Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 257/2017-T
Data da decisão: 2018-02-09  IUC  
Valor do pedido: € 99.395,91
Tema: IUC
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Acórdão Arbitral

 

 

            I – Relatório

 

            1.1. A…, S.A. – Sucursal em Portugal, Pessoa Colectiva n.º…, com sede em…, …, … (doravante designada por «requerente»), vem impugnar o despacho de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra 719 autoliquidações de IUC e juros compensatórios relativas aos anos de 2013 e 2014, no valor total de €99.395,91, tendo, para o efeito, apresentado, em 9/4/2017, pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante somente designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista: “a) a anulação, por ilegalidade, do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa; b) a anulação, por ilegalidade, das autoliquidações de IUC e respectivos JC aqui impugnadas, com a consequente restituição da totalidade do IUC e JC indevidamente pago, Euro 99.395,91; c) o reconhecimento do direito da Requerente a juros indemnizatórios, nos termos legais; d) a condenação da Requerida no pagamento da taxa arbitral e demais encargos, se os houver.”

 

            1.2. Em 27/6/2017 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Colectivo.

 

            1.3. Por despacho de 4/7/2017, e nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, n.º 1, do RJAT, a AT foi citada, enquanto parte requerida, para, no prazo de 30 (trinta) dias, apresentar resposta e, querendo, requerer a produção de prova adicional. A AT apresentou a sua resposta a 18/9/2017, tendo argumentado, em síntese, a total improcedência do pedido da Requerente. O Processo Administrativo foi também apresentado no dia 18/9/2017.

 

            1.4. Através de requerimento datado de 29/9/2017, a Requerente respondeu à questão prévia que tinha sido suscitada na resposta da Requerida – tendo juntado, a esse respeito, três documentos comprovativos do total de viaturas em questão quanto a 2013 – e solicitou, ainda, a realização da reunião do art. 18.º do RJAT para produção da prova testemunhal requerida.

 

            1.5. Por despacho arbitral de 10/10/2017, foi marcada a reunião do art. 18.º do RJAT, bem como a inquirição das testemunhas arroladas e a apresentar pela parte em audiência, para o dia 24/11/2017. Solicitou-se, também, a indicação, no prazo de 5 (cinco) dias, dos factos controvertidos e sobre os quais se pretendia a referida diligência de prova. 

 

1.6. A Requerente solicitou, através dos requerimentos de 17/10/2017 e 8/11/2017, o reagendamento daquela data, dado que estava impedida de comparecer à mesma por ausência do país. Foi, ainda, solicitada a remarcação da diligência para um novo dia e hora (tendo sido indicados alguns dias da preferência da Requerente).

 

1.7. Por despacho arbitral datado de 9/11/2017, determinou-se que ficavam sem efeito as diligências marcadas para o dia 24/11/2017, e informou-se, ainda, que, “na impossibilidade de reagendamento para as datas indicadas pela Requerente”, o Tribunal procederia ao reagendamento dessas diligências para o mês de Janeiro, devendo as partes informar, no prazo de 5 (cinco) dias, da existência de impedimentos de agenda nos dias sugeridos pelo Tribunal.

 

1.8. Em função das respostas dadas pelas partes quanto à disponibilidade para as datas indicadas pelo Tribunal, foram, por despacho arbitral de 16/11/2017, reagendadas as referidas diligências para o dia 17/1/2018. Atendendo ao pedido da Requerente de reagendamento das diligências e ao facto de as mesmas estarem marcadas para 17/1/2018, o Tribunal decidiu, por despacho arbitral de 4/12/2017, e no uso da faculdade prevista no art. 21.º, n.º 2, do RJAT, prorrogar por 2 (dois) meses, com início a 27/12/2017, o prazo regulamentar para a prolação e notificação da decisão final.

 

1.9. Através de requerimento datado de 12/1/2018, a ora Requerente veio solicitar o aproveitamento, nos presentes autos, da prova testemunhal produzida e gravada nos processos arbitrais n.os 206/2017-T e 209/2017-T, “evitando [deste modo] a repetição de diligências, designadamente a diligência agendada para o [...] dia 17.01.2018, notificando-se as partes para alegações escritas em prazo a designar pelo Tribunal.” Por requerimento de 17/1/2018, a Requerida informou o Tribunal de que não se opunha ao aproveitamento, nos presentes autos, da prova testemunhal produzida e gravada nos supra referidos processos.

 

1.10. Por despacho arbitral datado de 14/1/2018, determinou-se que ficava sem efeito a diligência designada para o referido dia 17/1/2018 e que, não havendo oposição fundamentada da parte contrária, a Requerente apresentaria nos autos, para os fins indicados, os elementos que referia, no prazo de 5 dias. Informou-se, ainda, que seria oportunamente fixado prazo para alegações finais escritas.

 

1.11. Através de requerimento de 19/1/2018, a ora Requerente veio juntar as actas das inquirições de testemunhas realizadas nos processos arbitrais acima referidos e as gravações dos depoimentos testemunhais prestados nesses processos.

 

1.12. Por despacho datado de 19/1/2018, o Tribunal solicitou às partes a apresentação, no prazo simultâneo de 15 (quinze) dias, alegações escritas, de facto e de direito. O Tribunal fixou, ainda, a data de 26/2/2018 como data limite previsível para a prolação e notificação às partes da decisão arbitral.

 

1.13. Ambas as partes apresentaram alegações finais no prazo indicado, tendo, no essencial, mantido as posições defendidas nos respetivos articulados.

 

1.14. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.

