Os árbitros Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Prof. Doutor Tomás Castro Tavares designado pela A… e Dr.ª Maria Manuela do Nascimento Roseiro designada pela AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 9-12-2013, acordam no seguinte:
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Relatório
A..., SGPS, NIPC …, apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
No exercício da opção de designação de árbitro prevista na alínea b) do n.º 2 do 6.º do RJAT e, em cumprimento do disposto na alínea g) do n.º 2 do artigo 10.º e no n.º 2 do artigo 11.º, igualmente do RJAT, o Requerente designou como Árbitro o Prof. Doutor Tomás Castro Tavares.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 19-09-2013.
Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º e do n.º 3 do artigo 11.º do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, e dentro do prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, o dirigente máximo do serviço da Administração Tributária designou como Árbitro a Dr.ª Maria Manuela do Nascimento Roseiro.
De acordo com o disposto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do CAAD notificou a Requerente da designação do Árbitro pelo dirigente máximo do serviço da Administração Tributária, e notificou os árbitros designados pelas partes para designarem o terceiro árbitro que assume a qualidade de árbitro presidente.
Em 02-12-2013, e em conformidade com o disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, os Árbitros designados pelas partes acordaram remeter para o Conselho Deontológico a designação do terceiro árbitro, que assumiria as funções de Presidente.
Em 04-12-2013, o Conselho Deontológico designou o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa como árbitro Presidente, que aceitou a designação no prazo legal aplicável.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes dessa designação em 04-12-2013.
Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 7 artigo 11.º do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, o Senhor Presidente do CAAD comunicou às Partes que o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 19-12-2013.
O pedido formulado pela Requerente visa a declaração de ilegalidade da demonstração de liquidação de retenções na fonte de Imposto sobre o Rendimento (IR) n.º … e a respectiva demonstração de liquidação de juros compensatórios n.º …, ambas referentes ao exercício de 2009.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que termina pedindo que o pedido de pronúncia arbitral ser julgado improcedente por não provado.
No dia 03-02-2014, o Tribunal notificou as partes para e pronunciarem, por escrito, sobre a tramitação processual.
A Requerente pronunciou-se, por escrito, no sentido de dever ser dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RAJT, não se lhe afigurando necessária a realização de prova testemunhal. Mais referiu o Requerente não prescindir da realização de alegações, preferindo a respectiva realização por escrito.
Igualmente por escrito, a Requerida pronunciou-se no sentido de prescindir da inquirição da testemunha por si arrolada. Mais referiu a Requerida que não prescindia da realização de alegações que deveriam ser realizadas oralmente.
Em 13-3-2014, realizou-se reunião para a realização de alegações orais. Nesta reunião, com o acordo das Partes, foi fixado um prazo de cinco dias para a Autoridade Tributária e Aduaneira juntar aos autos cópia da declaração modelo 22 apresentada pela Requerente, referente ao exercício de 2009.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
2. Objecto do litígio
No âmbito de uma acção de Inspecção Tributária, foi determinada a aplicação da cláusula geral antiabuso prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, por estar em causa a transmissão para a Requerente de 80.100 acções representativas do capital social da B… (doravante B…) efectuada em 13-02-2009, pelo preço de € 9.612.000,00, quantia esta com que a Requerente foi financiada através de prestações suplementares realizadas pelos accionistas na proporção da respectiva participação social.
Considerou a Autoridade Tributária e Aduaneira que, em decorrência da valorização das acções transmitidas acima do valor nominal, o reembolso diferido no tempo da referida quantia a título de prestações suplementares, à medida da ocorrência da distribuição de dividendos pela B..., assume, fiscalmente, a natureza de dividendos que, por tranches, vão sendo pagos aos accionistas evitando qualquer tipo de tributação em sede de IRS.
Em consequência, os serviços de inspecção tributária procederam à desconsideração e posterior requalificação como dividendos, para efeitos fiscais, dos reembolsos das prestações suplementares efectuados aos accionistas em 2009, na parte em que excederam o valor nominal das acções alienadas, quantificando a vantagem fiscal indevidamente obtida no montante total de € 78.108,84, a que acrescem juros compensatórios no valor de € 12.054,84.
A Requerente defende, em suma, a ilegalidade da aplicação da cláusula geral antiabuso, que a correcção de preços de transacções não pode ser efectuada ao abrigo desse regime, mas apenas o dos preços de transferência e que estava obrigada a observar o preço de mercado na aquisição das acções, por força do artigo 63.º do CIRC, na redacção vigente em 2008 e pede que seja declarada a ilegalidade dos actos de liquidação de IRS e juros compensatórios, bem como atribuída uma indemnização nos termos do artigo 53.º da LGT.
A Autoridade Tributária e Aduaneira defende no presente processo, em suma, que se verificam todos os requisitos necessários para aplicação da cláusula geral antiabuso, designadamente:
i) infere-se que o elemento meio, que se traduz na via utilizada para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal, se encontra totalmente preenchido, conforme consta do Relatório Final de Inspecção e da Informação …, da Direcção de Serviços de Planeamento e Coordenação da Inspecção Tributária (DSPCIT);
ii) infere-se que o elemento resultado, que corresponde à vantagem fiscal e equivalência económica obtidas, se encontra totalmente preenchido, conforme consta do Relatório Final de Inspecção e da Informação ..., da DSPCIT;
iii) infere-se que o elemento intelectual, que corresponde à motivação exclusiva ou predominantemente fiscal do contribuinte, se encontra totalmente preenchido, conforme consta do Relatório Final de Inspecção e da Informação ..., da DSPCIT;
iv) infere-se que o elemento normativo, que representa a reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida, se encontra totalmente preenchido, conforme consta do Relatório Final de Inspecção e da Informação ..., da DSPCIT.
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Matéria de facto
3.1. Factos que se consideram provados
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A B...., (doravante (B…) tinha, em 13-2-2009, a seguinte estrutura accionista:
…
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A Requerente A…, SGPS, S.A. (A…, SGPS) é uma sociedade gestora de participações sociais constituída em 30-10-2008, com o capital de € 50.000, distribuído pelos seguintes accionistas:
…
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Em 13-02-2009 os accionistas …, … e … procederam à venda de 80.100 acções da sociedade B… à A...,SGPS, nos seguintes termos:
….
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As 80.100 acções referidas eram detidas pelos vendedores há mais de um ano;
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De acordo com a informação fornecida pela A...,SGPS à Inspecção Tributária, e que também consta da acta n.º 1 da assembleia geral da A...,SGPS "...a compra de 80.100 acções da B… (...) consubstancia a orientação estratégica da A…, SGPS, SA que consiste na detenção de uma participação qualificada na B... e posterior participação em empresas que de alguma forma complementem a actividade de gestão e investimento imobiliário.". Foi também esclarecido que a detenção das 80.100 acções através da A...,SGPS é uma opção de gestão, não tendo sido motivada por nenhum constrangimento ou obrigação legal de constituição de um grupo dominado por uma holding SGPS.
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Foi deliberada pela A...,SGPS e acordada com os vendedores a aquisição das 80.100 acções da B... "...pelo valor de € 9.612.000,00 reflectindo um valor de € 120,00 por acção, a serem pagos integralmente no acto da transacção, realizando os accionistas da sociedade prestações acessórias de capital com natureza de suplementares, para fazer face a esta aquisição".
