Decisão Arbitral
I. Relatório
1. A…, contribuinte n.º…, residente na Rua da …, n.º…, …, …-… …, requereu a constituição do tribunal arbitral em matéria tributária suscitando pedido de pronúncia arbitral contra o ato de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC), relativo ao período de tributação de 2016 e à embarcação de recreio, sua propriedade, registada, de acordo com o Certificado Internacional de Registo, em pavilhão holandês, sob o n.º U….
2. Como fundamento do pedido, apresentado em 24-05-2017, o Requerente invoca a ilegalidade da liquidação impugnada, alegando, em síntese, que a embarcação em causa não está sujeita a Imposto Único de Circulação por se encontrar registada na Holanda, não se mostrando assim preenchido o pressuposto da incidência objetiva do referido tributo, de acordo com a previsão do artigo 2.º do respetivo Código.
3. Em resposta ao solicitado, a Requerida (AT) pronunciou-se no sentido da improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, expressando entendimento no sentido de dever manter-se na ordem jurídica o ato tributário impugnado e, em conformidade, dever o tribunal pronunciar-se pela absolvição da entidade requerida.
4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 31-05-2017.
5. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação em 14-07-2017.
6. Devidamente notificadas dessa designação, as partes não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
7. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o tribunal arbitral singular foi constituído em 31-07-2017.
8. Regularmente constituído o tribunal arbitral é materialmente competente, face ao preceituado no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
9. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03).
10. Considerando estar-se, essencialmente, perante uma questão de direito e atento o conhecimento que decorre das peças processuais juntas ao processo, que se julga suficiente, o tribunal decidiu dispensar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT.
II. Matéria de facto
11. Com relevância para a apreciação da questão suscitada, destacam-se os seguintes elementos factuais que, com base nos elementos que integram o presente processo, se consideram provados:
11.1. A liquidação ora impugnada respeita a uma embarcação registada no porto de …– Holanda, com o registo “Registration No U…”, “Name B…” (International Certificate), de acordo com o respetivo Certificado Internacional de Registo em pavilhão Holandês.
11.2. A embarcação em causa manteve-se atracada ao pontão A da marina de … ao longo de todo o ano de 2016, tendo-se apenas verificado algumas breves saídas para o mar.
11.3. O local de amarração da referida embarcação dista cerca de 10 metros dos meios náuticos da Polícia Marítima do Comando Local de…, o que permitiu que as referidas autoridades se apercebessem desses factos.
11.4. Às 09h36 do dia 05-01-2017, a referida embarcação foi abordada no mar, na posição geográfica (Dtum WGS 84) 41º 36.07N e 008º…, sendo tripulada pelo ora Requerente, seu proprietário, que no ato de fiscalização exibiu o respetivo Certificado Internacional de Registo.
11.5. Durante a fiscalização, foi ainda referido pelo Sr. A… que, desde o momento da aquisição da embarcação, esta não saiu de Portugal, conforme se extrai da documentação produzida pela Polícia Marítima do Comando Local de … .
11.6. Em 09-02-2017, foi instaurado contra o Requerente o processo de contraordenação n.º …2017… por falta de pagamento do Imposto Único de Circulação (IUC) referente ao ano de 2016 e à embarcação supra referida, com base em auto de notícia levantado, em 05-01-2017, pela Polícia Marítima.
11.7. Conforme descrito no auto de notícia, no dia 05-01-2017, pelas 09h36, a embarcação de recreio denominada “B…”, com o registo n.º…, registada no porto de …– HOLANDA, a qual estava a ser governada pelo seu proprietário, o ora Requerente, foi intercetada pela Polícia Marítima, no mar, na posição geográfica (Datum WQS 84) 41º 36.07’N 008º…, concelho de ….
11.8. No ato de verificação dos documentos de bordo, foi solicitado ao arguido o comprovativo de pagamento de IUC, tendo o mesmo respondido que não dispunha de tal documento uma vez que aquela embarcação estava isenta, por não se encontrar registada em território nacional.
11.9. Foi, ainda, apurado pela Polícia Marítima que a embarcação supra identificada se encontrava em infração, uma vez que permaneceu em território nacional durante todo o ano de 2016, sem que fosse tributada em IUC a que estava sujeita, conforme previsão da alínea f) do n.º 1 do artigo 2.º, conjugado com o n.º 2 do artigo 6.º, do respetivo Código.