           

II – Alegações das Partes

 

            2.1. Vem a Requerente alegar, na sua petição, que: a) “o despacho de indeferimento da reclamação graciosa aqui impugnado, bem como aquelas autoliquidações de IUC e JC, padecem de erro nos pressupostos de facto e de vício de violação de lei - pelo que deve ser declarada a ilegalidade daquele despacho e daquelas autoliquidações de IUC e respectivos JC”; b) “a Requerente é a sociedade importadora, em exclusivo, de todos os veículos automóveis da marca B… para o mercado nacional”; c) “todas as viaturas importadas são-no mediante prévio pedido dos concessionários, apresentado por via informática (via webpage) à Requerente – e, consequentemente, pela C… junto da fábrica. Uma vez importados, todos os veículos são imediatamente vendidos aos concessionários da marca, que por sua vez os vendem aos clientes finais. Ou seja, quando se importa um veículo, o mesmo já possui um comprador. Uma vez chegadas a Portugal, as viaturas são de imediato faturadas pela Requerente aos concessionários e imediatamente entregues nas instalações dos concessionários - ora para entrega imediata ao cliente final, ou simplesmente para ficarem em showroom, no stand do concessionário, para fins meramente exibicionais (casos de lançamento de novos modelos) e/ou a aguardar cliente interessado. [...]. Quando as viaturas são enviadas dos concessionários para os clientes, é efectuada a alteração do registo do proprietário para o nome do cliente final. [...]. [...] à data do pedido das matrículas as viaturas em questão já foram facturadas/vendidas pela Requerente aos concessionários”; d) “assim, uma vez importados, todos os veículos são imediatamente vendidos aos concessionários da marca, alguns deles integrantes do mesmo grupo económico, que por sua vez os vendem aos clientes finais - os quais serão os utilizadores dos veículos e em cujo interesse entram em circulação rodoviária”; e) “nos termos do artigo 3.º do CIUC (Incidência Subjectiva), redacção aplicável a 2013 e 2014, [...] os sujeitos passivos do IUC são os proprietários dos veículos, aos quais são equiparados os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade a favor do vendedor. Sendo certo que, depois de os vender a terceiros, a Requerente nunca retoma a propriedade dos veículos - já que não é um mero comerciante de automóveis, mas sim o importador nacional da marca”; f) “para efeitos de IUC, tendo as viaturas em questão sido vendidas pela Requerente antes da data da respectiva matrícula, é evidente que a Requerente não era a proprietária das mesmas nas datas das matrículas – pelo que não está sujeita a IUC e respectivos JC. Note-se que as vendas da Requerente aos concessionários ocorrem precisamente na data da emissão das facturas pela Requerente aos concessionários – as quais, portanto, titulam essas mesmas vendas. E aqui são juntas as facturas de venda das viaturas aos concessionários, as quais documentam e demonstram precisamente a venda das viaturas aos concessionários em momento anterior ao da matrícula das mesmas”; g) “do acima exposto resulta que a Requerente não é o utilizador dos veículos que o IUC pretendeu onerar – a Requerente, na sua actividade de importador das viaturas, não produz qualquer “custo ambiental e viário” ou “desgaste de bens públicos”, não sendo o “poluidor - pagador” que o legislador do IUC pretendeu tributar (cfr. artigo 1.º do CIUC)”; h) “como acima se referiu, os veículos em questão, discriminados na lista ora anexa como doc. 5 (cujo teor, por brevidade de exposição, se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais), não eram propriedade da Requerente nas datas das respectivas matriculas, contrariamente ao presumido pela AT. Com efeito, nas datas de matrícula destes veículos já a Requerente os havia vendido a terceiros (aos sobreditos concessionários), conforme se demonstra a partir das cópias das respectivas facturas de venda (e subsequentes débitos do ISV, como acima se explanou e exemplificou), aqui juntas agregadamente como doc. 6 - cujo teor, por brevidade de exposição, se dá aqui também como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais”; i) “as autoliquidações aqui impugnadas, relativas a estes veículos, são ilegais, quer por erro nos pressupostos de facto, quer por vício de violação de lei, designadamente do disposto nos artigos 1.º, 2.º n.º 1 a) e d), 3.º, 4.º, 6.º e 11.º do CIUC”; j) “embora o IUC seja devido pelos proprietários dos veículos – no caso, à data da matrícula, por se tratar do IUC relativo ao ano da matrícula - é Jurisprudência unânime do CAAD que as pessoas em nome de quem os veículos estejam matriculados ou registados podem ilidir a (mera) presunção legal de propriedade que decorre dessa matrícula ou registo automóvel”; l) “a transmissão da propriedade automóvel efectua-se por mero efeito do acordo de compra e venda, não ficando dependente de qualquer acto posterior para que se constitua ou para que se torne efectiva, legal e juridicamente, tal como a tradição da coisa ou o registo”; m) “a mesma Jurisprudência do CAAD não deixa de frisar que «Os documentos apresentados, particularmente as cópias das facturas que suportam, desde logo, as vendas relativas aos trinta e sete veículos atrás referenciados, ou seja, os veículos cuja propriedade se transferiu para os ex-locatários em datas anteriores àquelas em que o IUC era exigível, corporizam meios de prova com força bastante e adequados para ilidir a presunção fundada no registo, tal como consagrada no n.º 1 do art. 3.º do CIUC, documentos, esses, que gozam, aliás, da presunção de veracidade prevista no n.º 1 do art. 75.º da LGT.» Com efeito, a Requerente beneficia da presunção de veracidade e boa fé de que gozam os documentos apresentados para prova da transmissão da propriedade dos veículos – como é o caso das facturas de venda das viaturas aqui juntas (cfr. artigo 75.º, n.º 1, da LGT)”; n) “por meio das facturas de venda que aqui se juntam, a Requerente demonstra que vendeu os veículos em questão antes da data da matrícula dos mesmos – o que, nos termos referidos, constitui factualidade impeditiva do direito de tributação (legalmente presumido) da AT, já que o IUC, no ano da matrícula, incide sobre o proprietário (ou equivalente) na data da matrícula. O registo automóvel dos veículos em nome da Requerente nas datas de matrícula das viaturas apenas faz presumir que a Requerente seria a proprietária desses veículos nessas datas de matrícula - não faz prova plena de que a Requerente era efectivamente a proprietária dos veículos nas respectivas datas de matrícula.”; o) “todas as facturas de venda em causa são do conhecimento oficioso da AT, porque oportunamente comunicadas à AT via SAF-T (cfr. artigo 74.º, n.º 2, da LGT). E também os concessionários terão comunicado à AT as facturas por eles emitidas aos clientes finais, via SAF-T. Pelo que a AT tem conhecimento oficioso da data das vendas das viaturas em questão, bem como dos clientes finais das mesmas. Aliás, essas facturas de venda foram contabilizadas enquanto proveitos em vendas, como é igualmente do conhecimento oficioso da AT - pois foram declarados nas respectivas declarações de rendimentos para efeitos de IRC e nas sucessivas declarações de IES apresentadas. Como tal, essas vendas foram tributadas em sede de IRC.”; p) “as autoliquidações em causa estão baseadas em erro nos pressupostos de facto, que faz com que as mesmas não cumpram o critério de incidência subjectiva – dado que a Requerente, conforme se demonstrou, não era a proprietária dos veículos nas datas das respectivas matrículas.”; q) “não sendo devido imposto, pelas razões sobreditas, não são igualmente devidos quaisquer JC, acessórios do imposto principal, com base no qual são liquidados e do qual dependem. [...]. [...] os juros compensatórios, no caso concreto, padecem de vício de violação do disposto nos artigos 94.º do CIRC e 35.º da LGT”; r) “dado que as autoliquidações aqui impugnadas foram pagas, para além da devolução do IUC e JC indevidamente pagos, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, por erro de facto e de direito da AT ao exigir esse IUC e JC, nos termos dos artigos 43.º e 100.º da LGT.”   