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As acções da B... tinham o valor nominal de 5 euros;
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Em 25-02-2009, a B... efectuou uma comunicação ao Banco de Portugal relativa às modificações nas participações imputáveis a cada um dos participantes na B..., através dos seus advogados …, em que se refere o seguinte:
"a operação de Transmissão das acções (...)processou-se nos seguintes moldes:
> Constituição da SGPS;
>Transferência de_80,100 acções, que correspondiam à soma das ações anteriormente detidas por cada um dos Participantes, para a SGPS, a qual passa a deter directamente 80,10% do capital social e direitos de voto, mediante um preço correspondente ao preço de mercado.
Os Participantes detêm, na SGPS, as seguintes acções e os seguintes direitos de voto, tendo em • conta o total de acções emitidas pela SGPS, que é de 50.000:
…
A percentagem de capital e a percentagem de direitos de voto detidos por cada Participante reflecte proporcionalmente a percentagem de capital social e o número de acções que cada um dos participantes detinha directamente na Sociedade antes da realização da operação.
Deste modo, os Participantes detêm, nesta altura, indirectamente na Sociedade, através da SGPS, uma percentagem de capital na Sociedade que é correspondente à que anteriormente detinham directamente."
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Manteve-se, após a transmissão das acções, a percentagem do capital social e direitos de voto que os accionistas vendedores passam a deter da B... por via indirecta, através da detenção directa da A...,SGPS, nos termos do seguinte quadro:
…
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No início do ano de 2009, a A...,SGPS tinha um capital social realizado de € 50.000,00 e não tinha proveitos ou receitas que lhe permitissem a aquisição de acções no montante de € 9.612.0000,00;
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O preço de compra das acções da B... foi pago aos accionistas vendedores na data da celebração do contrato de compra e venda das acções;
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Para a A...,SGPS poder pagar estas acções, no valor de €9.612.000,00, endividou-se junto dos próprios accionistas vendedores, que financiaram, na totalidade, a compra das suas próprias acções, através de prestações suplementares;
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Na acta da assembleia geral de 28-3-2009, da A...,SGPS refere-se o seguinte:
(...) tendo havido necessidade de dotar a "A… SGPS, SA, de fundos próprios, no montante necessário para prosseguir com a actividade que é o seu objecto social, propunha que fosse deliberada a ratificação das entregas que, a título voluntário, os accionistas fizeram sob a forma de prestações suplementares e capital, nas condições seguintes:
> Valor Euros 9.612.000,00 (nove milhões e doze mil autos)
> Natureza: prestações suplementares de capital prestadas na proporção de capital detido por cada accionista:
> Pagamento: no dia treze de Fevereiro de 2009;
> Remuneração: sem remuneração;
Posto à votação, foi a proposta de ratificação aprovada por unanimidade."
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Em 02-04-2009, foi deliberado em assembleia geral da A...,SGPS (acta n.º 3) o seguinte:
"Ponto único — Proposta de reembolso parcial de prestações suplementares de capital aos accionistas no montante de Euros 791.404,21 a realizar até 16 de Abril próximo.
[...] fruto dos resultados positivos da Sociedade no ano transacto e sua previsível continuação, estão á ser gerados fundos próprios a um ritmo que permitem encarar favoravelmente o reembolso parcial no montante de 791.404,21 Euros, das prestações suplementares de capital, pelo que [...] propunha que até ao dia dezasseis do Abril próximo fosse restituída aquela quantia aos accionistas, proporcionalmente ao valor das respectivas participações.
Posta, à votação, foi a mesma aprovada por unanimidade."
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Na conta da A...,SGPS no Banco … encontram-se reflectidos os movimentos de entrada e salda de dinheiro relativos à compra e pagamento das acções em 13-02-2009, bem como das entradas de dinheiro dos accionistas relativas a prestações suplementares;
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Pelo extracto bancário da conta aberta pela A...,SGPS no Banco… (anexo 12 ao relatório da Inspecção Tributária) verifica-se que a conta foi aberta directamente com as saídas de dinheiro a favor dos três accionistas intervenientes na venda das acções, no total € 9.612.000,00 [foi debitada uma comissão de € 1,80 e imposto de solo de € 0,07 por cada saída de valores a favor destes accionistas, no total de € 5,61); no mesmo dia foram efectuados créditos/entrada de valores nos mesmos montantes relativos a cada um dos três accionistas, no total de € 9.612.000,00, pelo que no final do dia a conta apresenta um saldo devedor de € 6,61 (custos com comissão e imposto de selo debitados pelo banco).
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As transferências efectuadas pela A...,SGPS a favor dos accionistas foram efectuadas na proporção da respectiva participação no capital social, cujo total das transferências líquidas de despesas e imposto de selo é de € 9.612.000,00.
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O valor da aquisição das acções de € 9.612.000,00 é igual ao valor das prestações suplementares e corresponde também ao total de débitos e créditos simultâneos efectuados na conta bancária da SGPS, com os descritivos referentes a transferências feitas pelos accionistas e para os accionistas.
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A actividade da A...,SGPS no ano de 2009 era de gestão e mera detenção de partes sociais, sendo os seus únicos proveitos/réditos relativas aos dividendos que recebeu relativamente às acções que detinha;
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Em 25-03-2009, a B... em assembleia geral (Ata nº 26, anexo 14 ao Relatório da Inspecção Tributária) deliberou a distribuição aos accionistas de dividendos no valor de € 1.235.025,29;
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Tendo a A...,SGPS uma participação de 80,10% do capital social da B..., os dividendos recebidos por esta foram de € 989.255,26 (€ 1.235.025,29 x 80,10%);
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Estes dividendos foram objecto de retenção na fonte no valor de € 197.851,05, pelo que o valor recebido pela A...,SGPS foi de € 791.404,21 tendo este valor sido creditado em 03-04-2009, na conta do Banco… da A...,SGPS (anexo 15 ao Relatório da Inspecção Tributária);
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Em 15-04-2009, foi efectuado o pagamento aos sócios a título de reembolso de prestações suplementares no total de € 791.404,20 (anexo 16 ao Relatório da Inspecção Tributária);
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Nos anos de 2009, 2010 e 2011 a A...,SGPS não teve quaisquer pessoas ao serviço da empresa;
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Conforme consta da declaração de Informação Empresarial Simplificada (IES) para os anos de 2009 e 2010 e balancete analítico acumulado em 31-12-2011, para o ano de 2011, a Requerente não incorreu em gastos com pessoal (anexo 17 ao Relatório da Inspecção Tributária).
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A 31-12-2011, a A...,SGPS não tinha instalações próprias ou equipamento administrativo, e não pagava renda pelas Instalações, nem dispunha de qualquer estrutura física e humana, sendo todos os serviços administrativos e financeiros desta sociedade assegurados pela B....
