Decisão Arbitral
I – Relatório
1. No dia 16.01.2017, A…, S.A., com sede na…, n.º…–…, em Lisboa, com o número
de identificação fiscal…, na qualidade de gestora do fundo de investimento imobiliário «B…– Fundo de Investimento Imobiliário Fechado Para Arrendamento Habitacional» registado junto da comissão de Mercado de Valores Mobiliários com o número de identificação fiscal …, requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do art. 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à declaração de nulidade ou, caso assim se não entenda, à anulação, das seguintes liquidações referentes à aquisição da fração autónoma identificada pela letra “I” do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia de …-…, concelho de Sintra, sob o artigo matricial número …, tendo como sujeito passivo B…– Fundo de Investimento Imobiliário Fechado para Arrendamento Habitacional:
a) Liquidação de IMT, no valor de € 840,00, a que corresponde o documento nº… .
B) Liquidações de imposto de Selo, no valor de € 672,00 a que corresponde o documento nº… .
2. A Requerente peticiona ainda o reembolso do valor das liquidações, que considera ter pagado indevidamente, bem como os respetivos juros indemnizatórios.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do art. 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes, nos prazos legalmente aplicáveis, foi designado árbitro o signatário, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído em 21-03-2017.
4. Verificando-se a inexistência de qualquer situação prevista no art. 18º, nº 1, do RJAT, que tornasse necessária a reunião arbitral aí prevista, foi dispensada a realização da mesma.
5. Os fundamentos apresentados pela Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, sinteticamente, os seguintes:
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A Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2009), que aprovou o regime especial aplicável aos fundos de investimento imobiliário para arrendamento habitacional e às sociedades de investimento imobiliário para arrendamento habitacional estabeleceu no artigo 8.º o regime tributário aplicável aos FIIAH no que se refere ao Imposto Municipal Sobre Transmissões Onerosas de Imóveis tendo definido no número 7 do citado artigo 8.º que:
“Ficam isentos do IMT:
a) As aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente, pelos fundos de investimento referidos no n.º 1;
(…)
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A Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2014) aditou ao artigo 8.º do Regime Tributário dos FIIAH os números 14 a 16, com o seguinte texto:
«14 - Para efeitos do disposto nos n.ºs 6 a 8, considera-se que os prédios urbanos são destinados ao arrendamento para habitação permanente sempre que sejam objeto de contrato de arrendamento para habitação permanente no prazo de três anos contados do momento em que passaram a integrar o património do fundo, devendo o sujeito passivo comunicar e fazer prova junto da AT do respetivo arrendamento efetivo, nos 30 dias subsequentes ao termo do referido prazo.
15 - Quando os prédios não tenham sido objeto de contrato de arrendamento no prazo de três anos previsto no número anterior, as isenções previstas nos n.ºs 6 a 8 ficam sem efeito, devendo nesse caso o sujeito passivo solicitar à AT, nos 30 dias subsequentes ao termo do referido prazo, a liquidação do respetivo imposto.
16 - Caso os prédios sejam alienados, com exceção dos casos previstos no artigo 5.º,
ou caso o FIIAH seja objeto de liquidação, antes de decorrido o prazo previsto no n.º 14, deve o sujeito passivo solicitar igualmente à AT, antes da alienação do prédio ou da liquidação do FIIAH, a liquidação do imposto devido nos termos do número anterior.»
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A Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro veio ainda consagrar no seu artigo 236.º o seguinte regime transitório:
«1 - O disposto nos n.ºs 14 a 16 do artigo 8.º do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH, aprovado pelos artigos 102.º a 104.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, é aplicável aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH a partir de 1 de janeiro de 2014.
2 - Sem prejuízo do previsto no número anterior, o disposto nos n.ºs 14 a 16 do artigo
8.º do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH, aprovado pelos artigos 102.º a 104.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, é igualmente aplicável aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH antes de 1 de janeiro de 2014, contando-se, nesses casos, o prazo de três anos previsto no n.º 14 a partir de 1 de janeiro de 2014.»
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Com base nas disposições supra citadas, em particular, as resultantes das alterações
consagradas ao Regime Tributário dos FIIAH, a ora Requerente solicitou à Autoridade Tributária a liquidação de IMT e de Imposto do Selo objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, tendo as liquidações sido pagas pela Requerente em 27 de Outubro de 2016.
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Os atos tributários referem-se a imóvel que integrava o património do Fundo B…, à data de entrada em vigor da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2014), ou seja, os abrangidos pelo acima referido artigo 236.º.
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As isenções de IMT e de imposto de Selo, constantes, respetivamente, dos números 7, alínea a), e 8 do art. 8º do Regime Tributário dos fundos de investimento imobiliário para arrendamento habitacional haviam sido reconhecidas a requerimento do Requerente, nos termos do art. 10º do Código do IMT, em momento anterior ao do ingresso do prédio no Fundo B… .
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O facto objeto da tributação é, quer em sede de IMT, quer em sede de IS, a aquisição da propriedade dos prédios relevantes pelo Fundo B… não sendo as isenções de IMT e IS, à data em que ingressaram no património do Fundo B…, condicionadas à verificação ulterior de quaisquer factos ou circunstâncias nem, tampouco, sujeitas a qualquer regime de caducidade.
