Decisão Arbitral
1. RELATÓRIO
1. No dia 03-09-2013, a sociedade A…, com o número de pessoa colectiva … (de ora em diante designada por “Requerente”), apresentou um pedido de constituição do Tribunal Arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante designado por “RJAT”), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada por “Requerida” ou por “AT”), com vista à:
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Declaração de ilegalidade do acto tributário de liquidação do Imposto do Selo n.º …, datado de 2013-03-22, no montante total de € 24.836,60, (acto tributário de liquidação desdobrado em três prestações) relativo ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo …, da freguesia de …, Concelho de …;
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Condenação da Requerida ao pagamento do imposto pago, com acréscimo dos juros legalmente previstos.
2. Com o pedido de constituição do Tribunal Arbitral, veio a Requerente apresentar o respectivo pedido de pronúncia sobre a ilegalidade da liquidação do tributo em causa nos autos, onde, em síntese, vem alegar o seguinte:
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Para se aferir se a liquidação impugnada está em conformidade com a correcta aplicação do disposto na Verba 28.1 da Tabela Geral (“TGIS”) do Código do Imposto do Selo (“CIS”), importa interpretar o conceito de “prédios urbanos” com “afectação habitacional”, na expressão do teor daquela Verba;
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Analisado o texto da Lei n.º 55-A/2012, haverá de se considerar que a nova taxa da Verba 28.1 da TGIS declara expressamente incidir sobre “prédios urbanos” (…) “com afectação habitacional” e sobre o seu valor nos termos do disposto no Código do Imposto Municipal de Imóveis (“CIMI”);
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Em conformidade com a unidade do sistema jurídico tributário, designadamente por remissão expressa e ou implícita do Código do Imposto Municipal sobre Transacções (“CIMT”), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“CIRS”), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“CIRC”) e do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), mas, especialmente do DL n.º 287/2003 (“Reforma da Tributação do Património”), deverá aí encontrar-se o conceito de prédio urbano e de afectação de prédio urbano no CIMI, e por maior razão aí devem beber-se tais conceitos a propósito do sentido desses termos na Lei n.º 55-A/2012, que elege o CIMI como diploma predilecto, e nos termos da Verba 28.1 da TGIS, introduzida por aquela mesma Lei.
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Do enquadramento conceitual do CIMI e, por ele, da unidade do sistema jurídico tributário resulta que aos terrenos para construção de edifício habitacional, sendo prédios urbanos, não deve ser reconhecida “afectação habitacional” para efeitos do disposto na Verba 28.1 da TGIS.
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Deve presumir-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas, não se justificando sobrecarregar a tributação de um lote de terreno para construção como o que está em causa nos autos, que, desde que constituído, sempre esteve destinado à venda, a qual, apesar de o preço pretendido ser inferior ao VPT em mais de 20%, só não se consumou devido à degradação do mercado imobiliário;
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A interpretação que a AT faz da Verba 28.1 da TGIS, a valer, afigura-se desacertada, violando os princípios constitucionais da justiça, da proporcionalidade e da igualdade e, concretamente, o artigo 104.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).
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Face a todo o acima exposto, entende que é devida pronúncia que declare a ilegalidade da liquidação de imposto em causa nos autos, por errónea qualificação dos factos, com a consequente obrigação de restituição do imposto pago, acrescido dos juros legalmente previstos.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida em 03-09-2013.
3. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral singular o ora signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
4. Em 16-10-2013 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
5. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 31-10-2013.
6. Em 05-11-2013 foi a Requerida, na pessoa do seu Director-Geral, notificada pelo Tribunal Arbitral nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, n.º 1 do RJAT, para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, querendo, solicitar a produção de prova adicional, devendo, ainda, juntar cópia do processo administrativo.
7. Em 05-12-2013, a Requerida apresentou resposta, juntou o respectivo processo administrativo e procedeu à junção do despacho de designação dos juristas.