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A Requerente em 25-3-2009, adquiriu 8.895 acções da C... (acta n.º 2, junta à petição inicial com documento n.º 3);
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A Requerente, em 2010, constituiu a sociedade D.... (acta n.º 5, junta com o documento n.º 3 à petição inicial);
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Em 2010, a Requerente constituiu a sociedade E…. (acta n.º 8, junta com o documento n.º 3 à petição inicial);
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Em 6-5-2013, a Requerente deliberou adquirir 228.597 acções da sociedade F... (acta n.º 11, junta com o documento n.º 3 à petição inicial);
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Em 25-11-2010, a Requerente detinha 1386 acções da G…. (documento n.º 4 junto com a petição inicial, cujo teor se dá como reproduzido);
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Em 24-05-2012, a Requerente adquiriu acções da B... detidas por …, ao preço de € 119,52 por acção (contrato de compra e venda de acções junto como documento n.º 5 à petição inicial e artigo 38.º da petição inicial);
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Em 15-6-2010, a B... adquiriu à … 9.900 acções daquela, ao preço unitário de € 242,43 (documentos n.ºs 8 e para juntos com a petição inicial, cujos teores se dão como reproduzidos);
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Em Setembro de 2011, a Requerente participou na constituição da sociedade F… (acta n.º 7, junta com o documento n.º 3 à petição inicial);
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Foi realizada uma inspecção tributária de âmbito parcial à Requerente, relativa a retenções na fonte do ano de 2009;
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Por Despacho do Senhor Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira de 27-12-2012, foi autorizada a aplicação da cláusula geral antiabuso, manifestando concordância com a Informação n.º ..., cuja cópia consta do documento n.º 2 junto com a petição inicial, cujo teor se dá como reproduzido, de que consta, além do mais o seguinte:
3. Conclusões
Em conformidade com o disposto nos números 3 e 7 do artigo 63º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), na redacção da Lei n º 64-B12011, de 30 de Dezembro, a aplicação da disposição antiabuso constante do n.º 2 do artigo 30º da LGT, é prévia e obrigatoriamente autorizada peto Sr. Director Geral da AT, devendo a fundamentação conter:
- A descrição do negócio jurídico celebrado ou acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhe aplicam;
- A demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou ato com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais.
Ao nível da aplicação da disposição antiabuso "Não está nem pode estar – em causa a liberdade de escolha do contribuinte na conformação dos seus negócios, isto é, não está em causa o exercício da sua autonomia privada: o que se limita é a possibilidade de a vontade do contribuinte ser relevante no que respeita ao grau da sua operação fiscal" (Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 3a edição, Coimbra) 2007), Um dos limites à liberdade de gestão empresarial é o da substância e manutenção do sistema fiscal visando a satisfação das necessidades financeiras do Estado e demais entidades públicas no quadro de uma repartição justa do rendimento e da riqueza criados de acordo com o n.º 1 do artigo 103º da Constituição da República Portuguesa.
Os factos constantes da informação /relatório dos serviços de inspecção da Direcção de Finanças de … bem como a respectiva fundamentação ai expendida e que nesta informação se procurou relevar e sintetizar, demonstram de forma clara que a celebração dos negócios jurídicos e dos actos praticados pela A...,SGPS tiveram como fim único o de evitar a tributação de dividendos na esfera jurídica dos seus accionistas, que seria devida em caso de negócio jurídico de substância económica equivalente. Ou seja, em condições normais, sem a motivação estritamente fiscal que conduziu à pratica dos citados actos e negócios jurídicos realizados, os sócios da A...,SGPS pelos valores que receberam em 2009, a título de prestações suplementares seriam tributados em IRS por retenção na fonte à taxa aplicável para esse ano (artigos 5º n º 2 alínea h), 101º n.º 2 alínea a) e 71º n.º 3, alínea c) todos do Código do IRS e em vigor à data). A vantagem fiscal ascende para esse ano de 2009 a um total do € 78.180,84, sendo de relevar que, a vantagem fiscal futura, atento a que se encontram por reembolsar € 8.820.595,80 a titulo de prestações suplementares será de € 2.205.148,95 (à taxa actual de retenção na fonte de 25 %).
Em síntese, como resulta clara e expressamente da informação (relatório da inspecção tributária da DF de …, "o conjunto de negócios efectivamente concretizado teve como finalidade obstar à referida tributação, substituindo uma operação sujeita a imposto (distribuição de resultados) por outra isenta (reembolso de capital) mas preenchendo a mesma finalidade: disponibilizar recursos financeiros aos accionistas".
Quer a A...,SGPS, quer os accionistas que intervieram na operação de venda das acções da B... à A...,SGPS, foram notificados pelos serviços de inspecção da Direcção de Finanças de … para efeitos do exercido do direito de audição previsto no n º 4 do artigo 63º do CPPT, não tendo para o efeito, logrado por em causa os factos imputados, determinantes para a aplicação da cláusula geral antiabuso do n.º 2 do artigo 38º da LGT. A fundamentação para a não aceitação dos argumentos invocados em sede de direito de audição constam da Informação/relatório de 18 de Julho de 2012 dos mencionados serviços de inspecção que aqui se dá por integralmente reproduzida.
Não existindo um pedido de informação vinculativa sobre os factos em análise, nada obsta à aplicação da norma geral antiabuso prevista no n.º 2 do artigo 38º da LGT.
Assim, atento o quadro factual e jurídico descrito estão reunidos integralmente os pressupostos previstos no n.º 2 do artigo 38º da LGT pelo que, ao caso vertente será de aplicar a cláusula geral antiabuso aí prevista e consequentemente, ser apurado o imposto que se mostrar devido por cada um dos seguintes sujeitos passivos:
- A… -- SGPS (NIPC …),
- … (NIF….),
- … (NIF …)
- … (NIF …)
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No Relatório Final da Inspecção Tributária, cujo teor se dá como reproduzido, a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu, além do mais, o seguinte:
[...) estes fluxos financeiros recebidos pela A...,SGPS consistem no recebimento de dividendos da B..., os quais foram directa e totalmente utilizados no reembolso de prestações suplementares escriturados na contabilidade da A...,SGPS a favor dos seus accionistas.
Conclui-se que a vantagem da valorização das acções no momento da sua alienação à A...,SGPS é permitir a saída de fluxos financeiros relativos a distribuição de lucros da B... os quais são depois encaminhados para os accionistas a título de reembolso de prestações suplementares.
Verifica-se uma vantagem fiscal nos fluxos financeiros decorrentes da celebração destes negócios jurídicos: constituição da A...,SGPS e alienação das acções por um valor acima do valor nominal.
A celebração dos mesmos negócios jurídicos com a alienação das acções ao valor nominal teria como consequência dois momentos diferentes de distribuição de dividendos:
1. em primeiro lugar a distribuição de dividendos da B... à A...,SGPS, a qual pode estar dispensada de retenção na fonte (artigo 97º do CIRC) e também excluída de tributação em virtude da dedução a que se refere o artigo 51º do CIRC;
2. em segundo lugar a distribuição de dividendos da A...,SGPS aos seus accionistas, no entanto estes dividendos seriam tributados em sede do IRS de cada um destes accionistas como rendimento da Categoria E.
(...)
Em suma a ausência de indicadores objectivos, como sejam gastos com pessoal, imobilizado ou outro equipamento, demonstram a inexistência de meios humanos e técnicos, com que a A...,SGPS possa prosseguir o seu restrito objecto social pelo que, não possuindo a A...,SGPS qualquer estrutura física e humana, constata-se que todos os serviços administrativos e financeiros desta sociedade são assegurados pela B....
Esta situação conjugada com a coincidência/proximidade de datas entre a distribuição de dividendos da B... à A...,SGPS e reembolso de prestações suplementares aos accionistas, evidencia que é a B... e os seus accionistas maioritários (por via indirecta) que são a entidade decisora e gestora destas operações de valorização das acções, distribuição de dividendos e reembolso aos accionistas. O envolvimento dos accionistas é tão elevado, que não existe outra razão que não a fiscal para a valorização das acções acima do valor nominal no momento da sua venda à A...,SGPS.
