Decisão Arbitral
I – Relatório
1. No dia 4-01-2017, o Requerente, A…, S.A., NIPC…, com sede na …, n.º…, freguesia de …, Porto, requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do art. 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à declaração de nulidade ou anulação da liquidação de Imposto Municipal Sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (doravante “IMT”), datada de 21.07.2016, no valor de 1.858,84€, relativa à compra efetuada do prédio urbano, sito na rua …, …, freguesia de …, Município de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número … e inscrito na matriz da referida freguesia sob o artigo … .
A Requerente, alegando ter pagado o imposto em causa, peticiona, ainda, o reembolso de tal quantia, acrescida de juros indemnizatórios.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do art. 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes, nos prazos legalmente aplicáveis, foi designado árbitro o signatário, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído em 14-03-2017.
3. Os fundamentos apresentados pela Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, sinteticamente, os seguintes:
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A liquidação adicional ora em apreço decorre da aplicação pretensamente indevida ao Demandante do benefício de isenção de IMT, previsto no n.º 2, do artigo 270.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante “CIRE”).
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Todavia, os diversos elementos interpretativos da norma em causa, confluem para a conclusão de que, em sede de plano insolvência ou de pagamentos ou da liquidação da massa insolvente, a isenção de IMT consagrada no n.º 2, do art.º 270, do CIRE abrange os imóveis transmitidos por venda ou permuta, mesmo quando essa transmissão não surge integrada na transmissão de empresa ou estabelecimento.
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Foi para tentar otimizar, em valor e em prazo, (em sede de plano de insolvência ou de pagamentos ou da liquidação da massa insolvente) a obtenção de receitas destinadas aos credores (entre eles o Estado) da massa insolvente, que o legislador previu já no CPEREF (na alínea c) do n.º 2 do seu art.º 121) a isenção de Sisa para as situações equivalentes à ora reclamada.
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Solução que, pelas mesmas razões de fundo, pretendeu manter no CIRE através do n.º 2 do seu art.º 270 espelhando estas disposições, na análise sistémica destes diplomas legais, os princípios de equidade e solidariedade social que, nesta matéria, norteou ambos os diplomas.
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Na relação com Estado, os princípios de solidariedade social, subjacentes ao CIRE, encontram a sua consagração legal i) no que tange ao capítulo reclamação de créditos, na perda (ainda assim parcial) dos privilégios dos créditos do Estado e, ii) no que tange ao capítulo das receitas ou melhor, no favorecimento da maximização das receitas destinadas aos credores, nas isenções de selo e de IMT consagradas.
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Sendo por demais evidente que o ato de liquidação adicional do IMT que ora se reclama, decorre, como vimos de demonstrar, de uma errada interpretação do disposto no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, enfermando, por isso, do vício do erro sobre os pressupostos de direito.
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Por outro lado, o ato em causa não indica e inexiste qualquer dispositivo legal e aplicável que fundamente e legitime a quantificação dos montantes apurados e a liquidação do tributo em causa, nem foram indicadas quaisquer razões justificativas da liquidação agora impugnada.
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O ato impugnado enferma assim de manifesta falta de fundamentação de facto e de direito, ou, pelo menos, esta é insuficiente, obscura e incongruente, pelo que foram frontalmente violados o art. 268º/3 da CRP, os arts. 124º e 125º do CPA e o art. 77º da LGT.
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Por outro lado, a Administração Tributária violou as legítimas expectativas e garantias da Demandante anteriormente constituídas, e o princípio da confiança e segurança jurídica ínsitos ao princípio do Estado de Direito, além de ter violado os princípios da legalidade tributária, da proibição da retroatividade da lei fiscal e da certeza e segurança jurídica previstos, entre outros, nos artigos 12.º da LGT, 12.º do CC e 103.º, n.º 3, da CRP.
