Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 287/2017-T
Data da decisão: 2017-12-11  IRC  
Valor do pedido: € 126.704,21
Tema: IRC - Tributações autónomas - Despesas não documentadas - Período de tributação - Erro sobre os pressupostos de facto.
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Decisão Arbitral

 

          Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. José Joaquim Monteiro Sampaio e Nora e Dr.ª Sofia Cardoso (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 07-03-2017, acordam no seguinte:

         

          1. Relatório

 

A…, LDA, pessoa colectiva n.º … com sede na Rua …, …, …-…  …, freguesia e concelho de …, distrito de Aveiro (doravante designado como «Requerente»), veio, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou ”RJAT”), apresentar pedido de pronúncia arbitral visando obter a anulação da liquidação adicional de IRC n.º 2016…, de 16.12.2016, efectuada com referência ao exercício de 2012, no montante de € 111.000,00, e da liquidação de juros compensatórios n.º 2016…, efectuada conjuntamente, no montante de € 15.704,21.

            É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 24-04-2017.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 14-06-2017 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 03-07-2017.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu que o pedido deve ser julgado improcedente.

Em 18-10-2017 realizou-se uma reunião em que foi produzida prova testemunhal e decidido que o processo prosseguisse com alegações escritas.

As Partes apresentaram alegações.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e é competente.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

 

2. Matéria de facto

 

2.1. Factos provados

 

Com base nos elementos que constam do processo e do processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)      A Requerente exerce, desde o ano de 1988, a atividade de “Comercio a retalho de combustíveis para veículos a motor, estação de serviço (CAE 47300)” (cópia da certidão da Conservatória do Registo Comercial junta com o pedido de pronúncia arbitral como documento n.º 4, cujo teor se dá como reproduzido);

b)      A Requerente apresentou a declaração periódica de rendimentos (mod 22), de CIRC, com referência ao exercício de 2012;

c)      A Requerente apresentou a declaração anual de informação empresarial simplificada (IES), para o exercício de 2012;

d)     A Administração Tributária e Aduaneira efectuou uma acção inspectiva à Requerente relativa ao exercício de 2012 em que elaborou o Relatório da Inspecção Tributária que consta do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:

Esclarecimentos solicitados

      Para esclarecimento dos valores declarados foram solicitados ao sujeito passivo os seguintes elementos:

- Através do N/ Oficio nº… de 2015.09.04 foram pedidos os ficheiros SAF-T(PT), que o sujeito passivo remeteu a estes Serviços em 2015.09.18;

- Após análise do SAF-T(PT) respeitante a 2012 foi, através do N/ Ofício nº … de 2016.10.07, solicitada a apresentação dos documentos comprovativos e justificativos dos seguintes movimentos registados na contabilidade da empresa com data de 2012-02-29, Diário 10, documento. … e ….

 

 

- Em 2016.10.10, via email, veio o Contabilista Certificado do sujeito passivo, Sr B…, remeter cópia da ata nº … com data de 2012.02.28, para justificar os movimentos antes referidos.

      Ata nº … de 2012.02.28

      Consta da ata nº … que reuniram os sócios em Assembleia para "Deliberar sobre a proposta da gerência de regularização do saldo de caixa que transita desde o ano de 1988 e do reconhecimento do valor atribuído ao goodwill." Foi apresentada a seguinte proposta:

