Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 354/2017-T
Data da decisão: 2018-03-19  IMI  
Valor do pedido: € 1.370,99
Tema: IMI - isenção da al. n) do n.º 1 do art.º 44.º do EBF - questão prejudicial.
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

  1. Relatório

 

 

A - Geral

 

 

  1. A…, S.A., com o número único de matrícula e de pessoa colectiva…, com sede no…, …, n.º…, …-… Porto (de ora em diante designada “Requerente”), apresentou, no dia 01.06.2017, um pedido de constituição de tribunal arbitral singular em matéria tributária, que foi aceite, visando, por um lado, a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de Imposto Municipal sobre Imóveis (de ora em diante “IMI”), para o ano de 2017, relativo a fracções autónomas de que é proprietária, como adiante melhor se verá, incluída na nota de cobrança n.º 2016…, concernente à primeira prestação, no valor global de € 667,61 (seiscentos e sessenta e sete euros e sessenta e um cêntimos), e, por outro, o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios pelo pagamento indevido de prestações tributárias.

 

  1. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou o signatário como árbitro, não tendo as Partes, depois de devidamente notificadas, manifestado oposição a essa designação.

 

  1. Por despacho de 19.06.2017, a Administração Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada “Requerida”) procedeu à designação dos Senhores Dr. B… e Dr. C… para intervirem no presente processo arbitral, em nome e representação da Requerida.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral foi constituído a 10.08.2017.

 

  1. No dia 11.09.2017 foi notificado o dirigente máximo do serviço da Requerida para, querendo, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar produção de prova adicional.

 

  1. No dia 09.10.2017 a Requerida apresentou a sua resposta.

 

 

B – Posição da Requerente

 

 

  1. A Requerente é proprietária das fracções designadas pelas letras “J”, “O” e “P” do prédio sito na…, n.º … freguesia de …, concelho do Porto, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo … [sic], a que correspondem as cadernetas que a Requerente anexa ao seu pedido como documentos n.º 2 a n.º 4, cujo teor se tem por reproduzido (de ora em diante designado “Prédio”).

 

  1. A Requerida, no dia 03.03.2017 procedeu à liquidação do IMI referida em 1.1., cujo documento de cobrança relativo à primeira prestação foi anexado ao pedido de pronúncia arbitral como documento n.º 1, cujo teor se tem por reproduzido.

 

  1. A Requerente procedeu ao pagamento da primeira prestação do IMI supra referida no dia 24.03.2017 no valor de € 667,61 (seiscentos e sessenta e sete euros e sessenta e um cêntimos).

 

  1. Até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26 de Junho, estavam isentos de IMI “todos os imóveis que integrassem determinado conjunto urbano de interesse público” e depois dela passou a fazer-se referência a “imóveis individualmente considerados”, sem se concretizar o sentido dessa expressão.

 

  1. Interpretando a al. n) do n.º 1 do art.º 44.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (de ora em diante “EBF”) será de concluir que o legislador não quis excluir do benefício fiscal todos os imóveis que integrem um conjunto urbano, mas apenas aqueles que não integrando um conjunto urbano, por si só a título individual não possam ser classificados pelo Ministério da Cultura, não havendo a possibilidade de classificação individual de imóveis, como imóveis de interesse público, mas apenas de conjuntos urbanos.

 

  1. No caso dos autos, o Ministério da Cultura, ao abrigo da Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro, a chamada Lei de Bases do Património Cultural (de ora em diante a “LBPC”), classificou como de interesse público o conjunto urbano da … entre o … e a Avenida …, área a que pertence o Prédio.

 

  1. A alínea n) do n.º 1 do art.º 44.º do EBF, recorrendo à expressão “prédio individualmente classificado” quer referir-se a monumento, sítio ou conjunto urbano, razão por que o Prédio está isento de IMI, sendo a liquidação ora posta em crise ilegal.

 

  1. Os juros indemnizatórios peticionados são devidos, uma vez que a Requerente pagou prestação tributária a seu ver ilegal.

 

 

C – Posição da Requerida

 

 

  1. Começa a Requerida por levantar uma questão inicial: a nota de cobrança de IMI a que a Requerente alude não se refere apenas ao Prédio, mas a outros imóveis que não integram o conjunto urbano da … entre o … e a Avenida … .

