Acordam os árbitros José Baeta de Queiroz (presidente), João Taborda da Gama (designado pela requerente) e Nuno Maldonado Sousa (indicado pela requerida):
I.RELATÓRIO
A…, S.A., anteriormente denominada B…, S.A., pessoa coletiva número…, com sede na Maia, abrangida pelos serviços periféricos locais do serviço de finanças da Maia, veio, em 08/11/2016, na qualidade de sociedade que sucedeu a título universal, por fusão , à C…, lda., pessoa coletiva n.º…, com sede em Loures , sociedade dominante e responsável pela autoliquidação do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) do grupo fiscal ao qual, no período de tributação de 2014, foi aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS), e que era composto por si e pelas sociedades B…, S.A. (hoje A…, S.A.), e D…, S.A. , invocando os artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, do decreto-lei n.º 10/2011 de 20 de janeiro (RJAT), e 1.º e 2.º da portaria n.º 112-a/2011 de 22 março, requerer constituição de tribunal arbitral, formulando o seguinte pedido:
«deve ser declarada a ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa supra melhor identificado e, bem assim, a ilegalidade da autoliquidação de IRC, incluindo taxas de tributação autónoma, do grupo fiscal E…, relativa ao exercício de 2014, no que respeita ao montante de taxas de tributação autónoma em IRC de € 350.421,21, com a sua consequente anulação nesta parte, por afastamento indevido das deduções à colecta, atenta a manifesta ilegalidade da liquidação nesta parte, com todas as consequências legais, designadamente o reembolso à requerente desta quantia, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal contados, até integral reembolso, desde 1 de setembro de 2015.
Subsidiariamente, caso se entenda que o artigo 90.º do CIRC não se aplica às tributações autónomas, deverá então ser declarada a ilegalidade da liquidação das tributações autónomas (e ser consequentemente anulada) por ausência de base legal para a sua efectivação (cfr. artigo 8.º, n.º 2, alínea a), da LGT, e artigo 103.º, n.º 3, da Constituição), com o consequente reembolso do mesmo montante e o pagamento de juros indemnizatórios contados da mesma data».
Designou como árbitro João Taborda da Gama, que oportunamente aceitou o encargo, o que igualmente aconteceu com o árbitro escolhido pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), Nuno Maldonado de Sousa, e com o árbitro presidente, José Baeta de Queiroz, indicado pelo Conselho Deontológico do CAAD.
O tribunal arbitral ficou constituído em 21/02/2017.
Notificada para o efeito, a AT respondeu, defendendo-se por impugnação, e juntou o pertinente processo administrativo.
Foi dispensada a reunião referida no artigo 18º do RJAT, por não se entender útil, e as partes convidadas a produzir alegações escritas, o que fizeram.
O tribunal designou o dia 21/06/2017 para prolação da decisão, adiada, depois, para 14/08/2017.
II.SANEAMENTO
O tribunal é o competente e foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas, e estão regularmente representadas.
Não há exceções, nulidades ou questões prévias que obstem à apreciação do mérito da causa.
III.FUNDAMENTOS DO PEDIDO
Alega a Requerente que apresentou a declaração de IRC Modelo 22 do seu Grupo Fiscal referente ao exercício de 2014, tendo procedido à autoliquidação de tributações autónomas em IRC, no montante € 350.421,21, sendo que apresentou ainda declaração de substituição que não alterou o que aqui se discute, e deduzido reclamação graciosa, a qual foi indeferida.
Impugna o indeferimento da reclamação graciosa e o apontado ato de autoliquidação de IRC do Grupo, na medida em que não admitiu a não dedução à parte da coleta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma do pagamento especial por conta efetuado em sede de IRC e, bem assim, de Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento (CFEI), do benefício ao abrigo do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial (SIFIDE) e do Regime Especial de Apoio ao Investimento (RFAI), o que originou imposto indevidamente liquidado no exercício de 2014 no valor de € 350.421,21, ou, subsidiariamente, na medida em que é indevida a liquidação de tributação autónoma.
O montante de SIFIDE disponível para utilização no final do exercício de 2014 ascendia a € 1.735.961,38, o de CFEI era de € 166.353,78, e o de RFAI de € 678.572,61.
Em sede de pagamentos especiais por conta (PEC) subsiste um montante acumulado por deduzir à coleta do IRC que ascende em 2014 a € 222.252,93.
Ora, a coleta de IRC prevista no (em vigor até 2013) artigo 45.º, n.º 1, alínea a), do CIRC, compreende as tributações autónomas em IRC, e a coleta prevista no artigo 90.º, n.º 1, e n.º 2, alíneas b) e c), do CIRC, na redação em vigor em 2013, alíneas c) e d) em 201,4 abrange também a das tributações autónomas em IRC. Donde que a negação da dedução do SIFIDE, CFEI, RFAI e PEC à coleta em IRC das tributações autónomas viole as alíneas c) e d) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC.
Entendendo-se que naquele artigo 90.º do CIRC não está incluída a coleta de IRC resultante das tributações autónomas (apurada nos termos do artigo 88.º), mas apenas a coleta de IRC resultante do lucro tributável (apurada nos termos do artigo 87.º), teria que se concluir que a liquidação da própria tributação autónoma é, por força quer do artigo 8.º, n.º 2, alínea a), da Lei Geral Tributária(LGT), quer do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Considerando-se não ser possível deduzir os benefícios fiscais para utilização, ou a dedução do PEC, aos montantes devidos a título de tributações autónomas, a sua liquidação não tem enquadramento na norma de liquidação do IRC consagrada no artigo 90.º do CIRC, então solicita, a título subsidiário, que seja anulada a autoliquidação do período de tributação de 2014 da C… e respetivo grupo fiscal, na parcela correspondente às tributações autónomas, pelo facto de as mesmas terem sido liquidadas e cobradas sem base legal para o efeito.
A Lei do Orçamento do Estado para 2016 (Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março reiterou que o artigo 89.º do CIRC se aplicava também à liquidação das tributações autónomas (parte 1 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC). Inexplicavelmente, não reiterou expressamente que o artigo 90.º do CIRC também se aplica à liquidação das tributações autónomas, o que, atendendo desde logo ao teor do seu n.º 1, que concretiza o que tinha sido anunciado no precedente artigo 89.º, a Requerente não entende.
O legislador em sede de LOE 2016 optou por afastar a aplicação de parte do disposto no artigo 90.º do CIRC para a coleta do IRC, à coleta da tributação autónoma em IRC (parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC).
Em contradição com o que é sugerido pelo texto do artigo 135.º da LOE 2016, no que ao n.º 21 do artigo 88.º do CIRC respeita, a LOE 2016 não se limitou a alterar uma pré-existente redação. O n.º 21 é por inteiro um novo preceito.
Defende que o legislador, quando atribuiu carácter interpretativo “à redação dada pela presente lei ao n.º 21 do artigo 88.º do CIRC”, o artigo 135.º da LOE 2016 quer referir-se à parte 1, e não à parte 2 do referido n.º 21.
O regime de aplicação de leis no tempo previsto no Código Civil (onde se inclui o seu artigo 13.º), não se aplica no que respeita a matérias que disponham de um regime privativo para o efeito, em obediência a princípios distintos, como é o caso (atualmente) dos impostos: cfr. artigo 12.º da LGT e artigo 103.º, n.º 3, da CRP.
Donde a conclusão de que a atribuição de natureza interpretativa a uma norma fiscal não desencadeia por si só a aplicação do regime de aplicação de leis no tempo previsto no Código Civil.
Quer o artigo 89.º, quer o artigo 90.º, n.ºs 1 e 2, do CIRC, referem-se ao IRC, a todo o IRC. Ambas as partes, 1 e 2, do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, não podem ser simultaneamente interpretativas do que dispõem os artigos 89.º e 90.º do CIRC, em sentidos opostos - no sentido de que o IRC do artigo 89.º inclui também as tributações autónomas (parte 1 do n.º 21 do artigo 88.º), e no sentido oposto de que o IRC do artigo 90.º, pelo menos o do seu n.º 2, não inclui as tributações autónomas. Só a parte 1 tem natureza interpretativa. A parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC tem carácter inovatório.
Caso se entenda (i) que o artigo 135.º da LOE 2016 (Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março) atribuiu natureza interpretativa também à parte 2 do novo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, isto é, também ao segmento normativo “não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global [de tributação autónoma em IRC] apurado”, introduzido pela mesma LOE 2016 (pelo seu artigo 133.º), (ii) e que daí resultaria a aplicação do artigo 13.º do Código Civil enquanto prescreve a aplicação retroativa das leis interpretativas, se esteja então perante uma inconstitucionalidade material do referido artigo 135.º da LOE 2016, por violação da proibição de retroatividades em matéria de impostos prevista no artigo 103.º, n.º 3 da Constituição, quer se tenha concluído, quer não (e entende que não), estar-se perante uma lei materialmente interpretativa, e por violação, também, do princípio da separação de poderes e do princípio da independência do poder judicial.
Violação, também, dos artigos 2.º, 111.º, n.º 1, 288.º, alínea j), 203.º, 288.º, alínea m), todos da CRP.
Por fim entende a Requerente que, tendo sido pago imposto em montante superior ao legalmente devido, declarada que seja a ilegalidade da (auto)liquidação na parte peticionada, tem direito não só ao respetivo reembolso, mas, também, ao abrigo do artigo 43.º da LGT, a juros indemnizatórios, calculados sobre € 350.421,21, que deveriam ter sido reembolsados até 31 de agosto de 2015, contados desde 1 de setembro de 2015. Invoca que o erro de que padece a (auto)liquidação resulta de erro dos Serviços sobre os pressupostos de direito que condicionou informaticamente o preenchimento das declarações (Modelo 22) de autoliquidação, agravado ainda pelo indeferimento da reclamação graciosa.
IV.FUNDAMENTOS DA AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
A AT contradiz os fundamentos alegados pela Requerente, reafirmando a posição assumida aquando da decisão da reclamação graciosa:
“(…) foi introduzido pelo artº 133º da Lei nº 7-A/2016, de 30 de março (Lei do OE para 2016), um nº 21 ao artº 88º do CIRC com a seguinte redacção: “A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efectuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.”
De acordo com o artigo 135º da mesma Lei, a referida alteração tem natureza interpretativa, interpretação que clarifica a forma de liquidação do IRC resultante da aplicação daquele artigo do CIRC, no sentido de que a esse imposto não são dedutíveis, entre outros, os benefícios fiscais mencionados na reclamação ou os pagamentos especiais por conta.
Defende que as tributações autónomas têm caracter autónomo, decorrente da especial configuração dada aos aspetos material e temporal dos factos geradores, o que impõe, em determinados domínios, o afastamento ou uma adaptação das regras gerais de aplicação do IRC.
O apuramento de forma independente das duas coletas implica que, num caso, se trate da aplicação da(s) taxa(s) do artigo 87.º do CIRC à matéria coletável determinada segundo as regras contidas no capítulo III do Código, i.e., tendo como ponto de partida o lucro da entidade e, no outro caso, se trate da aplicação das taxas aos valores das matérias tributáveis relativas às diferentes realidades contempladas no artigo 88.º do CIRC.
Quando, no processo de liquidação, há lugar ao apuramento de IRC com base na matéria coletável que tem por base o lucro e ao apuramento de tributações autónomas, o montante globalmente apurado, nos termos do alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º, não tem um carácter unitário, pelo que de tal diferenciação devem ser extraídas as necessárias consequências no plano das deduções previstas nas alíneas do n.º 2, no sentido de que só podem ser efetuadas à parte do coleta do IRC com a qual exista uma correspondência direta.
A delimitação do conteúdo da expressão utilizada pelo legislador no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, “montante apurado nos termos do número anterior”, e no n.º 1 do artigo 105.º do CIRC, “imposto liquidado nos termos do n.º 1 do artigo 90.º”, deve ser feita de forma coerente, - corresponde ao montante do IRC calculado mediante a aplicação das taxas do artigo 87.º à matéria coletável determinada com base no lucro e nas taxas do artigo 87.º do Código.
Também para as deduções à coleta a título de benefícios fiscais, o montante ao qual são efetuadas só pode respeitar ao imposto liquidado com base na matéria coletável determinada com base nas regras do capítulo III e das taxas previstas no artigo 87.º do CIRC sob pena de incongruência.
As normas que regulam a dedução dos benefícios fiscais ao investimento integram-se na estrutura do regime-regra do IRC, pelo que não são conciliáveis com a ratio legis das tributações autónomas nem com os respetivos factos geradores.
Eventuais dúvidas sobre a questão controvertida foram dissipadas com a natureza interpretativa atribuída pelo artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, ao disposto no n.º 21 aditado ao artigo 88.º do Código do IRC, pelo artigo 133.º da mesma Lei.
Quanto ao PEC, a sua natureza jurídica, revelada pela sua configuração como «instrumento ou garantia de pagamento do tributo por conta do qual é exigido, e não como imposição a se», bem como pela função que lhe está associada no combate à evasão e fraude fiscais, liga indissociavelmente este pagamento ao montante do IRC apurado sobre a matéria coletável determinada com base no lucro.
V.MATÉRIA DE FACTO
Factos assentes
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A A…, S.A., NIF…, como sociedade incorporante, foi destinatária da transferência global do património da sociedade incorporada C…, Lda., NIF…, através de fusão deliberada em 04.01.2016. [RI, endereço: doc. 1]
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A C…, Lda., NIF … era, em 2014, a sociedade dominante do grupo de sociedades de que também faziam parte as sociedades A…, S.A., NIF … e D…, S.A., NIF… . [RI, endereço. PA, II: 5]
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O grupo iniciou a tributação pelo RETGS em 01-01-2012, aplicando-se o regime ao exercício de 2012, sendo então composto pela C…, LDA., NIF … como sociedade dominante e pelas sociedades dominadas [R-AT, 7º. PA, II: 5].