      "Como é do conhecimento de todos os sócios da sociedade foram pagos aos seus trabalhadores, nos anos de 1988 a 2004, por imposição daqueles as horas extraordinárias. Os valores que saíram a esse título foram mantidos como valores em caixa. A Administração Tributária constatou o facto no âmbito do procedimento inspetivo concluído em 09/11/2010 e sugeriu a regularização do saldo de caixa. Considerando que a regularização do caixa irá reduzir o capital próprio para valores que o forçavam a cair no âmbito do artigo trinta e cinco do Código das Sociedades Comerciais, foi entendimento da gerência não o fazer até que fosse encontrada uma solução técnica para o problema. Face a insistência da Administração Tributária em questionar a origem daquele saldo de caixa, a gerência solicitou um parecer técnico sobre a questão tendo sido sugerida a avaliação dos elementos intangíveis da sociedade tais como o valor do estabelecimento, o valor da base de clientes existente, o valor das relações com a banca e com os fornecedores e outro tipo de vantagens intangíveis. A este valor intangível foi atribuído o valor que se situa entre os cento e oitenta e os duzentos e vinte mil euros. Assim e tendo em conta o intervalo do valor da avaliação a gerência propõe que seja reconhecido nas contas do corrente mês aquele intangível por um valor médio de duzentos mil euros."

      A proposta foi aprovada por unanimidade, pelo que:

      "Em consequência do deliberado, deverá ser regularizado por débito de resultados transitados o saldo de caixa correspondente aos pagamentos efetuados aos trabalhadores nos anos de 1988 a 2004, e reconhecido o valor do goodwill no montante de duzentos mil euros." (destacado nosso)

      Junta-se em anexo:

      - Cópia da Ata nº … de 2012.02.28 - Anexo n.º2

      - N/ Oficio nº … de 2015.09.04 - Anexo n.º3

      - N/ Oficio nº … de 2016.10.07 - Anexo n.º4

      A singularidade desta "regularização" do saldo de caixa conduziu à necessidade de encontrar junto da empresa e dos seus responsáveis, explicação e comprovação da situação.

      Todavia, para além da ata nº…, não existe na contabilidade qualquer outro documento que validamente suporte os movimentos antes referidos. Foi apenas apresentado pelo sócio-gerente Sr. C… e pelo seu CC Sr. B…, um documento de 6 páginas com data de 2011.09.12, sob o título "AVALIAÇÃO ECONÓMICA – A…, IDA - O Goodwill de A…, Lda", cuja fotocópia constitui o Anexo n.º5.

      Nesse documento é efetuada uma "Estimativa do valor da empresa" através do "Método do DCF" e "Método dos Múltiplos", com base na demonstração de resultados dos períodos de 2007 a 2010.

      O método DFC ou Discounted Cash Flow (Fluxos de Caixa Descontados) é um método de avaliação de empresas, ativos ou projetos, que utiliza o conceito de Valor Presente, para determinar o valor da soma de todos os fluxos que se estima que a empresa venha a gerar, acrescido do Valor Residual (considerando um crescimento perpétuo), descontados a uma taxa apropriada (normalmente à taxa apurada para Custo Médio Ponderado do Capital) que representa o prémio de risco do ativo e o valor do dinheiro ao longo do tempo.

      Resultou da avaliação por este método um valor de € 331.867,00.

      O método dos Múltiplos partiu do EBIT do ano de 2010 no valor de € 43.454,00, ao qual aplicou o fator 10, resultando um valor de € 434.537,00.

      Para além destes cálculos, que resultaram de pressupostos sem qualquer justificação nem demonstração, consta do referido documento em jeito de conclusão que "A partir dos dados históricos e dos pressupostos e expectativas divulgadas pela marca concessionária da exploração projectamos para a sociedade, recorrendo aos métodos do DCF e dos múltiplos um valor que se situa entre os 330 mil e os 430 mil euros."

      Não há no documento antes referido qualquer alusão à análise económica e financeira da própria empresa, ao contexto económico e social em que a avaliação é efetuada, circunstâncias que promovem a sua necessidade, definição e justificação dos parâmetros e variáveis dos modelos de avaliação aplicados, determinação do valor residual da empresa no fim do período previsional, etc. Todavia, logo no ano da avaliação (2011) os resultados passaram a prejuízo assim se mantendo até 2014, facto que, por si só, revela a inconsistência da mesma e a sua desadequação para todo e qualquer efeito que não seja o de recompor os capitais próprios da empresa após a transferência do saldo devedor da conta "11 - Caixa" para Resultados Transitados.