 

            2.2. Solicita a Requerente, em face do supra exposto: “a) a anulação, por ilegalidade, do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa; b) a anulação das autoliquidações de IUC e JC aqui impugnadas, com a consequente restituição da totalidade do IUC/JC indevidamente pago, Euro 99.395,91; c) o reconhecimento do direito da Requerente a juros indemnizatórios, nos termos legais; d) a condenação da Requerida no pagamento da taxa arbitral e demais encargos, se os houver.”

  

            2.3. Por seu lado, a AT alega, na sua contestação, que: a) “entende a Requerente que, da conjugação do disposto nos artigos 3.º, 6.º e 17.º do CIUC, quer ainda dos procedimentos encetados no âmbito da importação e posterior venda aos concessionários, não é responsável pelo pagamento do IUC, não sendo sujeito passivo de imposto”; b) “do disposto quanto ao âmbito de incidência subjectiva do IUC e o facto constitutivo da correspondente obrigação de imposto, decorrem inequivocamente do artigo 6.º do CIUC as situações jurídicas que geram o nascimento da obrigação de imposto, ou seja, a matrícula ou o registo em território nacional”; c) “nos termos do art. 24.º do RRA, o importador figura no registo como primeiro proprietário do veículo e nesse sentido é, de acordo com o disposto nos artigos 3.º e 6.º do CIUC, sujeito passivo de imposto”; d) “a atribuição à Requerente de um certificado de matrícula consubstancia, nos termos do art. 6.º do CIUC, o facto gerador do imposto pelo que, tendo a Requerente solicitado a emissão de certificado de matricula encontrando-se o mesmo registado em nome desta, encontram-se reunidos os pressupostos do facto gerador do IUC, bem como da sua exigibilidade, sendo a Requerente sujeito passivo do imposto.”; e) “o primeiro equívoco subjacente à interpretação defendida pela Requerente prende-se com uma enviesada leitura da letra da lei, não tendo a tese defendida pela Requerente apoio na letra da lei”; f) “é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas] as pessoas em nome das quais os mesmos [os veículos] se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal. Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem. Em face desta redacção não é manifestamente possível invocar que se trata de uma presunção, conforme defende a Requerente”; g) “o artigo 3.º do CIUC não comporta qualquer presunção legal”; h) “também o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio na lei”; i) “à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o Código do IUC, a interpretação propugnada pela Requerente, no sentido de que o sujeito passivo do imposto é o proprietário efectivo, independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade, é manifestamente errada”; j) “os actos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, na medida em que à luz do disposto no artigo 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC e do artigo 6.º do mesmo código, era a Requerente, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC”; l) “as facturas juntas pela Requerente não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois tais documentos não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (ou seja, a aceitação) por parte dos pretensos adquirentes”; m) “todas as faturas juntas pela Requerente não demonstram, expressa e inequivocamente, por si só, a suposta transferência da propriedade do veículo automóvel”; n) “não contendo as faturas quaisquer matrículas, então obviamente não há sistema informático algum que, através do cruzamento da informação contida naquelas faturas com a informação do IRN e do IMT, consiga determinar transferência de propriedade”; o) “ainda que, por hipótese académica e sem conceder, o Tribunal Arbitral venha a concluir pela procedência do pedido de pronúncia arbitral deduzido pela Requerente, importa salientar o seguinte: [...] a competência para o registo automóvel não se encontra na esfera da Requerida, mas sim atribuída a várias entidades exteriores, designadamente ao Instituto dos Registos e do Notariado a quem cabe transmitir à Requerida as alterações que se venham a verificar quanto à propriedade dos veículos automóveis. [...]. Por outro lado, a transmissão da propriedade de veículos automóveis não é susceptível de ser controlada pela Requerida, pois inexiste qualquer obrigação acessória declarativa quanto a esta matéria, contrariamente ao controlo que é passível de ser realizado, por exemplo, por via do prévio pagamento de Imposto Municipal Sobre Transmissão de Imóveis em matéria de transmissão de prédios”; p) “de tudo quanto supra se expôs resulta claro que os atos tributários em crise são válidos e legais, porque conformes ao regime legal em vigor à data dos factos tributários, pelo que, não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços, tanto mais que a Requerente nunca apresentou qualquer reclamação graciosa ou exposição, que permitisse à Requerida pronunciar-se acerca das liquidações ora impugnadas e respectivos documentos. Assim sendo, não se encontram reunidos os pressupostos legais que conferem o direito aos juros indemnizatórios. Mas mesmo que assim não se entenda [...] é inegável que a Requerida se limitou a dar cumprimento ao artigo 3.º/1 do CIUC [...], pelo que também por aqui necessariamente terá de falecer o reconhecimento do direito ao pagamento de juros indemnizatórios.”   