11.10. Com base nos elementos recolhidos, constantes do referido processo de contraordenação, foi efetuada a liquidação oficiosa do imposto em falta, no valor de € 294,16, a qual foi notificada ao ora Requerente através do ofício n.º SF…/…/2017 do Serviço de Finanças de…, de 09-02-2017, tendo como data limite de pagamento o dia 24 do mesmo mês (cfr. doc.1).
11.11. Em 20-02-2017, deu entrada no Serviço de Finanças de … uma petição de defesa, ao abrigo do artigo 70.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT).
11.12. Em resposta à referida petição, foi elaborada informação pelos serviços da Polícia Marítima, a qual inclui registos fotográficos referentes ao local onde a embarcação se manteve atracada na marina de… .
11.13. Pelo que constata-se que além da permanência da embarcação atracada no pontão A da marina de … ter sido verificada ao longo do ano de 2016 pelos agentes fiscalizadores, o próprio arguido, ora Requerente, declarou durante a fiscalização, realizada em 05-01-2017 que, desde o momento de aquisição da embarcação, esta não saiu de Portugal.
11.14. Conforme consta do Certificado Internacional emitido pela Real Associação Holandesa de Náutica, a embarcação encontra-se registada em nome do Requerente desde 03-02-2016 (cfr. doc.2).
12. Não existem factos relevantes para a decisão de mérito que não se tenham provado.
III. Matéria de direito
13. No pedido de pronúncia arbitral a Requerente submete à apreciação deste tribunal a legalidade do ato de liquidação de IUC, relativo ao período de 2016 e à embarcação de recreio denominada “B…”, registada no porto de…– HOLANDA – Registo n.º …-, a qual se manteve atracada na marina de … ao longo do ano de 2016, com algumas breves saídas para o mar.
14. Segundo entende o Requerente, a liquidação em causa encontra-se ferida de ilegalidade porquanto, conforme resulta dos factos dados como provados, a embarcação a que a mesma se refere, de sua propriedade, encontra-se registada na Holanda e não em Portugal, pelo que não se encontra abrangida pela incidência do IUC.
15. Pugnando pela declaração de ilegalidade, e consequente anulação, da liquidação questionada, o Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:
“13. De acordo com a alínea f) do n.° 1 do artigo 2.° do Código do IUC (CIUC), "o imposto único de circulação incide sobre os veículos das categorias seguintes, matriculados ou registados em Portugal: (...)
"f) Categoria F: Embarcações de recreio de uso particular com potência motriz igual ou superior a 20 kW, registados desde 1986;"
Assim,
14. Regra geral, apenas ficam sujeitos a IUC em Portugal os veículos que aqui sejam matriculados ou, no caso das embarcações, como veremos, aqui sejam registados.
Não obstante,
15. A Lei n.° 82-D/2014, de 31 de Dezembro (diploma que aprovou o Orçamento de Estado para 2015), introduziu uma nova norma no n.° 2 do artigo 2.° do CIUC, consagrando uma exceção àquela regra: “ 2 - o imposto único de circulação incide ainda sobre os veículos referidos no número anterior que, não sendo sujeitos a matrícula em Portugal, aqui permaneçam por um período superior a 183 dias, seguidos ou interpolados, em cada ano civil, com exceção dos veículos de mercadorias de peso bruto igual ou superior a 12 toneladas.”
16. Extraindo dos elementos fornecidos pelos Serviços Tributários, que a liquidação impugnada se fundamenta na norma do n.º 2 do artigo 2.º do CIUC, conjugada com a da alínea f) do n.º 1, do mesmo artigo, conclui o Requerente que tal interpretação é manifestamente ilegal.
17. Segundo sustenta o Requerente, uma correta interpretação da norma do n.º 2 do artigo 2.º do CIUC, aditada pela Lei n.º 82-D/2014, de 31/12, conduz a que fiquem afastados do seu âmbito de aplicação as embarcações de recreio que não se encontram sujeitas a matricula em Portugal, mas sim a registo.
18. Fundamentando a interpretação que faz da norma em causa, diz o Requerente:
“ 24. Os veículos que não sejam sujeitos a matrícula em Portugal, mas que aqui permaneçam por um período superior a 183 dias, seguidos ou interpolados, ficam também sujeitos a imposto.