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Em 29.05.2015 a C…, Lda., procedeu à apresentação da declaração de IRC Modelo 22 do exercício de 2014 (1ª declaração do período), indicando no respetivo quadro 4.2 que o regime de tributação era o dos “grupos de sociedades” e que ela era a sociedade dominante. [RI, 2º e 13º: doc. 3]
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Quando apresentou a declaração de IRC do exercício de 2014 em 29.05.2015 a C…, Lda., inscreveu no quadro 10 correspondente ao “cálculo do imposto”, na linha 365, referente a “tributações autónomas”, o montante de € 350.421,21. [RI, 2º: doc. 3]
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Em 26.05.2016 a C…, Lda., apresentou declaração de substituição relativa ao exercício de 2014 mantendo as suas declarações quanto ao regime de tributação e valor de tributações autónomas. [RI, 2º e 13º: doc. 4]
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Nas datas que se indicam a Comissão Certificadora para os Incentivos Fiscais à I&D Empresarial, emitiu declaração “para os efeitos do estatuído na Lei n.º 40/2005 de 3 de agosto – artigo 3º” onde certificou que a D…, S.A., NIF…, realizou atividades de investigação e desenvolvimento nos anos que se mencionam e recomendou a atribuição à empresa dos seguintes valores de crédito fiscal, que totalizam 921.060,61 €:
[RI, 16º: doc. 7, p. 77, 81, 83 e 88 do pdf)]:
Data da declaração
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Anos das atividades de I&D
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Recomendação de atribuição à empresa de um crédito fiscal à D…, SA, NIF…, no valor de:
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27-12-2012
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2008 a 2010
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171.540,18 €
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07-12-2014
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2010 a 2012
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587.199,50 €
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18-12-2014
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2011 a 2013
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162.320,93 €
|
-
Nas datas que se indicam a Comissão Certificadora para os Incentivos Fiscais à I&D Empresarial, emitiu declaração “para os efeitos do estatuído na Lei n.º 40/2005 de 3 de agosto – artigo 3º” onde certificou que a A…, S.A., NIF …, realizou atividades de investigação e desenvolvimento nos anos que se mencionam e recomendou a atribuição à empresa dos seguintes valores de crédito fiscal, que totalizam 141.951,46 €: [RI, 16º: doc. 7, pp. 82 e 84 do pdf)]
Data da declaração
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Anos das atividades de I&D
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Recomendação de atribuição à empresa de um crédito fiscal à A…, S.A., NIF … no valor de:
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13-03-2014
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2008 a 2010
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111.549,39 €
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14-01-2015
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2011 a 2013
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30.402,07 €
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A C…, Lda efetuou os seguintes pagamentos especiais por conta nas datas indicadas, que totalizam 222.252,93 €: [RI, 19º: doc.11 (pp. 17-20 do pdf)]
PEC
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Data
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Valor
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1º Pagamento Especial por Conta 2012
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30-03-2012
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500,00 €
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1º Pagamento Especial por Conta 2012
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30-03-2012
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71.283,83 €
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1º Pagamento Especial por Conta 2012
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29-05-2012
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500,00 €
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2º Pagamento Especial por Conta 2012
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10-10-2012
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500,00 €
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2º Pagamento Especial por Conta 2012
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30-10-2012
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500,00 €
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1º Pagamento Especial por Conta 2013
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28-03-2013
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12.366,27 €
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2º Pagamento Especial por Conta 2013
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30-10-2013
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12.366,27 €
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1º Pagamento Especial por Conta 2014
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28-03-2014
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62.118,28 €
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2º Pagamento Especial por Conta 2014
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24-10-2014
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62.118,28 €
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De acordo com certidão emitida pela AT em 19.03.2015 a D…, S.A., NIF … e a B…, S. A., NIF…, “têm a sua situação tributária regularizada, uma vez que não são devedores perante a Fazenda Pública de quaisquer impostos, prestações tributárias ou acréscimos legais.” [RI 23º: doc. 13, (fls. 43 e 99 do pdf)].
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Conforme certidão emitida pela AT em 13.02.2015 a C…, Lda., NIF …“tem a sua situação tributária regularizada, visto que nesta data, não é devedora perante a Fazenda Pública de quaisquer impostos, prestações tributárias ou acréscimos legais.” [RI 23º: doc. 13 (fls. 52 e 103 do pdf)].
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Mediante certidão emitida em 18.05.2015 pela AT, esta declara que a C…, Lda., NIF…“tem a sua situação tributária regularizada, visto que nesta data, não é devedora perante a Fazenda Pública de quaisquer impostos, prestações tributárias ou acréscimos legais.” [RI 23º: doc. 13 (104 do pdf)].
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A Segurança Social emitiu, em 23.03.2015, certidão segundo a qual a C…, Lda., NIF…, “tem a sua situação contributiva regularizada perante a Segurança Social”. [RI 23º: doc. 13 (fls. 71 do pdf)].
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Também a D…, S.A., NIF…, “tem a sua situação contributiva regularizada perante a Segurança Social”, conforme certidão emanada em 01.04.2015 da Segurança Social [RI 23º: doc. 13 (fls. 105 do pdf)].
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O mesmo se passa com a B…, S. A., NIF…, segundo certidão emitida pela Segurança Social em 23.03.2015. [RI 23º: doc. 13 (fls. 108 do pdf)].
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A C…, Lda. apresentou em 16.11.2015 reclamação graciosa contra a autoliquidação de IRC do exercício de 2014 efetuada na declaração de rendimentos Mod. 22 do grupo tributado pelo Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades (RETGS). [R-AT, 6º. PA, I: 1-41]
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A C…, Lda. foi notificada de projeto de indeferimento da reclamação graciosa e em 10 de agosto de 2016 foi notificada do seu indeferimento. [RI, 3º e 10º e 12º R_AT. PA, II: 24-31]
-
Na fundamentação do indeferimento da reclamação graciosa consta que: [R-AT, 9º. PA, II: 26-30]
“A reclamante alega que ao montante das tributações autónomas, calculado na declaração de rendimentos relativa ao grupo, devem poder ser efetuadas as deduções à coleta previstas no n.º 2 do artigo 90º do CIRC, por essas tributações autónomas deverem ser consideradas como IRC.
Com efeito, trata-se de IRC, mas liquidado por tributação autónoma de diversas despesas, conforme previsto no artigo 88º do CIRC, ou seja, liquidado autonomamente.
Em relação com o alegado na reclamação, foi introduzido pelo artigo 133º da Lei nº 7-A/2016, de 30 de março (Lei do OE para 2016), um nº 21 ao artigo 88º do CIRC com a seguinte redacção: “A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efectuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.”
”De acordo com o artigo 135º da mesma Lei, a referida alteração tem natureza interpretativa.
Esta interpretação, feita pela Lei, vem clarificar a forma de liquidação do IRC resultante da aplicação daquele artigo do Código do IRC, no sentido de que a esse imposto não são dedutíveis, entre outros, os benefícios fiscais mencionados na reclamação ou os pagamentos especiais por conta.”
Factos não provados
Dos factos alegados, relevantes para a decisão de direito, nenhum ficou por provar.
VI. QUESTÕES DECIDENDAS
1. Tributações autónomas e coleta de IRC
A questão submetida à apreciação do Tribunal Arbitral é a de aferir se a Requerente tem o direito de proceder à dedução, também à coleta de IRC produzida pela aplicação das taxas de tributação autónoma, do crédito fiscal do SIFIDE, do CFEI, do RFAI e do pagamento especial por conta sendo, em caso afirmativo, ilegal a autoliquidação de IRC do exercício de 2014.
Submetida ao Tribunal está ainda, a título subsidiário, caso dê resposta negativa à primeira questão, a questão da eventual ilegalidade e consequente anulação da liquidação das tributações autónomas, por ausência de base legal para a sua liquidação.
O Tribunal é ainda chamado a pronunciar-se sobre o direito a juros indemnizatórios sobre as quantias pagas em consequência da autoliquidação em crise.
Cumpre, pois, decidir quanto ao mérito do pedido de decisão arbitral da liquidação de IRC sub judice e do eventual direito da Requerente a juros indemnizatórios.
Seguiremos nesta decisão muito de perto o que foi decidido nos processos n.º 749/2015-T, de 15 de julho de 2016, e n.º 360/2016-T, de 16 de fevereiro de 2017, a que presidiu o mesmo árbitro que também aqui age nessa qualidade.
Vejamos:
O regime das tributações autónomas em vigor no exercício de 2014 é o resultado de numerosas alterações legislativas.
A sujeição de determinadas despesas a tributação autónoma surgiu com o Decreto-Lei n.º 192/90, de 2 de junho, num contexto de penalização da tributação das despesas confidenciais ou não documentadas incorridas pelas empresas.
Posteriormente, as tributações autónomas foram incluídas no Código do IRC, através da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, que veio integrar a previsão das tributações autónomas no diploma que regula o IRC.
Desde então, o regime das tributações autónomas tem vindo a passar por um processo de expansão progressiva, em parte ditado pela aparente intenção contínua de aumentar a receita fiscal por via deste mecanismo.
Tendo em conta o artigo 88.º do Código do IRC, a tributação autónoma incide, grosso modo, sobre as seguintes realidades: despesas não documentadas; encargos com viaturas; despesas de representação; ajudas de custo; importâncias pagas a não residentes; lucros distribuídos por entidades sujeitas a IRC a sujeitos passivos que beneficiam de isenção; gastos ou encargos relativos a indemnizações ou quaisquer compensações devidas não relacionadas com a relação contratual; e ainda os gastos ou encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes.
A Lei do Orçamento do Estado para 2014 introduziu algumas alterações na previsão das tributações autónomas, que, no entanto, não só não foram especialmente relevantes como não oferecem contributo para a presente discussão.
O artigo 23.º-A, n.º 1, alínea a), do Código do IRC, na redação da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, não deixa margem para qualquer dúvida razoável. Na verdade, a redação da referida norma introduzida pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, prevê que “o IRC, incluindo as tributações autónomas, e quaisquer outros impostos que direta ou indirectamente incidam sobre os lucros” não são fiscalmente dedutíveis. O posicionamento das duas vírgulas na letra da lei, uma antes e a outra depois da expressão “incluindo as tributações autónomas”, constante da atual redação do citado artigo 23. °- A, n.º 1, alínea a), do CIRC, afasta a possibilidade de defender que as tributações autónomas não sejam (parte do) IRC.
Ou seja, na atual redação do artigo 23.º-A, n.º 1, alínea a) do Código do IRC, o legislador não só esclarece que as tributações autónomas integram o IRC, senão enquanto imposto stricto sensu, pelo menos em termos de fazerem parte do mesmo regime fiscal unitário, como também que as mesmas devem ter o mesmo tratamento para efeitos do cômputo do lucro tributável.
Aliás, este entendimento corrobora o que, à data dos factos, resultava do teor literal do artigo 12.º do Código do IRC, segundo o qual “as sociedades e outras entidades a que, nos termos do artigo 6.º, seja aplicável o regime de transparência fiscal, não são tributadas em IRC, salvo quanto às tributações autónomas”, do qual se conclui também que as tributações autónomas são IRC (são uma parte de IRC).
Ou seja, e em suma, o legislador entendia, e continua a entender, que as tributações autónomas integram o IRC, senão enquanto imposto stricto sensu, pelo menos em termos de fazerem parte do mesmo regime fiscal unitário.
Deve-se, para além de tudo o mais, ter em conta, que a norma do artigo 45.º do CIRC situa-se num contexto de ampla discricionariedade legislativa. Ou seja, na definição do que sejam encargos dedutíveis ou não dedutíveis para efeitos fiscais, o legislador fiscal goza de uma ampla liberdade concretizadora. Daí que, não se possa dizer que esteja vedado ao legislador, pela “natureza” das tributações autónomas, excluí-la dos encargos dedutíveis para efeitos fiscais.
Entende-se, deste modo, que será legítimo ao legislador incluir ou excluir as tributações autónomas daquela categoria dos encargos dedutíveis para efeitos fiscais, independentemente da “natureza” que a doutrina ou a jurisprudência lhes surpreenda.
A questão, devidamente situada, será então a de determinar qual a intenção do legislador, expressa no texto legislativo, compreendido no seu todo.
E sob este prisma, a conjugação do teor do artigo 12.º do CIRC com o artigo 45.º, n.º 1, alínea a) do mesmo, não deixará grandes dúvidas, quanto ao entendimento legislativo de que as tributações autónomas, se não constituem IRC stricto sensu, integrarão seguramente o regime daquele imposto, e serão devidas a esse título.
De resto, nem o resultado, aparentemente tão contraintuitivo e impressionante, de poder ser devido o pagamento de imposto por via das tributações autónomas que ora nos ocupam, mesmo em caso de inexistência de um rendimento (positivo) no final do período de tributação, é coisa rara no regime do IRC. Na verdade, em alguns casos de retenção na fonte a título definitivo, pode ocorrer o caso de o titular dos rendimentos sujeitos àquela retenção ter tido despesas que excedam os rendimentos. Também no caso da operacionalidade de algumas das cláusulas antiabuso específicas (artigos 63.º a 67.º do CIRC), por força da consideração de custos, pode ocorrer que os sujeitos passivos sejam tributados por um lucro tributável ficto, na medida em que possa estar em causa a desconsideração de custos, efetivamente suportados, mas desconsiderados por abusivos. Poder-se-á dar o caso, assim, de um sujeito passivo ter de pagar IRC, não obstante ter tido, na realidade, prejuízos. Exemplos que podem levantar a questão da sua compatibilização com o princípio da tributação de acordo com o lucro real que não pode deixar de ser feita casuisticamente.
Reconhecem-se aqui, evidentemente, aquelas caraterísticas que há já alguns anos a doutrina vem apontando às tributações autónomas em causa, como sejam:
a) a tributação autónoma só faz sentido porque os custos/gastos relevam, na maioria das situações, como componentes negativas do lucro tributável do IRC e é isso que motiva os sujeitos passivos do IRC a relevar um valor tão elevado quanto possível desses gastos para diminuir a matéria tributável do IRC, a coleta e, consequentemente, o imposto a pagar;
b) se trata de tratar desfavoravelmente esses gastos que, pela sua natureza, são facilmente desviados do consumo privado para o empresarial;
c) pretende-se desincentivar esse tipo de gastos em sujeitos passivos que apresentam resultados negativos, mas que continuam a evidenciar estruturas de consumo difíceis de compaginar com a saúde financeira das suas empresas;
d) modelar o sistema fiscal de modo que este revele um certo equilíbrio, tendo em vista uma melhor repartição da carga tributária efetiva entre contribuintes e tipos de rendimento;
e) materializar o reconhecimento de que não é fácil determinar a medida exata da componente de alguns desses gastos que corresponde a consumo privado.
As tributações autónomas têm como fundamento a presunção da existência de rendimento que poderá não estar a ser tributado, não só em sede de IRC como de IRS. Como se explica na decisão do Tribunal Arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 209/2013-T, que decidiu negativamente quanto à questão da dedutibilidade das tributações autónomas como custo fiscal em sede de IRC, “trata-se de (…) uma forma de, indiretamente e através da despesa, tributar o rendimento”.
A parte da coleta de IRC que provém das tributações autónomas é calculada a partir dos elementos do imposto definidos no artigo 88.º do CIRC inserido no ‘Capítulo IV – Taxas’. Este artigo delimita a matéria coletável das tributações autónomas, por um lado, e, por outro lado, enuncia as taxas das tributações autónomas, que são várias, consoante a natureza da matéria coletável a que se apliquem; por dependerem do tipo de sujeito passivo (v.g., entidade sem fins lucrativos, entidades isentas, entidade que desenvolva a título principal uma atividade comercial, industrial ou agrícola), e ainda são dependentes do próprio desempenho económico do sujeito passivo de IRC, ao assumirem percentagens diferentes quando se apurar lucro ou prejuízo fiscal. A coleta que provém de tributações autónomas é função do resultado tributável, calculando-se a partir de duas expressões que são o produto da matéria coletável por uma taxa dependente do resultado tributável: uma taxa mais elevada quando se apurar um prejuízo fiscal e outra, inferior, quando o resultado tributável for positivo.