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Assim, é manifesto que a imposição posterior aos factos tributários de quaisquer factos ou circunstancias condicionantes da isenção enferma de inconstitucionalidade por violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal, consagrado no art. 103º, nº 3, da constituição da República Portuguesa.
6. A ATA – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente, defendendo-se, em síntese, com os fundamentos seguintes:
POR EXCEÇÃO
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Atento o alegado pelo Requerente, resulta que este pretende (afinal) a desaplicação da norma pela sua alegada ilegalidade/ inconstitucionalidade e não por qualquer ilegalidade ocorrida na sua aplicação aos factos concretos.
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Ora, sucede que o Tribunal Constitucional é o foro competente para conhecer quer da ilegalidade, quer da inconstitucionalidade de normas legais [arts. 280.º, n.º 2, als. a) e d) e 281.º, n.º 1, als. a) e b) e n.º 3 da CRP e arts. 6.º e 66.º da Lei do Tribunal Constitucional].
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O Tribunal é incompetente para efetuar uma fiscalização abstrata, que está reservada ao Tribunal constitucional nos termos do art. 281º da CRP pelo que se está perante uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, com a consequente absolvição da instância, nos termos dos artigos 576º, nºs 1 e 2 e 577º, a) do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do art. 29º, nº 1, al. e) do RJAT.
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Com idêntica consequência, deve ser declarada ilegitimidade da Requerida pois que “A Administração Tributária não se pode recusar a aplicar normas com fundamento na sua inconstitucionalidade ou ilegalidade, pois está sujeita ao princípio da legalidade, conforme estatuído nos artigos 266.º n.º 2 da CRP, 3.º n.º 1 do CPA e 55.º da LGT”
POR IMPUGNAÇÃO
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Conforme resulta da respetiva descrição das liquidações em apreço, relativas à aquisição do prédio em causa, foi liquidado IMT e Imposto de selo nos termos do artigo 235.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro [que aditou o n.º 16 ao artigo 8.º da Lei 64-A/2008, de 31 de Dezembro], por força da celebração de escritura de compra e venda, pois tal facto determina que ao imóvel tenha sido dado destino diferente daquele em que assentou o benefício, caducando a isenção.
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O n.º 14 do artigo 8.º do Regime Tributário dos FIIAH veio concretizar o significado da expressão “prédios urbanos destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente», pois que, nos termos nele previstos, «considera-se que os prédios urbanos são destinados ao arrendamento para habitação permanente sempre que sejam objeto de contrato de arrendamento para habitação permanente no prazo de três anos contados do momento em que passaram a integrar o património do fundo».
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Sendo que, a par de tal concretização, com a introdução dos números 15º e 16.º no referido artigo 8.º, passou a estar previsto um regime de cessação do benefício no caso de não ser observado o requisito legal constante do n.º 14.
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No caso em apreço, relativamente ao prédio a que se referem as liquidações objeto do presente processo e que integrava o Fundo à data da entrada em vigor da Lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro, o Requerente solicitou à AT as liquidações de IMT e de Imposto do Selo, face às alterações introduzidas ao regime tributário dos FIIAH, na medida em que o alienou a terceiros, conferindo-lhe, assim, destino diferente daquele que seria suposto: o arrendamento habitacional.
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Os sujeitos passivos que pretendessem beneficiar das referidas isenções, sempre tiveram, desde o início do regime tributário aplicável aos FIIAH, que cumprir o pressuposto de que tais prédios fossem destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente.
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Pelo que, falece razão ao Requerente quando afirma que as isenções em apreço não eram condicionadas por quaisquer factos ou circunstâncias, e, consequentemente, a argumentação que constrói, partindo de tal errado pressuposto, encontra-se igualmente ferida de erro.
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A nova redação introduzida pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, em prol da segurança jurídica e do princípio da proteção da confiança, e na senda do espírito do legislador, aquando da criação do regime, veio apenas densificar o critério já exigido.
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As isenções em questão não deixaram simplesmente de vigorar: o que sucedeu, apenas, foi que foram estabelecidos critérios para concretizar um requisito legal previsto de forma indeterminada.
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Por outro lado, a cessação de um benefício fiscal sempre poderá ter lugar, por exemplo, caso se constate, num caso concreto, mediante fiscalização, que não se verificam os respetivos pressupostos, ao que acresce, ainda, dispor o artigo 14.º, n.º 2, do EBF que:
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“quando o benefício fiscal respeite a aquisição de bens destinados à direta realização dos fins dos adquirentes, fica sem efeito se aqueles forem alienados ou lhes for dado outro destino sem autorização do Ministro das Finanças, sem prejuízo das restantes sanções ou de regimes diferentes estabelecidos por lei”
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A atuação da entidade Requerida, encontra-se sempre balizada em função da sua subordinação à lei, não podendo desaplicar uma norma em função da sua inconstitucionalidade, caso essa inconstitucionalidade se verificasse, o que por mera hipótese académica se concede.