 

  1. Defende-se por excepção, dizendo que a liquidação colocada em crise é o resultado da decisão de indeferimento do pedido de isenção de IMI proferida a 12.07.2017, contra a qual a Requerente deduziu acção administrativa especial, que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto sob o n.º …/17…BEPRT, acção que constitui uma questão prejudicial face à que é objecto dos presentes autos, já que a legalidade da decisão que indeferiu a isenção de IMI representa um antecedente lógico-jurídico da liquidação cuja legalidade cumpre apreciar, o que justifica a suspensão da presente instância.  

 

  1. É certo que não se oferece uma noção legal de “imóvel individualmente considerado”, pela simples razão de que essa expressão não representa nenhum conceito particular, podendo alcançar-se o seu sentido pela correcta interpretação de cada um dos termos que a compõem.

 

  1. É abusiva a interpretação de que todos os prédios inseridos no “conjunto urbano” se encontram, apena por esse facto, classificados e, como tal, isentos de IMI.

 

  1. Acresce que o benefício fiscal em causa nos presentes autos está indissociavelmente relacionado com um prédio, sendo certo que o “conjunto urbano da … entre o … e a Avenida…” não é um prédio, não coincidindo a noção de “bem cultural imóvel” com as noções civil e fiscal de “prédio”.

 

  1. Entende ainda a Requerida que não ficou provado que o Prédio se situa no dito “conjunto urbano da … entre o … e a Avenida …”.

 

  1. A jurisprudência arbitral invocada pela Requerente não se refere nem ao “conjunto urbano da … entre o … e a Avenida …” nem sequer à questão que cumpre apreciar nos presentes autos, ou seja, ao sentido de “prédio individualmente classificado”.

 

  1. Para além do mais, a interpretação veiculada pela Requerente mostra-se contrária à Constituição, na medida em que viola o princípio da igualdade tributária, o princípio da capacidade contributiva e o princípio da autonomia local.

 

 

D – Conclusão do Relatório e Saneamento

 

 

  1. Por despacho de 19.02.2018 o Tribunal Arbitral dispensou a reunião prevista no art.º 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), por entender que as Partes haviam já carreado para o processo os elementos de facto necessários e suficientes para a prolação da decisão, e prorrogou por mais dois meses o prazo para a prolação da decisão, que se previu pudesse ter lugar até ao dia 29.03.2018, tendo sido oferecido às Partes prazo para a apresentação de alegações escritas e sucessivas.

 

  1. A Requerente não apresentou alegações, tendo a Requerida apresentado as suas a 08.03.2018, sumariando o já propugnado na douta Resposta apresentada.

 

  1. O tribunal arbitral é materialmente competente, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT.

 

  1. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade nos termos do art.º 4.º e do n.º 2 do art.º 10.º do RJAT, e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

  1. A cumulação de pedidos (declaração de ilegalidade de acto de liquidação, por um lado, e reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, por outro) efectuada no presente pedido de pronúncia arbitral, em homenagem ao princípio da economia processual, justifica-se uma vez que o art.º 3.º do RJAT, ao admitir expressamente a possibilidade de “cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos”, acomoda, sem abuso hermenêutico, a apreciação de um pedido que decorre, em termos necessários, do juízo que o Tribunal Arbitral sufrague quanto à validade da liquidação posta em crise.

 

  1. O processo não padece de qualquer nulidade.

 

  1. Tendo sido invocada a excepção de prejudicialidade do pedido de pronúncia arbitral, terá de ser esta a primeira questão a ser apreciada, já que a sua procedência obstará ao imediato julgamento do mérito da causa.

 

 

  1. Matéria de facto

 

2.1.      Factos provados

 

  1. A Requerente é proprietária das fracções designadas pelas letras “J”, “O” e “P” do prédio sito na …, n.º…, freguesia de …, concelho do Porto, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo … (e não…, como é dito pela Requerente), a que correspondem as cadernetas anexas ao pedido de pronúncia arbitral como documentos n.ºs 2 a 4.

 

  1. A Requerida, no dia 03.03.2017, procedeu à liquidação do IMI referida em 1.1., cujo documento de cobrança relativo à primeira prestação foi anexado ao pedido de pronúncia arbitral como documento n.º 1.