Importa realçar e clarificar que não é a constituição da A...,SGPS, enquanto empresa holding, que a Administração Tributária coloca em causa mas tão somente os dividendos que ela recebe e que depois paga aos accionistas sob a forma de reembolso de prestações suplementares. Nesse sentido o acto tributário colocado em causa pela Administração Tributária encontra-se relacionado com o reembolso aos accionistas de prestações suplementares, que deviam contudo face aos elementos provados no presente relatório consubstanciar-se como recebimento de dividendos.
(...)
III – 6.4. Quantificação da vantagem fiscal obtida
Para melhor se demonstrar e compreender a dimensão da vantagem fiscal obtida na esfera dos accionistas, a qual não seria obtida sem utilização da valorização das acções alienadas à A...,SGPS acima do seu valor nominativo, procede-se à apresentação dos fluxos financeiros envolvidos nos cenários possíveis.
De realçar que em todos estes cenários não é colocada em causa a manutenção dos direitos de voto e percentagem no capital social dos accionistas na A...,SGPS, o único efeito na esfera da B... é, sempre e só, a redução dos capitais próprios.
Com a valorização das acções vendidas acima do valor nominal, os accionistas têm que prestar prestações suplementares para dotar a A...,SGPS de meios financeiros para poder pagar as acções e simultaneamente a sociedade constitui-se devedora dos accionistas nos mesmos montantes. Desta forma, e como credores da A...,SGPS os accionistas irão ser reembolsados das prestações suplementares de que são credores junto da sociedade, sendo que este reembolso não constitui qualquer rendimento, pelo que se encontra excluído de tributação. Em termos de fluxos financeiros em 2009, os rendimentos da A...,SGPS provêm da distribuição de dividendos efectuada pela B..., que de seguida procede ao reembolso dos accionistas.
As percentagens no capital social que os accionistas detêm na A...,SGPS são iguais aos que detêm, por via indirecta, na B.... Todas estas operações de compra de acções próprias pela B..., constituição e subscrição do capital social da A...,SGPS, prestação e reembolso de prestações suplementares dos/aos accionistas à A...,SGPS, foram sempre efectuadas com respeito pelos direitos de voto e percentagens no capital social.
A manutenção dos direitos de voto e percentagens no capital social, é o ponto essencial na constituição da A...,SGPS, tanto mais que o pacto social nos seus artigos 7º, 8º e 9.º (páginas 5 a 7 do anexo 19) prevê direitos de preferência na compra e venda das acções quer pela sociedade quer pelos restantes accionistas. Constata-se que no pacto social da nova sociedade A...,SGPS existem cláusulas em que se verifica o objectivo de manter o controlo da maioria dos direitos de voto e percentagens do capital social, não dependendo estas cláusulas da valorização das acções.
No quadro 7, demonstra-se a vantagem fiscal entre a valorização das acções acima do valor nominal, e consequente reembolso de prestações suplementares e a distribuição directa de dividendos da B... aos accionistas, via A...,SGPS.
Trata-se efectivamente de uma venda de acções em que, atendendo ao disposto no nº 2 do art. 38º da LGT, se vai desconsiderar para efeitos fiscais apenas a valorização da venda das acções acima do valor nominal. Não é colocada em causa a venda das acções pelo que não será de desconsiderar, para efeitos fiscais (nº 2 do art. 38º a LGT) o valor relativo ao reembolso do financiamento para pagamento das acções pelo seu valor nominal.
No momento do primeiro fluxo financeiro da A...,SGPS para os accionistas, a título de reembolso de prestações suplementares, no total de € 791.404,20, vai-se deduzir o valor relativo ao pagamento das acções valorizadas pelo seu valor nominal de €400.500,00.
Vendas das acções ao Valor Nominal: 80.100 x €5,00 = €400.500,00
…
(...)
De acordo com a legislação descrita, os reembolsos de prestações suplementares constituem actos dirigidos, por meios artificiosos, através da utilização desnecessária da valorização do preço de venda das acções acima do valor nominal, e com abuso das formas jurídicas, com vista à eliminação de imposto que seria devido se os dividendos provenientes dessas acções fossem pagos directamente aos accionistas que as detêm (por via directa ou indirecta), e que sem a valorização do preço de venda das acções acima do valor nominal, seriam correctamente tributados em sede de IRS.
Efectivamente a A...,SGPS ao transformar os dividendos que recebe em reembolso de prestações suplementares, produz um efeito de fuga ao imposto) pois este seria exigido se a empresa tivesse optado por uma distribuição directa de dividendos, com resultados económicos equivalentes.
A valorização do preço de venda das acções acima do valor nominal, não constitui qualquer mais-valia incorporando este conceito qualquer vantagem negocial que a sua valorização pode acarretar para qualquer das partes intervenientes, numa clara alusão de que a utilização desta valorização teve como única e principal finalidade um aproveitamento abusivo das formas legais com o intuito de obter rendimentos, que sem o uso de tais formas, ficariam sujeitos a tributação. -
A valorização do preço de venda das acções, acima do valor nominal teve um único, claro e inequívoco objectivo: a eliminação da carga fiscal sobre os respectivos dividendos.
Ao longo desta informação ficou demonstrado que era totalmente dispensável a venda das acções por um valor acima do valor nominal, para a concretização dos objectivos dos accionistas em termos de expansão das actividades de B....
Para tanto, atendendo ao disposto no mecanismo do artigo 63º do CPPT para aplicação da cláusula geral antiabuso, bem como atendendo ao entendimento da jurisprudência recente do Tribunal Central Administrativo do Sul (proc. 04255/10, de 15-02-2011, www.dgsi.pt), cumpre preencher os requisitos aí enumerados, que são:
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Elemento meio utilizado para a concretização da operação económica conducente à vantagem fiscal, que se relaciona com as formas utilizadas pelo contribuinte, por via dos actos e negócios jurídicos lícitos celebrados com que se propõe obter a redução ou eliminação do tributo;
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Elemento resultado obtido, respeitante à vantagem propriamente dita, à ilicitude do fim, à consequência fiscal pretendida pelo contribuinte, indissociável quer dos meios lícitos de que se socorreu, quer da motivação fiscal sobre que assenta a sua conduta;
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Elemento intelectual, respeitante à motivação fiscal que serviu de base à conduta do contribuinte para efeitos de redução ou eliminação da tributação, não obstante a sua actuação poder ter natureza exclusivamente fiscal ou não;
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Elemento normativo, respeitante à proibição legal de evasão fiscal, vertido nas normas de antiabuso, de que a Administração Tributária lança mão para neutralizar potenciais planeamentos fiscais agressivos e que merecem reprovação sob o ponto de vista normativo sistemático, uma vez "que para a obtenção de vantagens fiscais o contribuinte recorre a formas jurídicas manifestamente abusivas, cujo o efeito fiscal tem que ser desconsiderado.
(...)
Conforme já exposto, a Administração Tributária não coloca em causa a alienação das acções, o modo como as mesmas se valorizaram ou a constituição da A...,SGPS. São tudo actos e negócios lícitos.