      Foi, assim, com base nesse documento, que efetuaram o reconhecimento contabilístico de um ativo intangível que designaram por goodwill, no valor de € 200.000,00 (valor muito afastado até dos que resultaram da "avaliação").

      Mas ainda que a avaliação tivesse sido efetuada de forma consistente, nunca poderia ter como objetivo a relevação contabilística do goodwill Isto porque, de acordo com a NCRF 6 - Ativos intangíveis, §47 a 49, o goodwill gerado internamente não é reconhecido como ativo porque:

      - não é um recurso identificável (i.e. não é separável nem resulta de direitos contratuais ou de outros direitos legais);

      - não é controlado pela entidade;

      - não pode ser fiavelmente mensurado pelo custo.

      Portanto, a relevação contabilística desta "avaliação", para além de proibida pela NCRF 6, afeta negativamente a imagem verdadeira e apropriada que, de acordo com o § 46 da EC do SNC, devem evidenciar as demonstrações financeiras acerca da posição financeira, o desempenho e as alterações na posição financeira de uma entidade. Se bem que a Estrutura Conceptual não trate diretamente tais conceitos, reconhece que só a aplicação das principais características qualitativas e das normas contabilísticas apropriadas consegue tal desiderato, o que não se verifica na contabilidade do sujeito passivo que, pelos motivos apontados, infringiu o normativo contabilístico vigente.

      Conforme já se referiu, este movimento contabilístico teve como único objetivo ocultar o efeito provocado no capital próprio pela "regularização" do saldo de caixa em € 185.000,00, que passou pela sua retirada de caixa por contrapartida do débito da conta 56 - Resultados transitados (SAFT contabilidade - movimento registado com data de 2012-02-29, Diário 10, Doc. 2020), conforme é admitido na ata nº 27 já antes referida -"...Considerando que a regularização do caixa irá reduzir o capital próprio para valores que o forçavam a cair no âmbito do artigo trinta e cinco do Código das Sociedades Comerciais." Esta "regularização" do saldo de caixa reflete a saída de dinheiro de caixa sem a respetiva justificação documental, em relação à qual se desconhece(m) o(s) destinatário(s) e o fim para que reverteu.

      O sujeito passivo alega na referida ata nº … que tal saldo do caixa não existia na realidade, pois foi utilizado para pagamento de "horas extraordinárias aos seus trabalhadores entre 1988 e 2004". Ou seja, que a sua contabilidade, as suas demonstrações financeiras e as suas declarações fiscais evidenciaram até ao início de 2012 um saldo de caixa elevado, mas que afinal não existe porque foi canalizado para o pagamento de "horas extraordinárias aos seus trabalhadores entre 1988 e 2004".

      Ora, a fazer fé nas informações do sujeito passivo dado que não fez a respetiva comprovação:

      • Teria violado o princípio da verdade declarativa que deve nortear a elaboração da contabilidade, das demonstrações financeiras e o preenchimento das declarações fiscais;

      • Tendo também que se concluir, que tais pagamentos de "horas extraordinárias aos seus trabalhadores entre 1988 e 2004" terão sido omitidos à contabilidade e não foram alvo de qualquer sujeição a tributação em sede de IRS e contribuições para a Segurança Social, ou seja, terão ficado fora do alcance da lei por terem sido dissimulados na contabilidade;

      • E ao reportar tal conduta aos anos de 1988 a 2004, já caducados à luz do artigo 45º da LGT, sabe que impede que, do ponto de vista jurídico, se proceda a qualquer verificação da contabilidade e dos documentos que estiveram na origem da situação em análise e propor, quaisquer correções que lhe seriam, à partida, desfavoráveis;