Assim, a coleta proveniente de tributações autónomas não poderá ser determinada de modo instantâneo e imediatamente a seguir a ter-se incorrido na despesa, pois depende do próprio resultado que é - ao contrário do que a AT pretende e com apoio na decisão proferida no Processo Arbitral n.º 113/2015-T - de formação sucessiva.
Também alguns gastos que não coincidem com as despesas que extinguem e que são sujeitas a tributação autónoma, nomeadamente as depreciações, são de formação contínua.
Posto isto, a questão essencial que interessa resolver, é se a liquidação das tributações autónomas é “apurado nos termos do artigo 90.º do CIRC”, pois, se o for, terá de se concluir que as deduções previstas no n.º 2 do artigo 90.º do Código do IRC também poderão ser efetuadas à coleta proveniente das tributações autónomas.
A norma em crise é a do artigo 90.º do CIRC, sendo a alínea a) a que se aplica à liquidação feita pelo sujeito passivo (autoliquidação). Era esta a redação do artigo em 31.12.2014:
“Artigo 90.º
Procedimento e forma de liquidação
1 — A liquidação do IRC processa-se nos seguintes termos:
a) Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, tem por base a matéria colectável que delas conste;
(…)
2 — Ao montante apurado nos termos do número anterior são efectuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada:
a) A correspondente à dupla tributação jurídica internacional;
b) A correspondente à dupla tributação económica internacional;
c) A relativa a benefícios fiscais;
d) A relativa ao pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106.º;
e) A relativa a retenções na fonte não susceptíveis de compensação ou reembolso nos termos da legislação aplicável.
3 — (Revogado).
4 — Ao montante apurado nos termos do n.º 1, relativamente às entidades mencionadas no n.º 4 do artigo 120.º, apenas é de efectuar a dedução relativa às retenções na fonte quando estas tenham a natureza de imposto por conta do IRC.
5 — As deduções referidas no n.º 2 respeitantes a entidades a que seja aplicável o regime de transparência fiscal estabelecido no artigo 6.º são imputadas aos respectivos sócios ou membros nos termos estabelecidos no n.º 3 desse artigo e deduzidas ao montante apurado com base na matéria colectável que tenha tido em consideração a imputação prevista no mesmo artigo.
6 — Quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, as deduções referidas no n.º 2 relativas a cada uma das sociedades são efectuadas no montante apurado relativamente ao grupo, nos termos do n.º 1.
7 — Das deduções efectuadas nos termos das alíneas a), b) e c) do n.º 2 não pode resultar valor negativo.
8— Relativamente aos sujeitos passivos abrangidos pelo regime simplificado de determinação da matéria coletável, ao montante apurado nos termos do n.º 1 apenas são de efetuar as deduções previstas nas alíneas a) e e) do n.º 2.
9— Das deduções efetuadas nos termos das alíneas a) a d) do n.º 2 não pode resultar valor negativo.
10 — Ao montante apurado nos termos das alíneas b) e c) do n.º 1 apenas são feitas as deduções de que a administração fiscal tenha conhecimento e que possam ser efectuadas nos termos dos nºs 2 a 4.
11 — Nos casos em que seja aplicável o disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 79.º, são efectuadas anualmente liquidações com base na matéria colectável determinada com carácter provisório, devendo, face à liquidação correspondente à matéria colectável respeitante a todo o período de liquidação, cobrar-se ou anular-se a diferença apurada.
12 — A liquidação prevista no n.º 1 pode ser corrigida, se for caso disso, dentro do prazo a que se refere o artigo 101.º, cobrando-se ou anulando-se então as diferenças apuradas.”
Assim, o artigo 90.º do CIRC refere-se às formas de liquidação do IRC, pelo sujeito passivo ou pela Administração Tributária, e visa apurar o imposto devido em todas as situações previstas no Código, incluindo a liquidação adicional.
O Código do IRC refere-se, na sua versão atual, de modo expresso, às tributações autónomas apenas em cinco artigos, nomeadamente no artigo 12.º (ao excluir as tributações autónomas da isenção de IRC aplicável às sociedades abrangidas pelo regime de transparência fiscal), no artigo 23.º-A, n.º 1 (ao explicitar que as tributações autónomas não são dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável), no artigo 88.º (ao estabelecer as taxas e ao delimitar a matéria coletável das tributações autónomas), no artigo 117.º n.º 6 (a propósito da obrigação declarativa de entidades isentas de IRC ao abrigo do artigo 9.º, quando houver lugar a tributações autónomas) e no artigo 120.º n.º 9 (quanto à declaração periódica de rendimentos). Não existe no CIRC qualquer outra referência explícita às tributações autónomas.
Aliás, difere a redação atual daquela que esteve em vigor até 31.12.2014 apenas na novidade do artigo 23.º-A, o qual vem estabelecer que não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os encargos associados à tributação autónoma, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação determinados encargos, sendo que a redação da alínea a) é esclarecedora: “o IRC, incluindo as tributações autónomas, e quaisquer outros impostos que direta ou indiretamente incidam sobre os lucros”. Ou seja, não só o legislador expressa que o IRC inclui as tributações autónomas, como não existem no CIRC, designadamente, nos capítulos que tratam da incidência (Capítulo I), liquidação (Capítulo V) e pagamento (Capítulo VI) quaisquer outras referências expressas às tributações autónomas, do que é forçoso concluir que estão sujeitas, de modo genérico, aos demais artigos previstos no CIRC.
Não existia no CIRC outro artigo, para além do artigo 90.º, em que se distinga o processo de liquidação das tributações autónomas do restante IRC. E, nestes termos, a liquidação de ambos - tributações autónomas e restante IRC - é única e tem o mesmo suporte legal.
As tributações autónomas não resultavam de um processo distinto de liquidação do imposto.
Entendido que é serem as tributações autónomas (parte do) IRC, compreende-se que seja única a liquidação de IRC, incluindo a parte que provém das tributações autónomas. Há uma liquidação de IRC única que comporta duas partes: a liquidação das tributações autónomas e a do restante IRC, cada uma com matéria coletável determinada de modo próprio e com taxas de tributação próprias, mas ambas liquidadas nos termos do artigo 90.º do CIRC. Havendo uma liquidação única, conclui-se que a parte da coleta que provém das tributações autónomas é parte integrante da coleta de IRC.
Ao contrário, não se encontrava em qualquer outro artigo do CIRC a referência à liquidação das tributações autónomas como processo distinto. Aceitar que não se inclui a coleta das tributações autónomas no artigo 90.º do CIRC, seria aceitar que existe uma lacuna na lei e, sendo esta uma lei fiscal, não permite a integração.
Neste sentido, vai o Acórdão n.º 775/2015-T, de 28 de junho de 2016, ao referir que “aceitar que a liquidação das tributações autónomas está fora do artigo 90.º n.º 1 do CIRC e, portanto, afastar da sua coleta a dedutibilidade do PEC prevista na alínea c) do n.º 2 e do SIFIDE prevista na alínea b) do n.º 2, seria obrigar o contribuinte a pagar um imposto cuja liquidação se não faz nos termos da lei, contrariando o n.º 3 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa e o princípio da legalidade tributária que a Lei Geral Tributária, no seu artigo 8º, n.º 2, alínea a), estabelece. Se a Autoridade Tributária e Aduaneira assumiu que a coleta das tributações autónomas se calculou fora do artigo 90.º do CIRC, deveria indicar com base em que norma de liquidação o fez. Não havendo norma sobre liquidação das tributações autónomas separada, parece ter de aceitar-se que a coleta de IRC a engloba, incluindo-se no artigo 90º, n.º 1 do CIRC, sendo, portanto, dedutível o pagamento especial por conta referido na alínea c) do n.º 2 e o SIFIDE referido na alínea b) do n.º 2.”
Note-se, aliás, que nos números seguintes daquele artigo 90.º do Código do IRC o legislador se preocupou em enunciar várias exceções e limites à regras da dedutibilidade do n.º 2. No n.º 4, quando prevê que “apenas é de efetuar a dedução relativa às retenções na fonte quando estas tenham a natureza de imposto por conta do IRC”, o que é revelador: compreende-se que assim seja, porque é na coleta de IRC que se pretende deduzi-las, ou, no n.º 7, quando prescreve que das deduções à coleta a), b) e c) do n.º 2 não pode resultar, de uma forma geral e sem distinguir a coleta resultante da aplicação das taxas de tributação autónoma, valor negativo.
Em nenhuma delas e em nenhuma outra norma se referia a qualquer limitação à dedutibilidade do RFAI, SIFIDE, CFEI ou PEC à parte da coleta de IRC que resulta das tributações autónomas, sendo, portanto, forçoso concluir que não quis fazê-lo.
Note-se, aliás, que, embora alterado o artigo 90.º com a Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, que republicou o CIRC, o que aqui se disse não só perdura como, de um ponto de vista interpretativo, sai até reforçado, porquanto o legislador aditou algumas limitações e exceções às deduções à coleta previstas no número 2 e voltou a não se referir à parte da coleta que resulta da aplicação das taxas de tributação autónoma.
Por isso, o artigo 90.º do Código do IRC aplica-se também à liquidação do montante das tributações autónomas, que é apurado pelo sujeito passivo ou pela Administração Tributária, não havendo qualquer outra disposição que preveja termos diferentes para a sua liquidação. A autonomia das tributações autónomas restringe-se às taxas aplicáveis e à respetiva matéria tributável, mas o apuramento do seu montante é efetuado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC.
As diferenças entre a determinação do montante resultante de tributações autónomas e a coleta resultante do lucro tributável, assenta na determinação da matéria tributável e nas taxas, previstas nos Capítulos III e IV do CIRC, mas não nas formas de liquidação, que se preveem no Capitulo V do mesmo Código e são de aplicação comum às tributações autónomas e à restante coleta de IRC.
Por isso, encontrando-se o artigo 90.º inserido neste Capítulo V, não se vê suporte legal para efetuar uma distinção entre a coleta proveniente das tributações autónomas e a restante coleta de IRC, pelo facto de serem distintas as taxas e as formas da determinação da matéria tributável.
E, como se disse, não há suporte legal para afirmar que, na eventualidade de terem de ser efetuados numa declaração vários cálculos para determinar o IRC, seja efetuada mais que uma autoliquidação.
Por isso, a expressão “quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, tem por base a matéria coletável que delas conste”, que consta da alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º do CIRC, abrange no seu teor literal, a liquidação das tributações autónomas, cuja matéria coletável tem de ser indicada nas referidas declarações, como resulta, inclusivamente, da própria declaração Modelo 22.
A coleta obtém-se aplicando a taxa à respetiva matéria coletável, pelo que, no caso do IRC, havendo várias taxas aplicáveis a diversas matérias coletáveis, a coleta de IRC global será constituída pela soma de todos os resultados dessas aplicações.
Acresce que, independentemente dos cálculos a efetuar, é unitária a autoliquidação que o sujeito passivo ou a AT devem efetuar nos termos dos artigos 89.º, alínea a), 90.º, n.º 1, alíneas a), b) e c) e 120.º ou 122.º, e com base nela que é calculado o IRC global, sejam quais forem as matérias coletáveis relativas a cada um dos tipos de tributação que lhe esteja subjacente.
Para além disso, não pode ver-se, na eventual natureza de normas antiabuso que assumem algumas tributações autónomas, uma explicação para o seu afastamento da respetiva coleta, pois não há qualquer suporte legal para afastar a dedutibilidade à coleta proporcionada por correções baseadas em normas de natureza indiscutivelmente antiabuso.
A finalidade das tributações autónomas é dual. Visam tributar o rendimento real, corrigindo-se por isso o rendimento tributável para o aproximar daquele rendimento e, ao mesmo tempo, procuram penalizar os sujeitos passivos que através da realização de certas despesas acabam por reduzir o rendimento tributável.
Como pode ler-se no Acórdão n.º 617/12 do Tribunal Constitucional, mostra a sua natureza dual, com uma taxa agravada de tributação autónoma para certas situações especiais que se procuram desencorajar, cria uma espécie de presunção de que estes custos não têm uma causa empresarial e, por isso, são sujeitos a uma tributação autónoma. “Em resumo”, diz o Tribunal Constitucional, “o custo é dedutível, mas a tributação autónoma reduz a sua vantagem fiscal, uma vez que, aqui, a base de incidência não é um rendimento líquido, mas, sim, um custo transformado – excecionalmente – em objeto de tributação.".
Sendo que o regime legal das tributações autónomas em questão apenas faz sentido no contexto da tributação em sede de IRC. Ou seja, desligado do regime legal deste imposto, carecerão aquelas, por completo, de sentido. A sua existência, o seu propósito, a sua explicação, no fundo, a sua juridicidade, apenas é compreensível e aceitável no quadro do regime legal do IRC. É que, mesmo que se aceitasse que o facto tributário impositivo é cada uma das singulares despesas legalmente tipificadas, o certo é que não são estas, qua tale, o objeto final da tributação, a realidade que se pretende agravar com o imposto.
Se assim fosse, teriam de ser taxadas todas as despesas previstas, realizadas por todos os sujeitos e não apenas por alguns deles.
Ou seja, as tributações autónomas são indissociáveis dos sujeitos do imposto sobre o rendimento respetivo, e, mais especificamente, da atividade económica por eles levada a cabo, o que é ainda mais evidente quando se pensa na ligação que, embora tenha variado nas sucessivas alterações legislativas, as tributações autónomas tinham e ainda têm alguma ligação com a dedutibilidade – e a efetiva dedução – das despesas tributadas. São, no fundo, regras especiais de dedutibilidade de certos custos.
Esta circunstância, crê-se, é elucidativa da imbricação existente entre aquelas e o IRC (no caso), e justificativa não só da sua inclusão no CIRC, mas, igualmente, da sua integração, de pleno direito, como parte do regime jurídico do IRC.
As tributações autónomas ora em causa são, como tal, indubitavelmente entendidas pelo legislador como uma forma de obstar a determinadas atuações abusivas, que o normal funcionamento do sistema de tributação era incapaz de impedir ou que seriam mais onerosas ou trabalhosas para a administração tributária ou, até, eventualmente, para o contribuinte.
Este caráter antiabuso das tributações autónomas será não só coerente com a sua natureza “anti sistémica” (como acontece com todas as normas do género), como com uma natureza presuntiva.
Neste prisma, como refere a decisão proferida pelo Tribunal Arbitral no processo n.º 187/2013-T, as tributações autónomas em análise, terão então subjacente uma presunção de empresarialidade parcial das despesas sobre que incidem, em função da supra apontada circunstância de tais despesas se situarem numa linha cinzenta que separa aquilo que é despesa empresarial, produtiva, daquilo que é despesa privada, de consumo, sendo que, notoriamente, em muitos casos, a despesa terá mesmo na realidade uma dupla natureza (parte empresarial, parte particular).