25. No entanto, importa concretizar quais "as veículos referidos no número anterior" que se encontram abrangidos por esta norma de incidência.
Ora,
26. 0 n.° 1 do artigo 2.° do CIUC dispõe que, 1 - O imposto único de circulação incide sobre os veículos das categorias seguintes, matriculados ou registados em Portugal:
a) Categoria A: Automóveis ligeiros de passageiros e automóveis ligeiros de utilização mista com peso bruto não superior a 2500 kg matriculados desde 1981 até à data da entrada em vigor do presente código;
b) Categoria B: Automóveis de passageiros referidos nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do Imposto sobre Veículos e automóveis ligeiros de utilização mista com peso bruto não superior a 2500 kg, matriculados em data posterior à da entrada em vigor do presente código;
c) Categoria C: Automóveis de mercadorias e automóveis de utilização mista com peso bruto superior a 2500 kg, afetos ao transporte particular de mercadorias, ao transporte por conta própria, ou ao aluguer sem condutor que possua essas finalidades;
d) Categoria D: Automóveis de mercadorias e automóveis de utilização mista com peso bruto superior a 2500 kg, afetos ao transporte público de mercadorias, ao transporte por conta de outrem, ou ao aluguer sem condutor qua possua essas finalidades;
e) Categoria E: motociclos, ciclomotores, triciclos e quadriciclos, tal como estes veículos são definidos pelo Código da Estrada, matriculados desde 1992;
f) Categoria F: Embarcações de recreio de uso particular com potência motriz igual ou superior 20 kW, registados desde 1986;
Categoria G: Aeronaves de uso particular,
27. A lei enuncia, pois, quais os veículos que se encontram abrangidos pelo âmbito de incidência objetivo.
28. Especificando que se tratam de veículos "matriculados ou registados em Portugal'.
Desde logo,
29. Importa, pois, distinguir quais os veículos sujeitos a matricula e quais as veículos sujeitos a registo.
30. De acordo com a artigo 117.º do Código da Estrada, "os veículos a motor e as seus reboques só são admitidos em circulação desde que matriculados, salvo o disposto nos n.ºs 2 e 3,"
Por outro lado,
31. De acordo com o artigo 19.° do Regulamento da Náutica de Recreio "1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 22.º, as ER (embarcações de recreio) estão obrigatoriamente sujeitas a registo e só podem ser utilizadas depois de devidamente registadas."
De onde se poderá concluir que,
32. Os veículos terrestres se encontram sujeitos a matricula e as embarcações de recreio se encontram sujeitas a registo.
Ora,
33. Esta distinção é fundamental para podermos entender o âmbito de aplicação do n.° 2 do artigo 2° do CIUC, o qual estende a incidência objetiva do Imposto "aos veículos referidos no número anterior que, não sendo sujeitos a matrícula em Portugal, aqui permaneçam por um período superior a 183 dias (..)."
34. O n.° 2 do artigo 2° do CIUC faz, pais, uma remissão para o elenco de veículos descritos no n.° 1 do artigo 2°,
No entanto,
35. Restringe essa remissão apenas aos veículos sujeitos a matricula em Portugal.
Ora,
36. Como vimos, as embarcações de recreio não se encontram sujeitas a matricula em Portugal, mas sim a registo.
Pero que,
37. Forçosamente se terá de concluir que as embarcações de recreio, não sujeitas a registo em Portugal e que aqui permaneçam por um período superior a 183 dias, seguidos ou interpolados, não ficam abrangidas pela norma de incidência do imposto único de circulação.”
19. Em abono da tese sufragada, acrescenta ainda o Requerente que:
“38. Se analisarmos todo o Código do IUC verificamos que, em consonância com a regulamentação das embarcações de recreio, este Código se refere sempre ao registo das embarcações e não à matrícula das embarcações.
39. A título de exemplo veja-se o disposto nos seguintes artigos:
• Artigo 2.º, n.º 1, al. f) — "Categoria F: Embarcações de recreio de uso particular com potência motriz igual ou superior a 20 kW, registados desde 1986.