 

  1. A Requerente procedeu ao pagamento da primeira prestação do IMI supra referida no dia 28.04.2017 (e não na data que é referida pela Requerente), no valor de € 667,61 (seiscentos e sessenta e sete euros e sessenta e um cêntimos), como consta do documento n.º 6 anexo ao pedido de pronúncia arbitral.

 

  1. A Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral sobre a ilegalidade da liquidação posta em crise no dia 01.06.2017.

 

  1. A Requerida foi notificada da apresentação do pedido de pronúncia arbitral no dia 12.06.2017.

 

  1. A Requerida começou a intervir no processo, apresentando aos autos um requerimento, no dia 19.07.2017.

 

  1. O tribunal arbitral ficou constituído no dia 10.08.2017, tendo disso sido a Requerida notificada no mesmo dia.

 

  1. O Ministério da Cultura, ao abrigo da LBPC, classificou como de interesse público o conjunto urbano da … entre o … e a Avenida … (cfr. Portaria 400/2010, DR 114, II Série, 15/06/2010), área geográfica em que se integra o Prédio.

 

  1. A nota de cobrança de IMI anexada pela Requerente ao pedido de pronúncia arbitral como documento n.º 1, não se refere apenas ao Prédio mas a outros imóveis que não integram o conjunto urbano da … entre o … e a … .

 

  1. Às fracções designadas pelas letras “J”, “O” e “P” do prédio sito na …, n.º…, freguesia de…, concelho do Porto, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo … foram atribuídos, respectivamente, os seguintes valores patrimoniais tributários: € 391.035,33 (trezentos e noventa e um mil e trinta e cinco euros e trinta e três cêntimos), € 21.334,18 (vinte e um mil trezentos e trinta e quatro euros e dezoito cêntimos) e € 10.777,60 (dez mil, setecentos e setenta e sete euros e sessenta cêntimos), conforme resulta dos documentos n.ºs 1 a 4 juntos pela Requerente ao pedido de pronúncia arbitral.

 

  1. A colecta de IMI do ano de 2017 relativa a cada uma das fracções designadas pelas letras “J”, “O” e “P” do prédio sito na …, n.º…, freguesia de …, concelho do Porto, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo … é, respectivamente, de € 1.266,95 (mil duzentos e sessenta e seis euros e noventa e cinco cêntimos), € 69,12 (sessenta e nove euros e doze cêntimos) e € 34,92 (trinta e quatro euros e noventa e dois cêntimos), o que corresponde a uma colecta global (relativamente às indicadas fracções) de € 1.370,99 (mil trezentos e setenta euros e noventa e nove cêntimos), conforme resulta do documento n.º 1 junto pela Requerente ao pedido de pronúncia arbitral.

 

  1. A Requerente pediu a isenção de IMI relativamente ao Prédio, pedido que foi indeferido no dia 12.07.2017 pelo Chefe de Finanças do Porto … (art.º 10.º da resposta da Requerida e documento n.º 2 que esta àquela anexou).

 

  1. A Requerente propôs uma acção administrativa especial visando a anulação do acto de indeferimento do benefício fiscal de isenção de IMI que havia requerido, que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, Unidade Orgânica …, sob o n.º …/17…BEPRT (documento n.º 1 apresentado com a Resposta da Requerida).

 

  1. A Requerida foi citada da acção referida em 2.1.13. a 04.09.2017 (documento n.º 1 apresentado com a resposta da Requerida).

 

  1. A Requerida, após a citação a que se refere em 2.1.14. e em data anterior a 09.10.2017, apresentou a sua contestação.

 

2.2.      Factos não provados

 

Não ficou provado que a Direcção Geral do Património Cultural haja certificado, nos termos da LBPC, que o Prédio está individualmente classificado. Não há mais factos relevantes para a apreciação do mérito da causa que hajam sido dados como não provados.

 

2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados e não provados com base nos documentos juntos aos autos pelas Partes e nas posições por elas assumidas nos articulados apresentados.

