Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Carlos Lobo e Luís Alberto Ferreira Alves, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte
DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
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No dia 10 de Maio de 2017, A… LDA., NIPC …, com sede na Rua …, nº…, …, …-… Sines, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IRC nº 2016 … de 2012, no valor de € 66.839,87.
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Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:
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As facturas dos serviços de contabilidade prestados pela empresa “B…, Lda.” não podem ser consideradas como despesas não documentadas nos termos do artigo 88º, nº 1 do CIRC;
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A consideração dessas facturas como despesas não documentadas violaria a presunção de legalidade de que gozam as declarações dos contribuintes nos termos do artigo 75º LGT;
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Constitui violação do princípio do contraditório e das garantias de defesa do contribuinte a desconsideração da existência de um cofre, não bancário, com base em tal facto não ter sido alegado durante o procedimento de inspecção tributária;
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Não pode a AT considerar como “despesa não documentada” a saída de um valor de uma conta para a outra em função da identificação de uma quantia que, por corresponder a numerário depositado num cofre, não deve estar registado numa conta de depósito à ordem.
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No dia 10-05-2017 o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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Em 04-07-2017 as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
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Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 18-08-2017.
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No dia 29-09-2017, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
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Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.
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Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.
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O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
Tudo visto, cumpre proferir
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
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A Requerente é, e era em 2012, uma sociedade por quotas que tem por objecto as actividades de cirurgia oral menor, dentisteria, endodontia, periodontia, próteses fixas e removíveis.
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A Requerente está, e estava em 2012, enquadrada para efeitos de IRC no regime geral de determinação do lucro tributável
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A Requerente fez constar na declaração IES do exercício de 2012, o montante de €220.000,00 no campo A5118 - Accionista/Sócio, ao que correspondeu uma diminuição efectiva do campo A5125 – Caixa e depósitos bancário, conforme quadro seguinte:
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A Requerente foi alvo de um procedimento de inspecção externa de âmbito parcial – IRC e Retenções na Fonte - e dirigido ao ano de 2012, através da Ordem de Serviço nº OI2016…, tendo por finalidade a análise do saldo da conta accionistas/sócios.
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No decorrer do procedimento de inspecção tributária, a Requerente submeteu nova declaração IES relativa aos anos de 2012, 2013, 2014 e 2015 através da qual alterou o valor que constava do campo A5118- Accionista/Sócio para o campo A5125 – Caixa e depósitos bancários, passando a constar os seguintes valores:
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Do balancete de abertura da Requerente, referente ao período em causa, consta, na subconta “1201 – Bancos – D.O.”, que o saldo inicial era de € 203.781,05, sendo que no balancete final apurou-se um saldo final de € 3.303,04, constando neste balancete na conta “26601 – Empréstimos concedidos a Accionistas/sócios” o montante de € 220.000,00.
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Esta operação contabilística foi efectuada em 2012-12-31, constando dos extractos das contas “26601 –C…” e “26602 – D…”, em que consta a débito, em cada uma das contas o valor de € 110.000,00, num total de € 220.000,00, não constando da contabilidade qualquer documento comprovativo de tal empréstimo.
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O sócio-gerente da Requerente, C…, em auto datado de 04-10-2016, declarou que “Ao longo dos anos foi usando a conta da empresa para utilização da família, despesas familiares, sendo que em 2012, com o divórcio litigioso (da outra sócia), em conjunto com o contabilista achou-se melhor passar o valor que estava em caixa e que não existia para empréstimos concedidos a sócios (€ 110.000,00 – Sr. C… e € 110.000,00 – Sra. D…). Este dinheiro já foi gasto, não existindo na realidade. Foi gasto desde o início da empresa pelos dois sócios. Não foi efectuado qualquer empréstimo dos sócios à empresa.”.
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Nos balancetes não consta a conta “11 – Caixa”.
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Após solicitação verbal da AT, no dia 2016-10-04, o referido sócio-gerente apresentou cópia dos extractos bancários do ano de 2012, da conta …, que corresponde ao NIB …, do banco E…, SA., titulada pela sociedade.
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Dos referidos extractos não consta qualquer transferência da conta do sujeito passivo para a conta dos sócios.
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Dos mesmos extractos consta que o saldo do dia 31-12-2012 oscilou entre € 988,67 e € 1.226,88 (saldo final a 31-12-2012), não tendo ao longo do mês ocorrido qualquer transferência/empréstimo no montante de € 110.000,00 para cada um dos sócios.