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Com efeito, a interpretação da Administração Tributária aplicada a um facto tributário passado, inteiramente decorrido ao abrigo de lei antiga, constitui uma violação do princípio da proteção da confiança, na vertente da segurança jurídica.
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Nesta medida, verifica-se claramente um erro de direito por parte da Autoridade Tributária, visto que induziu em erro o Demandante quando reconheceu a isenção do IMT a liquidar previamente à celebração da escritura pública.
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Acresce que o princípio da boa-fé consagrado no n.º 2, do artigo 59.º, da Lei Geral Tributária, pressupõe por parte da Administração Tributária um dever de atuação segundo a boa fé.
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Na verdade, a presunção de atuação de boa fé é corolário daquele dever de atuação segundo o princípio da boa fé, que é constitucionalmente imposto a toda a Administração, nos termos do disposto no n.º 2, do art. 266.º, da C.R.P.
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Acresce ainda que, a revogação da isenção só poderia ser concretizada no prazo de 1 ano após ter sido concedida, tratando-se de um ato constitutivo de direitos, por aplicação conjugada do disposto nos arts. 141º, nº 1, do CPA e 58.º do CPTA.
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Assim, a revogação de tal ato administrativo foi concretizada para além do prazo de um ano em que era legalmente possível, nos termos dos artigos 136.º e 141.º do CPA aplicáveis ex vi art. 2.º, alínea c), da LGT e art. 2.º, alínea d), do CPPT.
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Nesta medida, verifica-se a ilegalidade da revogação, já que o ato revogatório, com efeitos ex tunc, ocorreu mais de um ano depois do ato concedente da da isenção, em clara violação do disposto no art. 141º do CPA.
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O Demandante tem direito à restituição do valor indevidamente pago, acrescido dos juros legais desde a data do pagamento até à sua efetiva devolução, por força da liquidação cuja anulação ora se requer.
4. A ATA – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente, defendendo-se por impugnação, em síntese, com os fundamentos seguintes:
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Em causa, nos presentes autos, está a existência dos pressupostos de isenção de IMT prevista no n.º 2, do art.270.º, do CIRE.
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Alega o Requerente que, tendo a aquisição do prédio sido efetuada no âmbito da liquidação de determinada massa insolvente, a mesma está abrangida pela isenção de IMT prevista no n.º 2, do 270º, do CIRE, mas tal interpretação não tem qualquer suporte legal, como de seguida se passa a demonstrar.
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O atual n.º 2, do artigo 270.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas prevê que «Estão igualmente isentos de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis os actos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta, integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente. (Redacção do Art.º 234º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro).
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Esta isenção, já anteriormente prevista, abrange todos os atos integrados no âmbito de planos de insolvência, ou de pagamentos, ou de liquidação da massa insolvente, com a reserva de o insolvente ser uma empresa ou estabelecimento.
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A redação anterior do n.º 2 do artigo 270 º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas era a seguinte: «2 - Estão igualmente isentos de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis os actos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta integrados no âmbito de plano de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.»
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No âmbito da interpretação da redação anterior o entendimento jurisprudencial tem sido uniforme no sentido de que terá de tratar-se de bens imóveis que integrem o património de uma empresa e não os bens imóveis de pessoas singulares, com a única justificação de fazerem parte de um processo de insolvência.
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Do cotejo das duas redações do n.º 2 do referido artigo, verifica-se que o legislador apenas acrescentou a isenção referente às transmissões da empresa ou de estabelecimentos desta, integrados no âmbito de planos de recuperação de empresas.
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A liquidação impugnada é legal e conforme a Constituição, não se mostrando violados os múltiplos princípios constitucionais que o Autor invocou.
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No caso em apreço, estamos perante a aquisição de um imóvel, ainda que em processo de insolvência, mas que não pertence a uma empresa nem estava destinado ao exercício de atividade empresarial alguma, mas que era propriedade de uma pessoa singular com destino a habitação.