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Improcede assim o pedido de pagamento de juros indemnizatórios pois não se verifica qualquer erro na atuação da entidade requerida, muito menos um erro imputável aos serviços, ficando assim afastada a aplicação do artigo 43.º da LGT.
7. Com o pedido de constituição do Tribunal Arbitral a Requerente juntou aos autos parecer jurídico da autoria dos Senhores Professores Dr. C… e Doutor D… .
8.Por despacho arbitral de 27.06.2017 foram julgadas improcedentes as exceções suscitadas pela Requerida.
9.O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.
O processo não padece de vícios que o invalidem.
10. Cumpre solucionar as seguintes questões:
a) Se são ilegais as liquidações objeto do presente processo.
b) Em caso afirmativo se deve ser reconhecido ao Requerente o direito à restituição dos impostos alegadamente pagos, bem como juros indemnizatórios sobre tais quantias.
II – A matéria de facto relevante
11. Consideram-se provados os seguintes factos:
1.A Requerida procedeu às seguintes liquidações, tendo como sujeito passivo B…– Fundo de Investimento Imobiliário Fechado para Arrendamento Habitacional:
a) Liquidação de IMT, no valor de € 840,00, a que corresponde o documento nº… .
B) Liquidações de imposto de Selo, no valor de € 672,00 a que corresponde o documento nº… .
2. A fração autónoma identificada pela letra “I” do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia de …-…, concelho de Sintra, sob o artigo matricial número…, a que se referem os atos tributários em causa integrava o património de B…– Fundo de Investimento Imobiliário Fechado Para Arrendamento Habitacional, à data da entrada em vigor da Lei nº 83-C/20133, de 31 de Dezembro, por ter sido adquirido a titulo oneroso em data anterior.
3.As isenções de IMT e de imposto de Selo, constantes, respetivamente, dos números 7, alínea a), e 8 do art. 8º do Regime Tributário dos fundos de investimento imobiliário para arrendamento habitacional, haviam sido reconhecidas a requerimento do Requerente nos termos do art. 10º do Código do IMT, em momento anterior ao do ingresso da fração em causa no Fundo B…, como Fundo de investimento imobiliário para arrendamento habitacional.
4. Da liquidação de IMT em causa consta o seguinte:
5. Da liquidação de imposto de selo em causa consta o seguinte:
6. As obrigações tributárias a que se referem as liquidações foram pagas em 27 de Outubro de 2016.
Com interesse para a decisão da causa, no âmbito da matéria de facto alegada pelas partes, inexistem factos não provados.
12. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se nos documentos constantes do processo, bem como dos articulados apresentados, e ainda da circunstância de ocorrer total concordância das partes relativamente à mesma, cingindo-se o desacordo à matéria de direito.
-III- O Direito aplicável
13. A Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, aprovou o regime especial aplicável aos fundos de investimento imobiliário para arrendamento habitacional e às sociedades de investimento imobiliário para arrendamento habitacional.
No seu artigo 8º estabeleceu-se o regime tributário aplicável aos fundos de investimento imobiliário. No que se refere ao Imposto Municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis e ao Imposto de Selo, foi estabelecido nos nºs 7 e 8 do mencionado art. 8º, o seguinte:
“7 — Ficam isentos do IMT:
a) As aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente, pelos fundos de investimento referidos no n.º 1;
b) As aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados a habitação própria e permanente, em resultado do exercício da opção de compra a que se refere o n.º 3 do artigo 5.º pelos arrendatários dos imóveis que integram o património dos fundos de investimento referidos no n.º 1.”
8 - Ficam isentos de imposto do selo todos os actos praticados, desde que conexos com a transmissão dos prédios urbanos destinados a habitação permanente que ocorra por força da conversão do direito de propriedade desses imóveis num direito de arrendamento sobre os mesmos, bem como com o exercício da opção de compra previsto no n.º 3 do artigo 5.º.
Por sua vez, a lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro, aditou ao referido art. 8º os números 14º a 16º com a seguinte redação:
“14 — Para efeitos do disposto nos nºs 6 a 8, considera--se que os prédios urbanos são destinados ao arrendamento para habitação permanente sempre que sejam objeto de contrato de arrendamento para habitação permanente no prazo de três anos contados do momento em que passaram a integrar o património do fundo, devendo o sujeito passivo comunicar e fazer prova junto da AT do respetivo arrendamento efetivo, nos 30 dias subsequentes ao termo do referido prazo.
15 — Quando os prédios não tenham sido objeto de contrato de arrendamento no prazo de três anos previsto no número anterior, as isenções previstas nos n.os 6 a 8 ficam sem efeito, devendo nesse caso o sujeito passivo solicitar à AT, nos 30 dias subsequentes ao termo do referido prazo, a liquidação do respetivo imposto.
16 — Caso os prédios sejam alienados, com exceção dos casos previstos no artigo 5.º, ou caso o FIIAH seja objeto de liquidação, antes de decorrido o prazo previsto no n.º 14, deve o sujeito passivo solicitar igualmente à AT, antes da alienação do prédio ou da liquidação do FIIAH, a liquidação do imposto devido nos termos do número anterior.”
A lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro, veio, ainda, consagrar no seu artigo 236º, o seguinte regime transitório:
“1 — O disposto nos n.os 14 a 16 do artigo 8.º do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH, aprovado pelos artigos 102.º a 104.º da Lei n.º 64 -A/2008, de 31 de dezembro, é aplicável aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH a partir de 1 de janeiro de 2014.
2 — Sem prejuízo do previsto no número anterior, o disposto nos n.os 14 a 16 do artigo 8.º do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH, aprovado pelos artigos 102.º a 104.º da Lei n.º 64 -A/2008, de 31 de dezembro, é igualmente aplicável aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH antes de 1 de janeiro de 2014, contando -se, nesses casos, o prazo de três anos previsto no n.º 14 a partir de 1 de janeiro de 2014.”
14. Face a este quadro legislativo a questão jurídica que cumpre solucionar é a de saber se, à luz do nº 2, do art. 236º, da lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro e dos nºs 14º, 15º e 16º da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, na redação conferida por aquele diploma, a aquisição do imóvel em causa, ocorrida antes de 1 de Janeiro de 2014, pode ser tributada por o imóvel ter sido vendido antes de decorrido o prazo de três anos contados a partir de 1 de Janeiro de 2014 e, por outro lado, em caso afirmativo, se tal solução legal é conforme com o art. 103º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, que determina que “Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos (…) que tenham natureza retroactiva (…)”
15. É indubitável que, face às normas ordinárias transcritas, um Fundo de Investimento Imobiliário para arrendamento habitacional que, a partir de 1.01.2014, venda um imóvel adquirido em ano anterior, que tenha beneficiado de isenção por o imóvel ter como destino o arrendamento para habitação permanente e que o venda antes de decorridos 3 anos após 1.01.2014, fica sujeito a imposto por força da lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro.
Note-se que, no caso “sub judice”, o facto tributário em causa (a aquisição da propriedade por parte do Requerente) verificou-se inteiramente ao abrigo da lei antiga.
É também indubitável que o facto tributário em causa é sujeito a tributação face à lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro, mas não o era, como melhor de verá adiante, face à Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, na sua redação originária.
16. Escreve Sérgio Vasques que “A consagração da proibição expressa do art. 103º, nº 3, da Constituição da República, serve essencialmente para deixar claro que a retroactividade, forte ou fraca, está por princípio, vedada ao legislador fiscal, que só poderá socorrer-se dela a titulo excepcional. Em face do art. 103º, nº 3, da CRP, uma lei fiscal retroactiva afigurar-se-á sempre, e à partida, lei inconstitucional, não sendo necessária qualquer ponderação casuística para se chegar a esta primeira conclusão. Mas isto não obsta a que, num segundo momento, concluamos que a segurança jurídica deve [ser] sacrificada a outros valores constitucionais que no caso concreto se mostrem mais relevantes e que em circunstâncias excepcionais se considere legítima a lei fiscal retroactiva, como pode acontecer em caso de guerra, catástrofe natural, epidemia ou grave crise financeira”.[1]
Ainda na doutrina, diz-nos Ana Paula Dourado que “Nos casos dos impostos de obrigação única (por exemplo, a compra e venda de um imóvel, sujeito a IMT) a proibição da retroatividade implica o respeito pelos factos tributários passados, ou seja a não aplicação da lei nova a esses factos, pois a obrigação tributária nasceu e está concluída.”[2]
17. Em linha com a qualificada doutrina acabada de referir, poder ler-se no acórdão nº 617/2012, de 19 de dezembro de 2012 , Processo n.º 150/12, do Tribunal constitucional:
“Com efeito, o facto gerador da obrigação fiscal (….)ocorre indubitavelmente antes da publicação da lei nova, não sendo possível entender que se está perante um facto jurídico-fiscal complexo de formação sucessiva.
A aplicação da nova lei a este facto ocorrido anteriormente à sua aprovação envolve, pois, uma retroactividade autêntica.
O que releva, face aos princípios constitucionais enunciados, não é o momento de liquidação de um imposto, mas sim o momento em que ocorre o ato que determina o pagamento desse imposto. É esse ato que vai dar origem à constituição de uma obrigação tributária, pelo que é nessa altura, em obediência ao princípio da legalidade, na vertente fundamentada pelo princípio da proteção da confiança, que se exige, como medida preventiva, que já se encontre em vigor a lei que prevê a criação ou o agravamento desse imposto, de modo a que o cidadão possa equacionar as consequências fiscais do seu comportamento.
(…)
Ora, tendo já ocorrido o facto que deu origem à obrigação tributária posteriormente agravada por lei nova, as razões que presidiram à consagração da regra de proibição da retroatividade neste domínio estão integralmente presentes, uma vez que importa prevenir o risco abstrato de que a lei publicada com retroação de efeitos provoque agravos financeiros desrazoáveis, pela impossibilidade em que se encontravam os contribuintes afetados, vinculados a tais factos já ocorridos, de prever e prover quanto às suas consequências tributárias, determinadas por lei futura.”