8. Na resposta apresentada a Requerida pronunciou-se pela manutenção da liquidação ora impugnada, alegando, em síntese, o seguinte:
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Vem invocar uma questão prévia: Encontrando-se a correr termos o processo de impugnação judicial n.º …, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de ..., para efeitos de anulação do Valor Patrimonial do Imóvel (“VPT”) do imóvel em causa nos autos, e considerando que (i) o processo de impugnação judicial, cujo objecto se prende com a discussão do dito VPT, aguarda ainda pelo seu trânsito, e se, por outro, (ii) o valor da liquidação cuja legalidade se discute no presente pedido arbitral depende directamente do cálculo em que um dos valores multiplicado é composto por esse mesmo VPT, veio requerer a suspensão da presente instância arbitral, nos termos do disposto no artigo 272.º do novo Código do Processo Civil (“CPC”), aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e) do Código do Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”) e artigo 29.º/1, alínea e) do RJAT.
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No entanto, vem igualmente defender-se por Impugnação, alegando que a constituição em propriedade horizontal de um imóvel determina a cisão/divisão da propriedade total e a independência ou autonomia de cada uma das fracções que a constituem, para todos os efeitos legais, nos termos do nº 2 do artigo 4º do CIMI e artigo 1414º e seguintes do Código Civil (“CC”), sendo que um prédio em propriedade total constitui, para todos os efeitos, uma única realidade jurídico-tributária.
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E que a diferente aptidão dos imóveis (habitação/serviços/comércio) sustenta o diferente tratamento, tendo constituído opção do legislador, por razões políticas e económicas, afastar da incidência do Imposto do Selo os imóveis destinados a outros fins que não habitacionais.
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Na ausência de qualquer definição sobre os conceitos de prédio urbano, terreno para construção e afectação habitacional, em sede de Imposto do Selo, há que recorrer ao CIMI na procura de uma definição que permita aferir da eventual sujeição a Imposto do Selo.
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Às matérias não reguladas no CIS, respeitantes à verba nº 28 da TGIS, deve aplicar-se subsidiariamente o disposto no CIMI.
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Na aplicação da lei aos casos concretos importa determinar o exacto sentido e alcance da norma, de modo a que se revele a regra nela contida, condição indispensável para que possa ser aplicada, de acordo com o disposto no artigo 9º do CC, ex vi artigo 11º da LGT.
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O artigo 67º nº 2 do CIS manda aplicar subsidiariamente o disposto no CIMI.
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A afectação do imóvel (aptidão ou finalidade) é um coeficiente que concorre para a avaliação do imóvel, na determinação do valor patrimonial tributário, aplicável aos terrenos para construção;
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A própria verba 28 do TGIS remete para a expressão “prédios com afectação habitacional”, apelando a uma classificação que se sobrepõe às espécies previstas no nº 1 do artigo 6º do CIMI.
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Vem discordar em absoluto do entendimento segundo o qual o conceito de “prédio com afectação habitacional” só poderá incluir os prédios edificados que se encontrem licenciados ou se destinem a habitação, excluindo-se desse conceito os terrenos para construção.
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Sufragando o entendimento que “prédios com afectação habitacional”, para efeitos do disposto na verba 28 da TGIS deverá abranger os prédios edificados e os terrenos para construção, desde logo atendendo ao elemento literal da norma em causa.
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E de que não ocorre a violação dos princípios constitucionais invocados pela Requerente na interpretação por si defendida.
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Concluindo, alegando que o reembolso à Requerente do imposto e demais acréscimos legais indevidamente pagos constitui um dever que impende sobre si própria a título de execução de julgado, nos termos do disposto no artigo 162.º e seguintes do Código do Procedimento dos Tribunais Administrativos (“CPTA”), aplicável ex vi artigo 146.º, n.º 2 do CPPT, não cabendo, por isso, em sede arbitral obter-se uma qualquer pronúncia condenatória.
9. No dia 07-02-2014, pelas 14h, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo sido lavrada acta que se encontra junta aos autos.
10. Nessa reunião, as partes foram ouvidas sobre a questão prévia levantada pela Requerida na sua resposta, referente ao pedido de suspensão da instância.
11. Ouvidas as partes, o Tribunal decidiu logo aí sobre a questão prévia, o que fez por meio de despacho fundamentado, tendo considerado, em síntese, que atenta a factualidade da matéria descrita nos autos, não se considera existente a relação de prejudicialidade invocada pela Requerida na sua resposta, tendo, assim, indeferido o pedido de suspensão da instância requerido pela Requerida.