• Artlgo 4.°, n.° 3 —"O imposto é devido até ao cancelamento da matrícula ou registo em virtude de abate efetuado nos termos da lei
• Artigo 5.º, n.° 4 —"A isenção a que se refere a alinea c) do n.º 1 deve ser objeto de comprovação em qualquer serviço de finanças, relativamente a cada ano a que respeite, mediante pedido apresentado no prazo para pagamento do imposto a companhado do titulo de propriedade e documento de identificação ou certificado de registo ou matrícula do veículo"
• Artigo 6.°, n.º 1 — "0 facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional."
20. Do exposto, extrai o Requerente que, “ A utilização da expressão veículos "não (,„) sujeitos a matrícula em Portugal” no n.° 2 do artigo 2.° do CIUC apenas poderá querer dizer que a legislador quis afastar as embarcações da incidência do imposto prevista nesta disposição. “
21. Prosseguindo na linha de interpretação que expõe mais detalhadamente suportada em normas do Código Civil e da Lei Geral Tributária relativas à interpretação da lei fiscal, nomeadamente na proibição do recurso à analogia no caso de preceitos abrangidos pelo princípio constitucional da legalidade tributária, conclui o Requerente que:
“ 59. E demonstrado que, as embarcações não registadas em Portugal que aqui permaneçam por mais de 183 dias, estão fora do âmbito de incidência de IUC,
60. Não pode o intérprete vir aplicar analogicamente ao presente caso, a norma prevista para os veículos não matriculados em Portugal (cfr. alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 2-º do CIUC), por ser expressamente proibida a integração analógica nos termos do n.º 4 do artigo 11.º da LGT.
De onde resulta que,
61. No sendo a embarcação do Requerente registada em Portugal, conforme se demonstrou acima, esta não poderá ser sujeita a tributação em sede de IUC em Portugal, por não existir norma de incidência que habilite os Servicos Tributarios.
Neste sentido,
62. A liquidação oficiosa de Imposto de Circulação (IUC),identificado pelos serviços pelo documento n.º 2016 … do período de 2016, no valor de €294,16 (duzentos e noventa e quatro euros e dezasseis cêntimos), referente à embarcação registada pelo número 2016…, é manifestamente ilegal par violar a disposto no artigo 2.º do Código do IUC. “
22. Em resposta ao alegado pelo Requerente, considera a Requerida (AT) que o pedido deve ser julgado improcedente, mantendo-se na ordem jurídica o ato tributário ora impugnado, por se traduzir em correta aplicação da lei aos factos apurados.
23. Fundamentando tal entendimento, sustenta a Requerida que:
“25.º Da letra da norma contida no n.º 1 (do artigo 2.º do CIUC) resulta absolutamente explícito quais as embarcações que se encontram no âmbito da incidência objetiva do imposto, considerando-se como tais: (i) as embarcações de recreio, (ii) de uso particular, (iii) com potência motriz igual ou superior a 20 kW, (iv) registadas desde 1986.
26.º A par desta determinação objetiva por força das características dos veículos, nomeadamente das embarcações, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo e na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 82-B/2014, de 31/12 (supra citado), o imposto único de circulação incide ainda sobre os veículos referidos no número anterior que, não sendo sujeitos a matrícula em Portugal, aqui permaneçam por um período superior a 183 dias, seguidos ou interpolados, em cada ano civil, com exceção dos veículos de mercadorias de peso bruto igual ou superior a 12 toneladas.
27.º De acordo com esta delimitação da incidência objetiva do imposto, o facto gerador do IUC é:
- a propriedade tal como atestada pelo registo ou matrícula em território nacional (incluindo ainda os casos de locação, aquisição com reserva de propriedade, bem como, outros titulares do direito de opção de compra por força do contrato de locação, devidamente registados).
ou
- a permanência no território português por um período superior a 183 dias, seguidos ou interpolados, em cada ano civil (cfr. artigo 6.º, n.ºs 1 e 2 do CIUC).
28.º . Tal como se encontra plasmado no artigo 6.º, n.ºs 1 e 2 do CIUC:
“1 - O facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional.
2 - É ainda considerado facto gerador do imposto a permanência em território nacional por período superior a 183 dias, seguidos ou interpolados, em cada ano civil, de veículos não sujeitos a matrícula em Portugal e que não sejam veículos de mercadorias de peso bruto igual ou superior a 12 toneladas.” (Redação da Lei n.º 82-B/2014, de 31/12).
29.º . Nada na letra da lei nos permite concluir que foi intenção do legislador, ao fazer referência no n.º 2 do artigo 2.º apenas a veículos não sujeitos a matrícula (e não a registo) em Portugal, determinar a não sujeição das referidas embarcações a IUC em Portugal.