Confrontado com esta dificuldade, o legislador, em lugar de simplesmente afastar a sua dedutibilidade, ou inverter o ónus da prova da relação das despesas em questão com a atividade empresarial, optou por consagrar o regime atualmente vigente.
Esta presunção de empresarialidade parcial, deverá, em coerência, considerar-se como abrangida pela possibilidade de elisão decorrente do artigo 73.º da LGT, quer pelo contribuinte, quer pela Administração Tributária, o que se afigura conforme a uma adequada distribuição do ónus probatório, na medida em que incidindo as tributações autónomas em causa sobre despesas cuja relação com a atividade prosseguida poderá não ser, à partida, evidente, será o contribuinte quem estará melhor posicionado para demonstrar que tal requisito se verifica em concreto. Por seu lado, a própria Administração Tributária, caso o entenda e considere que o caso justifica o inerente dispêndio de meios, poderá sempre demonstrar que, relativamente às despesas em questão, e ainda que sobre elas tenha incidido tributação autónoma, não se verifica o requisito geral do artigo 23.º, n.º 1 do CIRC, designadamente a sua indispensabilidade para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora.
Face a tudo o que se vem de expor, consideramos que as tributações autónomas em crise integram o regime do IRC e que a respetiva liquidação é efetuada nos termos do artigo 90.º do respetivo Código.
2. Quanto à dedutibilidade do crédito fiscal do SIFIDE à quantia devida a título de tributação autónoma
Tendo em conta o enquadramento realizado no ponto anterior, a primeira questão concreta que se coloca neste âmbito é a de saber se os créditos fiscais reconhecidos à requerente no ano de 2014, em sede de SIFIDE, também podem ser deduzidos à coleta produzida pelas tributações autónomas que a oneram nesse exercício fiscal, na parte em que não podem ser deduzidos à restante coleta.
Para responder a esta questão é importante referir o artigo 38.º do Código Fiscal do Investimento, na redação à data dos factos, que referia que:
“1 - Os sujeitos passivos de IRC residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza agrícola, industrial, comercial e de serviços e os não residentes com estabelecimento estável nesse território podem deduzir ao montante da coleta do IRC apurado nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência, o valor correspondente às despesas com investigação e desenvolvimento, na parte que não tenha sido objeto de comparticipação financeira do Estado a fundo perdido, realizadas nos períodos de tributação com início entre 1 de janeiro de 2014 e 31 de dezembro de 2020, numa dupla percentagem. (…)
2 - Para os sujeitos passivos de IRC que se enquadrem na categoria das micro, pequenas ou médias empresas, tal como definidas na Recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão, de 6 de maio de 2003, que ainda não completaram dois exercícios e que não beneficiaram da taxa incremental fixada na alínea b) do número anterior, aplica-se uma majoração de 15 % à taxa base fixada na alínea a) do número anterior.
3 - A dedução é feita, nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, na liquidação respeitante ao período de tributação mencionado no número anterior. (…)”
O artigo 39º acrescentava:
“Apenas podem beneficiar da dedução a que se refere o artigo anterior os sujeitos passivos de IRC que preencham cumulativamente as seguintes condições:
a) O seu lucro tributável não seja determinado por métodos indiretos;
b) Não sejam devedores ao Estado e à segurança social de quaisquer contribuições, impostos ou quotizações, ou tenham o seu pagamento devidamente assegurado.”
Na verdade, aquele diploma não refere que os créditos dele provenientes são dedutíveis a toda e qualquer coleta de IRC, antes define o âmbito da dedução aludindo, no seu n.º 1 do artigo 38.º “ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência”.
O n.º 3 do mesmo artigo confirma que é ao montante que for apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC que releva para concretizar a dedução ao dizer que “a dedução é feita, nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, na liquidação respeitante ao período de tributação mencionado no número anterior”.
Assim, por mera interpretação declarativa, conclui-se que a referência que no artigo 38.º, n.º 1 e 3 se faz à “dedução (…) nos termos do artigo 90.º do Código do IRC (…)” como forma de materializar o benefício fiscal, abrange, literalmente também a coleta de IRC resultante das tributações autónomas, que integra a coleta única de IRC.
O facto de o artigo 39.º do Código Fiscal do Investimento afastar o benefício quando o lucro tributável seja determinado por métodos indiretos e nas tributações autónomas se incluírem situações em que se visa indiretamente a tributação de lucros (designadamente, não dando relevância ou desmotivando factos suscetíveis de os reduzirem), não tem qualquer relevância para este efeito, pois o conceito de «métodos indiretos» tem um alcance preciso no direito tributário, que é concretizado no artigo 90.º da LGT (para além de normas especiais), reportando-se a meios de determinar o lucro tributável, cuja utilização não se prevê para cálculo da matéria coletável das tributações autónomas previstas no artigo 88.º do CIRC.
Por outro lado, se é a necessidade de fazer uso de métodos indiretos que afasta a possibilidade de usufruir do benefício, não se pode justificar esse afastamento em relação à coleta das tributações autónomas, que é determinada por métodos diretos.
Para além disso, não pode ver-se, na eventual natureza de normas antiabuso que assumem algumas tributações autónomas uma explicação para o seu afastamento da respetiva coleta do âmbito da dedutibilidade do benefício do SIFIDE, pois não há qualquer suporte legal para afastar a dedutibilidade à coleta proporcionada por correções baseadas em normas de natureza indiscutivelmente antiabuso, como, por exemplo, as relativas aos preços de transferência ou subcapitalização. Quando o legislador quer afastar a dedutibilidade tem de o dizer expressamente.
Por outro lado, o facto de a dedutibilidade do benefício fiscal do SIFIDE ser limitada à coleta do artigo 90º do CIRC, até à sua concorrência, não permite concluir que o crédito fiscal só seja dedutível caso haja lucro tributável, pois o que aquele facto exige é que haja coleta de IRC, que pode existir mesmo sem lucro tributável, designadamente por força das tributações autónomas.
Assim, apontando o teor literal do artigo 38.º do SIFIDE no sentido de a dedução se aplicar também à coleta de IRC derivada de tributações autónomas apurada nos termos do artigo 90.º do CIRC, só por via de uma interpretação restritiva se poderá afastar a aplicação daquele benefício fiscal à coleta de IRC proporcionada pelas tributações autónomas.
A viabilidade de uma interpretação restritiva encontra, desde logo, um obstáculo de ordem geral, que é o de que as normas que criam benefícios fiscais têm a natureza de normas excecionais, como decorre do teor expresso do artigo 2.º, n.º 1, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), pelo que, na falta de regra especial, devem ser interpretadas nos seus precisos termos, como é jurisprudência pacífica. No caso dos benefícios fiscais, prevê-se explicitamente a possibilidade de interpretação extensiva (artigo 10.º do EBF), mas não de interpretação restritiva, pelo que, em regra, o benefício fiscal não deve ser interpretado com menor amplitude do que a que, numa interpretação declarativa, resulta do teor da norma que o prevê.
De qualquer modo, uma interpretação restritiva apenas se justifica quando «o intérprete chega à conclusão de que o legislador adotou um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que aquilo que pretendia dizer. Também aqui a ratio legis terá uma palavra decisiva. O intérprete não deve deixar-se arrastar pelo alcance aparente do texto, mas deve restringir este em termos de o tornar compatível com o pensamento legislativo, isto é, com aquela ratio. O argumento em que assenta este tipo de interpretação costuma ser assim expresso: cessante ratione legis cessat eius dispositio (lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance)»[1].
Como fundamento para uma interpretação restritiva poderá aventar-se o facto de que algumas tributações autónomas visarem desincentivar certos comportamentos dos contribuintes suscetíveis de afetar o lucro tributável, e, consequentemente, diminuírem a receita fiscal, e a sua força desincentivadora será atenuada com a possibilidade de a respetiva coleta poder ser objeto de deduções. Por isso, há que apreciar se há razões que justifiquem uma conclusão sobre a incompatibilidade do sentido do texto do artigo 36.º, com a ratio legis daquele benefício fiscal. Mas, o desincentivo desses comportamentos é justificado apenas pelas preocupações de proteção da receita fiscal e os benefícios fiscais concedidos, por definição, são «medidas de carácter excecional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem» (artigo 2.º, n.º 1, do EBF). E, no caso dos benefícios fiscais do SIFIDE, as razões de natureza extrafiscal que justificam a sua sobreposição às receitas fiscais são, na perspetiva legislativa, de enorme importância, como se infere da fundamentação no Relatório do Orçamento do Estado para 2011: “II.2.2.4.4. Sistema de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento Empresarial II (SIFIDE). Tendo em conta que uma das valias da competitividade em Portugal passa pela aposta na capacidade tecnológica, no emprego científico e nas condições de afirmação no espaço europeu, a Proposta de Orçamento do Estado para 2011 propõe renovar o SIFIDE (Sistema de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento Empresarial), agora na versão SIFIDE, para vigorar nos períodos de 2011 a 2015, possibilitando a dedução à coleta do IRC para empresas que apostam em I&D (capacidade de investigação e desenvolvimento). Dado o balanço positivo dos incentivos fiscais à I&D empresarial, e considerando também a evolução do sistema de apoio dos outros países, foi decidido rever e reintroduzir por mais cinco períodos de tributação este sistema de apoio. A I&D das empresas é um facto decisivo não só da sua própria afirmação enquanto estruturas competitivas, como da produtividade e do crescimento económico a longo prazo, facto, aliás, expressamente reconhecido no Programa do XVIII Governo, assim como em vários relatórios internacionais recentes. É neste contexto que, no panorama internacional, a OCDE considera desde 2001 Portugal como um dos três países com um avanço mais significativo na I&D empresarial. Sendo o sistema nacional vigente, comparativamente aos demais sistemas que utilizam a dedução à coleta e a distinção entre taxa base e taxa incremental, é um dos mais atrativos e competitivos.”
Sendo a investigação e desenvolvimento das empresas «um facto decisivo não só da sua própria afirmação enquanto estruturas competitivas, como da produtividade e do crescimento económico a longo prazo», compreende-se que se tenha dado preferência ao incentivo da aposta na capacidade tecnológica, no emprego científico e nas condições de afirmação no espaço europeu, que, a prazo se reconduzem à obtenção de maiores receitas fiscais.
A importância que, na perspetiva legislativa, foi reconhecida a este benefício fiscal previsto no SIFIDE, é também decisivamente confirmada pelo facto de ele ser indicado como estando especialmente excluído do limite geral à relevância de benefícios fiscais em IRC, que se indica no artigo 92.º do CIRC, na redação à data dos factos. Por isso, é, também por esta via, seguro que se está perante benefícios fiscais cuja justificação é legislativamente considerada mais relevante que a obtenção de receitas fiscais, inferindo-se daquele artigo 92.º que a intenção legislativa de incentivar os investimentos em investigação e desenvolvimento previstos no SIFIDE é tão firme que vai ao ponto de nem sequer se estabelecer qualquer limite à dedutibilidade da coleta de IRC, apesar de este regime fiscal ter sido criado e aplicado num período de notórias dificuldades das finanças públicas.
Assim, não se vê fundamento legal, designadamente à face da intenção legislativa que é possível detetar, para, com fundamento numa interpretação restritiva, afastar a dedutibilidade do benefício fiscal do SIFIDE à coleta das tributações autónomas que resulta diretamente da letra do artigo 38.º, n.º 1, do respetivo diploma, conjugado com o artigo 90.º do CIRC.
Como se disse, ao estabelecer um benefício fiscal por dedução à coleta de IRC, o legislador optou por prescindir da receita fiscal que este imposto poderia proporcionar, na medida da concessão do benefício fiscal. Para esta ponderação relativa dos interesses em causa (receita fiscal versus estímulo forte ao investimento) é indiferente que essa receita provenha de cálculos efetuados com base no artigo 87.º ou no artigo 88.º do CIRC. Na verdade, seja qual for a forma de cálculo dessa receita fiscal, está-se perante dinheiro cuja arrecadação o legislador considerou ser menos importante do que a prossecução da finalidade económica referida. Das duas alternativas que se deparavam ao legislador relativamente ao incentivo aos investimentos previstos no SIFDE, que eram, por um lado, manter intactas as receitas provenientes de IRC (incluindo as de tributações autónomas) e não ver incentivado o investimento em investigação e desenvolvimento e, por outro lado, concretizar esse incentivo com perda de receitas de IRC, a ponderação que necessariamente está subjacente ao SIFIDE é a da opção pela criação do inventivo com prejuízo das receitas. E, naturalmente, sendo a criação do incentivo ao investimento melhor, na perspetiva legislativa, do que a arrecadação de receitas, não se vislumbra como possa ser relevante que as receitas de IRC que se perdem para concretizar o incentivo provenham da tributação geral de IRC prevista no n.º 1 do artigo 87.º ou das tributações a taxas especiais previstas nos n.ºs 4 a 6 do mesmo artigo, ou das tributações autónomas previstas no artigo 88.º: em todos os casos, a alternativa é a mesma entre criação do incentivo e arrecadação de receitas de IRC e a ponderação relativa que se pode fazer dos interesses conflituantes é idêntica, quaisquer que sejam as formas de determinar o montante de IRC de que se prescinde para criar o incentivo.
E, no caso do benefício fiscal do SIFIDE, as razões de natureza extrafiscal que justificam o incentivo com perda de receita são fortíssimas, pois considera-se que os investimentos incentivados são um facto decisivo na competitividade futura do país.
Por isso, é seguro que se está perante benefício fiscal cuja justificação é legislativamente considerada mais relevante que a obtenção de receitas fiscais provenientes de IRC, seja qual for a base do seu cálculo, pois o que está em causa é sempre prescindir ou não de determinada quantia em dinheiro para criar um incentivo ao investimento.
Neste contexto, a natureza das tributações autónomas e as soluções legislativamente adotadas, em geral, em relação a elas, não têm qualquer relevância para a apreciação desta questão, pois esta tem de ser apreciada à face dos específicos interesses que na sua ponderação se entrechocam.
Na verdade, o que está em causa é, exclusivamente, determinar o alcance do SIFIDE, que estabelece um regime de natureza excecional, que visou prosseguir determinados interesses públicos, e não contribuir para a decisão de qualquer questão conceitual sobre a natureza das tributações autónomas, matéria sobre a qual não se vislumbra quer no texto da lei, quer no Relatório do Orçamento para 2011, a menor preocupação legislativa.
Pelo exposto, convergindo os elementos literal e racional da interpretação do artigo 38.º do Código Fiscal do Investimento no sentido de que as despesas de investimento nele previstas são dedutíveis à «ao montante apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência», é de concluir que elas são dedutíveis à globalidade dessa coleta, que engloba, para além, da derivada da tributação dos lucros em cada período fiscal, a que resulta de outras componentes positivas do imposto, designadamente de tributações autónomas, derrama estadual e IRC de períodos de tributação anteriores.