12. As partes prescindiram da realização de alegações finais, tendo o Tribunal em cumprimento do disposto no artigo 18.º, n.º 2 do RJAT, designado o dia 24-04-2014 para o efeito de prolação da decisão arbitral, tendo advertindo a Requerente que até à data da prolação da decisão arbitral deveria proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
13. No dia 18-02-2014 a Requerente requereu a junção aos autos de um documento, a saber o comprovativo do pagamento da terceira prestação da liquidação do imposto do selo ora impugnada, tendo o tribunal deferido essa mesma junção e ordenado a notificação à Requerida da mesma.
14. Por ocasião do mesmo requerimento veio a Requerente juntar comprovativo do pagamento da taxa arbitral subsequente.
2. SANEAMENTO
1. O Tribunal é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 30.º, n.º 1 do RJAT.
2. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
3. O processo não enferma de nulidades e não foram aduzidas mais questões prévias, para além daquela que foi apreciada e decidida por ocasião da realização da reunião arbitral.
3. MATÉRIA DE FACTO
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Factos provados
Com pertinência para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente é proprietária de uma parcela de terreno para construção com a área total de 1.485m2, prevendo a construção da área bruta de 8.520m2 e dependente de 3.270m2, freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo ... (cfr. Documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral da Requerente, cujo teor se dá como reproduzido).
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Ao abrigo da verba 28.1 da TGIS do CIS, com referência ao ano de 2012, datada de 2013-03-22, no montante total de € 24.836,60 (acto tributário de liquidação desdobrado em três prestações), relativa ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ..., da freguesia de ..., Concelho de ... (cfr. Documentos n.ºs 1 e 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral da Requerente, cujo teor se dá como reproduzido e Documento junto pela Requerente em requerimento apresentado junto deste Tribunal no dia 18-02-2014).
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O prédio objecto da liquidação impugnada está contabilisticamente registado como uma existência, estando afecto a venda no inventário da Requerente (Documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral da Requerente, cujo teor se dá como reproduzido).
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O valor do imposto liquidado pela Requerida à Requerente resultou da multiplicação da taxa de 1% prevista na verba n.º 28.1 da TGIS ao Valor Patrimonial Tributário (VPT) do imóvel em causa nos autos o qual se fixou em € 2.483.660,00 (cfr. Documentos n.ºs 1 e 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral da Requerente, cujo teor se dá como reproduzido e Documento junto pela Requerente em requerimento apresentado junto deste Tribunal no dia 18-02-2014).
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A liquidação de imposto ora impugnada (acto tributário de liquidação desdobrado em três prestações) foi paga voluntariamente pela Requerente no respectivo prazo legal (cfr. Documentos n.ºs 1 e 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral da Requerente, cujo teor se dá como reproduzido e Documento junto pela Requerente em requerimento apresentado junto deste Tribunal no dia 18-02-2014).
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Fundamentação da matéria de facto provada
Os factos provados baseiam-se nos documentos indicados para cada um dos pontos, cuja autenticidade e correspondência à realidade não foram, pelas partes, questionadas.
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Factos não provados
Não há factos relevantes para a apreciação do mérito da causa que hajam sido dados como não provados.
4. MATÉRIA DE DIREITO
4.1 Questões a decidir
1. Atendendo ao pedido formulado pela Requerente, expresso no articulado de pedido de pronúncia arbitral apresentado, as questões a decidir são, no fundo, a de determinar se o prédio em causa nos autos, o qual é um terreno para construção, consiste num “prédio com afectação habitacional” para efeitos da aplicação do artigo 1.º do CIS e da verba 28.1 da TGIS, aditada pelo artigo 4.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, e, assim, determinar se o acto de liquidação de imposto do selo em causa nos autos, no montante de € 24.836,60, enferma do vício de violação de lei por errónea interpretação e qualificação dos factos, vício imputado pela Requerente, e, em caso afirmativo, se esta deverá ter direito ao reembolso do imposto pago e respectivos juros legais.
2. De referir, aliás, que a questão decidenda central no caso dos autos (a de saber se os terrenos para construção são subsumíveis no conceito de “prédios com afectação habitacional” e, consequentemente, se devem estar incluídos no âmbito da incidência objectiva da verba 28.1 da TGIS), tem vindo a ser objecto de jurisprudência uniforme e reiterada no âmbito da actividade do CAAD.[1]
4.2 A verba 28.1 da TGIS e o vício de violação de lei imputado ao acto de liquidação em crise nos autos
1. A Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, promoveu várias alterações ao CIS, tendo aditado, através do seu artigo 4.º, a verba n.º 28 à TGIS, que, para o que interessa para a matéria em apreciação nos autos, conta com a seguinte redacção:
“28 - Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1.000.000 - sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:
28.1 - Por prédio com afetação habitacional - 1%;.”.