30.º . Com efeito, da conjugação da norma contida no n.º 1 com a norma contida no n.º 2 não pode senão concluir-se, através de uma interpretação literal, que o imposto único de circulação incide sobre os veículos referidos no número anterior” (i.é, n.º 1 do artigo 2.º), ou seja, sobre todos os veículos, matriculados ou registados em Portugal da Categoria A, da Categoria B, (…) da Categoria F: Embarcações de recreio de uso particular com potência motriz igual ou superior a 20 kW, registados desde 1986; (…) que, não sendo sujeitos a matrícula em Portugal, aqui permaneçam por um período superior a 183 dias, seguidos ou interpolados, em cada ano civil, com exceção dos veículos de mercadorias de peso bruto igual ou superior a 12 toneladas.
31.º . Ou seja, o n.º 2 do artigo 2.º refere expressamente que o imposto único de circulação incide ainda sobre os veículos referidos no número anterior, com exceção dos veículos de mercadorias de peso bruto igual ou superior a 12 toneladas.
32.º . Ora, se o legislador usa como terminologia “os veículos referidos no número anterior, que não sejam veículos de mercadorias de peso bruto igual ou superior a 12 toneladas”, significa que são todos os veículos referidos no n.º 1 que estão sujeitos a IUC, à exceção dos expressamente afastados de tal incidência (os veículos de mercadorias de peso bruto igual ou superior a 12 toneladas).
33.º E não, como defende o Requerente, apenas os veículos não matriculados em Portugal, por contraposição aos não registados em Portugal (como é o caso das embarcações).
34.º Tal interpretação é totalmente enviesada e errónea.
35.º . Ainda que possa admitir-se que no n.º 2 do artigo 2.º, o legislador poderia ter mantido a terminologia empregue no n.º 1 do mesmo preceito em que faz referência a “veículos matriculados ou registados em Portugal”, em vez de ter empregue a terminologia “veículos não sujeitos a matrícula em Portugal”, tal não permite, de modo algum, extrapolar para a conclusão extraída pelo Requerente de que a não utilização da palavra “registados” implica uma intenção deliberada do legislador de não sujeitar a IUC as embarcações de recreio de uso particular sujeitos a matrícula em Portugal, aqui permaneçam por um período superior a 183 dias, seguidos ou interpolados, em cada ano civil.
36.º Primeiro, porque se assim fosse, o legislador não teria no n.º 2 do artigo 2.º, feito remissão para todos os veículos referidos no n.º 1, mas apenas para as concretas alíneas que pretendesse sujeitar a IUC em virtude da permanência em Portugal,
37.º Segundo, porque se fosse intenção deliberada do legislador, excluir da incidência de IUC, as embarcações de recreio de uso particular com potência motriz igual ou superior a 20 kW, registados desde 1986, tê-lo-ia feito, excecionando-as expressamente, à semelhança do que fez para os veículos de mercadorias de peso bruto igual ou superior a 12 toneladas. Pelo que, também pelo elemento sistemático de interpretação, é de afastar a interpretação propugnada pelo Requerente por contrária à unidade do próprio Código do IUC.
38.º E terceiro, porque, para além de tal interpretação não ter qualquer cabimento na letra da Lei, a mesma é também totalmente contrária ao “pensamento legislativo”, tal como melhor demonstraremos infra.
...
41.º Mesmo admitindo que subsistem dúvidas acerca do regime de tributação aplicável ao caso face à letra da lei (mais concretamente às normas constantes dos n.ºs 1 e 2 do artigo 2.º do CIUC), no que não se concede, e apenas à cautela se admite,
42.º Então, nesse caso, não deverá o intérprete cingir-se à letra da lei fiscal, mas reconstruir, a partir dos textos, o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do ordenamento jurídico na sua íntegra, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (VASQUES, SÉRGIO, Manual de Direito Fiscal, Almedina, Coimbra p. 307).
43.º Ou seja, embora se nos afigure absolutamente inequívoco que, quer a letra da lei, quer a unidade do sistema jurídico são claros no sentido de que é este o regime de tributação aplicável à situação em apreço,
44.º Se dúvidas restarem, no que não se concede, então, o elemento teleológico de interpretação da Lei dissipá-las-á em definitivo, porquanto, este é, in casu, absoluta e duplamente decisivo.