Assim, terá de aceitar-se a dedução do SIFIDE à coleta de IRC, nela se incluindo necessariamente a parcela proveniente das tributações autónomas.
Verifica-se, porém, que o sistema informático não permite a dedução do SIFIDE à parte da coleta de IRC proveniente das tributações autónomas. O facto de as formas da determinação da matéria coletável e de as taxas das tributações autónomas de IRC serem estabelecidas separadamente e serem diferentes das do restante IRC não parece ser razão suficiente, nem ter suporte legal, para a solução informática existente.
Estas considerações que desenvolvemos para o SIFIDE são, com as necessárias adaptações transponíveis para os outros dois benefícios em causa presentes no caso em apreço - o RFAI e o CFEI – como veremos nos próximos pontos.
3. Quanto à dedutibilidade do crédito fiscal do RFAI à quantia devida a título de tributação autónoma
Quanto à dedutibilidade do RFAI valem os mesmos argumentos acima desenvolvidos quanto ao SIFIDE, bem como o que foi decidido na Decisão Arbitral n.º 740/2015-T, de 16 de maio de 2015, do CAAD, especificamente sobre o RFAI, que aqui seguimos.
O Regime Fiscal de Apoio ao Investimento foi aprovado pelo artigo 13.º da Lei n.º 10/2009, que o artigo 116.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril (Lei do Orçamento do Estado para 2010) manteve em vigor com respeito a 2010, que o artigo 134.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2011), manteve em vigor com respeito a 2011, que o artigo 162.º da Lei n.º 64.º-B/2011, de 30 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2012), manteve em vigor com respeito a 2012, que o artigo 232.º da Lei n.º 66.º-B/2012, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2013), manteve em vigor com respeito a 2013, e que entretanto e desde então foi integrado no Código Fiscal do Investimento (Decreto-Lei n.º 82/2013, de 17 de Junho, e o Decreto -Lei n.º 162/2014, de 31 de Outubro)).
No que concerne ao IRC, o referido regime traduziu-se num benefício fiscal previsto no Código Fiscal do Investimento, que estabelece o seguinte, no que aqui interessa:
“Artigo 22.º
Âmbito de aplicação e definições
1 - O RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.
2 - Para efeitos do disposto no presente regime, consideram-se aplicações relevantes os investimentos nos seguintes ativos, desde que afetos à exploração da empresa:
a) Ativos fixos tangíveis, adquiridos em estado de novo, com exceção de:
i) Terrenos, salvo no caso de se destinarem à exploração de concessões mineiras, águas minerais naturais e de nascente, pedreiras, barreiros e areeiros em investimentos na indústria extrativa;
ii) Construção, aquisição, reparação e ampliação de quaisquer edifícios, salvo se forem instalações fabris ou afetos a atividades turísticas, de produção de audiovisual ou administrativas;
iii) Viaturas ligeiras de passageiros ou mistas;
iv) Mobiliário e artigos de conforto ou decoração, salvo equipamento hoteleiro afeto a exploração turística;
v) Equipamentos sociais;
vi) Outros bens de investimento que não estejam afetos à exploração da empresa;
b) Ativos intangíveis, constituídos por despesas com transferência de tecnologia, nomeadamente através da aquisição de direitos de patentes, licenças, «know-how» ou conhecimentos técnicos não protegidos por patente.
3 - No caso de sujeitos passivos de IRC que não se enquadrem na categoria das micro, pequenas e médias empresas, tal como definidas na Recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão, de 6 de maio de 2003, as aplicações relevantes a que se refere a alínea b) do número anterior não podem exceder 50 % das aplicações relevantes.
4 - Podem beneficiar dos incentivos fiscais previstos no presente capítulo os sujeitos passivos de IRC que preencham cumulativamente as seguintes condições:
a) Disponham de contabilidade regularmente organizada, de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respetivo setor de atividade;
b) O seu lucro tributável não seja determinado por métodos indiretos;
c) Mantenham na empresa e na região durante um período mínimo de três anos a contar da data dos investimentos, no caso de micro, pequenas e médias empresas tal como definidas na Recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão, de 6 de maio de 2003, ou cinco anos nos restantes casos, os bens objeto do investimento ou, quando inferior, durante o respetivo período mínimo de vida útil, determinado nos termos do Decreto Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de setembro, alterado pelas Leis n.os 64-B/2011, de 30 de dezembro, e 2/2014, de 16 de janeiro, ou até ao período em que se verifique o respetivo abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização, observadas as regras previstas no artigo 31.º-B do Código do IRC;
d) Não sejam devedores ao Estado e à segurança social de quaisquer contribuições, impostos ou quotizações ou tenham o pagamento dos seus débitos devidamente assegurado;
e) Não sejam consideradas empresas em dificuldade nos termos da comunicação da Comissão - Orientações relativas aos auxílios estatais de emergência e à reestruturação concedidos a empresas não financeiras em dificuldade, publicada no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 249, de 31 de julho de 2014;
f) Efetuem investimento relevante que proporcione a criação de postos de trabalho e a sua manutenção até ao final do período mínimo de manutenção dos bens objeto de investimento, nos termos da alínea c).
5 - Considera-se investimento realizado o correspondente às adições, verificadas em cada período de tributação, de ativos fixos tangíveis e ativos intangíveis e bem assim o que, tendo a natureza de ativo fixo tangível e não dizendo respeito a adiantamentos, se traduza em adições aos investimentos em curso.
6 - Para efeitos do disposto no número anterior, não se consideram as adições de ativos que resultem de transferências de investimentos em curso transitado de períodos anteriores, exceto se forem adiantamentos.
7 - Nas regiões elegíveis para auxílios nos termos da alínea c) do n.º 3 do artigo 107.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia constantes da tabela do artigo 43.º, no caso de empresas que não se enquadrem na categoria das micro, pequenas e médias empresas, tal como definidas na Recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão, de 6 de maio de 2003, apenas podem beneficiar do RFAI os investimentos que respeitem a uma nova atividade económica, ou seja, a um investimento em ativos corpóreos e incorpóreos relacionados com a criação de um novo estabelecimento, ou com a diversificação da atividade de um estabelecimento, na condição de a nova atividade não ser a mesma ou uma atividade semelhante à anteriormente exercida no estabelecimento.
Artigo 23.º
Benefícios fiscais
1 - Aos sujeitos passivos de IRC previstos no n.º 1 do artigo anterior, são concedidos os seguintes benefícios fiscais:
a) Dedução à coleta do IRC apurada nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC, das seguintes importâncias das aplicações relevantes:
1) No caso de investimentos realizados em regiões elegíveis nos termos da alínea a) do n.º 3 do artigo 107.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia constantes da tabela prevista no n.º 1 do artigo 43.º:
i) 25 % das aplicações relevantes, relativamente ao investimento realizado até ao montante de (euro) 5 000 000,00;
ii) 10 % das aplicações relevantes, relativamente à parte do investimento realizado que exceda o montante de (euro) 5 000 000,00;
2) No caso de investimentos em regiões elegíveis nos termos da alínea c) do n.º 3 do artigo 107.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia constantes da tabela prevista no n.º 1 do artigo 43.º, 10 % das aplicações relevantes;
b) Isenção ou redução de IMI, por um período até 10 anos a contar do ano de aquisição ou construção do imóvel, relativamente aos prédios utilizados pelo promotor no âmbito dos investimentos que constituam aplicações relevantes, nos termos do artigo 22.º;
c) Isenção ou redução de IMT relativamente às aquisições de prédios que constituam aplicações relevantes nos termos do artigo 22.º;
d) Isenção de Imposto do Selo relativamente às aquisições de prédios que constituam aplicações relevantes nos termos do artigo 22.º
2 - A dedução a que se refere a alínea a) do número anterior é efetuada na liquidação de IRC respeitante ao período de tributação em que sejam realizadas as aplicações relevantes, com os seguintes limites:
a) No caso de investimentos realizados no período de tributação do início de atividade e nos dois períodos de tributação seguintes, exceto quando a empresa resultar de cisão, até à concorrência do total da coleta do IRC apurada em cada um desses períodos de tributação;
b) Nos restantes casos, até à concorrência de 50 % da coleta do IRC apurada em cada período de tributação.
3 - Quando a dedução referida no número anterior não possa ser efetuada integralmente por insuficiência de coleta, a importância ainda não deduzida pode sê-lo nas liquidações dos 10 períodos de tributação seguintes, até à concorrência da coleta de IRC apurada em cada um dos períodos de tributação, no caso de investimentos abrangidos pela alínea a) do número anterior ou com o limite previsto na alínea b) do mesmo número, nos casos aí previstos.
4 - Para efeitos do disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1, as isenções ou reduções aí previstas são condicionadas ao reconhecimento, pela competente assembleia municipal, do interesse do investimento para a região.
5 - Os benefícios fiscais previstos nos números anteriores devem respeitar os limites máximos aplicáveis aos auxílios com finalidade regional em vigor na região na qual o investimento seja efetuado, nos termos do artigo 43.º
6 - Caso os investimentos beneficiem de outros auxílios de Estado, o cálculo dos limites referidos no número anterior deve ter em consideração o montante total dos auxílios de Estado com finalidade regional concedidos ao investimento em questão, proveniente de todas as fontes.
7 - Para efeitos do disposto no número anterior, os sujeitos passivos ficam sujeitos aos procedimentos especiais de controlo do montante dos auxílios de Estado com finalidade regional concedidos ao investimento, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pelas áreas das finanças e da economia.”
Como se vê pela o artigo 23.º, n.º 1 al.) a do Código Fiscal do Investimento, o benefício fiscal concretiza-se através de «dedução à colecta de IRC». Há acordo das Partes em que esta expressão não tem alcance substancialmente diferente da que é utilizada no SIFIDE que é «montante apurado nos termos do artigo 90.º do Código do IRC». ( [2] )
Pelo que já atrás se referiu, a coleta derivada de tributações autónomas previstas no CIRC é «coleta de IRC», pelo que a expressão utilizada no RFAI não exclui a dedução dos investimentos elegíveis à coleta proporcionada por aquelas tributações.
Também em relação a este benefício fiscal vale o que atrás se referiu sobre a prevalência dos interesses que o benefício fiscal visa atingir sobre o interesse na obtenção de receitas fiscais, para o que remetemos.
Por isso, também quanto a esta questão, procede o pedido de pronúncia arbitral.
4. Quanto à dedutibilidade do crédito fiscal do CFEI à quantia devida a título de tributação autónoma
Aplicamos aqui o raciocínio já elaborado quanto ao SIFIDE e RFAI supra, concretizado de modo semelhante para o CFEI no Processo n.º 673/2016 de 28 de abril de 2016, que seguimos de perto.
O CFEI foi aprovado pela Lei n.º 49/2013, de 16 de julho, que estabelece o seguinte, no que aqui interessa:
Artigo 2.º
Âmbito de aplicação subjectivo
Podem beneficiar do CFEI os sujeitos passivos de IRC que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e preencham, cumulativamente, as seguintes condições:
a) Disponham de contabilidade regularmente organizada, de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de atividade;
b) O seu lucro tributável não seja determinado por métodos indirectos;
c) Tenham a situação fiscal e contributiva regularizada.
Artigo 3.º
Incentivo fiscal
1 - O benefício fiscal a conceder aos sujeitos passivos referidos no artigo anterior corresponde a uma dedução à coleta de IRC no montante de 20 % das despesas de investimento em ativos afectos à exploração, que sejam efetuadas entre 1 de Junho de 2013 e 31 de Dezembro de 2013.
2 - Para efeitos da dedução prevista no número anterior, o montante máximo das despesas de investimento elegíveis é de 5 000 000,00 EUR, por sujeito passivo.
3 - A dedução prevista nos números anteriores é efectuada na liquidação de IRC respeitante ao período de tributação que se inicie em 2013, até à concorrência de 70 % da coleta deste imposto.
4 - No caso de sujeitos passivos que adoptem um período de tributação não coincidente com o ano civil e com início após 1 de Junho de 2013, as despesas relevantes para efeitos da dedução prevista nos números anteriores são as efetuadas em ativos elegíveis desde o início do referido período até ao final do sétimo mês seguinte.
5 - Aplicando-se o regime especial de tributação de grupos de sociedades, a dedução prevista no n.º 1:
a) Efectua-se ao montante apurado nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC, com base na matéria colectável do grupo;
b) É feita até 70 % do montante mencionado na alínea anterior e não pode ultrapassar, em relação a cada sociedade e por cada exercício, o limite de 70 % da coleta que seria apurada pela sociedade que realizou as despesas elegíveis, caso não se aplicasse o regime especial de tributação de grupos de sociedades.
6 - A importância que não possa ser deduzida nos termos dos números anteriores pode sê-lo, nas mesmas condições, nos cinco períodos de tributação subsequentes.
7 - Aos sujeitos passivos que se reorganizem, em resultado de quaisquer operações previstas no artigo 73.º do Código do IRC, aplica-se o disposto no n.º 3 do artigo 15.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais.
Artigo 4.º
Despesas de investimento elegíveis
1 - Para efeitos do presente regime, consideram-se despesas de investimento em ativos afectos à exploração as relativas a ativos fixos tangíveis e ativos biológicos que não sejam consumíveis, adquiridos em estado de novo e que entrem em funcionamento ou utilização até ao final do período de tributação que se inicie em ou após 1 de janeiro de 2014.
2 - São ainda elegíveis as despesas de investimento em ativos intangíveis sujeitos a deperecimento efetuadas nos períodos referidos nos n.ºs 1 e 4 do artigo 3.º, designadamente:
a) As despesas com projetos de desenvolvimento;
b) As despesas com elementos da propriedade industrial, tais como patentes, marcas, alvarás, processos de produção, modelos ou outros direitos assimilados, adquiridos a título oneroso e cuja utilização exclusiva seja reconhecida por um período limitado de tempo.
3 - Consideram-se despesas de investimento elegíveis as correspondentes às adições de ativos verificadas nos períodos referidos nos n.ºs 1 e 4 do artigo 3.º e, bem assim, as que, não dizendo respeito a adiantamentos, se traduzam em adições aos investimentos em curso iniciados naqueles períodos.
4 - Para efeitos do número anterior, não se consideram as adições de ativos que resultem de transferências de investimentos em curso.
5 - Para efeitos do n.º 1, são excluídas as despesas de investimento em ativos susceptíveis de utilização na esfera pessoal, considerando-se como tais:
a) As viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, barcos de recreio e aeronaves de turismo, excepto quando tais bens estejam afectos à exploração do serviço público de transporte ou se destinem ao aluguer ou à cedência do respectivo uso ou fruição no exercício da atividade normal do sujeito passivo;
b) Mobiliário e artigos de conforto ou decoração, salvo quando afectos à atividade produtiva ou administrativa;
c) As incorridas com a construção, aquisição, reparação e ampliação de quaisquer edifícios, salvo quando afectos a actividades produtivas ou administrativas.