Por seu turno, com a epígrafe “disposições transitórias”, o artigo 6.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, e com relevo para o que cumpre decidir, estabeleceu o seguinte:
“1 — Em 2012, devem ser observadas as seguintes regras por referência à liquidação do imposto do selo previsto na verba n.º 28 da respetiva Tabela Geral:
a) O facto tributário verifica -se no dia 31 de outubro de 2012;
b) O sujeito passivo do imposto é o mencionado no n.º 4 do artigo 2.º do Código do Imposto do Selo na data referida na alínea anterior;
c) O valor patrimonial tributário a utilizar na liquidação do imposto corresponde ao que resulta das regras previstas no Código do Imposto Municipal sobre Imóveis por referência ao ano de 2011;
d) A liquidação do imposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira deve ser efetuada até ao final do mês de novembro de 2012;
e) O imposto deverá ser pago, numa única prestação, pelos sujeitos passivos até ao dia 20 de dezembro de 2012;
f) As taxas aplicáveis são as seguintes:
i) Prédios com afetação habitacional avaliados nos termos do Código do IMI: 0,5 %;
ii) Prédios com afetação habitacional ainda não avaliados nos termos do Código do IMI: 0,8 %;
iii) Prédios urbanos quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças: 7,5 %.”.
2. Decorre do supra exposto, que a verba 28.1 da TGIS utiliza a expressão “prédios com afectação habitacional” cujo conteúdo e alcance importa determinar.
3. Percorrendo a Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, o CIS e o próprio CIMI[2] não se logra encontrar nenhuma definição sobre o conteúdo e alcance desta expressão.
4. Pelo que no entendimento deste Tribunal se deverá recorrer às regras de interpretação da lei.
5. A este respeito o n.º 1 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) manda observar, “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”.
6. Os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis são os estabelecidos no artigo 9.º do Código Civil:
“Artigo 9.º
(Interpretação da lei)
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”.
7. Partindo de uma interpretação literal da norma de incidência em causa (verba 28.1 da TGIS) resulta, aparentemente, que o legislador quis incluir no âmbito de aplicação da norma os prédios urbanos que tenham uma “afectação habitacional”.
8. No entanto, a interpretação literal de uma dada norma é, no vasto campo da teoria da interpretação da lei, o ponto de partida do intérprete e quase nunca o seu ponto de chegada.
9. Por isso, haverá que esclarecer quando é que se pode entender que um prédio está afectado a fim habitacional, designadamente se é quando lhe é fixado esse destino num acto de licenciamento ou semelhante, ou se é apenas quando a efectiva atribuição desse destino é concretizada.
10. Desde logo, o confronto da verba 28.1 da TGIS com n.º 2 do artigo 6.º do CIMI, que define o conceito de prédios habitacionais, aponta manifestamente, no sentido de ser necessária uma afectação efectiva.
11. Porquanto um edifício ou construção licenciado para habitação ou, mesmo sem licença, mas que tenha como destino normal a habitação, é, à face do disposto no n.º 2 do artigo 6.º do CIMI um prédio habitacional.
12. No entanto, o n.º 1 do artigo 6.º do CIMI, vem distinguir “prédios habitacionais” de “terrenos para construção”. Os primeiros serão, nos termos do disposto no n.º 2 do mesmo artigo, os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta dessa licença, os que tenham como destino normal esse fim. Já os terrenos para construção, esclarece o n.º 3 deste preceito, são aqueles para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, com algumas excepções, não sendo, nesta classificação, um prédio habitacional.
13. Por isso, no pressuposto de que o legislador da Lei n.º 55-A/2012 soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (como impõe o disposto no artigo 9.º, n.º 3, do CC que se presuma), se pretendesse reportar-se a esses prédios já licenciados para habitação ou que tenham a habitação como destino normal, decerto que o legislador teria utilizado o conceito de “prédios habitacionais”, que revelaria perfeita e claramente o seu pensamento, à face da definição dada por aquele n.º 2 do artigo 6.º do CIMI.