 

            Conclui, em síntese, a AT que “deve ser o presente pedido rectificado quanto ao valor” e “ser o presente pedido de pronúncia arbitral julgado improcedente e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os pedidos, com as devidas e legais consequências.”

 

            III – Factualidade Provada, Não Provada e Respectiva Fundamentação

 

            3.1. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

            i) A ora Requerente é a sociedade importadora, em exclusivo, de todos os veículos automóveis da marca B… para o mercado nacional. Todas as viaturas importadas são-no mediante prévio pedido dos concessionários, apresentado por via informática (via webpage) à Requerente – e, consequentemente, pela C… junto da fábrica. Uma vez importados, todos os veículos são imediatamente vendidos aos concessionários da marca, que por sua vez os vendem aos clientes finais.

 

            ii) A ora Requerente procedeu ao pagamento voluntário de IUC alegadamente em falta, relativo às viaturas identificadas no pedido de pronúncia arbitral e relativo aos anos de 2013 e 2014, no montante total, em causa, de €99.395,91 (vd. Doc. n.º 3 apenso aos autos).

 

            iii) Apesar de a AT ter considerado 11 matrículas em 2013, o número total de viaturas em questão, nesse ano, foi de 17 (vd. Docs. apensos aos presentes autos e identificados como “Comprovativo 17 viaturas 2013” e como “17 viaturas ou matrículas 2013”), com um IUC correspondente, em qualquer desses 17 casos, ao montante de €141,47 (= €130,40 + €10,07), tal como indicado pela ora Requerente no seu pedido de pronúncia arbitral. Relativamente à viatura com a matrícula …-… -… (cujo valor de IUC também é questionado pela Requerida), verifica-se, pela leitura do Doc. apenso identificado como “Comprovativo …-… -…”, que o valor que foi indicado para a mesma pela ora Requerente está correcto: €174,58 (= €164,51 + €10,07).

 

            iv) Em data anterior àquela a que o imposto respeitava, as viaturas aqui em causa (vd. descrição das mesmas no Doc. n.º 5 – doc. cujo conteúdo, e dada a sua extensão, se considera aqui reproduzido) não eram propriedade da ora Requerente, conforme se pode observar pela leitura do Doc. n.º 6 apenso aos presentes autos – o qual, dada a sua extensão, também aqui se dará por reproduzido. Todas as vendas encontram-se suportadas pelas respectivas facturas de venda, as quais se encontram devidamente identificadas (e cuja veracidade não foi, nos autos, colocada em causa).

 

            v) Quando as viaturas são enviadas dos concessionários para os clientes, é efectuada a alteração do registo do proprietário para o nome do cliente final. Embora numa primeira fase a matrícula e o registo das viaturas seja feito em nome da Requerente, à data do pedido das matrículas o concessionário já é o proprietário das mesmas. Ou seja, à data do pedido das matrículas as viaturas em questão já foram facturadas/vendidas pela aqui Requerente aos concessionários. Uma vez que as viaturas foram vendidas aos concessionários antes da data da matrícula das mesmas, essas facturas de venda não podem conter as respectivas matrículas, contendo apenas os números de chassis dos veículos vendidos aos concessionários, conforme resulta do teor das facturas cujas cópias constam do Doc. n.º 6 apenso aos presentes autos.

 

            vi) A ora Requerente apresentou reclamação graciosa (n.º …2016…), a qual foi expressamente indeferida por despacho de 19-12-2016 (vd. Doc. n.º 1 apenso). A 9/4/2017, a Requerente apresentou, da mencionada decisão de indeferimento e dos (719) actos de liquidação de IUC já referidos (veículos que estão discriminados, como acima se referiu, no Doc. n.º 5 apenso aos presentes autos), o presente pedido de pronúncia arbitral.

 

            3.2. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

            3.3. Os factos considerados pertinentes e provados (v. 3.1) fundamentam-se na análise das posições expostas pelas partes, da prova documental junta aos autos e dos depoimentos testemunhais, gravados, prestados nos processos análogos nºs 206/2017-T e 209/2017-T, do CAAD, conforme gravações oportunamente juntas aos autos.