6 - São igualmente excluídas do presente regime as despesas efetuadas em ativos afectos a actividades no âmbito de acordos de concessão ou de parceria público-privada celebrados com entidades do sector público.
7 - Considera-se que os terrenos não são ativos adquiridos em estado de novo, para efeitos do n.º 1.
8 - Adicionalmente, não se consideram despesas elegíveis as relativas a ativos intangíveis, sempre que sejam adquiridos em resultado de actos ou negócios jurídicos do sujeito passivo beneficiário com entidades com as quais se encontre numa situação de relações especiais, nos termos definidos no n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC.
9 - Os ativos subjacentes às despesas elegíveis devem ser detidos e contabilizados de acordo com as regras que determinaram a sua elegibilidade por um período mínimo de cinco anos ou, quando inferior, durante o respectivo período mínimo de vida útil, determinado nos termos do Decreto Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de Setembro, alterado pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, ou até ao período em que se verifique o respectivo abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização, observadas as regras previstas no artigo 38.º do Código do IRC.
No caso em apreço, a Autoridade Tributária e Aduaneira não questiona que a Requerente preencha os requisitos subjetivos e objetivos para poder beneficiar do CFEI em relação às despesas de investimento que refere (nem de resto em relação a qualquer outro dos benefícios), tendo indeferido a reclamação graciosa por entender que as despesas em causa não podem ser deduzidas às quantias que pagou a título de tributações autónomas, por a dedução só poder ser efetuada à «colecta de IRC», nos termos do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 49/2013 e essa coleta, no entender da Autoridade Tributária e Aduaneira, não ser integrada pelas quantias devidas a título de tributações autónomas, mas apenas pela quantia resultante da aplicação da taxa de IRC ao lucro tributável.
Como se referiu, está assente no presente processo, inclusivamente por acordo das partes, que o artigo 90.º do CIRC se reporta também à liquidação das tributações autónomas.
E, como se disse, não há suporte legal para afirmar que, na eventualidade de terem de ser efetuados numa declaração vários cálculos para determinar o IRC, seja efetuada mais que uma autoliquidação.
Por isso, a expressão «quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, tem por base a matéria colectável que delas conste», que consta da alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º do CIRC, abrange no seu teor literal, a liquidação das tributações autónomas, cuja matéria coletável tem de ser indicada nas referidas declarações, como resulta, inclusivamente, do próprio modelo 22 de declaração (parte 13).
A coleta obtém-se aplicando a taxa à respetiva matéria coletável, pelo que, no caso do IRC, havendo várias taxas aplicáveis a diversas matérias coletáveis, a coleta de IRC global será constituída pela soma de todos os resultados dessas aplicações.
Assim, por mera interpretação declarativa, conclui-se que a referência que no artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 49/2013 se faz à «dedução à colecta de IRC» como forma de materializar o benefício fiscal, abrange, literalmente também a coleta de IRC resultante das tributações autónomas, que integra a coleta única de IRC.
Sendo esta a interpretação que resulta do teor literal, só por via de uma interpretação restritiva se poderá afastar a aplicação do benefício fiscal à coleta de IRC proporcionada pelas tributações autónomas.
A viabilidade de uma interpretação restritiva encontra, desde logo, um obstáculo de ordem geral, que é o de que as normas que criam benefícios fiscais têm a natureza de normas excecionais, como decorre do teor expresso do artigo 2.º, n.º 1, do EBF, pelo que, na falta de regra especial, devem ser interpretadas nos seus precisos termos, como é jurisprudência pacífica[3]. No caso dos benefícios fiscais, prevê-se explicitamente a possibilidade de interpretação extensiva (artigo 10.º do EBF), mas não de interpretação restritiva, pelo que, em regra, o benefício fiscal não deve ser interpretado com menor amplitude do que a que, numa interpretação declarativa, resulta do teor da norma que o prevê.
De qualquer modo, uma interpretação restritiva apenas se justifica quando «o intérprete chega à conclusão de que o legislador adoptou um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que aquilo que pretendia dizer. Também aqui a ratio legis terá uma palavra decisiva. O intérprete não deve deixar-se arrastar pelo alcance aparente do texto, mas deve restringir este em termos de o tornar compatível com o pensamento legislativo, isto é, com aquela ratio. O argumento em que assenta este tipo de interpretação costuma ser assim expresso: cessante ratione legis cessat eius dispositio (lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance)»[4].
Por isso, há que apreciar se há razões que justifiquem uma conclusão sobre a incompatibilidade do sentido do texto do artigo 3.º, n.º 1, com a ratio legis daquele benefício fiscal.
A razão de ser da criação do referido benefício fiscal é evidente e foi expressamente referida na «Exposição de Motivos» da Proposta de Lei n.º 148/XII, que veio a dar origem à Lei n.º 49/2013:
Em conformidade, contribuindo para o sucesso do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro para Portugal, e com o objetivo de promover a competitividade e o emprego, o Governo compromete-se com uma estratégia dirigida a estimular fortemente o investimento direto em Portugal, já em 2013.
Neste contexto, a presente proposta de lei introduz no ordenamento jurídico português um Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento (CFEI) com o objetivo de produzir um forte impacto no nível de investimento empresarial.
O CFEI corresponde a uma dedução à coleta de IRC no montante de 20% das despesas de investimento realizadas, até à concorrência de 70% daquela coleta. O investimento elegível para este crédito fiscal terá que ser realizado entre 1 de junho de 2013 e 31 de dezembro de 2013 e poderá ascender a 5 000 000,00 EUR, sendo dedutível à coleta de IRC do exercício, e por um período adicional de até cinco anos, sempre que aquela seja insuficiente.
São elegíveis para este benefício os sujeitos passivos que exerçam a título principal uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, disponham de contabilidade regularmente organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respetivo sector de atividade, o respetivo lucro tributável não seja determinado por métodos indiretos e tenham a sua situação fiscal e contributiva regularizada.
Como é óbvio, a concretização deste objetivo legislativo «estimular fortemente o investimento directo em Portugal» e de «produzir um forte impacto no nível de investimento empresarial» aponta manifestamente no sentido de se ter pretendido maximizar e não limitar o alcance do benefício fiscal.
A eventual limitação da aplicação do benefício fiscal a empresas que não apresentassem lucro tributável reconduzir-se-ia a uma fortíssima restrição do seu campo de aplicação, já que, como é facto público, grande parte das empresas, em 2012, apresentava prejuízos fiscais, embora pagasse IRC por outras vias.
Na verdade, segundo a estatística publicada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, no ano de 2012 (último ano cujos dados estariam disponíveis quando foi apresentada a Proposta de Lei n.º 148/XII e, por isso, é de supor que tenha sido considerado), mais de metade das declarações de IRC apresentavam valor líquido negativo e apenas 28% dos sujeitos passivos apresentaram «IRC liquidado», sendo que «cerca de 70% dos sujeitos passivos efectuaram pagamentos de IRC (Quadro 8), por via do Pagamento Especial por Conta, ou de outras componentes positivas do imposto (Tributações Autónomas, Derrama, Derrama Estadual, IRC de períodos de tributação anteriores».[5].
Por isso, é manifesto que a aplicabilidade do benefício fiscal a empresas que, embora apresentassem prejuízos fiscais, pagavam IRC, inclusivamente a título de tributações autónomas, ampliava fortemente o número de empresas potencialmente beneficiárias e, consequentemente, compagina-se melhor com a intenção legislativa subjacente à Lei n.º 49/2013, do que a defendida pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
A discussão da iniciativa legislativa na Assembleia da República confirma que não estava em causa aprovar um benefício fiscal de que apenas poderiam aproveitar a minoria de empresas que pagava IRC com base no lucro tributável do exercício de 2013.
Na verdade, os termos em que foi anunciada a medida pelo Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais apontam para uma medida inédita, de enorme impacto e dimensão:
«(...) esta medida dirige-se prioritariamente, como tive aliás oportunidade de dizer, ao investimento das pequenas e médias empresas. Se não fosse assim, o limite do investimento não tinha sido fixado em 5 milhões de euros. O limite de 5 milhões de euros corresponde ao valor médio do investimento anual de cerca de 97% das empresas portuguesas. E é, exatamente, para essas empresas, para as pequenas e médias empresas, que esta medida de estímulo ao investimento se dirige;
«não é a primeira vez que é criado um crédito fiscal ao investimento em Portugal, existiram outros créditos fiscais, no passado, mas nenhum com o impacto e a dimensão deste»[6].
A pretendida maximização do incentivo fiscal, perspetivado como potencialmente incentivador de cerca de 97% das empresas, apontava claramente para a sua aplicação a qualquer coleta de IRC e não apenas à reduzida minoria que pagava IRC liquidado com base no lucro tributável de cada exercício, pelo que a solução de o aplicar aos créditos de IRC derivados de tributações autónomas, para além de ser a que resulta linearmente do teor literal da Lei n.º 49/2013, é a que se sintoniza com a razão de ser.
Por outro lado, não se pode olvidar que as tributações autónomas visam proteger ou aumentar as receitas fiscais e que os benefícios fiscais concedidos, por definição, são «medidas de carácter excepcional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem» (artigo 2.º, n.º 1, do EBF).
Isto é, no caso em apreço, ao estabelecer um benefício fiscal por dedução à coleta de IRC, o legislador optou por prescindir da receita fiscal que este imposto poderia proporcionar, na medida da concessão do benefício fiscal. Para esta ponderação relativa dos interesses em causa (receita fiscal versus estímulo forte ao investimento) é indiferente que essa receita provenha de cálculos efetuados com base no artigo 87.º ou no artigo 88.º do CIRC. Na verdade, seja qual for a forma de cálculo dessa receita fiscal, está-se perante dinheiro cuja arrecadação o legislador considerou ser menos importante do que a prossecução da finalidade económica referida.
E, no caso do benefício fiscal do CFEI, as razões de natureza extrafiscal que justificam a sua sobreposição às receitas fiscais são, na perspetiva legislativa, de primacial importância, como se afirma na referida Exposição de Motivos e se confirma na apresentação da proposta na Assembleia da República.
Por isso, é seguro que se está perante benefício fiscal cuja justificação é legislativamente considerada mais relevante que a obtenção de receitas fiscais provenientes de IRC, inclusivamente as resultantes de tributação autónomas.
Neste contexto, as questões colocadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira relativas à compatibilidade da solução adotada pela Lei n.º 49/2013 com outras soluções legislativas (designadamente, as adotadas em matéria de regime da transparência fiscal ou grupos de sociedades, que em nada têm aplicação no caso dos autos), não têm qualquer relevância para a apreciação desta questão, pois esta tem de ser apreciada à face dos específicos interesses que na sua ponderação se entrechocam.
Na verdade, o que está em causa é, exclusivamente, determinar o alcance da Lei n.º 49/2013, que é um diploma de natureza excecional, à face do seu texto e dos interesses que visou prosseguir, que não teve em vista decidir qualquer questão conceitual sobre a natureza das tributações autónomas, matéria sobre a qual não se vislumbra quer no texto da Lei, quer nos respetivos trabalhos preparatórios, a menor preocupação legislativa.
Pelo exposto, convergindo os elementos literal e racional da interpretação do artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 49/2013 no sentido de que as despesas de investimento previstas no CFEI são dedutíveis à «colecta de IRC», é de concluir que elas são dedutíveis à globalidade dessa coleta, que engloba, para além, da derivada da tributação dos lucros em cada período fiscal, a que resulta do pagamento especial por conta e de outras componentes positivas do imposto, designadamente de tributações autónomas, derrama estadual e IRC de períodos de tributação anteriores.
Procede, assim, o pedido de pronúncia arbitral quanto a esta questão.
5. Quanto à dedutibilidade do Pagamento Especial por Conta à quantia devida a título de tributação autónoma
Quanto a dedutibilidade das tributações autónomas ao Pagamento Especial por Conta seguimos o que foi decidido no Processo n.º 775/2015-T, de 28 de junho de 2016, a que presidiu o mesmo árbitro que também aqui age nessa qualidade e ainda o que escreveu em voto de vencido no Processo n.º 506/2016-T, de 3 de abril de 2017, precisamente sobre esta matéria.
Com efeito, os pagamentos especiais por conta nem por serem especiais deixam de ser pagamentos por conta. Ou seja, adiantamentos do imposto que a final se liquide, ao qual devem ser deduzidos os pagamentos já efetuados, créditos resultantes de um empréstimo que o contribuinte foi forçado a fazer ao Estado – sejam eles especiais ou não.
É verdade que estes pagamentos especiais por conta visam tributar as empresas que sistematicamente apresentam prejuízos fiscais, e não as que evidenciam resultados fiscais positivos. Mas tal não é obstáculo ao que vimos afirmando.
Assim, no nosso entender, a coleta encontrada mediante a liquidação efetuada nos termos do artigo 90º nº 1 inclui as tributações autónomas, e o nº 2 do mesmo artigo, na sua alínea c), manda deduzir ao montante apurado, que é um só, o “pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106º”.
Não vemos como esta norma possa legitimamente interpretar-se senão literalmente. Todos os elementos a que se atende para a interpretação das leis, designadamente, a intenção do legislador, ou a unidade do sistema, de nada valem se o resultado a que se chega não tem expressão bastante na letra da lei. E essa letra, no caso, é clara e não comporta, a nosso ver, senão um sentido.
É verdade que numerosa jurisprudência dos tribunais arbitrais fez da norma uma interpretação restritiva[7], considerando não dedutíveis os pagamentos especiais por conta. Tal jurisprudência assenta, em resumo, na consideração de que, tendo os pagamentos especiais por conta sido introduzidos para tributar as empresas que sistematicamente apresentam prejuízos fiscais; e assumindo as tributações autónomas um efeito dissuasor e compensatório, perseguindo a evasão fiscal por transferência de rendimentos – o sistema sairia defraudado se se permitisse a utilização dos pagamentos especiais por conta para extinguir a dívida resultante das tributações autónomas. Daí que tais intérpretes se tenham sentido autorizados a fazer uma interpretação restritiva – o legislador disse mais do que queria ao admitir a dedução à coleta resultante das tributações autónomas dos pagamentos especiais por conta.
Porém, com toda a consideração pelos membros dos tribunais que assim entenderam, bem como pela douta argumentação que expandiram, não acompanhamos o assim decidido, pelas razões já sinteticamente expostas. A nosso ver, tal interpretação atende mais ao elemento sistemático e à intenção atribuída ao legislador do que à letra da lei, nada nos fazendo crer que o legislador se manifestou incorretamente, e nada recomendando, consequentemente, a interpretação restritiva.