É colocada antes em causa a razão de ser, a necessidade da referida valorização das acções valor nominal por contraposição ao valor efectivo da venda — uma vez que, atendendo à informação da B... junto do BP, aquando da dita alienação das acções para a A...,SGPS, os participantes detêm indirectamente, através da SGPS, uma percentagem de capital na B... que é correspondente à que anteriormente detinham directamente na B....
Considera-se preenchido o teor do artigo 38º nº2 da LGT" visto estar-se perante um negócio jurídico artificioso e fraudulento, uma vez que o acto de valorização das acções, no âmbito daquele negócio, que visava somente a finalidade já supra descrita, pode ser explicado por razões de natureza fiscal, e deve-se a razões da mesma natureza: a manifesta intenção de eliminação de oneração fiscal, por via da utilização e do aproveitamento abusivo da legitima constituição societária da A...,SGPS e do legitimo negócio da venda das acções.
(...)
Atendendo aos factos expostos e demonstrados nesta informação, propõe-se a desconsideração para efeitos fiscais destas operações, com a consequente tributação em sede de IRS, dos valores recebidos pelos accionistas, a título do reembolso de prestações suplementares como dividendos.
Tal como exposto no enquadramento fiscal dos dividendos, e de acordo com o artigo 102º nº 1 alínea a) do CIRS, a obrigação de proceder à retenção na fonte compete à A...,SGPS, uma vez que é esta entidade que coloca estes rendimentos à disposição dos accionistas.
A taxa de retenção para 2009 era de 20% conforme alínea c) do nº 3 do art. 71º do CIRS, com a redacção dada pelo Dec-Lei nº 192/2005 de 7 de Novembro.
A tributação dos dividendos distribuídos a sujeitos passivos residentes através da retenção na fonte à taxa liberatória prevista no art. 71º do CURC tem a natureza de pagamento por conta, atendendo a que se encontra prevista a opção pelo englobamento nos termos do art. 71º n.º 6 alínea c) do CIRS, com a redacção em vigor dada pela Lei nº 3-6/2010 de 28104 e art. 71º nº 6 alínea b) com a redacção anteriormente em vigor dada pelo DL 192/2005 de 7 de Novembro.
A obrigação de efectuar e entregar nos cofres do Estado a devida retenção na fonte compete à A...,SGPS, bem como os respectivos juros compensatórios.
O artigo 103º do CIRS tipifica a responsabilidade em caso de substituição, indicando a entidade a quem é exigível o imposto em falta, bem como os juros compensatórios, atendendo à qualidade de residente, ou não, em território português dos beneficiários destes rendimentos.
(...)
A utilização de presos de transferência não sé encontra prevista para a transformação de dividendos em reembolso de crédito; Além deste facto real e incontornável temos que o artº 63º do CIRC; no seu nº 1 define que "nas operações comerciais [...] efectuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade [...] com a qual esteja em situação de relações especiais devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente Idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis."
Não é de todo, o negócio em análise, contudo, também se conclui que, só se pode aplicar os preços de transferência tendo como padrão de referência operações independentes comparáveis em condições semelhantes, ou seja, aquelas que seriam praticadas numa operação similar e comparável em mercado aberto. Não obstante esta impossibilidade, o nº 2 do artº 63º CIRC prevê que "o sujeito passivo deve adoptar, para a determinação dos termos e condições [...] tendo em conta, designadamente, [...] a estratégia de negócio, e demais características relevantes dos sujeitos passivos envolvidos [...]."
De facto existem relações especiais entre os accionistas, a B... e a A...,SGPS, no entanto, não pode existir uma operação comparável de venda em bloco, da maioria do capital social, com o objectivo da manutenção de direitos de voto e percentagem de capital social dos mesmos accionistas, se realizada ou levada a cabo com uma entidade independente. Ou seja a estratégia de negócio realizada com esta venda das acções seria impossível de realizar, se as acções fossem alienadas a uma entidade independente.
Concluindo, para esta operação em concreto, de venda da maioria das acções, deixa de se poder verificar a condição indispensável prevista no final do nº 1 do artº 63º do CIRC, pelo que, além de não ser esse o negócio real em análise; também este facto impossibilita desde logo a aplicação dos preços de transferência.
Em conclusão não é de aplicar a norma antiabuso especifica dos preços de transferência, em virtude da proposta de aplicação da CGAA ser efectuada relativamente aos sucessivos actos e negócios jurídicos que culminam com a transformação de dividendos em reembolso de crédito.
A vantagem fiscal não decorre do preço da venda das acções mas da transformação de todo o valor da venda em dividendos que são transferidos da esfera patrimonial e jurídica da B... para a esfera jurídica e patrimonial dos accionistas e esta demonstração foi efectuada e provada factualmente ao longo de toda esta informação.
O facto da Administração Tributária entender que esta transferência de posição accionista cumpre o seu propósito através da transferência pelo valor nominal, deve-se ao facto de ser o valor nominal que serve de referência à determinação da percentagem de capital social e direitos de voto, que cada accionista detinha e vai continuar a deter (por via indirecta) na B.... É este o objectivo do negócio, e corresponde à verdade material da sequência de actos e negócios jurídicos efectuados pelos accionistas, não só enquanto accionistas mas sobretudo enquanto elementos dos órgãos de decisão e concretização da vontade real da B... e A...,SGPS.
(...)
Volta a frisar-se, não é apenas o processo de venda das acções, ou o valor das mesmas, ou a prestação simultânea de prestações suplementares, que é colocado em questão, mas todo o conjunto dos sucessivos actos e negócios jurídicos praticados, e que culminam com a obtenção de vantagens fiscais nos accionistas.
Constata-se que existem alternativas para que a sociedade com observância dos regimes de neutralidade fiscal previsto elencada a subscrição ou aumento do capital em espécie como uma forma alternativa de possibilitar a concretização deste objectivo declarado dos accionistas sem conduzir à elisão fiscal decorrente dos sucessivos actos e negócios jurídicos praticados pelos accionistas com o intuito de obter significativas vantagens fiscais. .
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Através de ofícios datados de 31-05-2012, o Relatório da Inspecção Tributária foi notificado à Requerente e aos accionistas da B... que venderam as acções, para efeitos de audição;
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A Requerente pronunciou-se sobre o Relatório da Inspecção Tributária tendo os referidos accionistas remetido para o que aquela alegou;
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Na sequência da audição, a Autoridade Tributária e Aduaneira manteve a sua posição de desconsiderar, para efeitos fiscais, os reembolsos efectuados aos accionistas a título de prestações suplementares, na parte em que o seu valor excedeu o valor nominal das acções adquiridas aos accionistas da B... considerando-os, nessa parte, como dividendos sujeitos a retenção na fonte de IRS, nos termos do artigo 71.º, n.º 1, alínea c), do CIRS, de que resultou dever ser liquidada a quantia de € 78.180,84, de acordo com o quadro seguinte:
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Em 03-04-2013, a Senhora Chefe de Equipa da Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de … proferiu o despacho que consta da primeira página do documento n.º 2 junto com a petição inicial, cujo teor se dá como reproduzido, reportando-se ao Relatório da Inspecção Tributária nele contido, de que consta o seguinte:
Confirmo.
Face ao despacho do Exmº Sr. Director Geral da AT de 2012/12/27, exarado na informação nº … da DSPCIT de 2012/12/10 e de acordo com o teor do presente relatório, encontram-se reunidos os pressupostos para aplicação da cláusula geral antiabuso constante no nº 2 do art. 38º da LGT.