 

            IV – Questão prévia quanto ao valor do pedido arbitral

 

            Alega a Requerida, na sua resposta, e a título de questão prévia, que “[se] verifica que, na reclamação graciosa n.º …2016…, a Requerente indicou o valor de € 141,47 relativo a 11 viaturas reportado à liquidação de IUC de 2013, quando no sistema informático consta o valor de € 130,10, e indicou para o veículo com a matricula …-… -… o valor de € 174,58, quando a liquidação de IUC de 2013 era de € 162,87.” Conclui, assim, em face do exposto, que “o valor do pedido arbitral deve ser rectificado, face à divergência que somente por lapso ocorreu.”

 

            Não assiste, contudo, razão à Requerida.

 

Como se pode verificar pelos três documentos juntos aos autos pela ora Requerente, em resposta a esta questão prévia, os valores apresentados pela mesma estão correctos, uma vez que – tal como se assinalou no ponto iii) da factualidade provada – apesar de a AT ter considerado 11 matrículas em 2013, o número total de viaturas em questão, nesse ano, foi de 17 (vd. Docs. apensos aos presentes autos e identificados como “Comprovativo 17 viaturas 2013” e como “17 viaturas ou matrículas 2013”), com um IUC correspondente, em qualquer dos 17 casos, ao valor de €141,47 (= €130,40 + €10,07), tal como indicado pela Requerente no seu pedido de pronúncia arbitral. Quanto à viatura com a matrícula 91-OE-07, verifica-se também, pela leitura do Doc. apenso aos autos e identificado como “Comprovativo …-… -…”, que o valor que foi indicado para a mesma pela ora Requerente está correcto: €174,58 (= €164,51 + €10,07). 

            Conclui-se, assim, não haver qualquer razão para proceder à solicitada rectificação do valor do pedido arbitral.

 

V – Fundamentação

 

5. Do Direito

 

5.1. Da apreciação da legalidade dos atos de liquidação contestados

 

A questão subjacente ao presente pedido de pronúncia arbitral tem em consideração as 719 liquidações de IUC que a Requerente pagou, referentes ao ano de 2013 e 2014, na importância global de €99.395,91.

 

Para este efeito, será necessário determinar a incidência subjetiva do Imposto Único de Circulação.

 

5.1.1. Quanto à interpretação e aplicação da norma de incidência subjetiva do IUC e data em que o imposto é exigível

 

Preceitua o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC que:

 

São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontram registados”.

 

As leis fiscais, nos termos do art. 11.º da Lei Geral Tributária, são interpretadas de acordo com os princípios gerais ressalvando apenas as exceções e particularidades ditadas pela norma objeto de interpretação.

 

O objeto de interpretação do art. 3.º, n.º 1, do CIUC está na expressão “considerando-se” sendo imperativo determinar se o legislador, com esta expressão, quis manter, ou não, a natureza de presunção. I.e., se à formulação usada pelo legislador pode ser atribuído um sentido presuntivo.

 

Na senda do referido nas decisões n.os 43/2014-T, 207/2017-T e 408/2017-T [que seguimos especialmente de perto], “verifica-se, a título de exemplo, que nos artigos 243.º, n.º 3, do Código Civil e 45.º, n.º 6, e 89-A, n.º 4, da Lei Geral Tributária, também é utilizada a expressão “considera-se”, e no entanto, estamos perante presunções legais pelo que, de acordo com as normas gerais de interpretação previstas no artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil, considera-se que está assegurado o mínimo de correspondência verbal, para efeitos da determinação do pensamento legislativo que se encontra objetivado na norma em apreço – elemento literal”.

Ensina ainda Jorge Lopes de Sousa (in CPPT, Anotado e Comentado, Vol. I, 6.ª Edição, Área Editora, p. 589) que em matéria de incidência tributária, as presunções podem ser reveladas pela  expressão “presume-se” ou por expressão semelhante, aí se mencionando diversos exemplos  dessas presunções, referindo-se a constante no artigo 40.º, nº 1 do CIRS, em que se usa a expressão “presume-se” e a constante no artigo 46.º, n.º 2, do mesmo Código, em que se faz uso da  expressão “considera-se”, enquanto expressão com um efeito semelhante àquela e, consubstanciando, igualmente, uma presunção; na formulação legal exarada no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, em que se consagrou uma presunção, revelada pela expressão “considerando-se”, de significado semelhante e de valor equivalente à expressão “presumindo-se”, em uso desde a criação do imposto em questão.

 

Ou seja, ambas as expressões têm sido usadas pelo legislador sem que com isso se possa concluir que este não quis estabelecer, de facto, uma presunção legal, não podendo retirar que a alteração da expressão pudesse levar a um sentido interpretativo distinto.

 

Por outro lado, como se extrai, v.g., da aludida decisão no processo CAAD n.º 43/2014-T, “ainda no âmbito dos elementos da interpretação de acordo com o artigo 9.º do Código Civil, importa atender ao elemento histórico. Assim, recordando o Decreto-Lei n.º 599/72, de 30 de dezembro e o Decreto-Lei n.º 116/94, de 3 de maio, no que diz respeito à incidência subjectiva foi prevista a presunção de que os sujeitos passivos de IUC são as pessoas em nome das quais os veículos se encontravam matriculados à data da liquidação”.

 

Assim, quanto a este elemento de interpretação parece não assistir razão à Requerida.