 

 

  1. Matéria de direito

 

3.1.      Questões a decidir

 

Resulta do que acima se deixou dito que as questões a apreciar são, no fundo, as seguintes: 

  1. A de saber se procede a excepção de prejudicialidade invocada pela Requerida, o que levaria à suspensão da presente instância arbitral;
  2. A de determinar se o Prédio, para os efeitos do disposto na alínea n) do n.º 1 do art.º 44.º do EBF, está individualmente classificado como de interesse público ou de interesse municipal, nos termos da legislação aplicável, beneficiando consequentemente de isenção de IMI; e
  3. Por fim, a de esclarecer se, caso seja julgado procedente o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto de liquidação contestado, a Requerente, no âmbito do presente processo arbitral poderá obter a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios relativamente à quantia por si entregue para satisfação da prestação tributária por esta ilegalmente exigida.

 

3.2.      A excepção de prejudicialidade

 

A Requerente pediu a isenção de IMI relativamente ao Prédio, pretensão que veio a ser indeferida no dia 12.07.2017 pelo Chefe de Finanças do Porto …, tendo a Requerente, em reacção a esse acto de indeferimento, proposto uma acção administrativa especial visando a sua anulação, a qual corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, Unidade Orgânica …, sob o n.º …/17…BEPRT.

 

Ora, na acção administrativa especial que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, Unidade Orgânica…, sob o n.º …/17…BEPRT está em causa saber se o mesmíssimo Prédio deve, ou não, beneficiar da isenção de IMI a que se refere a al. n) do n.º 1 do art.º 44.º do EBF. A petição inicial desse processo, que a Requerida anexou à sua Resposta como documento n.º 1, deixa isso muito claro.

 

Em todo o caso, é forçoso reconhecer que, embora exigindo a análise da mesma questão de fundo – qual seja, insista-se, a de saber se o Prédio deve considerar-se isento de IMI nos termos e para os efeitos do disposto na al. n) do n.º 1 do art.º 44.º do EBF – a abrangência de ambos os pedidos não é a mesma. Na verdade, enquanto que na acção administrativa especial se pede a anulação do acto de indeferimento do pedido de reconhecimento da isenção de IMI, o que em si mesmo não está relacionado com a liquidação de IMI em concreto, relativa a um determinado ano, o pedido de pronúncia arbitral que nos ocupa impõe-nos apenas a apreciação da legalidade da liquidação de IMI referente ao ano de 2017.

 

Poder-se-ia pensar, até, estarmos diante de uma situação de litispendência, excepção que visa impedir a repetição ou a contradição de julgados (art.º 580.º e 581.º do Código de Processo Civil). Os requisitos da litispendência estão elencados no art.º 581.º do dito Código (de ora em diante “CPC”) e impõem uma tripla identidade[1]:

 

  1. Identidade de sujeitos;
  2. Identidade de pedido; e
  3. Identidade de causa de pedir.

 

Ora, não há dúvidas de que existe identidade de sujeitos. Menos cristalina se mostra a apreciação das outras duas exigências. É evidente que, em termos imediatos, na acção administrativa especial e no presente pedido de pronúncia arbitral não se formula o mesmo pedido. Ali pede-se a anulação do acto de indeferimento do pedido de isenção de IMI; aqui, peticona-se a anulação de um acto de liquidação do IMI. O n.º 3 do art.º 581.º do CPC faz depender a identidade do pedido da pretensão de se obter o mesmo efeito jurídico e o n.º 4 do mesmo preceito refere que há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. Uma leitura excessivamente formalista[2], que tendemos a não perfilhar, considerará distintos os pedidos e a causa de pedir. Talvez tenha sido essa a razão por que a Requerida não invocou esta excepção dilatória.

 

Invocou, sim, visando a suspensão da presente instância arbitral, a excepção que chamou de prejudicialidade, porque, em seu entender “a discussão da (i)legalidade da decisão que indeferiu a isenção de IMI (i.e., acto em matéria tributária) constitui uma questão que representa um antecedente lógico-jurídico da liquidação controvertida nos presentes autos arbitrais”[3]. Ou seja, “a discussão da legalidade da liquidação de IMI sub judice constitui uma questão que depende do entendimento que, a montante, vier a ser fixado quanto à decisão de indeferimento da isenção de IMI que está a ser apreciada em sede de acção administrativa no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto”[4].

 

O n.º 1 do art.º 272.º do CPC[5] refere que “o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”.