Senão vejamos,
45.º Primeiro, a norma constante do n.º 2 do artigo 2.º do CIUC, à semelhança do que se verifica em sede de Imposto sobre Veículos (cfr. artigo 30.º, n.º 1 do CISV), visou (e visa) essencialmente, evitar a fuga ao imposto único de circulação pela “utilização” em território nacional, de veículos matriculados ou registados no estrangeiro.
46.º Neste sentido, vide Afonso, A. Brigas e Fernandes, Manuel T., in Imposto Sobre os Veículos e Imposto Único de Circulação – Códigos Anotados”, 2009, Coimbra Editora, págs. 121 a 124: “A principal preocupação, a nível fiscal, é a de impedir a utilização em Portugal quotidianamente de um veículo matriculado num Estado Membro onde não existe tributação, ou existe tributação reduzida, na fase da matrícula do veículo (…)”
47.º Sendo esta a ratio subjacente à norma em causa, é absolutamente inequívoco que o legislador do CIUC não pretendeu afastar a sujeição a IUC das embarcações não registadas em Portugal que aqui permaneçam, por mais de 183 dias, porquanto, tal interpretação seria totalmente contrária à intenção de evitar a fuga ao imposto único de circulação pela “utilização” em território nacional, de veículos matriculados ou registados no estrangeiro. E à vontade de impedir a utilização em Portugal quotidianamente de um veículo matriculado num Estado Membro onde não existe tributação, ou existe tributação reduzida, na fase da matrícula do veículo.
...
49.º Segundo, e duplamente elucidativo, do ponto de vista do elemento teleológico de interpretação da norma contida no n.º 2 do artigo 2.º, nos termos em que relevam para o caso em apreciação: Na situação prevista no n.º 2 do artigo 2.º do CIUC, o facto gerador do imposto não é a propriedade do veículo tal como atestada na matrícula ou no registo, mas sim, a permanência do veículo em território português por período superior a 183 dias.
24. Apelando, ainda, ao princípio da equivalência que, nos termos do artigo 1.º do Código do IUC, enforma este tributo, sustenta a Requerida que:
“ 53.º ... sendo intenção transversal a todo CIUC, a de onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam às infraestruturas viárias e ao ambiente, seria totalmente contrário ao objetivo propugnado pelo legislador entender que as embarcações não registadas em Portugal que aqui permaneçam, por mais de 183 dias, não estão sujeitas a IUC,
54.º. Porquanto, tal corresponderia a contrariar frontalmente a intenção legislativa de onerar os contribuintes pelos custos, neste caso, sobretudo ambientais, resultantes da permanência por mais de 183 dias em território nacional (em muitos casos, todo o ano, ou diríamos mesmo, sempre, desde o momento da aquisição da embarcação, como sucede, aliás, no caso dos autos).
55.º Assim, no caso em apreço, o elemento teleológico não pode senão revelar-se absoluta e duplamente decisivo, devendo a lei fiscal ser interpretada em respeito ao elemento teleológico, de forma a concretizar e impor o objetivo propugnado pelo legislador de prevenção de situações de evasão fiscal, e, por outro lado, em obediência ao princípio da equivalência, promovendo a tributação dos contribuintes, em função dos custos por estes provocados.
56.º Outra interpretação que não esta, estará sempre, irremediavelmente, ferida de inconstitucionalidade, por desconformidade com os princípios da equivalência, da igualdade tributária e da capacidade contributiva, promovendo, situações perniciosas, como a do Requerente nestes autos, cuja embarcação não está registada em Portugal, mas sim em pavilhão Holandês, verificando-se, porém, que desde a data da sua aquisição, esta permaneceu sempre em Portugal.
57.º Aceitar o entendimento sufragado pelo Requerente equivaleria a dar aval a uma tese, nos termos da qual, um contribuinte cuja embarcação tenha permanecido (e permaneça) desde sempre em Portugal, não está sujeito a IUC, pelo simples facto de a sua embarcação se encontrar registada num país estrangeiro.”
25. Expostas as posições das partes, no essencial vertidas nos trechos acima transcritos, extrai-se que a questão central a apreciar no presente processo consiste tão-somente na interpretação da norma do n.º 2 do artigo 2.º do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC), relativa à conexão fiscal deste tributo aferida em face da permanência dos veículos tributáveis em território nacional.