18. De acordo com o exposto, e na linha da doutrina e jurisprudência citadas é inequívoco que o nº 2, do art. 236º da lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro, em conjugação com o nº 16º do art. 8º da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, na redação da lei 83-C/2013, estabelece uma tributação retroativa (ratroatividade autêntica), violadora do art. 103º, nº 3, da Constituição da Republica Portuguesa, pelo que não pode o tribunal deixar de desaplicar as mesmas, em obediência à norma consagrada no art. 204º da CRP.[3]
19. No essencial no sentido que acaba de se expor, escrevem os Professores José Xavier de Basto e Paulo Mota Pinto, no mencionado parecer junto aos autos:
“Ao preceituar a aplicação de normas que restringiram isenções -os novos nºs 14 a 16 do artigo 8º do regime dos FIIAH, com o consequente efeito de “alargamento” da incidência – a aquisições onerosas de imóveis e atos e contratos conexos anteriores à sua entrada em vigor, os quais não estavam sujeitos a IMT e a imposto de selo à data da sua prática e passarem a estar por efeito dessa disposição transitória especial, a norma do nº 2 do artigo 236º da Lei do OE para 2014 é assim, uma norma fiscal retroativa, e que se carateriza por uma retroatividade autêntica.
A isto não obsta qualquer alegação no sentido de que a referida restrição da isenção apenas teria visado comprovar a finalidade de arrendamento das aquisições, já que tal pressuposto da isenção não existia – não estava concretizado e plasmado num prazo previsto na lei – no momento em que os factos tributários relevantes (a aquisição dos imóveis e os atos e contratos conexos) se completaram. Tal como é irrelevante que se preveja que o prazo de três anos apenas de conta a partir da entrada em vigor da Lei do OE para 2014, já que tal pressuposto da isenção (o prazo) não era sequer exigido no momento em que os factos tributários relevantes foram praticados.
A norma do artigo 236º, nº 2, da Lei do OE de 2014 atribui, pois, efeitos retroativos à restrição das isenções operada pelo artigo 235º da mesma Lei, pois ordena a aplicação dos novos pressupostos das isenções – arrendamento e não alienação num prazo de 3 anos, sob pena de estas ficarem “sem efeito” – a aquisições e a atos (isto é, a factos tributários já completos) anteriores à sua entrada em vigor.
(…)
Alcançada a conclusão anterior, é forçoso também concluir pela inconstitucionalidade, por violação da proibição constitucional de imposto com natureza retroativa, constante do artigo 103º, nº 3, da Constituição, da norma do artigo 236º, nº 2, da Lei do OE para 2014, na medida em que prevê a aplicação das alterações às isenções de IMT e de imposto de selo dos FIIAH a factos tributários (aquisição de imóveis) anteriores à sua entrada em vigor.”
20. A Requerida embora defenda a conformidade constitucional do art. 236º, nº 2, da Lei do OE de 2014, e caducidade da liquidações face a esta Lei, sustenta, ainda, a legalidade das liquidações, por caducidade das isenções, também face ao regime fiscal aplicável antes da entrada em vigor da lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro.
21. Assim, defende a Requerida que os sujeitos passivos que pretendessem beneficiar das referidas isenções, sempre tiveram, desde o início do regime tributário aplicável aos FIIAH que cumprir o pressuposto de que tais prédios fossem destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente e que, no caso em apreço, relativamente ao prédio a que se referem as liquidações objeto do presente processo o Requerente, o alienou a terceiros, conferindo-lhe, assim, destino diferente do arrendamento habitacional, que constituía condição das isenções em apreço e que a nova redação introduzida pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, em prol da segurança jurídica e do princípio da proteção da confiança, e na senda do espírito do legislador, aquando da criação do regime, veio apenas densificar o critério já exigido.[4]
Apreciemos esta argumentação da Requerida.
22. Os números 7 e 8, do art. 8º do regime especial aplicável aos fundos de investimento imobiliário para arrendamento habitacional e às sociedades de investimento imobiliário para arrendamento habitacional, aprovado pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, aprovou ficaram isentos do IMT podem ser, com utilidade interpretativa, cotejados com o art. 9º do CIMT que estabelece que “São isentas do IMT as aquisições de prédio urbano ou de fracção autónoma de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação própria e permanente cujo valor que serviria de base à liquidação não exceda € 92 407”.
Por sua vez, estabelece o nº 7, do art. 11º, do mesmo código que:
“Deixam de beneficiar igualmente de isenção e de redução de taxas previstas no artigo 9.º e nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 17.º as seguintes situações:
a) Quando aos bens for dado destino diferente daquele em que assentou o benefício, no prazo de seis anos a contar da data da aquisição, salvo no caso de venda;
b) Quando os imóveis não forem afectos à habitação própria e permanente no prazo de seis meses a contar da data da aquisição.”
Resulta, assim, claro que, para o legislador “destinar um prédio exclusivamente a habitação” não equivale a “afetar”, pois de outro modo não se compreenderia a exigência dum prazo para tal afetação sob pena de perda da isenção.