Seguimos assim, além da jurisprudência acima referida, também a constante dos processos n.º 744/2015, de 3 de maio de 2016 e 326/2016-T, de 26 de fevereiro de 2017, bem como do recente acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 267/2017, de 31 de maio que tem por base uma decisão na qual também se tinha respondido positivamente à questão da dedutibilidade do PEC.
São estas as razões pelas quais entendemos também dever proceder o pedido quanto à dedutibilidade do Pagamento Especial por Conta à coleta relativa às tributações autónomas.
6. A redação dada ao artigo 88.º do CIRC pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março
Aqui chegados, há que analisar a questão do n.º 21 do artigo 88º do CIRC, introduzido pela Lei que aprovou o Orçamento de Estado para 2016 (Lei 7-A/2016, de 30 de março). Na verdade, foram aditados por esta Lei vários números ao artigo 88.º do CIRC, que se refere às tributações autónomas, entre eles o número 21, segundo o qual “A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.” E, no artigo 135.º da Lei 7-A/2016, de 30 de março, dispõe o legislador que “a redação dada pela presente lei ao n.º 6 do artigo 51.º, ao n.º 15 do artigo 83.º, ao n.º 1 do artigo 84.º, aos números 20 e 21 do artigo 88.º e ao n.º 8 do artigo 117.º do Código do IRC tem natureza interpretativa.”
A Administração Tributária entende que a nova redação do artigo 88.º impede a dedução, nos termos do artigo 90.º, do SIFIDE à coleta que resulte das tributações autónomas. Atendendo a que estão em causa liquidações de IRC dos exercícios de 2012 e 2013, importa assim analisar qual o efeito que aquele número e o carácter interpretativo que é atribuído pelo legislador à sua introdução em 2016 têm sobre os factos em apreço.
Vigora na codificação substantiva nacional o princípio de não retroatividade, que é constitucionalmente consagrado quanto à lei fiscal. Acontece que uma lei interpretativa não é, dita o artigo 13º, n.º 1, do Código Civil, retroativa.
Nos termos ali prescritos, para que uma lei nova – como é, no caso em apreço, o número 21 do artigo 88.º do CIRC - possa ser realmente interpretativa são necessários dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta: e é um facto que a decisão que se impõe a este Tribunal tem carácter controvertido.
Necessário é, porém, também que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Pelo que se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adotar a solução que a lei nova vem consagrar, então esta é decididamente inovadora.
Não basta, porém, que o legislador expressamente confira à lei nova carácter interpretativo para que ela se aplique à questão controvertida que surgira antes da entrada em vigor da lei nova, putativamente interpretativa, para que o julgador esteja obrigado a aplicá-la ao caso concreto. É necessário que o julgador se sentisse habilitado, em face do texto antigo, a adotar a solução que a lei agora preconiza. Norma interpretativa, portanto, é norma que não altera qualquer conteúdo ou elemento da norma interpretada, vem tão só traduzir o seu significado.
Uma norma que altera o sentido, conteúdo ou o alcance da norma interpretada não estará a interpretar, antes a modificar a regra, criando nova norma, instituindo novos direitos, deveres e obrigações.
Sendo certo que até a norma interpretativa deve respeitar os direitos adquiridos sob a vigência da norma interpretada, particularmente em questões relativamente às quais a proibição de retroatividade está especialmente consagrada na Constituição, como é o caso na lei fiscal, cuja retroatividade está proibida pelo n.º 3 do artigo 103.º da CRP.
Neste contexto, a emissão pelo legislador de lei interpretativa, com efeitos retroativos, só é concebível quando, sem qualquer dúvida, se limite a simplesmente reproduzir (= produzir de novo), ainda que com outro enunciado, o conteúdo normativo interpretado, sem modificar ou limitar o seu sentido ou o seu alcance. Isso, bem se percebe, é hipótese de difícil conceção, quase inconcebível, a não ser no plano teórico, ainda mais quando se considera que o conteúdo de um enunciado normativo reclama, em geral, interpretação sistemática, não podendo ser definido isoladamente[8].
No caso sub judice, por tudo o que se deixou já explicitado supra, entende-se que o texto da lei em vigor à data dos factos em crise não permitia que se concluísse que estava vedada a dedução do SIFIDE, RFAI, CFEI e Pagamento Especial por Conta à parte da coleta de IRC que resultava das tributações autónomas.
Isto porque, como dissemos supra, o legislador em lado algum apontava para essa solução e, no artigo 90.º do CIRC, não distinguia, no que respeita às deduções possíveis à coleta de IRC, aquela que resultava das tributações autónomas da restante. E onde a lei não distingue não cabe ao intérprete distinguir.
Entendemos, pois, que o número 21 do artigo 88.º do CIRC não tem caráter interpretativo no que respeita à questão em discussão, não se aplicando a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor, nomeadamente, aos factos e liquidações sub judice.
A esta conclusão chegou recentemente, com fundamentação detalhada o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 267/2017, de 31 de maio, no qual de afirma que “aquele que representava um certo entendimento jurisprudencial quanto à admissibilidade de deduções ao montante global da coleta de IRC, incluindo nesta o valor das tributações autónomas – como o sufragado nas decisões do CAAD proferidas no âmbito dos processos n.ºs 769/2014-T, 163/2014-T, 219/2015-T e 370/2015 –, deixou de ser admissível à luz do citado n.º 21. Daí ser inequívoco o caráter substancialmente retroativo desse preceito, entendido como lei interpretativa. Dado o conteúdo gravoso para os contribuintes da nova solução legal – visto que tende a agravar o quantum devido a título de IRC –, a pretensão de a mesma se aplicar a anos fiscais anteriores ao do início da sua vigência mostra-se flagrantemente incompatível com a proibição constitucional de impostos retroativos (cfr. o artigo 103.º, n.º 3, da Constituição)”.
Termos em que se conclui que o ato de autoliquidação de IRC relativo ao exercício de 2014, na medida correspondente à não dedução de parte da coleta do IRC, enferma de vício de violação de lei que justifica a sua anulação, o mesmo sucedendo com a decisão da reclamação graciosa, na medida em que não reconheceu essa ilegalidade.
Fica, pois, prejudicada a análise da questão suscitada pela Requerente quanto à eventual ilegalidade e consequente anulação da liquidação das tributações autónomas por ausência de base legal para a sua liquidação.
7. Dos juros indemnizatórios
Finalmente, tratemos o pedido formulado pela Requerente de reembolso das quantias que aqui se julgaram já indevidamente (auto)liquidadas e pagas em consequências da autoliquidação em crise.
A Requerente pede ainda juros indemnizatórios pelo pagamento indevido do IRC, desde 1 de setembro de 2015, quanto a € 350.421,21€,
De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão, de que não caiba recurso ou impugnação, vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».
Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».
Ora, é pacífico que o processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como resulta do disposto no artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo. 61.º, n.º 4 do CPPT.
Assim, o n.º 5 do artigo. 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.
Cumpre, assim, apreciar o pedido de reembolso do montante indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, há lugar a reembolso do imposto pago, por força dos referidos artigos. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para «restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado».
Quanto aos juros, o regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, que “1 - São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido. 2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efetuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.”
Ora, no caso em apreço, a ilegalidade das autoliquidações é totalmente imputável à AT, Requerida, face ao que foi supra dado como provado relativamente à estrutura da declaração Modelo 22 do IRC no sistema informático da AT, organização que é, naturalmente, da total responsabilidade desta, que não permitia à Requerente efetuar a autoliquidação nos termos que aqui se julgaram serem os legais.
Por outro lado, também a manutenção da situação ilegal, i. e., a decisão da reclamação graciosa é imputável à Administração Tributária, que a indeferiu por sua iniciativa.
Das autoliquidações em crise, caso fosse considerada a dedução do SIFIDE, RFAI, CFEI e PEC à coleta do IRC associada às tributações autónomas a Requerente não teria de ter procedido ao pagamento de imposto nos montantes referidos. Consequentemente, a Requerente tem direito aos juros indemnizatórios peticionados, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1, e 35.º, n.º 10 da LGT, do artigo 24.º, n.º 1, do RJAT, do artigo 61.º, n.ºs 3 e 4, do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril (ou outra ou outras que alterem a taxa legal), desde as datas referidas até integral pagamento.
VII. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se, por maioria, julgar totalmente procedentes os pedidos principais da Requerente e, em consequência:
a) Anular, por ilegal, a autoliquidação impugnada, bem como a decisão da respetiva reclamação graciosa;
b) Determinar o reembolso à Requerente do imposto liquidado, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos atrás apontados.
VIII. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se em € 350.421,21 o valor do processo.
IX. VALOR DAS CUSTAS
Não há que fixar o montante das custas nem a sua responsabilidade, por força do disposto nos artigos 22º nº 4 e 12º nº 3 do RJAT e 5º nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Notifique-se.
Lisboa, 14 de agosto de 2017.
Os árbitros
(José Baeta de Queiroz)
(João Taborda da Gama)
(Nuno Maldonado de Sousa - vencido, conforme voto anexo, que integra a presente decisão)
Declaração de voto
Não comungo da visão que fez vencimento neste acórdão. Não me parece que as declarações de voto devam ser o local próprio para o debate de soluções jurídicas e resumo por isso a minha divergência em breves linhas, sumariando a orientação que me parece mais adequada para o tratamento das “tributações autónomas”. Trata-se afinal de revisão da orientação que adotei noutras situações em que intervim, iluminada com os contributos que fui recolhendo, oriundos dos defensores das duas soluções que a questão da dedutibilidade das tributações autónomas comporta.
Não me afasto do ponto de partida que a solução que fez vencimento tomou; também entendo que as tributações autónomas são parte do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, mas não vejo que essa afirmação deva conduzir necessariamente a que o imposto apurado por aplicação das respetivas taxas aos aglomerados de rúbricas sobre os quais incidem, devam ter o mesmo tratamento que tem a coleta obtida através da liquidação padrão (rendimento corrigido menos gastos corrigidos vezes taxa).
Creio que o a disciplina do imposto calculado através das taxas de tributação autónoma é aquela que rege o imposto em geral, ressalvadas as situações em que a sua aplicação conflitue com a disciplina que seja especificada para as “tributações autónomas”. É-lhes assim aplicável o regime geral do IRC, nomeadamente o que é aplicável aos “prazos para apresentação de declarações, competência para a liquidação, privilégios creditórios, meios de impugnação, etc.”. Mas para além da aplicação das regras gerais, haverá que verificar em concreto se a aplicação do regime geral não conflitua com as normas especiais previstas paras tributações autónomas. Cremos que é essa justamente a situação dos autos.
Vejamos brevemente a génese do regime geral e do regime específico das tributações autónomas para tentar identificar os pontos de conflito.
Como é sabido o imposto sobre rendimento das pessoas coletivas nasceu incidindo objetivamente sobre o lucro tributável, correspondendo este à diferença entre o património líquido no fim e no início do período de tributação (veja-se o §5 do preâmbulo do CIRC). Para determinar esse lucro tributável privilegiou-se o recurso à contabilidade, cujas técnicas e conceitos se consideraram meios idóneos para esse fim. É assim que na estrutura conceptual original do IRC o apuramento do lucro tributável toma como ponto de partida o resultado do exercício obtido através das regras técnicas da contabilidade, introduzindo-lhe depois algumas correções de sentido positivo ou negativo, de modo a que este resultado final correspondesse ao lucro tributável, i.e. ao rendimento real que se pretendia tributar (veja-se o §10 do preâmbulo do CIRC). É esta linha de orientação que tem expressão no artigo 17º-1 do CIRC que afirma que o lucro tributável “é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código”. Estas correções “a deduzir” ou “a acrescer” ao resultado líquido do exercício determinado pelo método contabilístico, previstas no CIRC, eram de diversa natureza. Entre estas correções não se encontravam as “tributações autónomas”.
O imposto era então calculado aplicando a taxa geral de 36,5 % ao lucro tributável das entidades com direção efetiva ou estabelecimento estável em território português (artigo 69º CIRC.1989). A liquidação era feita, em termos análogos aos que hoje vigoram, através dos seguintes passos (71º-1 e 2 CIRC.1989): (i) apuramento da matéria coletável na declaração anual, tomando como ponto de partida o resultado contabilístico do exercício, através das correções “a deduzir” e “a acrescer”; (ii) apuramento da coleta por aplicação das taxas aplicáveis; (iii) deduções correspondentes à dupla tributação económica dos lucros distribuídos e à dupla tributação internacional e relativas à coleta de contribuição autárquica, a benefícios fiscais e a relativa a retenções na fonte. Claro que não se regulava nem podia regular o tratamento a dar às “tributações autónomas” que não faziam parte do sistema, que foi concebido nesta estrutura simples: tomar como ponto de partida o resultado contabilístico (17º-1 do CIRC.1989), corrigi-lo de forma a espelhar a rendimento que se pretende tributar através de regras qualitativamente semelhantes às que vigoravam no plano oficial de contabilidade então vigente (artigo 18º e seguintes CIRC.1989), aplicar-lhe a taxa geral (69º-1 CIRC.1989) e ao produto assim obtido fazer-lhe as deduções da tributação que de algum modo já havia sido suportada ou haveria que sê-lo através de outro sistema fiscal (71º-2 CIRC.1989).
A introdução no complexo dos impostos sobre o rendimento da aplicação de taxas de tributação autónoma, foi feita através do Decreto-Lei n.º 192/90 de 9 de junho (DL 192/90), que estipulou que as despesas confidenciais ou não documentadas passassem a ser tributadas autonomamente em IRS e IRC, conforme os casos, a uma taxa de 10 %” (artigo 4º do Decreto-Lei citado). Para entendimento do que constituía esta nova taxa há que notar algumas singularidades da alteração: (i) o artigo 25º da Lei n.º 101/89 de 29 de dezembro[9], que contém a alteração legislativa respetiva, embora ostente a epígrafe Imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) e no seu número 1 preveja alterações ao CIRC, concebeu desde logo esta nova figura de forma extravagante relativamente à estrutura prevista no CIRC, optando por não a considerar ab initio, como alteração ao Código; (ii) embora o DL 192/90 justifique no seu preâmbulo as alterações que introduz ao CIRC, não apresenta quaisquer fundamentos para a nova disciplina que regula no seu artigo 4º, para vigorar de forma independente do Código; (iii) a oneração das despesas confidenciais ou não documentadas que passam a ser tributadas autonomamente em IRC a uma taxa de 10 %, não prejudicava o tratamento que o CIRC impunha para este tipo de gastos no seu artigo 41º-1-h).
Todos os elementos indicam que a introdução do método de tributar despesas em IRC constituiu de início uma medida extravagante, fora da estrutura conceptual do IRC, criada para homenagear o princípio da tributação sobre o rendimento real, reequilibrado através das correções reguladas no CIRC. A dita autonomia desta taxa aparece assim com grande intensidade; embora se considere inegavelmente que o seu produto é imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, não é já o rendimento que se tributa diretamente (como regulava o IRC) mas sim despesas (mesmo que não sejam custos ou gastos). O intuito de combater a contabilização de despesas não reveladas aparece aqui bem evidente, em contraposição com os objetivos próprios do CIRC.