 

Vale a pena respigar o que sobre isto foi proferido no Processo Arbitral n.º 340/2017-T, cujas considerações transcritas se acolhem:

 

Para efeitos do disposto no art.º 272º do CPC, uma causa está dependente do julgamento de outra já proposta quando a decisão desta pode afetar e/ou prejudicar o julgamento da primeira, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser, o que acontece, designadamente, quando, na causa prejudicial, esteja a ser apreciada uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem que ser considerada para a decisão do outro pleito. (…).

Entende-se, assim, por causa prejudicial aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia.

Tal como acontece nas situações de litispendência ou caso julgado, visa-se também aqui também, embora não só, evitar o risco de incompatibilidade de fundo entre as decisões a proferir em ambas as acções e que poderia decorrer do seu prosseguimento simultâneo.

A possibilidade de suspensão da instância na causa prejudicial – como forma de evitar a incompatibilidade de julgados – é reforçada nas situações em que os fundamentos invocados para a pretensão deduzida na causa prejudicial são os mesmos que já haviam sido invocados na contestação da causa dependente, para obstar à procedência da pretensão aí deduzida (…).

 

Não há dúvidas de que existem similitudes, no que aos fundamentos dos respectivos pedidos respeita, entre a petição inicial da acção administrativa especial e o presente pedido de pronúncia arbitral. Aliás, boa parte dos articulados é literalmente idêntica. Nos presentes autos arbitrais a Requerente parece apenas pretender impugnar a liquidação de IMI do ano de 2017. Contudo, como se lê na decisão interlocutória proferida no âmbito do Processo Arbitral n.º 26/2011-T (que a Requerida juntou à sua Resposta como documento n.º 3), não pode manter-se esta aparência. O que se pretende, tanto na acção administrativa especial como nos presentes autos arbitrais é a análise da legalidade ou ilegalidade dos fundamentos em que assentam, por um lado, o indeferimento do pedido de isenção de IMI apresentado pela Requerente e, por outro, a liquidação de IMI referente ao ano de 2017. E a verdade é que essa análise, tal como o pedido de pronúncia arbitral é formulado, se esgota na interpretação do disposto na al. n) do n.º 1 do art.º 44.º do EBF, em termos de se apurar se o Prédio deve ou não ser considerado como prédio “individualmente classificado como de interesse público ou de interesse municipal, nos termos da legislação aplicável”, para efeitos de isenção de IMI.

 

Tenhamos presente que a arbitragem tributária é enformada pelo princípio da celeridade, inspirada pelo “desígnio nacional de combate às pendências”[6], assumindo especial relevo o princípio da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e na determinação das regras a observar com vista à obtenção, em prazo razoável, de uma pronúncia de mérito sobre as pretensões formuladas[7]. Ora, a autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e na determinação das regras a observar reflecte-se desde logo na inconveniência de uma aplicação necessária e imediata da legislação subsidiária, mormente a de natureza processual. Apesar de o artigo 29.º do RJAT indicar legislação subsidiariamente aplicável, a sua aplicação no processo arbitral dependerá sempre de uma decisão do Tribunal Arbitral, que deverá ter em especial atenção a compatibilidade do regime previsto na legislação subsidiária com o que se pretende seja a pedra de toque da jurisdição arbitral tributária: a celeridade[8].  

 

Importa ainda sublinhar que, no caso dos autos que nos ocupam, a Requerida foi notificada do pedido de pronúncia arbitral antes de o ter sido da acção administrativa especial. Na verdade, a Requerida foi notificada da apresentação do pedido de pronúncia arbitral no dia 12.06.2017 e da constituição do Tribunal Arbitral no dia 10.08.2017, tendo sido citada da acção administrativa especial apenas a 04.09.2017[9].

 

Ora, o n.º 1 do art.º 272.º do CPC refere que “o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”. Como se deixou dito, crê o Tribunal Arbitral que a maior abrangência do objecto da acção administrativa especial como que consome o que tem de ser apreciado nos presentes autos. Naquele processo será discutido se andou bem a Administração Fiscal e Aduaneira quando indeferiu o pedido de isenção de IMI apresentado pela Requerente, sendo certo que esse juízo terá de dar resposta à pergunta de saber se o Prédio deve beneficiar da isenção referida na alínea n) do n.º 1 do art.º 44.º do EBF. Contudo, se tivermos bem presentes as datas em que foram propostas as acções e aquelas em que a Requerida foi notificada da sua existência, não é exacto afirmar que a decisão a dar à presente causa está dependente do julgamento de outra já proposta (sublinhado nosso).