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No âmbito da referida acção de inspecção, a Requerente foi notificada do projecto de Relatório de Inspecção Tributária, proposto pelos Serviços de Inspecção Tributária da Direção de Finanças de …, no qual se propunha a seguinte correcção:
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A Requerente foi notificada, nos termos do artigo 60º do RCPITA e artigo 60º da LGT para, querendo, exercer o seu direito de audição, em 30-11-2016, o que fez.
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No Requerimento de exercício do direito de audição, foram apresentadas pela Requerente as seguintes facturas, no montante global de €105.325,00, emitidas por “B…, Lda”, nos anos de 2003 a 2011:
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As facturas apresentadas, referentes à empresa que presta serviços de contabilidade para a Requerente, não foram contabilizadas como gastos dos períodos de 2003 a 2011.
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Através do ofício nº … de, 13-12-2016, vieram os Serviços de Inspeção Tributária emitir o Relatório Final de Inspeção Tributária, com as alterações introduzidas após o exercício do direito de audição.
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Do relatório de inspeção tributária consta o seguinte:
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Relativamente ao exercício do direito de audição, consta do RIT que:
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A Requerente foi notificada das demonstrações de liquidação de IRC nº 2016 … e da demonstração de acerto de contas nº 2016… as quais incorporam as correcções efectuadas em sede de inspecção.
A.2. Factos dados como não provados
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A Requerente era possuidora, desde 2005, de um cofre não bancário.
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Que as facturas referidas no ponto 15 dos factos provados foram pagas em numerário.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Os factos dados como não provados fundam-se na insuficiência de prova a seu respeito, e na prova indiciária em sentido oposto reflectida na matéria provada, à luz da livre apreciação dos julgadores, de acordo com um critério de normalidade.
Assim, no que diz respeito ao primeiro dos factos não provados, não se afigura crível que a empresa de contabilidade – com especiais obrigações de conhecimento e aplicação das regras relativas à facturação – tenha estado de 2003 a 2011 a prestar serviços e receber pagamentos, sem emitir um único documento.
Do mesmo modo, não é crível, à míngua de qualquer explicação credível, que uma sociedade comercial esteja aquele período de tempo a efectuar pagamentos por si devidos em numerário, sem exigir qualquer comprovativo dos mesmos, sujeitando-se, por isso, a serem reais as dívidas, a ter de as pagar duas vezes.
A falta de credibilidade, funda-se ainda nas circunstâncias, apontadas pela Requerida, de os valores facturados serem desproporcionados face à actividade registada da emitente das facturas e, pelo menos em determinados anos.
A tudo isto acresce ainda a incongruência de a Requerente imputar irregularidades contabilísticas graves, e alegadamente lhe pagar um valor notoriamente elevado para serviço de contabilidade, atenda a dimensão da empresa em questão.
No que diz respeito ao segundo facto não provado, considera-se que a mera alegação da sua existência, não suportada, por exemplo, pela documentação relativa à sua aquisição e respectiva contabilização, é insuficiente para que se conclua, para lá de qualquer dúvida razoável, pela sua verificação.
Ambos os factos dados por não provados tiveram igualmente em conta o contexto em que se desenrolou o processo inspectivo, documentado no RIT, em especial as circunstâncias de, atenta a sua relevância, não ser crível que a Requerente não tivesse noção da existência valores elevados pagos sem documentação de suporte, e da existência de uma coisa materialmente evidente, como um cofre, também contendo valores elevados, e de o sócio gerente da Requerente ter reconhecido que “Ao longo dos anos foi usando a conta da empresa para utilização da família, despesas familiares”.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DO DIREITO
Em causa na presente acção arbitral está apreciar a legalidade da aplicação de tributação autónoma, nos termos do artigo 88.º/1 do CIRC, a dois grupos de despesas, a saber:
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um no valor total de € 105.325,00, que a Requerente alega respeitar a serviços de contabilidade facturados, pagos, mas não contabilizados;
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outro no valor total de € 9.785,00, que a Requerente alega respeitar a valores depositados num cofre.
Face aos factos provados e não provados, não se pode concluir de outra forma que não pela legalidade das correcções em questão.