Por outro lado, ao impor-se um prazo dentro do qual a mudança de destinação do imóvel, implica também a perda da isenção, o legislador reconhece que, na ausência de tal previsão normativa, a mudança de destinação não implicaria a perda da isenção.
O vocábulo “destinar” expressa a intenção do sujeito passivo no momento do facto tributário e que, declarada perante a Requerida, legalmente se presume verdadeira face ao art. 75º, nº 1, da Lei Geral Tributária, sem prejuízo da Administração Tributário poder ilidir tal presunção nos termos gerais.
Debruçando-se sobre os nºs 7º e 8º do art. 8º do Regime dos FIIAH, decorrente da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, dizem-nos os ilustres autores do parecer acima citado que:
“Segundo estas normas, bastava, pois, para a isenção de IMT, que se tratasse de aquisições, pelos FIIAH, de prédios urbanos ou de frações autónomas de prédios destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente – designadamente, nada se previa sobre a necessidade de manutenção dos prédios no património dos FIIAH durante um certo prazo, ou sobre a necessidade de celebração efetiva do contrato de arrendamento também em determinado prazo. Se, portanto, um FIIAH adquirisse imóveis destinados a arrendamento habitacional -contando como tal para efeitos das regras sobre a composição do seu património-, tal aquisição beneficiaria da isenção de IMT, mesmo que, por exemplo por dificuldades de mercado, não conseguisse concretizar o arrendamento durante certo prazo, ou que por isso viesse a alienar o imóvel. O que se compreende: o legislador quis incentivar a aquisição de imóveis para arrendamento pelos FIIAH e a sua colocação no mercado, prevendo para isso a isenção do IMT, mas sem colocar sobre os FIIAH o risco, sob pena de perda do benefício consistente na isenção, de não conseguir arrendar os imóveis, ou de não os poder alienar, como veio a prever a nova lei (…)”[5]
Face ao exposto, não pode deixar de se concluir que no âmbito do art. 8º do Regime dos FIIAH, decorrente da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, antes das alterações introduzidas pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, as isenções em causa não caducaram.
23. Acrescente-se que a tal conclusão não obsta, ao invés do que também alega a Requerida, o artigo 14.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, do seguinte teor:
“quando o benefício fiscal respeite a aquisição de bens destinados à direta realização dos fins dos adquirentes, fica sem efeito se aqueles forem alienados ou lhes for dado outro destino sem autorização do Ministro das Finanças, sem prejuízo das restantes sanções ou de regimes diferentes estabelecidos por lei”.
Antes de mais, há que salientar que, sendo pressuposto da extinção do benefício fiscal a circunstância de ter sido dado ao imóvel “outro destino sem autorização do Ministro das Finanças” não constitui fundamento do ato tributário a ausência de tal autorização do Ministro das Finanças, nem tal é alegado pela Requerida nestes autos.
Acresce que a Requerida também não invoca qualquer norma que consagre os requisitos de tal autorização, nem a atribuição de competência ao Ministro das Finanças para a concessão da mesma.
No nosso entender o art. 14º, nº 3, do EBF deve ser aproximado do regime de isenção das seguintes alíneas do art. 6º do CIMT:
“ d) (As pessoas colectivas de utilidade pública administrativa e de mera utilidade pública, quanto aos bens destinados, directa e imediatamente, à realização dos seus fins estatutários).
e) (As instituições particulares de solidariedade social e entidades a estas legalmente equiparadas, quanto aos bens destinados, directa e imediatamente, à realização dos seus fins estatutários).
f) (Aquisições de bens para fins religiosos, efectuadas por pessoas colectivas religiosas, como tal inscritas, nos termos da lei que regula a liberdade religiosa).
g) (As aquisições de prédios individualmente classificados como de interesse nacional, de interesse público ou de interesse municipal, nos termos da legislação aplicável), h) (As aquisições de bens situados nas regiões economicamente mais desfavorecidas, quando efectuadas por sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial, que os destinem ao exercício, naquelas regiões, de actividades agrícolas ou industriais consideradas de superior interesse económico e social).
i) (As aquisições de bens por associações de cultura física, quando destinados a instalações não utilizáveis normalmente em espectáculos com entradas pagas).”
A respeito destas isenções estabelece o art. 11º do mesmo código que:
“1- Ficam sem efeito as isenções a que se referem as alíneas d), e), f), h) e i) do artigo 6.º quando os bens forem alienados ou lhes for dado outro destino sem autorização prévia do Ministro das Finanças.
2 - A autorização prevista no número anterior só será de conceder quando se verificar a impossibilidade ou se reconhecer a inconveniência de aos bens ser dado o primitivo destino e o novo destino desses bens ou dos adquiridos com o produto da sua venda justificar igualmente a isenção.
(…)”.
Nada disto estava previsto relativamente às isenções a que respeita o presente processo. Nem a caducidade do benefício, nem a possível autorização ministerial que impedisse tal caducidade e, consequentemente, nem os possíveis fundamentos para a hipotética autorização.
Pelas razões expostas, manifestamente, improcede também esta argumentação da Requerida.