      • Razão pela qual, as consequências da não observação do princípio da verdade declarativa consubstanciada na adulteração intencional dos registos contabilísticos e dos valores apostos nas declarações fiscais (com o objetivo evitar o pagamento de impostos e contribuições incidentes sobre o pagamento de remunerações), apenas sobre o sujeito passivo podem recair, uma vez que, se assim não fosse, estar-se-ia a premiar a violação do princípio da verdade declarativa;

      Ou, dito de outro modo, não pode o sujeito passivo pretender agora beneficiar das suas próprias omissões e inexatidões sob pena de incorrer na proibição de "venire contra factum proprium": beneficiou nos anos em que alega ter pago horas extraordinárias aos seus trabalhadores à margem da contabilidade e declarações fiscais, furtando-se assim ao pagamento dos impostos e contribuições devidas, e pretende beneficiar novamente quando vem agora invocar a falta de aderência à realidade das declarações e registos por si efectuados relacionados com o saldo de caixa, para que não se tribute aquela retirada de meios financeiros da empresa no momento em que tal facto foi evidenciado na contabilidade, ou seja, em 2012.

      Mas na realidade, o sujeito passivo não comprova que tenham sido pagas "horas extraordinárias aos seus trabalhadores entre 1988 e 2004", e que, por tal motivo, o saldo evidenciado pela contabilidade "não é real":

      • Sem prejuízo do referido anteriormente, sempre competiria ao SP o ónus de provar que os pagamentos de horas extraordinárias ocorreram efetivamente e naqueles anos, abalando assim a presunção de veracidade que impende sobre a contabilidade organizada e respetivos documentos de suporte – cfr. Artigo 75º da LGT;

      • Mas o sujeito passivo não demonstra a factualidade que alega, e que, em seu entender, justificaria a "desconsideração" desta rubrica contabilística (saldo de CAIXA) por contrapartida de "Resultados Transitados";

      • O que é facto é que a contabilidade e as declarações fiscais revelam um excedente de disponibilidades em caixa até 2012, e que em fevereiro desse ano a maior parte foi transferida para resultados transitados, diminuindo estes e, em consequência, o capital próprio da sociedade, sem qualquer apoio contabilístico aceitável em termos de ser possível determinar, sem ambiguidade, as características da operação (o que, o porque e o para quem, nomeadamente). Isto é, existe uma saída de caixa, não sendo o destino da respetiva importância determinado nem determinável por não se conhecer(em) as operação(ões) subjacente(s), visto não existir qualquer documento de suporte admissível (e não foi produzida qualquer prova de que tenha sido gasto entre 1988 e 2004, em horas extraordinárias pagas ao pessoal).

      As irregularidades detetadas em resultado da análise efetuada e o respetivo impacto fiscal serão relatados no ponto seguinte (ponto III).

 

      III. DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORREÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS

      III. 1. EM SEDE DE IRC - PERÍODO DE TRIBUTAÇÃO DE 2012

      III. 1.1. Tributação autónoma de despesas não documentadas

     

      Conforme referido no ponto anterior, foi reconhecida contabilisticamente uma saída de dinheiro de caixa, por contrapartida de resultados (afetando negativamente os resultados, não os do período, mas resultados transitados), sem qualquer documento de suporte que revele a sua natureza e o seu beneficiário, algo que se ajusta à letra do nº 1 do artigo 88º do CIRC e à finalidade da tributação autónoma nele estabelecida para as despesas não documentadas.

      Quanto à letra, despesa significa: «1. Ato de gastar dinheiro, de despender. 2. Quantia que se gasta, montante a pagar a outro (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa).