26. Como se constata da leitura da norma do n.º 1 do artigo 2.º do referido Código, a incidência deste tributo, no plano territorial, é definida, desde logo, em função da matrícula ou registo dos veículos tributáveis: “1 - O imposto único de circulação incide sobre os veículos das categorias seguintes, matriculados ou registados em Portugal:.”(redação inicial da Lei n.º 22-A/2007, de 29/06).
27. Na formulação inicial do Código do IUC era, pois, apenas a matrícula ou registo em Portugal dos veículos tributáveis a relevar como elemento de conexão fiscal, ficando foram do respetivo âmbito de incidência os veículos que, não obstante permanecerem em território nacional, não fossem no mesmo objeto, consoante o caso, de uma dessas formalidades.
28. Tal lacuna viria a ser preenchida através da Lei n.º 82-B/2014, de 31/12, através do aditamento àquele artigo de um número 2, tomando como referência, para efeitos de incidência no plano territorial, a permanência dos veículos em território nacional.
29. De acordo com a referida norma, “ O imposto único de circulação incide ainda sobre os veículos referidos no número anterior que, não sendo sujeitos a matrícula em Portugal, aqui permaneçam por um período superior a 183 dias, seguidos ou interpolados, em cada ano civil, com exceção dos veículos de mercadorias de peso bruto igual ou superior a 12 toneladas.”
30. Da leitura da norma transcrita feita pelo Requerente resulta que a mesma ao referir-se a veículos “não sujeitos a matrícula em Portugal” se reporta exclusivamente a veículos terrestres e aeronaves, porquanto apenas esses veículos são passíveis de ser matriculados, deixando de fora as embarcações, não sujeitas a tal formalismo mas, nos termos legais, a registo.
31. De tal leitura decorre, assim, que ao omitir referência ao “registo” teria sido intenção do legislador excluir do âmbito da incidência do IUC as embarcações que, embora permanecessem em território nacional por período superior a 183 dias em cada ano civil não se encontrassem registadas em Portugal.
32. Em abono de tal entendimento, recorre o Requerente a outras normas do Código do IUC para significar que o legislador sempre que pretendeu incluir as embarcações no respetivo âmbito utilizou o termo “registados” a par de “matriculados”. Nesse sentido, refere, expressamente, os artigos 2.º, n.º1, al. f), 4.º, n.º 3, 5º, n,º 4 e 6.º, n.º 1, do citado Código, cujo texto, inclui, em todos os casos referência a veículos “matriculados ou registados”.
33. Sendo este o fundamento em que se suporta a interpretação feita pelo Requerente da norma do n.º 2 do artigo 2.º, do CIUC, parece-nos manifestamente insuficiente para daí concluir ter sido intenção expressa do legislador subtrair à incidência do IUC as embarcações de recreio, definida com base na permanência em território nacional.
34. Com efeito, no Código citado podem encontrar-se outros preceitos que, referindo-se aos veículos tributáveis em geral, utilizam apenas o termo “matriculados”. Será, por exemplo, o caso da alínea a) do n.º 3 do seu artigo 16.º, relativa à liquidação do tributo em causa.
35. Como bem refere a Requerida, se acaso fosse intenção do legislador excluir do âmbito da incidência as embarcações registadas no estrangeiro – o que se não vislumbra – tê-lo-ia feito de forma expressa, como, aliás, o fez no que concerne aos veículos de mercadorias de peso bruto igual ou superior a 12 toneladas, em conformidade com o disposto no artigo 3.º da Diretiva 1999/62/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho (Diretiva “Eurovinheta”), que reserva a competência para a tributação desses veículos exclusivamente para o Estado-Membro de registo.
36. Assim, acompanhando a posição da Requerida, bem como a fundamentação em que a mesma se suporta, apenas cabe ao tribunal pronunciar-se pela legalidade do ato tributário impugnado, e, consequentemente, julgar improcedente o pedido de pronúncia formulado.
IV. Decisão
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado e, em consequência, condenar o Requerente nas custas do processo abaixo fixadas,
Valor do processo: € 294,16
Custas: Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixo o montante das custas em € 306,00, a cargo do Requerente.
Lisboa, 27 de outubro de 2017,
O árbitro, Álvaro Caneira.