Assim vai-se proceder ao apuramento do IRS em falta nos termos do art. 71º nº 1 alínea c) e art.98º, ambos do CIRS (redacção actual) e artigos 81º e 84º da LGT, pelo que foi apurado IRS no retido e não entregue nos cofres do Estado:
2009— Imposto em falta ... € 78.180,84
Foi elaborado o respectivo DC-único para efeitos das respectivas correcções.
À consideração superior.
…, 03 de abril de 2013
…
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Em 05-04-2013, a Senhora Chefe de Divisão da Inspecção Tributária – Departamento …, Divisão .., da Direcção de Finanças de … proferiu o despacho que consta da primeira página do documento n.º 2 junto com a petição inicial, cujo teor se dá como reproduzido, de que consta o seguinte:
«Concordo com o parecer da Chefe de Equipa, bem como, com o relatório da acção Inspectiva, em anexo.
Dos fundamentos deles constante resulta que se encontram verificados os pressupostos legais e de facto para mantendo-se a avaliação directa, proceder às correcções técnicas propostas, nos termos cios artigos 98.º e 101º do código do IRS, bem como dos artigos 81º e 84º da LGT nos montantes propostos.
Neste contexto, determina-se:
• A elaboração do documento correctivo para efeitos de liquidação;
• A notificação do contribuinte com remessa de cópia do relatório.
…, 5 Abril de 2013
A Chefe de Divisão
…»
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Em 23-04-2013, foi efectuada a liquidação de IRS n.º …, em que é sujeito passivo a Requerente, relativa a retenções na fonte de imposto do ano de 2009, no montante de € 78.180,84, e a liquidação de juros compensatórios n.º ..., no montante de € 12.054,84 (documento n.º 1 junto com a petição inicial, cujo teor se dá como reproduzido);
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Na declaração modelo 22 relativa ao ano de 2009, apresentada em 12-05-2010, a Requerente indicou a quantia de € 989.255,26 como «Rendimentos nos termos do artigo 46.º» (campo 232) e a quantia de € 197.896,21 como «Retenções na fonte» e «IRC a Recuperar» (campos 359 e 362);
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A Requerente prestou garantia bancária com o n.º …, emitida pelo Banco ..., para suspender o processo de execução fiscal n.º … instaurado para cobrança das quantias liquidadas pelas liquidação de IRS n.º ...e pela liquidação de juros compensatórios n.º ... (dos n.º 14 junto com a petição inicial, cujo teor se dá como reproduzido);
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Em 18-9-2013, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
3.2. Factos não provados
Não há factos relevantes para a decisão que não se tenham provado.
3.3. Fundamentação da matéria de facto
A matéria de facto foi fixada com base nos documentos n.ºs 1 e 2 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, no processo administrativo junto com a resposta e nas afirmações da Requerente que não foram controvertidas.
4. Matéria de direito
4.1. Interpretação do acto tributário
O processo arbitral tributário foi criado pelo RJAT como alternativa ao processo de impugnação judicial ( [1] ), pelo que, como este meio processual, está-se perante um contencioso de mera legalidade, em que se visa apenas a declaração de ilegalidade de actos dos tipos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do seu artigo 2.º.
Por isso, sendo actos dos tipos referidos o objecto do processo, a sua legalidade tem de ser aferida tal como foram praticados, com a fundamentação que neles foi utilizada, não sendo relevantes outras possíveis fundamentações que poderiam servir de suporte a outros actos, de conteúdo decisório total ou parcialmente coincidente com os actos praticados. São, assim, irrelevantes fundamentações invocadas a posteriori, após o termo do procedimento tributário em que foi praticado o acto cuja declaração de ilegalidade é pedida, inclusivamente as aventadas no processo jurisdicional.
Por isso, importa interpretar o acto cuja declaração de ilegalidade é pedida não quanto ao seu conteúdo decisório, mas também quanto à sua fundamentação, sendo esta uma tarefa prioritária quando, com sucede no caso em apreço, foram praticados mais que um acto de natureza administrativa, em sentido lato, antes do acto final de liquidação, designadamente o acto que autorizou a aplicação da cláusula geral antiabuso (acto administrativo em matéria tributária de tipo autorizativo) e o acto que definiu os termos da sua aplicação, aderindo à fundamentação do Relatório da Inspecção Tributária.
Tendo a liquidação concretizado o decidido, na sequência do Relatório da Inspecção Tributária, pelo acto de 05-04-2013, que determinou a correcção concordando com a fundamentação do Relatório [referido na alínea pp) da matéria de facto fixada], é a fundamentação do Relatório a que deve considerar-se relevante, pois foi a esta que este último acto aderiu.
A fundamentação do Relatório da Inspecção Tributária, porém, não é perfeitamente congruente, pois faz-se referência à totalidade de actos praticados, designadamente a criação da A...,SGPS, a transmissão para esta das acções ao preço que foi acordado, o financiamento da aquisição através de prestações suplementares e o subsequente reembolso parcial com os rendimentos recebidos da B... a título de dividendos.
Mas, no Relatório da Inspecção Tributária é inequívoco que não se entendeu desconsiderar para efeitos fiscais todos esses actos, nem sequer qualquer deles na sua totalidade, tendo-se apenas entendido que o que consubstancia artifício que deve ser desconsiderado é a venda das acções a preço superior ao valor nominal (que a Autoridade Tributária e Aduaneira entende ser desnecessária para os accionistas vendedores atingirem o seu objectivo de ampliarem a sua actividade em relação à que a B…, e manterem proporcionalmente as respectivas posições que nesta detinham) e o correlativo reembolso das prestações suplementares na parte que excede o valor nominal. Na verdade, o entendimento fulcral da Autoridade Tributária e Aduaneira é o de que a valorização das acções acima do seu valor nominal só foi decidida para criar um crédito avultado dos accionistas em relação a Requerente para depois ser pago como reembolso de prestações suplementares e não como distribuição de dividendos.
É isso que se depreende dos seguintes pontos do Relatório da Inspecção Tributária [alínea kk) da matéria de facto fixada]:
«Conclui-se que a vantagem da valorização das acções no momento da sua alienação à A...,SGPS é permitir a saída de fluxos financeiros relativos a distribuição de lucros da B... os quais são depois encaminhados para os accionistas a título de reembolso de prestações suplementares».
«Verifica-se uma vantagem fiscal nos fluxos financeiros decorrentes da celebração destes negócios jurídicos: constituição da A...,SGPS e alienação das acções por um valor acima do valor nominal».
«Para melhor se demonstrar e compreender a dimensão da vantagem fiscal obtida na esfera dos accionistas, a qual não seria obtida sem utilização da valorização das acções alienadas à A...,SGPS acima do seu valor nominativo, procede-se à apresentação dos fluxos financeiros envolvidos nos cenários possíveis».
«Com a valorização das acções vendidas acima do valor nominal, os accionistas têm que prestar prestações suplementares para dotar a A...,SGPS de meios financeiros para poder pagar as acções e simultaneamente a sociedade constitui-se devedora dos accionistas nos mesmos montantes. Desta forma, e como credores da A...,SGPS os accionistas irão ser reembolsados das prestações suplementares de que são credores junto da sociedade, sendo que este reembolso não constitui qualquer rendimento, pelo que se encontra excluído de tributação. Em termos de fluxos financeiros em 2009, os rendimentos da A...,SGPS provêm da distribuição de dividendos efectuada pela B..., que de seguida procede ao reembolso dos accionistas».