      Quanto ao espírito do preceito, escreve-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/2011, de 12 de Janeiro de 2011, Processo n.º 204/2010, que: «A lógica fiscal do regime [não consideração como gasto - o que agora não se coloca - e tributação autónoma] assenta na existência de um presumível prejuízo para a Fazenda Pública, por não ser possível comprovar, por falta de documentação, se houve lugar ao pagamento do IVA ou de outros tributos que fossem devidos em relação às transações efetuadas, ou se foram declarados para efeitos de incidência do imposto sobre o rendimento os proventos que terceiros tem vindo a auferir através das relações comerciais mantidas com o sujeito passivo do imposto. Para além disso, a tributação autónoma, não incidindo diretamente sobre um lucro, terá ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de ilicitude penal ou de menor transparência fiscal» (cfr. ainda acórdão do mesmo Tribunal n.º 310/2012, de 20 de Junho de 2012, Processo n.º 150/12). E escreve-se também no Acórdão do STA, de 21 de Março de 2012, Processo n.º 0830/11: «Sobre a razão de ser das tributações autónomas, segundo a doutrina dominante, o legislador criou taxas de tributação autónomas que visam aplicar-se a determinado tipo de despesas com vista a dissuadir as sociedades, no caso de IRC, a apresentá-las com regularidade e de elevado montante, para evitar que os sujeitos passivos de IRC utilizem determinadas despesas para proceder a distribuição camuflada de lucros e para evitar a fraude e a evasão fiscal».

      Assim sendo, quanto ao documento nº…, Diário 10, com data de 2012-02-29, reflete um decréscimo de 185.000,00 euros no saldo de caixa contabilizado, pelo que, a falta de identificação do(s) destinatário(s) e a falta da comprovação da natureza da operação e do fim para que reverteu a verba citada, terá que ser considerada como uma despesa não documentada com incerto(s), que consubstancia um facto tributário sujeito a tributação autónoma, à taxa de 60%, conforme disposições conjugadas dos n.ºs 1 e 14 do artigo 88.º do CIRC.

      Assim, será acrescido ao montante das tributações autónomas declaradas pelo sujeito passivo no período de tributação de 2012 o montante de € 111.000,00 (€ 185.000,00 x 60%), obtido pela aplicação da taxa de 60% ao valor das despesas não documentadas de € 185.000,00.

      Com esta conduta, infringiu o estipulado no nº 1 do artigo 88º do CIRC.

      (...)

      VIII. DIREITO AUDIÇÃO - FUNDAMENTAÇÃO

      (...)

      VIII.2. ABORDAGEM A RESPOSTA DO SUJEITO PASSIVO

      No ponto II, o sujeito passivo pronuncia-se sobre a inexistência do facto tributário, argumentando que A Autoridade Tributária agiu de forma arbitrária, uma vez que o facto tributário corrigido já era do conhecimento da AT em 09-11-2010, aquando da anterior ação inspetiva levada a efeito ao sujeito passivo.

      Vejamos então a abordagem efetuada ao saldo de caixa no RIT respeitante aos períodos de tributação de 2007 e 2008, concluído em 2010.12.03:

      Alega, enfim, o sujeito passivo no direito de audição o seguinte:

      "9. Em procedimento tributário concluído em 9/11/2010 a AT tomou conhecimento de que no período de 1988 a 2004 a sociedade efectuou pagamentos aos seus trabalhadores que não reconheceu como gastos daqueles períodos.

      10. Ao não registar essas despesas como gastos de cada um dos períodos em que ocorreram, reconheceu resultados superiores aos que efetivamente teve naqueles períodos.

      11. Por motivos, essencialmente, de natureza financeira a empresa manteve desde 2004 um saldo de caixa sobreavaliado, sem condições para o ajustar.

      12. A AT procedeu a verificação do facto em 2010 e sugeriu a sua regularização.

      13. Naquela data - 2010 - nenhuma consequência tributária foi retirada do respectivo facto."

      Em primeiro lugar e por mera questão de precisão de análise, importa esclarecer que, ao contrário do que pretende sugerir o sujeito passivo nos pontos 9 e 10 da exposição apresentada, o pagamento de ordenados à margem da lei tem subjacente a omissão de rendimentos para efeito de tributação em sede de IRS e contribuições para a Segurança Social, daí resultando vantagem fiscal em montante superior ao IRC que porventura tenha pago em excesso por via da eventual sobreavaliação de resultados decorrente da não declaração de tais ordenados como gasto.