O regime instituído pelo DL 192/90 foi sucessivamente atualizado nas leis que aprovaram os Orçamentos do Estado no capítulo onde são tratados os impostos diretos, sob a epígrafe “despesas confidenciais ou não documentadas”, mas já não em subordinação ao IRC, que é objeto de tratamento em artigos independentes. Essas atualizações consistiram na subida progressiva da taxa em que aquelas despesas eram tributadas autonomamente. Os valores assumidos pela taxa foram de 25% no período 1995-1996 (artigo 29º da Lei n.º 39-B/94 de 27 de setembro[10]), de 30% em 1997-1998 (artigo 31º da Lei n.º 52-C/96 de 27 de dezembro[11]) e 32% em 1999 e 2000 (artigo 31º da Lei n.º 87-B/98, de 31 de Dezembro[12] para 32%). Este primeiro regime das “tributações autónomas acabou por ser revogado em 01-01-2001 (artigos 7º-11 e 21º-2 da Lei n.º 30-G/2000 de 29 de dezembro).
Como primeira aproximação ao objetivo traçado - determinar quais são os pontos de conflito que resultam da aplicação do regime geral do IRC à disciplina das “tributações autónomas”- creio que o regime geral do IRC pretendia tributar o rendimento real das pessoas coletivas; o regime das “tributações autónomas” no período compreendido entre 1990 e 2000 pretendia obstar às despesas confidenciais e não documentadas. O sistema constituído pelas normas do CIRC há de dirigir-se, prima facie, para a citada finalidade. Ora como as “tributações autónomas” são de todo alheias à prossecução do objetivo concetual do CIRC, é forçoso concluir que haverá situações em que as regras gerais não serão idóneas para regular a situação, por prosseguirem fim diverso. É justamente nestas situações em que as normas preexistentes do CIRC contribuam para a determinação do rendimento real, que se verificará a sua inadequação para regerem as “tributações autónomas”, que, repito, perseguiam fins totalmente diferentes. É nestes casos de dissonância que considero que haverá os tais conflitos que importa dirimir.
Esses conflitos são resolvidos através da interpretação normativa. No fundo haverá que dirimir o conflito aparente quando o pensamento legislativo subjacente à norma do regime geral do imposto por um lado e à norma do regime especial que regula a tributação autónoma por outro lado, não são conciliáveis, i.e. da sua aplicação atingir-se-á uma finalidade não prosseguida pela norma em causa.
Este conflito nas finalidades a atingir por cada uma das normas é patente no momento em que foram introduzidas no sistema fiscal português as chamadas “tributações autónomas”. Na sua génese a tributação de despesas confidenciais e não documentadas surge com total autonomia face ao IRC pois é regulada fora do CIRC e usará apenas as suas regras formais que não prejudiquem a ratio legis[13] da norma do artigo 4º do DL 192/90, que era o combate àquele tipo de gastos. Parece claro à luz destes comandos que no período 1990- 2000 não era concebível utilizar créditos fiscais potenciais para satisfazer a obrigação de imposto apurado a este título, sob pena de se perverter o intuito da lei.
Num segundo estádio as “tributações autónomas” foram introduzidas na reforma da tributação do rendimento de 2001. Esta reforma foi efetuada através da Lei n.º 30-G/2000 de 29 de dezembro, que pelo seu artigo 5º introduziu alterações ao IRC, sobretudo ao nível das isenções das pessoas coletivas públicas (artigo 8º), das provisões fiscalmente dedutíveis (artigo 32º), dos custos com realizações de utilidade social (artigo 38º), da enumeração dos encargos não dedutíveis para efeitos fiscais (artigo 41º), do conceito de menos-valias e de mais-valias e seu reinvestimento (artigos 42º e 44º), da eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos (artigo 45º), da dedução de prejuízos fiscais (artigo 46º), dos preços de transferência (artigo 57º) do regime aplicável a não residentes sujeitos a um regime fiscal privilegiado (artigo 57º-A a 57º-C), à tributação de grupos de sociedades (artigos 59º a 60º), do conceito de estabelecimento estável (artigo 4º-A) e do regime simplificado de determinação do lucro tributável (artigo 46º-A) e de diversas obrigações declarativas, sem introduzir alterações de fundo à filosofia do IRC. Na sua linha de orientação geral o CIRC pós reforma manteve os princípios que estão na sua génese; partir do resultado contabilístico e corrigi-lo de acordo com as regras estabelecidas, agora aperfeiçoadas pela experiência de 12 anos, para atingir o lucro tributável.
No que se vem averiguando o CIRC resultante da reforma passou a conter o seu artigo 69º-A, com a epígrafe “Taxa de tributação autónoma”, onde se regulou que as despesas confidenciais ou não documentadas (n.º 1) e as despesas de representação e os encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, barcos de recreio, aeronaves de turismo, motos e motociclos (n.º 2), passavam a ser tributadas autonomamente às taxas, respetivamente, de 50% e de 20%. Relativamente ao pretérito regime do DL 192/90 há apenas que registar (i) que a oneração com a “taxa de tributação autónoma” passa a abranger também as despesas de representação e os encargos relacionados com veículos de turismo; (ii) que o valor da taxa foi atualizado; (ii) que as regras relativas ao procedimento e forma de liquidação não sofreram qualquer adequação à introdução no CIRC desta figura, embora tenham sido alteradas a propósito do regime simplificado de determinação do lucro tributável (artigo 71º). Não se vê que a reforma do CIRC operada em 2000-2001 tenha introduzido qualquer alteração significativa no funcionamento dos mecanismos do IRC e da relação das suas normas com as tributações autónomas. Introduziu-se apenas o mecanismo de combate a despesas consideradas indesejadas que já constava de legislação extravagante, ampliou-se ligeiramente o espetro de aplicação, mas não se adaptou por qualquer forma o procedimento de liquidação. Crê-se por isso que se manteve a caracterização do regime que já antes vigorava, continuando a ter que se efetuar a interpretação das normas de modo a prevenir efeitos contrários à ratio legis.
As sucessivas alterações a este artigo não afetaram por qualquer forma o equilíbrio do sistema, que se manteve até à atualidade.
Note-se que quer a doutrina quer a jurisprudência têm afirmado claramente o escopo da tributação autónoma, na sua formulação constante do CIRC. Saldanha Sanches afirmava que através do método da tributação autónoma se procura evitar a transferência para a esfera das empresas de despesas que têm subjacente intuito remuneratório, de modo a melhorar o enquadramento fiscal dos rendimentos da esfera pessoal, ou a obviar a que sejam contabilizados custos que não têm uma causa empresarial[14]. Por sua vez, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 617/2012[15] afirma-se a propósito das “tributações autónomas” que:
Com este tipo de tributação teve-se em vista, por um lado, incentivar os contribuintes a ela sujeitos a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal e, por outro lado, evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição camuflada de lucros, sobretudo de dividendos que, assim, apenas ficariam sujeitos ao IRC enquanto lucros da empresa, bem como combater a fraude e evasão fiscais que tais despesas ocasionem não apenas em relação ao IRS ou IRC, mas também em relação às correspondentes contribuições, tanto das entidades patronais como dos trabalhadores, para a segurança social.
Mas mais do que afirmar a ratio da imposição de taxas de tributação autónoma, a fundamentação do citado acórdão expressa bem a forma como é entendido o seu cálculo, por confronto com a liquidação do imposto sobre o rendimento de acordo com a taxa geral:
Contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.
O mencionado acórdão expressa ainda de forma clara o modo instantâneo ocorre o facto tributário e a inexistência de caráter periódico, duradouro ou sucessivo na sua formação. Por isso caracteriza assim a operação de liquidação:
Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa.
Pela análise histórica, enquadramento sistemático e posições doutrinárias e jurisprudenciais, considero que a ratio legis das normas que impõem imposto tributado autonomamente é perfeitamente distinta dos objetivos que animam a estrutura geral do CIRC. Consequentemente, a aplicação do regime geral das deduções à coleta não pode constituir obstáculo a que o objetivo subjacente às tributações autónomas seja atingido, sempre que a previsão da norma – existência de determinadas classes de despesas ou ocorrência de determinadas circunstâncias – seja preenchida. Julgo que interpretar as normas relativas à liquidação do IRC ao arrepio dos objetivos do instituto das tributações autónomas contraria o princípio fundamental da interpretação de acordo com a ratio legis, privilegia a aplicação da norma geral (90º CIRC) sobre a norma especial (88º, n.ºs 1, 3, 7, 8, 9, 11, 13 CIRC) e concede prevalência às normas instrumentais (de liquidação) relativamente às normas substanciais (de incidência). Entendo, pois, que a liquidação das tributações autónomas é feita autonomamente, aplicando-se a cada despesa individualizada a taxa determinada para a classe em que essa despesa se inclui. Desta forma o apuramento da tributação autónoma não se confunde com o IRC do exercício, que é calculado considerando o objetivo já referido: tributar o rendimento efetivo corrigido, incluindo-se nestas correções os benefícios específicos que a lei determina. O apuramento do imposto é autónomo e tudo o que se segue é mera organização documental, que tem que ver com o desenho dos impressos ou das aplicações informáticas que sustentam as operações, e que não têm obviamente natureza normativa suficiente para determinar qual o modelo de liquidação em vigor.
Com o maior respeito pela solução adotada, creio que a pretensão não tem sustentação face ao direito.
(Nuno Maldonado Sousa)
[1] J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1999, p. 186.
[2] A Autoridade Tributária e Aduaneira admite no artigo 72.º da sua Resposta que “pese embora as variantes redaccionais utilizadas em diferentes normativos do Código Fiscal do Investimento, do Estatuto dos Benefícios Fiscais e de legislação extravagante, que regulam os benefícios fiscais visam alcançar o mesmo resultado – dedução ao IRC liquidado nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º do respectivo Código – e, portanto, não introduzem qualquer diferença na delimitação do seu real conteúdo”.
[3] Neste sentido, pode ver-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15-11-2000, processo n.º 025446, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 501, páginas 150-153, em que se cita abundante jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e do Supremo Tribunal de Justiça. Este Boletim do Ministério da Justiça está disponível em:
http://www.gddc.pt/actividade-editorial/pdfs-publicacoes/BMJ501/501_Dir_Fiscal_a.pdf
[4] BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso legitimador, p. 186.
[5] O texto está publicado em http://info.portaldasfinancas.gov.pt/NR/rdonlyres/4063B8B8-5ECC-413E-A9A5-DF205BD119A1/0/20140328_NOTAS_PREVIAS_DE_IRC_20102012.pdf.
Este texto foi publicado pela Autoridade Tributária e Aduaneira em março de 2014, pelo que, apesar de reportar a 2012, poderia ser que não estivesse na disponibilidade da Assembleia da República, quando aprovou o diploma do CFEI.
Mas, em março de 2013, já estava disponível o texto idêntico referente ao ano de 2011, em que a situação ainda era pior, a nível de percentagem de IRC liquidado:
«5. Apesar de no período de tributação de 2011 apenas 26% dos sujeitos passivos apresentarem IRC Liquidado (Quadro 7), verifica-se que cerca de 71% dos sujeitos passivos efectuaram pagamentos de IRC (Quadro 8), por via do Pagamento Especial por Conta, ou de outras componentes positivas do imposto (Tributações Autónomas, Derrama, Derrama Estadual, IRC de períodos de tributação anteriores, etc.)»
Este texto está disponível em http://info.portaldasfinancas.gov.pt/NR/rdonlyres/70E81137-189A-440E-AF11-88B4A6CC1C9A/0/Notas_Previas_IRC_20092011.pdf.
De resto, há já vários anos que apenas uma minoria de contribuintes pagava IRC com base no lucro tributável do respectivo exercício, como se pode ver nos documentos estatísticos publicados em http://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/dgci/divulgacao/estatisticas/estatisticas_ir/:
– 29% no período de tributação de 2010, em que cerca de 76% dos sujeitos passivos efectuaram pagamentos de IRC por via do Pagamento Especial por Conta, ou de outras componentes positivas do imposto (Tributações Autónomas, Derrama, Derrama Estadual, IRC de períodos de tributação anteriores, etc.).;
– 31% no período de tributação de 2009, em que de 77% dos sujeitos passivos efectuaram pagamentos de IRC por via do Pagamento Especial por Conta, das Tributações Autónomas e do IRC de exercícios anteriores;
– 34% no período de tributação de 2008, em que 79% dos sujeitos passivos efectuaram pagamentos de IRC por via do Pagamento Especial por Conta, das Tributações Autónomas e do IRC de exercícios anteriores;
– 36% no período de tributação de 2007, em que 80% dos sujeitos passivos efectuaram pagamentos de IRC por via do Pagamento Especial por Conta, das Tributações Autónomas e do IRC de exercícios anteriores.
[6] Diário da Assembleia da República n.º 99, de 07-06-2013, pp. 52-53.
[7] Por exemplo, o processo n.º 784/2015-T, de 13 de maio de 2016 (ponto 3.3).
[8] Cf. Juarez Freitas, A Interpretação Sistemática do Direito, SP, Malheiros, 1995, p. 47.
[9] Aprova o Orçamento de Estado para 1990.
[10] Aprova o Orçamento do Estado para 1995.
[11] Aprova o Orçamento do Estado para 1997.
[12] Aprova o Orçamento do Estado para 1999.
[13] A exposição que se vem fazendo não pode deixar de ter presente que as normas se apuram através da interpretação da lei. Cabe a este propósito dizer que se crê que a ratio legis é a pedra fundamental da interpretação jurídica, face à norma do artigo 9º-1 do Código Civil que exige ao intérprete que faça a reconstituição do pensamento legislativo. Segue-se Manuel de Andrade na definição do conceito, para quem, “inquirir da ratio legis redunda em investigar qual seja a melhor solução – mais justa e mais útil – dentre as que a lei pode comportar” considerando as “circunstâncias do meio social e o sentimento jurídico dominante”; veja-se Manuel A. Domingues de Andrade - Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis. 4ª ed., Coimbra: Arménio Amado Editor, 1963, p. 17, nota 1. Quanto à previsão normativa da ratio legis enquanto elemento fundamental da interpretação no ordenamento jurídico português, segue-se José de Oliveira Ascensão - O Direito: Introdução e Teoria Geral. 3ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1977, p. 329.
[14] José Luís Saldanha Sanches - Manual de direito Fiscal. 3ª ed., Coimbra Editora: Coimbra, 2007, p. 407.
[15] Acórdão do Tribunal Constitucional (plenário) n.º 617/2012 de 19-12-2012, processo n.º 150/12 [João Cura Mariano], disponível em < http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120617.html>.