«Trata-se efectivamente de uma venda de acções em que, atendendo ao disposto no nº 2 do art. 38º da LGT, se vai desconsiderar para efeitos fiscais apenas a valorização da venda das acções acima do valor nominal. Não é colocada em causa a venda das acções pelo que não será de desconsiderar, para efeitos fiscais (nº 2 do art. 38º a LGT) o valor relativo ao reembolso do financiamento para pagamento das acções pelo seu valor nominal».
«A valorização do preço de venda das acções, acima do valor nominal teve um único, claro e inequívoco objectivo: a eliminação da carga fiscal sobre os respectivos dividendos.
Ao longo desta informação ficou demonstrado que era totalmente dispensável a venda das acções por um valor acima do valor nominal, para a concretização dos objectivos dos accionistas em termos de expansão das actividades de B.... ».
«Atendendo aos factos expostos e demonstrados nesta informação, propõe-se a desconsideração para efeitos fiscais destas operações, com a consequente tributação em sede de IRS, dos valores recebidos pelos accionistas, a título do reembolso de prestações suplementares como dividendos».
«A vantagem fiscal não decorre do preço da venda das acções mas da transformação de todo o valor da venda em dividendos que são transferidos da esfera patrimonial e jurídica da B... para a esfera jurídica e patrimonial dos accionistas e esta demonstração foi efectuada e provada factualmente ao longo de toda esta informação».
«Volta a frisar-se, não é apenas o processo de venda das acções, ou o valor das mesmas, ou a prestação simultânea de prestações suplementares, que é colocado em questão, mas todo o conjunto dos sucessivos actos e negócios jurídicos praticados, e que culminam com a obtenção de vantagens fiscais nos accionistas».
Por outro lado, é certo que, a final, acaba por se desconsiderar apenas parcialmente o reembolso das prestações suplementares, considerando que ele apenas constitui reembolso na parte que corresponde ao valor nominal das acções e desconsiderando-o como tal na parte excedente, considerando que se trata, nesta parte de pagamento de dividendos.
Por isso, a interpretação congruente da fundamentação do Relatório da Inspecção Tributária é a de que não foi considerado como meios artificiosos ou fraudulentos, para efeitos do artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, todo o conjunto de operações referidas, mas apenas a valorização das acções acima do seu valor nominal efectuada com o objectivo de criar um crédito avultado de prestações suplementares susceptível de ser utilizado para efeito de pagamento de quantias aos accionistas a título de reembolsos evitando a tributação que indiciaria sobre esse pagamento se fosse efectuado a título de dividendos.
4.2. Questão de saber se a posição assumida é compatível com a aplicação da cláusula geral antiabuso e obrigatoriedade de observância do preço de mercado em vez do valor nominal
É esta a primeira questão de direito que é colocada pela Requerente que defende, além do mais, que a decisão da Autoridade Tributária e Aduaneira de desconsiderar apenas parte do valor das acções no reembolso das prestações suplementares não se compagina com o que é permitido pela cláusula geral antiabuso.
Defende a Requerente que a consideração de um preço de uma transacção diferente do efectivamente praticado seria caso de aplicação do regime de preços de transferência, previsto no artigo 63.º do CIRC, na redacção vigente em 2009, e que esta norma lhe impunha realizar a transacção pelo valor real.
O artigo 38.º, n.º 2, da LGT, sob a epígrafe «Ineficácia de actos e negócios jurídicos», estabelece o seguinte:
2. São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.
Estabelecem-se nesta norma as condições em que se pode determinar, para efeitos fiscais, a ineficácia de actos ou negócios jurídicos, e, verificadas essas condições, efectua-se a «a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência».
No caso em apreço, a tributação decidida pela Autoridade Tributária e Aduaneira não se baseou na ineficácia de qualquer acto ou negócio jurídico nem a tributação se fez de acordo com as normas aplicáveis na ausência de qualquer dos negócios jurídicos praticados pelas sociedades A...,SGPS e B... e seus accionistas.
Na verdade, não foi desconsiderada a criação da SGPS, nem a transmissão das acções para esta, nem a constituição de prestações suplementares, nem o seu reembolso, já que a Autoridade Tributária e Aduaneira aceita que, até ao limite do valor nominal das acções, que todos os actos são de considerar relevantes para efeitos fiscais.
O que a Autoridade Tributária e Aduaneira fez reconduz-se, antes, a ficcionar que dos actos praticados, designadamente a venda das acções, foi concretizado em condições diferentes das que se comprovou ter sido praticado, pois só assim o crédito de prestações suplementares pode ser restringido ao valor nominal das acções e só assim o pagamento de quantias aos accionistas pode deixar de ser considerado reembolso dos créditos que as prestações suplementares consubstanciam.
Mas, considerando que, para os efeitos fiscais em causa, deve considerar-se que a transmissão das acções ocorreu com um preço diferente do que foi praticado, não se está a aplicar o regime previsto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, pois, por um lado, não se considera ineficaz qualquer dos negócios praticados, atribuindo-se antes eficácia a um dos negócios praticados como se tivesse sido praticado em termos diferentes, e, por outro lado, a tributação não foi feita à face das normas que seriam aplicáveis na ausência desse negócio, como se refere na parte final do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, mas sim com base num negócio diferente.
Na verdade, o que se permite neste artigo 38.º, n.º 2, é apenas que se considerem ineficazes actos ou negócios que foram praticados, que se faça a tributação como se eles não tivessem sido praticados, e não que seja feita tributação com base num negócio não praticado ficcionando que ele ocorreu em circunstâncias diferentes daquela em que ele ocorreu realmente.
O princípio da legalidade, que deve ser observado pela administração tributária na globalidade da sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT), é actualmente definido no art. 3.º do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável ao procedimento tributário por força do disposto na alínea c) do artigo 2.º da LGT, com um conteúdo positivo, nos termos qual «os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes forem conferidos».
Nesta formulação, o princípio da legalidade deixou de ter «uma formulação unicamente negativa (como no período do Estado Liberal), para passar a ter uma formulação positiva, constituindo o fundamento, o critério e o limite de toda a actuação administrativa». ( [2] )
«A lei não é apenas um limite à actuação da Administração: é também o fundamento da acção administrativa. Quer isto dizer que, hoje em dia, não há um poder livre de a Administração fazer o que bem entender, salvo quando a lei lho proibir; pelo contrário, vigora a regra de que a Administração só pode fazer aquilo que a lei lhe permitir que faça». ( [3] ) ( [4] )
Assim, é de concluir que a invocação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT para ficcionar que uma venda de acções foi efectuada com base em preço inferior ao que foi praticado, não tem cobertura legal, pelo que é ilegal.
De facto, como defende a Requerente, a possibilidade de considerar que o preço de uma transacção foi diferente do praticado apenas estava prevista no artigo 63.º do CIRC, que, no seu n.º 1, estabelecia que «nas operações comerciais, incluindo, designadamente, operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou serviços, bem como nas operações financeiras, efectuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis» e, no seu n.º 8, que «sempre que as regras enunciadas no n.º 1 não sejam observadas, relativamente a operações com entidades não residentes, deve o sujeito passivo efectuar, na declaração a que se refere o artigo 120.º, as necessárias correcções positivas na determinação do lucro tributável, pelo montante correspondente aos efeitos fiscais imputáveis a essa inobservância».