14.Consequentemente deve presumir-se que o uso de uma expressão diferente tem em vista uma realidade distinta, pelo que, em boa hermenêutica, “prédio com afectação habitacional”, não poderá ser um prédio apenas licenciado para habitação ou destinado a esse fim (isto é, não bastará que seja um “prédio habitacional”), tendo, ao invés, de ser um prédio que apresente já uma efectiva afectação a esse fim.
15. Os terrenos para construção, não estando edificados, não satisfazem, por si só, qualquer condição para serem considerados como prédios com afectação habitacional, porquanto, por um lado, não possuem licença de utilização para habitação, e, por outro lado, não são habitáveis (porque pura e simplesmente não estão edificados).
16. Pelo que não se nos afigura bastante para preencher a norma de incidência tributária objectiva em apreço que exista a mera expectativa de um prédio urbano vir a ter uma afectação habitacional, ou de apresentar a potencialidade de vir a ter uma afectação habitacional.
17. E nos terrenos para construção mais não existe do que a expectativa, ou potencialidade, de um prédio urbano poder, após a respectiva edificação, vir a ter uma “afectação habitacional”.
18. Pelo que só quando tal “afectação habitacional” se concretizar, é que se deverá considerar preenchida a norma de incidência tributária objectiva em apreço.
19. Face ao acima exposto, não podemos acompanhar o entendimento da Recorrida na sua resposta quando afirma que “prédios com afectação habitacional”, para efeitos do disposto na verba 28.º da TGIS compreende “quer os prédios edificados quer os terrenos para construção, desde logo atendendo ao elemento literal da norma”. E que o legislador não se referiu a “prédios destinados a habitação”, tendo optado, antes, pela noção “afectação habitacional”.
20. Parecendo-nos mais correcta a interpretação que a Recorrente faz quando afirma na sua petição de pronúncia arbitral que aos terrenos para construção de edifícios habitacionais não lhes deve ser reconhecida “afectação habitacional” para efeitos do disposto na verba 28.1 da TGIS.
21. Em suma é entendimento deste Tribunal, face aos elementos interpretativos disponíveis, os quais apontam com segurança no sentido de não se ter pretendido abranger no âmbito de incidência da verba n.º 28.1 da TGIS as situações de prédios que ainda não estão afectos à habitação, nomeadamente os terrenos para construção, o que fere de ilegalidade a liquidação objecto do presente processo arbitral, e torna procedente, nesta parte, o pedido da Requerente.
22. Por fim diga-se em reforço do acima expendido que o legislador veio alterar o texto da própria verba 28.1 da TGIS, com a redacção que lhe foi dada pelo artigo 193.º da Lei n.º 83-C/2013, a qual aprovou o Orçamento do Estado para 2014 e cuja entrada em vigor se deu no dia 01 de Janeiro de 2014.
23. Passando então a verba 28.1 da TGIS a ter a seguinte redacção:
“28.1 – Por prédio habitacional ou por terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI.”.
Sublinhado nosso
24. Repare-se como o legislador alterou a norma de incidência tributária objectiva em causa, passando a lei a abranger, expressamente, os “terrenos para construção”…
25. E não se diga que tal alteração legislativa assume a natureza jurídica de uma norma interpretativa, e, como tal retroactiva.
26. Com efeito, como afirma Oliveira Ascensão, para que uma lei seja interpretativa é necessário que (1) exista uma dúvida na doutrina e/ou jurisprudência quanto ao sentido da lei anterior; (2) que a lei posterior venha a optar por uma das interpretações em contenda, e que (2) a lei posterior tenha por fim interpretar a lei antiga, devendo esse fim resultar inequivocamente do seu texto (cf. Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e teoria geral, Almedina, 10.ª ed., 1999, 560-561).
27. Nenhum dos requisitos se encontra preenchido no caso concreto.
28. Desde logo, não se trata de uma norma interpretativa, que se possa integrar no sentido e âmbito da redacção anterior (em causa nos autos) da verba 28.1 da TGIS, porquanto, caso se estivesse perante lei interpretativa, tal teria de resultar de uma declaração expressa no texto ou no preâmbulo do diploma, dizendo que se tratava de uma norma interpretativa.
29. Declaração, essa, que o legislador não fez.
30. Na falta de uma declaração expressa da própria lei, o carácter interpretativo poderá ainda resultar “do texto, quando for flagrante a tácita referência da nova fonte a uma situação normativa duvidosa preexistente” (cf. Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e teoria geral, Almedina, 10.ª ed., 1999, 561).