 

Por outro lado, considerando o elemento racional e teleológico, o IUC tem como pressuposto o custo ambiental e viário da utilização efetiva do automóvel, não tendo, portanto, como destinatários os importadores dos veículos, já que a atividade destes não dá causa a qualquer custo ambiental.

 

O IUC tem, portanto, subjacente o princípio da equivalência previsto no artigo 1.º do CIUC, com vista a “onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.

 

Dando assim cumprimento ao comando constitucional, previsto no artigo 66.º, em que o desenvolvimento sustentável importa que o Estado assegure “que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com a protecção do ambiente e qualidade de vida” (al. h) do n.º 2).

 

Promovendo um princípio de “poluidor-pagador”, cumprindo pressuposto de igualdade material entre todos os cidadãos que dão causa ao custo ambiental, corporizando, desta forma o IUC as preocupações ambientes que à política fiscal se impõem.

 

Ora, considerar que o legislador fiscal quis outra coisa que não fosse admitir uma presunção ilidível no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação seria violar o princípio da equivalência, fazendo recair sobre o proprietário constante do registo e não sobre o real proprietário o pagamento do imposto, ainda que não fosse aquele (como não seria) a dar causa ao custo ambiental e viário que a carga fiscal quis onerar.

 

Assim sendo, também de acordo com este elemento o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC deve ser interpretado no sentido de estar em causa uma verdadeira presunção.

 

Do elemento literal do artigo 3.º, n.º 1 -, o legislador, ao contrário do que fez anteriormente, usou a expressão “considerando-se” e não “presumindo-se” -, podia questionar-se se a natureza de presunção está ou não em causa na presente norma em análise, mas, a verdade é que, de uma análise completa da legislação e da inexistência de qualquer preceito que confira ao registo qualquer outro efeito para além daquele infra referido, somos levamos a concluir que o legislador quis, de facto, usar ambas as expressões com sentido idêntico.

 

Assim, na senda da decisão proferida, v.g., no processo n.º 634/2016-T do CAAD, “a relevância e o interesse da presunção, em causa, que historicamente foi revelado por intermédio da expressão “presumindo-se” e que agora, se serve da expressão “considerando-se”, reside na verdade e na justiça que, por essa via, se confere às relações fiscais e, que corporizam valores fiscais fundamentais, permitindo tributar o real e efetivo proprietário e não aquele que, por circunstâncias de diversa natureza, não passa, por vezes, de um aparente e falso proprietário. Se o caso, assim não fosse considerado, não se admitindo e relevando a apresentação de elementos probatórios destinados à demonstração de que o efetivo proprietário é, afinal, pessoa diferente da que consta do registo e, que inicialmente, e em princípio, se supunha ser o verdadeiro proprietário, aqueles valores seriam objetivamente postergados”.

 

Concluindo-se, assim, que o artigo 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação consagra uma presunção, sendo esta ilidível nos termos do artigo 73.º da Lei Geral Tributária - “as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, pelo que são ilidíveis”.

 

Dando isto como assente importa verificar, agora, se a Requerente cumpre o ónus de ilidir a presunção que “contra” si recai, por ser a que consta do registo automóvel como proprietária dos veículos, de ser considerada o sujeito passivo do IUC.

 

Por força desta presunção, a Requerente teria que demonstrar que não é, por um lado, a efetiva proprietária e, por outro, desde quando o não é, nos termos do art. 346.º do Código Civil.

 

Assim, no caso dos autos, o que a Requerente tem que provar, a fim de ilidir a presunção que decorre quer do artigo 3.º do CIUC quer do próprio Registo Automóvel, é que ela Requerente não era proprietária dos veículos em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas. Propõe provar, segundo resulta dos autos, é que a propriedade dos veículos, não lhe pertenciam nos períodos a que as liquidações dizem respeito.

 

Era à Requerente, de facto, que se impunha afastar a presunção, demonstrar que não é o sujeito passivo do imposto, aquando da ocorrência dos factos tributários, oferecendo para o efeito meio idóneo de prova.

 

Ora face às faturas juntas, das quais a AT tinha já conhecimento em sede de audição, considerando a praxis que resulta do tipo de atividade comercial da Requerente e dos concessionários e empresas rent-a-car, bem como a relevância fiscal das faturas, todas do conhecimento da Requerida, entendemos que as faturas de venda apresentadas gozam de presunção de veracidade e, neste sentido, de idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que resulta das liquidações, de acordo com o disposto no artigo 75.º da Lei Geral Tributária.

 

Neste sentido, as faturas juntas são idóneas a afastar a presunção de que a Requerente era, à data da liquidação dos IUC, a proprietária dos veículos automóveis.

 

Decorrendo daqui, que à data em que o IUC era exigível quem detinha a propriedade dos veículos automóvel eram os legítimos proprietários e não a Requerente.

 

Em todas as situações em que, como é o caso em apreço, o sujeito passivo do Imposto sobre Veículos demonstra que transmitiu os veículos em causa a terceiros antes do termo do prazo para registo, deverá concluir-se que logrou ilidir a presunção estabelecida no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação.

 

Por tudo isto, no caso concreto a Requerente, enquanto Operador Registado, embora tenha, no exercício da sua atividade comercial, importado os veículos em apreço, procedido à sua introdução no consumo, através da emissão da Declaração Aduaneira de Veículo, pago o Imposto sobre Veículos e solicitado, junto do IMTT, a atribuição de matrícula, não é sujeito passivo do Imposto Único de Circulação uma vez que logrou demonstrar, através da junção dos meios de prova identificados, que no prazo de 60 dias para registo transmitiu os veículos a terceiros.