Efectivamente, não resulta minimamente demonstrado quer que o valor de € 105.325,00 respeite a serviços de contabilidade facturados, pagos, mas não contabilizados, nem que o valor de € 9.785,00 respeite a valores depositados num cofre.
No que diz respeito ao primeiro valor, ao contrário do que refere a Requerente, não se concorda que “a única prova documental possível do pagamento são os recibos emitidos por quem recebeu o dinheiro, os quais já foram juntos ao processo com a petição inicial”, já que outras provas, relativas ao percurso dos valores poderiam ser obtidas e apresentadas, quer ao nível da entidade pagadora, quer da entidade recebedora, designadamente ao nível de documentação bancária e contabilística.
Quanto à alegação de que “argumentação, (...) baseada em avaliações sobre o valor dos serviços faturados, não cabe à AT fazer porquanto a lei não autoriza o valor fixado entre as partes num contrato não pode merecer, salvo casos específicos que não estão aqui em causa, censura por parte da AT”, não prejudica que, no contexto da aferição da credibilidade dos factos alegados e das provas apresentadas para os suportar, se considere o contexto e normalidade dos mesmos, o mesmo se aplicando à alegação de que “o pagamento em numerário das quantias em causa era permitido na altura.”.
Note-se aliás, que a argumentação da Requerente nesta matéria, assenta numa inversão do ónus da prova, que no Requerimento inicial é fundada no artigo 75.º da LGT, já não invocado em sede de alegações, sem que contudo o mesmo seja aplicável ao caso.
Com efeito, como se escreveu no Acórdão do STA de 04-05-2016, proferido no processo 0415/15, “Contrariamente ao que sucede nos casos em que a declaração de rendimentos é apresentada nos termos previstos na lei – aí se incluindo o prazo legal para a sua apresentação, pois que os termos previstos na lei o incluem também -, a declaração de rendimentos tardiamente apresentada não beneficia da presunção de verdade estabelecida no artigo 75.º da Lei Geral Tributária, sendo livremente valorada.”.
Acresce que, no caso, se verifica a previsão da al. a) do n.º 2 do referido artigo 75.º, que dispõe que:
“2 - A presunção referida no número anterior não se verifica quando:
a) As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo;”.
Não se está, assim, perante qualquer presunção de não correspondência à realidade da documentação apresentada pela Requerente, mas, exclusivamente, perante a apreciação da suficiência daquela, no contexto em que emerge, para superar o juízo de prova que onera a Requerente.
Deste modo, era à Requerente que incumbia provar, para lá de qualquer dúvida razoável, que a documentação que apresenta corresponde, de facto, às despesas que, reconhecidamente, foram feitas, o que, como se referiu, não ocorreu.
Conclui-se assim, ao contrário do que alega a Requerente, que as despesas em questão não estão “documentadas através das faturas emitidas pela empresa de serviços de contabilidade”, já que não se prova que as facturas em questão se reportem às despesas em causa, sendo que, estando em causa matéria de facto – ou seja, a circunstância de não se ter provado a referida circunstância – não haverá qualquer interpretação extensiva ou inconstitucionalidade.
No que respeita ao valor de € 9.785,00, que a Requerente alega respeitar a valores depositados num cofre, não foi provada igualmente a existência do mesmo.
Nota-se que não está em causa qualquer extemporaneidade por não ter sido invocada a existência do alegado cofre durante o procedimento de inspecção, mas uma insuficiência de prova de tal facto, à luz de critérios de normalidade onde, a circunstância de nada ter sido referido no procedimento de inspecção é abrangida pela ponderação do juízo efectuado, não se verificando, assim, qualquer violação do princípio do contraditório e/ou das garantias de defesa do contribuinte.
Também não se trata de considerar como “despesa não documentada” a saída de um valor de uma conta para a outra em função da identificação de uma quantia que, por corresponder a numerário depositado num cofre, não deve estar registado numa conta de depósito à ordem, dado que, como se viu, não se comprovou a existência do alegado cofre e, consequentemente, a veracidade do alegado movimento.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente improcedente o pedido arbitral formulado e, em consequência,
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Absolver a Requerida do pedido;
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Condenar a Requerente nas custas do processo, no montante de € 2.448,00, tendo-se em conta o já pago.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 66.839,87, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.448,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa 8 de Fevereiro de 2018
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho)
O Árbitro Vogal
(Carlos Lobo)
O Árbitro Vogal
(Luís Alberto Ferreira Alves)
[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.