24. Por tudo o que fica exposto, e designadamente pela desaplicação do nº 2, do art. 236º da lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro, em conjugação com o nº 16º do art. 8º da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, na redação da lei 83-C/2013, com fundamento na sua inconstitucionalidade, como impõe o art. 204º da Constituição da República Portuguesa, conclui-se que as liquidações de imposto em causa carecem de base legal, o que tem como consequência a anulação das mesmas.[6]
25. Veio, ainda, a Requerente pedir a condenação da Requerida a restituir as quantias pagas correspondentes à liquidação objeto do presente processo, bem como os respetivos juros indemnizatórios.
Vejamos.
De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que “a Administração Tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.
Embora o artigoº 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.[7]
O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se retira do artigoº 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” e do artigoº 61.º, n.º 4 do CPPT (na redação dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redação inicial), que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”.
Assim, o n.º 5 do artigoº 24.º do RJAT ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.
No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, há lugar a reembolso do imposto, por força dos referidos arts. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.
No que concerne aos juros indemnizatórios, cabe ainda apreciar esta pretensão à luz do artigo 43º da Lei Geral Tributária.
Dispõe o nº 1 daquele artigo que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Como se pode ler no acórdão do STA, de 03/04/2015, proferido no processo n.º 01529/14[8]:
“Importa, então, apurar se esse “erro sobre os pressupostos de direito” (se a errada consideração, no apuramento do imposto a pagar, de norma posteriormente julgada inconstitucional) pode ou não ser imputável aos serviços da AT. (….)Ou seja, há que apreciar se a AT poderia ou não fazer aquele “julgamento”.
Também sobre esta concreta questão o STA já por diversas vezes se pronunciou em casos semelhantes (cfr., entre outros, os acs. de 26/2/2014, rec. nº 0481/13; de 12/3/2014, rec. nº 01916/13; de 21/1/2015, rec. nº 0843/14; de 21/1/2015, rec. nº 0703/14), no sentido de que, para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte, não pode ser imputado aos serviços da AT erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, uma vez que não estava na sua disponibilidade decidir de modo diferente daquele que decidiu.
E como logo naquele primeiro aresto citado se exarou, «…a menos que esteja em causa o desrespeito por normas constitucionais diretamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP, a AT não pode recusar-se a aplicar a norma com fundamento em inconstitucionalidade (Com interesse sobre a questão, vejam-se os pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República referidos na Colectânea dos Pareceres da Procuradoria-Geral da República, volume V, pontos 10, 3, 3.2 – respetivamente, com as epígrafes «Fiscalização da constitucionalidade», «Fiscalização sucessiva» e «(In)aplicação de norma inconstitucional (poderes e deveres da Administração Pública)» –, cuja doutrina seguimos.).
É que a Administração em geral está sujeita ao princípio da legalidade, consagrado constitucionalmente e a AT está-lo também por força do disposto no art. 55.º da LGT.
A nosso ver, a AT deverá aguardar a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a emitir pelo Tribunal Constitucional (TC), nos termos do art. 281.º da CRP.
É que, como diz VIEIRA DE ANDRADE, «Este conflito [entre a constitucionalidade e o princípio da legalidade] não pode resolver-se através da prevalência automática do direito constitucional sobre o direito legal. Não é disso que se trata, porque o que está em causa é não a constitucionalidade da lei, mas o juízo que sobre essa constitucionalidade possam fazer os órgãos administrativos. Por um lado, a Administração não é um órgão de fiscalização da constitucionalidade; por outro lado, a submissão da Administração à lei não visa apenas a protecção dos direitos dos particulares, mas também a defesa e prossecução de interesses públicos […]. A concessão ao poder administrativo de ilimitados poderes para controlo da inconstitucionalidade das leis a aplicar levaria a uma anarquia administrativa, inverteria a relação Lei-Administração e atentaria frontalmente contra o princípio da divisão dos poderes, tal como está consagrado na nossa Constituição» (Direito Constitucional, Almedina, 1977, pág. 270).”
No mesmo sentido, JOÃO CAUPERS afirma que «a Administração não tem, em princípio, competência para decidir a não aplicação de normas cuja constitucionalidade lhe ofereça dúvidas, contrariamente aos tribunais, a quem incumbe a fiscalização difusa e concreta da conformidade constitucional, demonstram-no as diferenças entre os artigos 207º [hoje, 204.º] e 266º, nº 2, da Constituição. Enquanto o primeiro impede os tribunais de aplicar normas inconstitucionais, o segundo estipula a subordinação dos órgãos e agentes
administrativos à Constituição e à lei.
Afigura-se claro que a diferença essencial entre os dois preceitos decorre exactamente da circunstância de se não ter pretendido cometer à Administração a tarefa da fiscalização da constitucionalidade das leis. O desempenho de tal função, por parte daquela tem de ser visto como excepcional» (Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição,
Almedina, 1985, pág. 157.).
