenas gerar dúvidas fundadas, para que a decisão sobre a respectiva matéria de facto tenha de ser processualmente desfavorável à administração tributária (artigo 346º do Código Civil)
(…)
A força probatória das informações oficiais reporta-se aos factos que nelas forem referidos,pois é apenas relativamente a factos que se coloca a questão da produção da prova.
Relativamente a factos, a sua força probatória existe quanto aos afirmados como sendo praticados pela administração tributária ou com base na percepção dos seus órgãos ou agentes, ou factos determinados a partir dessa percepção com base em critérios objectivos.” (CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E PROCESSO TRIBUTÁRIO ANOTADO, 4ª edição, Vislis, 2003, pág. 504)
Note-se, de resto, que, mesmo nos termos do artigo 371º, nº 1 do Código Civil “Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais documentadores só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador”.
Em anotação a esta norma dizem-nos Pires de Lima e Antunes Varela que “O valor probatório pleno do documento autêntico não respeita a tudo o que se diz ou se contém no
documento, mas somente aos factos que se referem praticados pela autoridade ou oficial público respectivo (…), e quanto aos factos que são referidos no documento com base nas percepções da entidade documentadora” (Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 1982, 2ª Ed., pag. 326), posição que é, desde há muito, acolhida pacificamente pela jurisprudência nacional (Cfr. quanto à jurisprudência fiscal o ac. do STA de 1.02.2005 no proc. 066/04, em www.dgsi.pt).
Atento o exposto, não estava a Requerente impedida de demonstrar, como demostrou, que
apesar de constar na matriz predial a afetação habitacional do prédio, esta não correspondia à realidade na data do facto tributário.
Assim, no caso em apreço, a Requerente nem sequer se limitou a gerar dúvidas fundadas sobre a realidade da afetação habitacional do prédio, pois provou, de forma positiva, que tal afetação não existia na data do hipotético facto tributário. Ou seja, a Requerente provou o contrário do mencionado na matriz predial.”[7]
Assim sendo, tendo-se demonstrado que, à data do facto tributário, na realidade, os prédios objeto da liquidação “sub judice” não se encontravam afetos a habitação mas a serviços, verifica-se que os mesmos se encontram abrangidos pela delimitação negativa de incidência prevista no artigo 135º-B, nº 2, do CIMI e, deste modo, não pode a pretensão anulatória da Requerente deixar de proceder.
11. Veio, ainda, a Requerente pedir a condenação da Requerida a reembolso das quantias indevidamente arrecadadas, bem como o pagamento de juros indemnizatórios que se mostrarem devidos, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.
No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, é procedente a pretensão do Requerente à restituição por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para restabelecer a situação que existiria se a ilegalidade em causa não tivesse sido praticada.
No que concerne aos juros indemnizatórios, cabe ainda apreciar esta pretensão à luz do artigo 43º da Lei Geral Tributária.
Dispõe o nº 1 daquele artigo que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Sufragamos o entendimento de Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa que sustentam que “O erro imputável aos serviços que operaram a liquidação fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou a impugnação judicial dessa mesma liquidação e o erro não for imputável ao contribuinte” (Lei Geral Tributária, encontros da escrita, 4ª Edição, 2012, pág. 342).
Porém, no caso “sub judice”, não pode concluir-se que o erro que deu origem à liquidação não seja imputável ao contribuinte, uma vez que foi este que na participação dos imóveis à matriz indicou a destinação habitacional. É certo que durante todos estes anos, quer a Requerida, quer a Junta de Freguesia, quer a Câmara Municipal, poderiam, também, ter promovido ou requerido a retificação do erro, sendo que esta última não poderia desconhecer o mesmo dado que ela própria licenciou os imóveis para atividade turística, mas também é certo que a Requerente de igual modo o poderia ter feito e que, decisivamente, foi ela que na declaração modelo 129 inseriu a menção errada sendo que, por outro lado, não ficou demonstrado que a Requerida tivesse conhecimento em momento anterior à liquidação, da real afetação e natureza dos imóveis.
Nesta conformidade, face ao artigo 43º, nº 1, da Lei Geral Tributária, a Requerente não tem direito a juros indemnizatórios, não podendo deixar de improceder, nesta parte, o pedido.
-IV- Decisão
Assim, decide o tribunal arbitral:
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Declarar a ilegalidade e consequente anulação do ato tributário de liquidação impugnado.
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Condenar a Requerida a restituir à Requerente o imposto pago.