 

Desta forma, tendo a Requerente demonstrado que os veículos em apreço foram transmitidos dentro do prazo de 60 dias para registo e, consequentemente, antes do imposto se tornar exigível, só pode concluir-se que não está verificada a incidência subjetiva do art. 3.º, n.º 1, do CIUC não sendo deste modo a Requerente a devedora do imposto.

Tudo o que a Requerente demonstrou à AT logo em sede de audição, a qual, não obstante, acabou por indeferir a reclamação graciosa ainda que se encontrasse a Requerida devidamente esclarecida independentemente de qualquer menção registral.

 

Matéria de registo esta que se passa a analisar com mais detalhe.

 

5.1.2. O valor do registo

 

Nos termos do artigo 7.º do Código do Registo Predial, aplicável ex vi artigo 29.º, do Decreto-Lei n.º 54/75 (Registo automóvel), que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo define”.

 

Com vista à apreciação, cumpre analisar os efeitos do registo do veículo.

 

O registo do direito de propriedade do veículo tem um efeito meramente declarativo e não constitutivo do direito, pelo que se configura como uma presunção da existência do direito, nos termos em que se encontra registado, que pode ser ilidida, ou seja, admite a prova em contrário.

 

O registo definitivo não constitui mais do que uma presunção ilidível, admitindo, por isso, contraprova, como decorre da lei e a jurisprudência vem assinalando, podendo ver-se, entre outros, os Acórdãos do STJ n.º 03B4369 de 19-02-2004 e n.º 07B4528, de 29-01-2008, disponíveis em: www.dgsi.pt.

 

Ao nível do Código do IUC não existe qualquer disposição legal que atribua ao registo do veículo qualquer efeito jurídico, incluindo condição de validade ou eficácia do negócio causal, i.e., do contrato de compra e venda do qual o veículo é seu objeto mediato.

 

Se assim é, ou seja, inexistindo qualquer efeito distinto a atribuir ao ato de registo e considerando que a propriedade é assim transmitida mediante a celebração de contrato de compra e venda, sem que para este haja qualquer forma legalmente imposta, vigorando o princípio da liberdade de forma, nos termos do artigo 879.º, alínea a), do Código Civil, um dos efeitos deste contrato é exatamente o efeito real da transmissão da titularidade do direito.

 

Os adquirentes dos veículos tornam-se proprietários desses mesmos veículos por via da celebração dos correspondentes contratos de compra e venda, com registo ou sem ele.

 

Pelo que, independentemente da menção que consta do registo automóvel, certo é que, como supra referido, a Requerente demonstrou que não era a proprietária de qualquer um dos veículos em apreço nestes autos.

 

Face ao exposto, torna-se claro que o pensamento legislativo aponta no sentido de que o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, consagra uma presunção “juris tantum”, consequentemente ilidível, permitindo, assim, que a pessoa que no registo está inscrita como proprietária do veículo, possa apresentar elementos de prova destinados a demonstrar que tal propriedade está inserida na esfera jurídica de outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida, como foi o caso.

 

Por tudo isto, e na senda da decisão proferida no âmbito do já aludido processo n.º 624/2016-T, “atentos os factos supra descritos, importa salientar que os já referidos elementos de interpretação, sejam os relacionados com a interpretação literal, apoiada nas palavras legalmente utilizadas, sejam as respeitantes aos elementos lógicos de interpretação, de natureza histórica ou de ordem racional, apontam, todos eles, no sentido de que a expressão “considerando-se” tem um sentido equivalente à expressão “presumindo-se”, devendo, assim, entender-se que o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC consagra uma presunção legal que, face ao artigo 73.º da LGT, onde se estabelece que “as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”, será necessariamente ilidível, o que significa que os sujeitos passivos são, em princípio, as pessoas em nome de quem tais veículos estejam registados. Serão, pois, essas pessoas, identificadas nessas condições, a quem a AT se deve, necessariamente, dirigir”.

 

Por isto, atendendo a que a proprietária dos veículos, à data do facto tributário, não era a Requerente, i.e., não era a Requerente o sujeito passivo do imposto, não estão verificados os requisitos do artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, o que determina a anulação dos correspondentes atos de liquidação.

 

Relativamente à existência de outras questões atinentes à legalidade dos atos de liquidação, tendo em conta o que está ínsito no estabelecimento de uma ordem de conhecimentos dos vícios, tal como a prevista no artigo 124.º do CPPT, conclui-se que, procedendo o pedido de pronúncia arbitral baseado em vícios que impedem a renovação das liquidações impugnadas, fica prejudicado, porque inútil, o conhecimento de outros vícios, pelo que não se afigura necessário conhecer das demais questões suscitadas.

 

5.2. Reembolso do montante total pago

 

Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT, e, em conformidade com o aí estabelecido, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação, vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos de procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.

 

Trata-se de comandos legais que se encontram em total sintonia com o disposto no artigo 100.º da LGT, aplicável ao caso, ex vi, do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, no qual se estabelece que “a Administração Tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, correspondendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.

 

O caso constante nos presentes autos suscita a manifesta aplicação das mencionadas normas, posto que na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, referenciados, neste processo, terá, por força dessas normas, de haver lugar ao reembolso dos montantes pagos, neste caso unicamente a título do imposto pago já que não houve lugar a juros compensatórios, como forma de alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade.

 

5.3. Do direito a juros indemnizatórios

Os actos tributários questionados têm a sua génese na presunção, derivada do registo, constante do artigo 3.º, n.º 1, do CIUC.