31. Nada disto se verifica, porém, no caso concreto.
32. Está-se, portanto, e no entendimento deste Tribunal, perante alteração inovadora à norma da verba 28.1 da TGIS[3], o que implica que tal alteração apenas produzirá os seus efeitos a partir do ano de 2014 em diante.
4.3 Da alegada violação de princípios constitucionais
1. A Requerente levantou questões de inconstitucionalidade, na interpretação da verba 28.1 da TGIS que faz a Requerida, no pressuposto de que o imposto do selo aí previsto poderia igualmente incidir sobre terrenos para a construção.
2. Considerando que este Tribunal Arbitral não acolheu essa interpretação, surge prejudicada e processualmente inútil a apreciação desta questão.
4.4 Reembolso das quantias liquidadas e juros
1. A Requerente vem pedir o reembolso das quantias pagas ao abrigo do acto de liquidação n.º ..., no montante total de € 24.836,60, acrescido de juros legais que embora não qualifique expressamente se referem a juros indemnizatórios pelo pagamento indevido desses montantes, porquanto tendo (como foi) a liquidação de imposto sido paga voluntariamente pela Requerente nos prazos legais, não houve lugar a quaisquer liquidações pela Requerida de juros compensatórios e/ou moratórios.
2. Por seu turno, a Requerida alega que o reembolso à Requerente do imposto e demais acréscimos legais indevidamente pagos constitui um dever que lhe impende a título de execução de julgado, nos termos do disposto no artigo 162.º e seguintes do CPTA, aplicável ex vi artigo 146.º, n.º 2 do CPPT, não cabendo a este Tribunal pronunciar-se de forma condenatória.
3. Vejamos.
4. De acordo com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT (aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT) que estabelece, que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão.”.
5. Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos Tribunais Arbitrais que funcionam no âmbito de funcionamento do CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários.
6. O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do disposto no artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” e do artigo 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”.
7. Pelo que o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dispor que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no âmbito do processo arbitral.[4]
8. No caso dos autos, é manifesto que, na sequência da ilegalidade do acto de liquidação, pelas razões que melhor se expenderam nesta decisão, há lugar a reembolso do imposto pago pela Requerente, por força do disposto nos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.
9. No que concerne aos juros indemnizatórios, é também claro nos autos que a ilegalidade do acto de liquidação de imposto impugnado é imputável à Requerida, que, por sua iniciativa, o praticou sem suporte legal.
10. Consequentemente a Requerente tem direito ao recebimento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT.
11. Os juros indemnizatórios deverão ser pagos à Requerente desde data em que efectuou os respectivos pagamentos até ao integral reembolso dos montantes pagos, à taxa legal.
12. Termos em que procede igualmente nesta parte o pedido da Requerente.
5. Decisão
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Nos termos e com os fundamentos expostos, este Tribunal Arbitral decide:
- Julgar procedente o pedido de anulação da liquidação de imposto do selo impugnada, com o n.º ... (acto tributário de liquidação desdobrado em três prestações), no montante total de € 24.836,60, com a consequente anulação dessa mesma liquidação.
- Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida a reembolsar à Requerente as quantias pagas, acrescidas de juros indemnizatórios nos termos legais, desde a data em que tais pagamentos foram efectuados até á data do integral reembolso dos mesmos.
6. Valor do processo
1. De harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 315.º do CPC, na alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT e ainda do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 24.836,60.
7. Custas
1. Para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 12.º e no n.º 4 do artigo 22.º do RJAT e do n.º 4 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 1.530,00, nos termos da Tabela I anexa ao referido Regulamento, a suportar integralmente pela Requerida.
Lisboa, 21 de Abril de 2014.
O Árbitro
(Henrique Nogueira Nunes)
Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
A redacção da presente decisão arbitral rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
[1] Do qual são meros exemplos as decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 42/2013-T; 53/2013-T e 144/2013-T, processos que apresentaram contornos muito semelhantes ao dos autos.
[2] Por remissão do n.º 2 do artigo 67.º do CIS quando estejam em causa matérias não reguladas no CIS relativamente à verba n.º 28 da TGIS.
[3] Com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro.
[4] Neste mesmo sentido Vide decisão proferida no processo 53/2013-T que se acompanha.