Mas, esta possibilidade de consideração para efeitos fiscais de termos ou condições de operações comerciais ou financeiras diferentes dos que foram efectivamente acordados, apenas está prevista para situações em que se comprove que dos termos e condições adoptados resulta uma diminuição do lucro tributável e para efeitos da sua determinação (como se infere da referência que consta do n.º 8 às «correcções positivas na determinação do lucro tributável»), que não está em causa na situação em apreço.
Por outro lado, como bem refere a Requerente, o referido artigo 63.º impõe expressamente às entidades que estejam em relações especiais (nos termos definidos no seu n.º 4), que adoptem os termos e condições de plena concorrência, pelo que não pode entender-se que a fixação dos termos exigidos por aquela norma possa constituir um meio artificioso ou fraudulento para efeito da aplicação da cláusula geral antiabuso.
Na verdade, à face do princípio da unidade do sistema jurídico, que pressupõe a sua coerência axiológica e valorativa, e é erigido pelo artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil em elemento privilegiado da interpretação jurídica, se uma conduta que é explicitamente imposta por uma determinada disposição legal não pode, concomitantemente, ser considerada ilegal à face da interpretação de outra disposição que não se lhe refere expressamente, pelo que, em boa hermenêutica, a interpretação desta última tem de se compaginar com a primeira. Isto é, a interpretação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT não pode levar a ficcionar que uma operação financeira foi efectuada em dissonância com o princípio da plena concorrência, nos casos em que normas especiais impõem aos intervenientes na operação que aquele princípio seja observado.
Ora, no caso em apreço, é inequívoco à face da matéria de facto fixada, designadamente das alíneas ff) e gg), que o preço de € 120,00 por acção, que foi convencionado entre a Requerente e os accionistas da B... que lhe venderam as suas acções, se aproxima muito mais do preço que seria adoptado entre entidades sem relações especiais do que o preço de € 5,00 por acção, correspondente ao valor nominal, que a Administração Tributária ficcionou no caso em apreço, em manifesta dissonância com a realidade, já que os avultados lucros de que dispunha a B... apontam inequivocamente no sentido de o valor real das suas acções ser muito superior ao valor nominal.
Pelo exposto, tem de se concluir pela ilegalidade da actuação da Administração Tributária, por errada interpretação e aplicação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, o que constitui vício de violação de lei, que justifica a anulação dos actos de liquidação de IRS e juros compensatórios que tiveram como pressuposto essa aplicação (artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo).
4.3. Questões de conhecimento prejudicado
Concluindo-se que os actos de liquidação de IRS e juros compensatórios impugnados enfermam de vício de violação de lei que justifica a sua anulação, que confere à Requerente tutela efectiva da sua posição jurídica, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões atinentes à legalidade daqueles actos, por ser inútil [artigo 130.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].
5. Indemnização por garantia indevida
A Requerente pede ainda indemnização pelos encargos incorridos com a prestação de garantia com vista a suspensão do processo de execução fiscal referido na alínea ss) da matéria de facto fixada.
O art. 171.º do CPPT, estabelece que «a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda» e que «a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência».
Assim, é inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação.
O pedido de constituição do tribunal arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido art. 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.
Aliás, a cumulação de pedidos relativos ao mesmo acto tributário está implicitamente pressuposta no art. 3.º do RJAT, ao falar em «cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos», o que deixa perceber que a cumulação de pedidos também é possível relativamente ao mesmo acto tributário e os pedidos de indemnização por juros indemnizatórios e de condenação por garantia indevida são susceptíveis de ser abrangidos por aquela fórmula, pelo que uma interpretação neste sentido tem, pelo menos, o mínimo de correspondência verbal exigido pelo n.º 2 do art. 9.º do Código Civil.
O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do art. 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:
Artigo 53.º
Garantia em caso de prestação indevida
1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.
2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.
3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.
4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.
No caso em apreço, o erro que está subjacente aos actos de liquidação de IRS e juros compensatórios é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, pois a Requerente em nada contribuiu para que esse erro fosse praticado.
Não havendo elementos que permitam determinar o montante da indemnização, a condenação terá de ser efectuada com referência ao que vier a ser liquidado em execução do presente acórdão (artigo 609.º do Código de Processo Civil de 2013, e artigo 565.º do Código Civil).
6. Decisão
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
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Julgar procedentes os pedidos de declaração de ilegalidade e anulação das liquidações de IRS n.º ...e de juros compensatórios n.º ...;
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Julgar procedente o pedido de indemnização por garantia indevida e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente a indemnização que for liquidada em execução do presente acórdão, relativa às despesas com a garantia prestada para suspender o processo de execução fiscal n.º ....
7. Valor do processo
De harmonia com o disposto no art. 315.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 90.235,68.
Lisboa, 2 de Abril de 2014
Os Árbitros
(Jorge Manuel Lopes de Sousa)
(Tomás Castro Tavares)
(Maria Manuela do Nascimento Roseiro)
( [1] ) No n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que é a lei de autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o diploma que veio a ser o Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) estabelece-se que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária», mas este Decreto-Lei apenas atribuiu aos tribunais arbitrais tributários competências para anulação de actos, como decorre do seu artigo 2.º.
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( [2] ) FREITAS DO AMARAL, JOÃO CAUPERS, JOÃO MARTINS CLARO, JOÃO RAPOSO, PEDRO SIZA VIEIRA e VASCO PEREIRA DA SILVA, em Código do Procedimento Administrativo Anotado, 3.ª edição, página 40.
Em sentido semelhante, pode ver-se o primeiro Autor em Curso de Direito Administrativo, volume II, página 42.
( [3] ) FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, volume II, páginas 42-43.
Em sentido idêntico, podem ver-se:
– MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições de Direito Administrativo, 1999, volume I, página 84, que refere:
«Com o Estado pós-liberal, em qualquer das suas três modalidades, a legalidade passa de externa a interna.
A Constituição e a lei deixam de ser apenas limites à actividade administrativa, para passarem a ser fundamento dessa actividade.
Deixa de valer a lógica da liberdade ou da autonomia, da qual gozam os privados, que podem fazer tudo o que a Constituição e a lei não proíbem, para se afirmar a primazia da competência, a Administração Pública só pode fazer o que lhe é permitido pela Constituição e a lei, e nos exactos termos em que elas o permitem.».
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MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e J. PACHECO DE AMORIM, em Código do Procedimento Administrativo Comentado, volume I, 1.ª edição página 138, em que referem que
«As fórmulas usadas parecem manifestações inequívocas de que, para o legislador do Código, a actuação da Administração Pública é comandada pela lei, sendo ilegais não apenas os actos (regulamentos ou contratos) administrativos produzidos contra proibição legal, como também aqueles que não tenham previsão ou habilitação legal, ainda que genérica (ou até orçamental)».
– ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA, em Código do Procedimento Administrativo Anotado, página 56:
«Ora, este princípio não admite, contrariamente ao que sucede com os particulares, que seja possível à Administração tudo o que a lei não proíbe, antes impõe que apenas lhe seja possível aquilo que positivamente lhe seja permitido.»
( [4] ) Neste sentido, pode ver-se o acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de 24-11-2004, processo n.º 225/03.