 

Recordemos ainda que nos presentes autos o pedido da Requerente se cinge à apreciação da legalidade da liquidação de IMI do ano de 2017, âmbito muito mais restrito do que aquele que o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto terá de analisar.

 

Assim, atentos os argumentos aduzidos supra, entende o Tribunal Arbitral que a requerida suspensão da instância arbitral, em vista dos interesses em presença, não só não se justifica como parece não esvazia o âmbito do que tem de ser apreciado pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, Unidade Orgânica…, no processo n.º …/17…BEPRT.

 

A suspensão da instância, sem um prazo certo e condicionada ao trânsito em julgado da acção administrativa especial, seria manifestamente inconciliável com a celeridade que se pretende domine a jurisdição arbitral[10].

 

3.3.      O sentido e o alcance da expressão “individualmente classificado como de interesse público ou de interesse municipal, nos termos da legislação aplicável” a que faz apelo a al. n) do n.º 1 do art.º 44.º do EBF

 

Entende a Requerente que a lei não concretiza o sentido da expressão “imóveis individualmente classificados”[11] e crê que “o legislador não quis excluir do benefício fiscal todos os imóveis que integrem um conjunto urbano, mas apenas e tão só aqueles imóveis que não integrando um conjunto urbano, e por si só a título individual não possam ser classificados pelo Ministério da Tutela”[12]. Mais refere a Requerente que o Ministério da Cultura, ao abrigo da LBPC, apenas atribui a classificação a conjuntos urbanos, “nunca atribuindo a classificação de bens imóveis de interesse público a imóveis individuais, que não sejam monumentos”[13].

 

Ora, se bem lemos estas afirmações, pretende a Requerente que todos os imóveis integrantes do conjunto urbano em causa beneficiam, ipso facto, da isenção de IMI a que se refere a al. n) do n.º 1 do art.º 44.º do EBF. Com o devido respeito, não pode este Tribunal Arbitral acompanhar semelhante conclusão.

 

Na verdade, apesar da complexidade técnica que caracteriza o esforço legislativo tendente à protecção do património cultural, nomeadamente o que se corporiza na LBPC, não se pode dizer que nela ou no EBF falta a noção de “prédio individualmente classificado”. Sabemos o que é um “prédio” (art.º 2.º, n.º 1 do CIMI) e não ignoramos o que significa, neste âmbito, “classificação”: “acto final do procedimento administrativo mediante o qual se determina que certo bem possui um inestimável valor cultural” (art.º 18.º, n.º 1 da LBPC). Também não se mostra particularmente impenetrável o sentido do vocábulo “individualmente”, que é um mero advérbio de modo relacionado com um ser, um objecto ou uma situação, como ensinam os dicionaristas.

 

Como bem explica a Requerida, o conceito de “conjunto” admite que no seu seio existam imóveis em si mesmo desprovidos de valor cultural. A al. n) do n.º 1 do art.º 44.º do EBF refere-se expressamente a prédios individualmente classificados como de interesse público ou de interesse municipal, pelo que a isenção de IMI que esta norma consagra não pode desligar-se do conceito de prédio. Como facilmente se alcança, um conjunto urbano, ainda que merecedor de tutela e protecção no âmbito dos deveres culturais do Estado, não é, para estes ou para quaisquer outros efeitos, um “prédio” em sentido próprio. Poderá, como é evidente, um prédio integrado no “conjunto urbano da … entre o … e a Avenida …” ser merecedor de uma classificação individual e, nessa medida, beneficiar da isenção de IMI que a referida norma do EBF consagrou. Contudo, não parece autorizada, nem pela letra nem sequer pelo pensamento legislativo, a interpretação da al. c) do n.º 1 do art.º 44.º do EBF que vá no sentido de estender o benefício de IMI nela previsto a todos e quaisquer prédios pertencentes ao perímetro do dito conjunto urbano. Se outros argumentos faltassem, e no caso abundam, o uso do termo “individualmente” permitiria esclarecer as dúvidas que pudessem subsistir. Isto porque, como bem referiu a Requerida, ao contrário do que foi afirmado pela Requerente, não só é possível haver classificação individual de prédios como sendo de interesse público, como são vários os casos em que isso ocorre.