      Mas nem sequer é essa a questão que importa aqui avaliar.

      O que está efetivamente em causa são as conclusões que, a este propósito, o sujeito passivo retira da análise ao RIT concluído em 2010.12.03, e que, de todo, correspondem aos factos que lá estão enunciados. Acerca do saldo de caixa, apenas consta do referido RIT que a AT se limitou a:

      - concluir pela incoerência de um saldo de caixa tão elevado, e;

      - a registar a explicação dada pelo sócio-gerente da empresa no sentido de que o mesmo se encontraria influenciado, entre outras coisas, pelo pagamento "por fora" de horas extraordinárias aos seus colaboradores ao longo de vários anos anteriores.

      Ou seja, a conclusão é óbvia em face da existência de opções economicamente mais rentáveis para aplicação de disponibilidades. Já quanto à explicação dada pelo sócio-gerente da empresa, nada mais consta do RIT que não seja a sua transcrição, até porque, quer no âmbito dessa ação inspetiva, quer no âmbito da que agora decorre, tal explicação é demasiado vaga e desacompanhada de qualquer elemento comprovativo ou justificativo relevante para o pretendido efeito de fazer prova de que aquele saldo inscrito na sua contabilidade e que resultou das suas operações comerciais, não corresponde à realidade.

      Assim sendo, sem que o sujeito passivo tenha apresentado prova real e objetiva suscetível de pôr em causa aquele saldo de caixa, e sem possibilidade de recuar àqueles anos para efetuar a sua contagem física no sentido de o validar ou infirmar (a ação inspetiva aos anos de 2007 e 2008 decorreu no ano de 2010), nenhuma consequência tributária poderia ser retirada nesse momento.

      Nestas circunstâncias, qualquer sugestão para a regularização do saldo de caixa caso o mesmo não se apresentasse em conformidade com os valores da contabilidade e das declarações fiscais, teria forçosamente que ter consequências fiscais ou passar pela sua reposição física no caso de ter sido utilizado para quaisquer fins não documentados e não evidenciados, por tal motivo, na contabilidade.

      Porque na realidade, nada obsta a que exista efetivamente e a contabilidade reflita um saldo de caixa elevado durante vários anos. Ainda que se possa questionar a congruência económica de tal opção para aplicação de disponibilidades, isso não basta para abalar a presunção de verdade a que alude o artigo 75º da LGT.

      A alegada sugestão para regularização do saldo do caixa a que o sujeito passivo se refere, teria, necessariamente, implicações ao nível da tributação, hipótese que o sujeito passivo não equacionou quando optou por uma solução incorreta do ponto de vista contabilístico e fiscal. Contabilisticamente, reconheceu um goodwill gerado internamente, o que afeta negativamente a imagem verdadeira e apropriada da empresa e viola a NCRF 6. Fiscalmente, a saída de dinheiros do caixa sem justificação documental e sem identificação dos destinatários tem implicações ao nível da tributação, sendo considerada uma despesa não documentada, sujeita a tributação autónoma à taxa de 60%, de acordo com o n.º1 e 14º do artigo 88º do CIRC.

 

e)      Na sequência da acção inspectiva a Administração Tributária e Aduaneira emitiu a liquidação de IRC n.º 2016…, datada de 16-12-2016, referente ao exercício de 2012, cujo teor se dá como reproduzido, em que é aumentado em € 111.000,00 o valor das tributações autónomas e são liquidados juros compensatórios no valor de € 15.704,21;

f)      Em 2010, foi realizada uma acção inspectiva à Requerente, relativa aos exercícios de 2007 e 2008, em que foi elaborado um Projecto de Relatório, parcialmente reproduzido no documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:

       20. análise da conta 111 • Caixa nos exercícios de 2007 e 2008, dos seus movimentos e respectivos saldos; verificou-se, como aliás já foi referido no ponto II.3.5, a existência de saldos devedores extremamente elevados, que o sócio-gerente reconheceu serem fictícios e influenciados, entre outras coisas, pelo pagamento "por fora" de horas extraordinárias aos seus colaboradores ao longo de vários anos anteriores; em termos de saldos, esta conta teve o seguinte comportamento entre 2006 e 2008:

 

g)     Não foram efectuadas pela Requerente no exercício de 2012 despesas não documentadas no montante de € 185.000,00, tendo algumas das despesas a que se reporta esse valor sido efectuadas antes de 2010, pelo menos;

h)     Em 12-04-2017, a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral e no processo administrativo.

Não se provou que a quantia de € 185.000,00 que foi objecto "regularização" do saldo de caixa em 2012, tenha saído da disponibilidade da Requerente no ano de 2012 ou corresponda a pagamentos relativos à sua actividade nesse exercício.

Na verdade, o facto de na acção inspectiva a Administração Tributária e Aduaneira ter constatado «a existência de saldos devedores extremamente elevados» acompanhada da referência à explicação que então foi dada pelo sócio-gerente que «reconheceu serem fictícios e influenciados, entre outras coisas, pelo pagamento "por fora" de horas extraordinárias aos seus colaboradores ao longo de vários anos anteriores», leva a concluir que os valores do saldo de caixa encontrados em 2012 se reportavam, pelo menos em parte, a períodos anteriores a 2010.

A testemunha inquirida corrobora esta conclusão.

Não foi produzida qualquer prova de que esse montante de € 185.000,00 corresponde a despesas efectuadas em 2012, designadamente em 29-02-2012, constando-se apenas o movimento contabilístico referido.

A presunção de veracidade das declarações e contabilidade da Requerente, estabelecida no artigo 75.º, n.º 1, da LGT é afastada, nos termos da alínea a) do seu n.º 2, quando resulta com evidência da prova produzida que a escrita não está devidamente organizada, designadamente com todos os lançamentos que deveriam ter sido efectuados e respectivos documentos justificativos, como exige o artigo 123.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do CIRC.

De qualquer forma, no caso em apreço, o facto de já na inspecção realizada em 2010 se ter constado a existência de um saldo de caixa anormalmente elevado permite concluir que pelo menos parte do valor de € 185.000, se reportava a despesas efectuadas antes do ano de 2012, designadamente antes da inspecção realizada em 2010.

 

 

3. Matéria de direito

 

3.1. Vício de erro sobre os pressupostos de facto

 

O primeiro vício imputado pela Requerente ao acto impugnado é o de erro sobre os pressupostos de facto, por não se ter «provado que no exercício de 2012 tenham sido registadas despesas e que estas não estejam suportadas por documentos emitidos na forma legal».

O erro sobre os pressupostos de facto ocorre quando há divergência entre a realidade e a matéria de facto utilizada como pressuposto na prática do acto.

O erro sobre os pressupostos de facto constitui vício de violação de lei, uma vez que, sendo os poderes legais exercidos no acto administrativo atribuídos para serem exercidos em determinadas condições, está em dissonância com a lei o seu uso em situações fácticas que não correspondem àquelas que estiveram subjacentes à atribuição de tais poderes. ( [1] )

No caso em apreço, como fundamento da liquidação refere-se no Relatório da Inspecção Tributária que a contabilidade da Requerente «reflete um decréscimo de 185.000,00 euros no saldo de caixa contabilizado, pelo que, a falta de identificação do(s) destinatário(s) e a falta da comprovação da natureza da operação e do fim para que reverteu a verba citada, terá que ser considerada como uma despesa não documentada com incerto(s), que consubstancia um facto tributário sujeito a tributação autónoma, à taxa de 60%, conforme disposições conjugadas dos n.ºs 1 e 14 do artigo 88.º do CIRC».