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Julgar improcedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
Valor da ação: € 36.957,32 (trinta e seis mil novecentos e cinquenta e sete euros e trinta e dois cêntimos) nos termos do disposto no artigo 306º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Custas pela Requerida no valor de 1 836.00 € (mil oitocentos e trinta e seis euros), nos termos do nº 4 do artigo 22º do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, CAAD, 16.07.2018
O Árbitro
Marcolino Pisão Pedreiro
[1] Disponível em “http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/”
[2] No acórdão do STA proferido no processo 01685/13, 08-01-2014, (disponível em “www.dgsi.pt”), pode também ler-se:
“Admitiu já, e em data muito recente, este Supremo Tribunal, em Acórdão por nós subscrito – cfr. o Acórdão de 27 de Novembro de 2013, proferido no rec. n.º 1725/13 –, que o acto de inscrição oficiosa na matriz de uma determinada realidade física como prédio reconduz-se a acto imediatamente lesivo dado que provoca uma alteração significativa na esfera jurídica da recorrente, daí a admissibilidade de ser formulado pedido de suspensão da sua eficácia, mas consignou-se igualmente nesse Acórdão que o facto de a imediata lesividade de tal acto permitir, querendo, a sua impugnação autónoma, não obsta a que, não o tendo sido, possa ainda ser sindicado em sede de impugnação da liquidação do tributo, ou - acrescentamos nós, por identidade ou maioria de razão -, em sede de impugnação do acto de fixação do valor patrimonial tributário resultante de 2.ª avaliação, pois que não se vê porque razão haverá que esperar pela liquidação do imposto para que possa discutir-se a questão prévia relativa à qualificação jurídica do facto tributário quando, como vimos já, o n.º 2 do artigo 77.º do Código do IMI admite expressamente que a impugnação do resultado da segunda avaliação pode ter por fundamento qualquer ilegalidade, sendo que a errónea qualificação do facto tributário constitui uma ilegalidade expressamente tipificada na lei (cfr. a alínea a) do artigo 99.º do CPPT), não havendo razão alguma para se ter de aguardar pela impugnação da liquidação para que tal vício possa ser invocado.
Decorre do exposto que, ao contrário do decidido, nenhum obstáculo processual se verifica para que na impugnação judicial deduzida contra o resultado da segunda avaliação se pudessem invocar – e se possam apreciar – eventuais ilegalidades decorrentes do acto prévio de inscrição oficiosa do prédio na matriz como prédio urbano da espécie “outros”, acto este que, podendo ser sindicado directamente por via de acção administrativa especial, não tem de o ser necessariamente.”
[3] O mesmo decorre do artigo 134º, nº 5, do CPPT.
[4] Uma vez que a inscrição matricial incorreta pode ser retificada a todo o tempo, a mesma não se enquadra na noção de ato destacável pois como referem Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in LEI GERAL TRIBUTÁRIA, Anotada, Encontros da escrita, 4ª Ed., 2012 pag. 611 “Se os actos destacáveis não forem impugnados, a decisão consolidar-se-á e o que neles se decidiu ficará assente no procedimento tributário em que eles estejam inseridos ou conexionados, não podendo a decisão final do procedimento ser impugnada com fundamentos em vícios do acto destacável”, o que, manifestamente, não ocorre no caso em apreço.
[5] Interpretando também como “poder-dever” a mesma expressão do artigo 78º, nº 4, da Lei Geral Tributária, cfr. Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, ob. cit., pag. 710.
[6] Refere-se no acórdão arbitral proferido no proc. 664/2017-T que “O âmbito de incidência objectiva, por efeito da remissão para aquele artigo 6.º, ficou assim definido não só por referência a uma certa espécie de prédios urbanos, mas também por referência ao procedimento administrativo através do qual foi efectuada a classificação ou, na falta de licença, à normal destinação desses prédios para os fins comerciais, industriais e serviços ou outros.” (https://caad.org.pt/tributario/decisoes)
[7] Em sentido concordante pode ler-se no processo n.º 206/2013-T que “Diga-se, antes de mais, que concordamos inteiramente com o entendimento de que as matrizes prediais não têm força probatória plena. Quanto a este aspecto, remete-se para a fundamentação, designadamente doutrinária, constante da Decisão Arbitral proferida no processo n.º 205/2013-T.”
Em concordância prática com este entendimento cfr., também, as decisões arbitrais proferidas nos processos 285/2014-T e 113/2016-T.