 

No momento em que foram praticados, a AT não incorreu em qualquer erro de facto ou de direito. Poderia, no entanto, o sujeito passivo ilidir a presunção, designadamente através de reclamação graciosa (vd. CPPT, art. 64.º). E, no caso em análise, fê-lo por esse meio.

 

O que significa que, com o indeferimento da reclamação, incorreu a AT em erro, sendo, pois, a partir do momento em que proferiu essa decisão que serão devidos os juros.

 

Acompanhamos o sentido da decisão nos processos do CAAD nºs 53/2017-T e 408/2017-T, no trecho que a seguir se transcreve:

 

A par da anulação das liquidações, e consequente reembolso das importâncias indevidamente pagas, a requerente solicita ainda que lhe seja reconhecido o direito as juros indemnizatórios, ao abrigo do art. 43.º da LGT.

Com efeito, nos termos da norma do n.º 1 do referido artigo, são devidos juros indemnizatórios «quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.»”

 

Para além dos meios referidos na norma que se transcreve, entendemos que, conforme decorre do n.º 5 do art. 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral e, assim, se conhecer do pedido.

 

O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.

No caso dos autos, ainda que se reconheça não ser devido imposto pago pela Requerente, por não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, determinando-se, em consequência, o respetivo reembolso, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito a favor do contribuinte.

 

Com efeito, ao promover a liquidação oficiosa do IUC considerando a Requerente como sujeito passivo deste imposto, a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do art. 3.º do CIUC, que, como acima abundantemente se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.

 

Por outro lado, também como já se concluiu, a referida norma tem a natureza de presunção legal, de que decorre, para a AT, o direito de liquidar o imposto e exigi-lo a essas pessoas, sem necessidade de provar o factos que a ela conduz, conforme expressamente prevê o n.º 1 do art. 350.º do C. Civil.

 

Todavia, relativamente às liquidações que constituem objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, importa saber se o ato de indeferimento da pretensão da ora Requerente, formulada na reclamação graciosa oportunamente interposta, configura, ou não, erro imputável à Administração Tributária para efeitos da exigibilidade de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º, n.º 1, da LGT.

 

Nesta matéria tem-se em atenção a orientação decorrente da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, que vai no sentido de reconhecer que uma decisão da Administração Tributária que indefere um pedido de anulação de liquidação reconhecidamente ilegal e consequente restituição de tributo indevidamente cobrado, constitui erro imputável aos serviços.

 

Segundo a mencionada jurisprudência – vertida em douto acórdão de 28 de Outubro de 2009, no Proc. 601/09 – são devidos juros indemnizatórios a partir da data do indeferimento da reclamação até à data do processamento da respetiva nota de crédito, nos termos do artigo 61.º do CPPT.

 

Por tudo quanto se acaba de expor é que se conclui que a AT não incorreu em qualquer erro de facto ou de direito aquando da prática dos mencionados atos tributários; todavia,  mantendo, apesar da elisão da citada presunção, os mencionados atos e a exigência de IUC, constituiu-se na obrigação de restituir o imposto pago mais juros desde a data da decisão da reclamação graciosa apresentada pela Requerente.

 

Ou seja: não tendo procedido então à restituição do imposto, como deveria, a AT incorreu, desta vez sim, em erro, e tal erro determinou que a Requerente continuasse privada do montante que indevidamente satisfizera.

 

Por isso, não obstante o prejuízo para a Requerente resultante do pagamento indevido a que foi obrigada não resulte, in limine, de erro imputável aos serviços e não confira direito a indemnização, já o não reconhecimento pela AT, ao decidir o pedido de revisão oficiosa, da ilegalidade em que incorrera, foi fonte de prejuízos para a Requerente, traduzidos na indisponibilidade da quantia que pagara.

 

Acolhendo-se a orientação referida, reconhece-se o direito da Requerente a juros indemnizatórios com referência às liquidações a que se referem os autos e que, pela presente decisão, constituem objeto de anulação, mas apenas a partir da data em que foi decidido o pedido de reclamação graciosa.

 

5.4. Da responsabilidade pelo pagamento de custas arbitrais

Nos termos do artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, será condenada em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.

 

Todavia, o n.º 2 do referido artigo concretiza a expressão “houver dado causa” entendendo que se trata da parte vencida, pelo que, neste sentido e sendo a lei clara e evidente no que respeita à responsabilidade por custas arbitrais, entendemos que deve a Requerida ser condenada nas custas arbitrais.

 

VI – Decisão

 

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o presente Tribunal Arbitral decide:

 

  1. Julgar procedente o pedido de revogação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e da declaração de ilegalidade das 719 autoliquidações de IUC e juros compensatórios, relativamente a todos os veículos cujas matrículas estão identificadas nos autos, anulando assim os correspondentes atos de liquidação dos anos de 2013 e 2014 e determinando-se a consequente restituição da importância global de € 99.395,91.
  2. Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios a partir da data do indeferimento da reclamação graciosa, em 19-12-2016, até à data do processamento da respetiva nota de crédito, nos termos do artigo 61.º do CPPT.
  3.  Condenar a Requerida nas custas do presente processo.

 

VII – Valor do processo

 

Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, do CPPT e art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 99.395,91.

 

 

VIII – Taxa de Arbitragem

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.754,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária.

 

  • Notifique-se.

 

Lisboa, 9 de fevereiro de 2018

 

 

      O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

 

José Poças Falcão

(Presidente)

 

 

 

Maria da Glória Teixeira

(Árbitra Vogal)

 

 

Miguel Patrício

 (Árbitro Vogal)