O n.º 1 deste artigo 88.º estabelece que «as despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos do artigo 23.º».

O n.º 14 do mesmo artigo estabelece que «as taxas de tributação autónoma previstas no presente artigo são elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período de tributação a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores».

O IRC, em que se incluem as tributações autónomas previstas no artigo 88.º do CIRC, «é devido por cada período de tributação, que coincide com o ano civil» (artigo 8.º, n.º 1, do CIRC) ( [2] )

Assim, as despesas não documentadas que são tributadas autonomamente com referência ao exercício de 2012 são as que foram efectuadas nesse ano, aquelas que, nos termos do n.º 1 do artigo 88.º, não são consideradas gastos desse período de tributação e que sofrem agravamento, nos termos do n.º 14, por nesse período de tributação ter havido prejuízo fiscal. [3]

Interpretando a fundamentação invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira à ACE do enquadramento jurídico que lhe foi dado, conclui-se que se entendeu que o «decréscimo de 185.000,00 euros no saldo de caixa contabilizado» e «a falta de identificação do(s) destinatário(s) e a falta da comprovação da natureza da operação e do fim para que reverteu a verba citada» que se considerada «como uma despesa não documentada com incerto(s)» terá ocorrido no ano de 2012, pois só as despesas efectuadas neste período de tributação podem ser tributadas com referência a esse exercício.

A Administração Tributária e Aduaneira no Relatório da Inspecção Tributária entendeu que «a retirada de meios financeiros da empresa no momento em que tal facto foi evidenciado na contabilidade, ou seja, em 2012», mas essa conclusão só poderia basear-se numa presunção de correspondência da contabilidade à realidade que, neste caso, foi ilidida, pois provou-se que a retirada de, pelo menos, parte dos meios financeiros cuja falta foi evidenciada na contabilidade em 2012, ocorreu em anos anteriores.

Sendo assim, tem de se concluir que a liquidação de tributação autónoma impugnada assenta em erro sobre os pressupostos de facto, pois a prova produzida conduz firmemente à convicção de que pelo menos parte do montante de € 185.000 do saldo de caixa contabilizado em Fevereiro de 2012 se reportava a despesas não documentadas efectuadas em anos anteriores, pelo menos anteriores à inspecção realizada em 2010.

Pelo exposto, conclui-se que a liquidação impugnada enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto.

Este vício justifica a anulação da liquidação impugnada, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável, por força do disposto no artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

3.2. Questões de conhecimento prejudicado

 

Assegurando o vício de erro sobre os pressupostos de facto eficaz e estável tutela dos interesses da Requerente, fica prejudicado, por ser inútil, o conhecimento das restantes questões colocadas no pedido de pronúncia arbitral.

 

 

4. Decisão

 

Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

a)      Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)      Anular a liquidação adicional de IRC (tributações autónomas) n.º 2016…, de 16-12-2016, efectuada com referência ao exercício de 2012, no montante de € 111.000,00, e da liquidação de juros compensatórios n.º 2016…, efectuada conjuntamente, no montante de € 15.704,21.

 

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 126.704,21.

 

6. Custas

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 11-12-2017

Os Árbitros

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

(José Joaquim Monteiro Sampaio e Nora)

 

(Sofia Cardoso)



[1]             MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, volume I, 10.ª edição, página 503, refere que «está implícita na lei ou constitui princípio geral de direito a norma segundo a qual os factos que sirvam de causa a um acto administrativo devem sempre ser verdadeiros».

                Na mesma linha, SÉRVULO CORREIA, Noções de Direito Administrativo, página 467, e MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo, página 303.

[2]             Sem prejuízo de excepções que não relevam para o caso em apreço.

[3]             No sentido de que as despesas não documentadas são «encargos ou despesas suportadas pelo sujeito passivo que em termos contabilísticos afectam o resultado líquido do exercício, diminuindo-o», pode ver-se o acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 28-01-2009, processo n.º 0575/08.