Concluímos, assim, que no Direito Constitucional Português não existe a possibilidade de a Administração se recusar a obedecer a uma norma que considera inconstitucional, substituindo-se aos órgãos de fiscalização da constitucionalidade, a menos que esteja em causa a violação de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, o que não é manifestamente o caso quando está em causa a aplicação de norma eventualmente violadora do princípio da não retroactividade da lei fiscal…» (fim de citação).
(…)
Em suma, no caso dos autos, para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte, não pode ser imputado aos serviços da AT erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, uma vez que não estava na sua disponibilidade decidir de modo diferente daquele que decidiu. Não podendo a errada consideração (no apuramento do imposto a pagar) de uma norma posteriormente julgada inconstitucional, ser atribuída a ilegal conduta da AT, também não pode legitimar a condenação nos juros indemnizatórios pedidos ao abrigo do art. 43 da LGT por se não verificar um pressuposto de facto constitutivo de tal direito – o erro imputável aos serviços.”
Na linha desta jurisprudência[9], que se acolhe, é de julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios.
Assim, deverá a Autoridade Tributária e Aduaneira dar execução à presente decisão, nos termos do artigoº 24.º, n.º 1, do RJAT, restituindo as importâncias pagas pela Requerente relativamente às liquidações anuladas.
-IV- Decisão
Assim, decide o Tribunal arbitral, julgando procedente o pedido de pronuncia arbitral:
a) Decretar a anulação das liquidações objeto do presente processo.
b) Condenar a Requerida a restituir ao requerente os montantes pagos.
c) Absolver a Requerida do pedido de condenação ao pagamento de juros indemnizatórios.
Para efeitos do disposto no artigo 280.º, n.º 3 da CRP e no artigo 72.º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional, determina-se a notificação ao Ministério Público da presente decisão arbitral.
Valor da ação: € 1512,00 (mil quinhentos e doze euros) nos termos do disposto no art. 306º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Custas pela Requerida, no valor de € 306.00 (trezentos e seis euros), nos termos do nº 4 do art. 22º do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, CAAD, 17 de Julho de 2017
O Árbitro
Marcolino Pisão Pedreiro
[1] MANUAL DE DIREITO FISCAL, Almedina, 2011, pag 295.
[2] DIREITO FISCAL, Lições, Almedina, 2015, pag. 175
[3] O que se acaba de expor corresponde, no essencial, ao discurso fundamentador da decisão arbitral proferida em 20-05-2016, no processo 683/2015-T, e ainda na decisão proferida no processo 64/2016-T, nas quais foi árbitro o signatário da presente decisão.
[4] Entre outras decisões arbitrais neste sentido, pode ler-se na decisão arbitral proferida no processo 708/20015-T que “mal se entenderia que pudesse ser interpretado o quadro legal-tributário dos FIIAH, no segmento a que respeita a al. a) do n.º 7 e n.º 8 do artigo 8.º - artigo 104.º da LOE2009 - como não vinculando os FIIAH à efetivação do arrendamento habitacional permanente relativamente aos imóveis adquiridos para tal fim pelos FIIAH.”
[6] E não declaração de nulidade, dado que, no caso “sub judice”, não se vislumbra a ocorrência de ofensa “do conteúdo essencial de um direito fundamental”.
Como se pode ler no sumário do acórdão de 23.10.2013, proferido no proc. 0579/13 (Relatora Isabel Marques da Silva) “O acto de liquidação efectuado em aplicação de deliberação autárquica nula, inexistente ou inconstitucional padece de ilegalidade abstracta – arts. 286.º, n.º 1, al. a) do CPT e 204.º, n.º 1 do CPPT -, que, nos casos de cobrança coerciva, pode ser invocada até ao termo do prazo de oposição à execução fiscal, mesmo que posteriormente ao de impugnação de actos anuláveis mas nunca, consequentemente, a todo o tempo.” (destaque nosso).
Sobre esta questão também Jorge Lopes de Sousa nos diz que “Há, porém, fundamentos que são invocáveis tanto como fundamento de oposição à execução fiscal como de impugnação judicial.
(…)
Cabem aqui os casos de normas que violem normas de hierarquia superior como as normas constitucionais (…).
A ilegalidade é abstracta porque. Afectando a própria lei, não depende do acto que faz a sua aplicação em concreto.
Estando prevista como fundamento de oposição à execução fiscal, esta ilegalidade abstracta constitui também um vício de violação de lei, pois a liquidação terá feito aplicação de uma norma que não é válida à face de uma regra de hierarquia superior.” (CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E PROCESSO TRIBUTÁRIO Anotado, 4ª Ed., Vislis, 2003, pag. 443-444, destaque nosso).
[7] Sobre esta questão veja-se Jorge Lopes de Sousa, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, in GUIA DA ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA, Coord. Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira, 2013, Almedina, págs. 110-116).
[8] http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/34af21b03b79ed3380257e03003b403a?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1
[9] No mesmo sentido seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 26-02-2014, processo n.º 0481/13; de 12-03-2014, processo n.º 01916/13; de 21-01-2015, processo n.º 0843/14; de 21-01-2015, processo n.º 0703/14; de 14-03-2015, processo n.º 01529/14 bem como a decisão arbitral proferida no processo 507/2015-T.