 

Assim, em vista dos argumentos utilizados pela Requerente, não vê o Tribunal Arbitral razão para anular o acto de liquidação de IMI posto em crise, já que não entende este Tribunal Arbitral que a Requerida tenha feito uma interpretação abusiva da al. n) do n.º 1 do art.º 44.º do EBF.  

 

3.4.      Questões prejudicadas

 

Ficam prejudicadas, por desnecessárias, a análise dos demais argumentos usados pela Requerida para sustentar a legalidade do acto de liquidação de IMI posto em crise e a apreciação da questão referente aos juros indemnizatórios. 

 

 

  1. Decisão

 

Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar improcedente a excepção de prejudicialidade invocada pela Requerida;
  2. Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral; e
  3. Condenar a Requerente nas custas do processo.

 

 

  1. Valor do processo

 

Quando seja impugnado um acto de liquidação, o valor da causa é o da importância cuja anulação se pretende, que corresponde à utilidade económica do pedido. Assim, de harmonia com o disposto no n.º 2 do art.º 306.º do CPC, no art.º 97.º-A do CPPT e ainda do n.º 2 do art.º 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 1.370,99 (mil trezentos e setenta euros e noventa e nove cêntimos), apurado de acordo com o critério constante no 2.1.11. supra.

 

 

  1. Custas

 

Para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 12 e no n.º 4 do art.º 22.º do RJAT e do n.º 4 do art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 306,00 (trezentos e seis euros), nos termos da Tabela I anexa ao dito Regulamento, a suportar integralmente pela Requerente.

 

 

Lisboa, 19 de Março de 2018

 

 

O Árbitro

 

 

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(Nuno Pombo)

 

 

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do art.º 131.º do CPC, aplicável por remissão da al. e) do n.º 1 do art.º 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro e com a grafia anterior ao dito Acordo Ortográfico de 1990.

 

 



[1] Cfr. Processo arbitral que correu termos no CAAD, sob o n.º 340/2017-T

 

[2] Veja-se a este propósito o voto de vencido do Senhor Prof. Doutor Manuel Pires no processo referido na nota anterior: “1. Na apreciação da problemática relativa à submissão a dois julgamentos, foi acolhida concepção excessivamente formalista, desconsiderando uma visão que atenda ao objectivo último do invocado”.

[3] Art.º 17.º da Resposta.

[4] Art.º 18.º da Resposta.

[5] Aplicável subsidiariamente por força do disposto nos termos da al. e) do n.º 1 do art.º 29.º do RJAT.

[6] As sugestivas palavras são do Senhor Conselheiro Manuel Fernando dos Santos Serra, Cfr. Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 2017, pág. 6.

[7] Cfr. Art.º 16.º c) do RJAT.

[8] Veja-se a este respeito o esclarecido comentário do Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa in Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 2017, pág. 187.

[9] A propósito da litispendência, mas com interesse para o que aqui queremos sublinhar, entende o Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa que o momento que deve considerar-se equivalente à citação no processo civil, para efeitos do art.º 582.º do CPC, é o do art.º 17.º do RJAT e não o do art.º 13.º do mesmo diploma, porquanto esta disposição apenas impõe seja levado ao conhecimento da Requerida o pedido de constituição do Tribunal Arbitral e não o pedido de pronúncia arbitral. Cfr. Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 2017, pág. 147. Sucede que, no caso dos autos, a Requerida apresenta um requerimento no dia 19.07.2017 em que reconhece ter sido notificada do pedido de pronúncia arbitral e faz notar a ausência de um dos documentos nele aludidos pela Requerente, o que “não permite a análise do pedido”. A Requerida foi notificada da junção do dito documento no dia seguinte.

[10] Vejam-se também os argumentos invocados pelo Tribunal Arbitral para negar o provimento à excepção de prejudicialidade, no âmbito do Processo n.º 379/2016-T.   

[11] Art.º 7.º e art.º 10.º do pedido de pronúncia arbitral.

[12] Artigos 13.º e 14.º do pedido de pronúncia arbitral.

[13] Artigos 16.º e 17.º do pedido de pronúncia arbitral.