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Pelo que não estão reunidos os pressupostos legalmente previstos para a isenção de IMT em razão da sua transmissão ter sido efetuada num processo de insolvência de pessoa singular.
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Sobre alegada falta de fundamentação de facto e de direito, cabe referir que nos termos do estatuído no art.º 77.° da Lei Geral Tributária (LGT), a decisão de procedimento deve ser fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.
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De acordo com o n.° 2 de tal artigo da LGT, a fundamentação dos atos tributários pode ser efetuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo, o que aconteceu de forma evidente no caso dos autos, pelo que se considera que o ónus de fundamentação foi cumprido e que o pedido do Requerente improcede necessariamente.
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Acresce que, é manifesto e inquestionável que o Requerente compreendeu perfeitamente o processo lógico e jurídico que conduziu à decisão de tributação em causa, e quais os critérios e métodos legais que levaram aos valores ínsitos na liquidação ora em crise, sendo a fundamentação apresentada pelo Requerente no presente pedido de pronúncia arbitral, bem como na anterior reclamação graciosa, prova disto mesmo.
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Por último, alega o Autor que a revogação do benefício fiscal é ilegal por violação dos artigos 140.º e 141.º do CPA.
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Contudo também aqui improcedem os fundamentos invocados pois que, não se verificando os pressupostos legais para o Autor poder beneficiar da isenção de IMT, nos termos do nº2 do art. 270º do CIRE, a administração tributária não podia deixar de liquidar o imposto devido, desde que respeitado o prazo de caducidade, que, nos termos do art. 35.º do CIMT, conjugado com o art. 45.º, n.º 1, in fine, da LGT, é de oito anos a contar da transmissão ou da data em que a isenção ficou sem efeito, acrescendo que, contrariamente ao invocado pelo Requerente, não existiu nenhum ato constitutivo de direitos, porque, o benefício aqui em causa, é um benefício automático nos termos do artigo 5º do Estatuto dos Benefícios Fiscais ( EBF).
5. Verificando-se a inexistência de qualquer situação prevista no art. 18º, nº 1, do RJAT, que tornasse necessária a reunião arbitral aí prevista, foi dispensada a realização da mesma, com fundamento na proibição da prática de atos inúteis.
Foi ainda dispensada a realização de alegações, nos termos do art. 18º, nº 2, do RJAT, “a contrario”.
6. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.
O processo não padece de vícios que o invalidem.
7. Cumpre apreciar e decidir se se verificam as ilegalidades que a seguir se indicam:
a) Ilegalidade da Liquidação por violação do disposto no artigo 270º, nº 2, do CIRE.
b) Ilegalidade da Liquidação por a mesma constituir a revogação ilegal do ato de concessão de benefício fiscal efetuada para além do prazo de um ano.
c) Ilegalidade da liquidação por violação dos princípios da segurança jurídica, proteção da confiança e da boa-fé e da proibição da retroatividade da lei fiscal.
d) Ilegalidade da liquidação com base no vício de falta de fundamentação.
II – A matéria de facto relevante
8.Consideram-se provados os seguintes factos:
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O Demandante adquiriu o prédio urbano sito em Rua …, …, freguesia de …, Município de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número … e inscrito na matriz da referida freguesia sob o artigo … pelo preço de € 131.500,00 (cento e trinta e um mil e quinhentos euros).
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previamente à referida adjudicação, em 26.12.2012, o Demandante apresentou perante o competente Serviço de Finanças a declaração para liquidação do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT) constando do documento de liquidação o seguinte:
“Alienante do Bem (…)
Identificação Fiscal: … Nome: B… Estado Civil: Cas. Regime de Casamento: comunhão geral de bens NIF do cônjuge: … Parte: 1/1(…)
Benefícios (…) Código da Insolvência e Recuperação de Empresas -Transmissões integradas no âmbito da liquidação da massa insolvente (art. 270º, nº 2 do DL 53/04, 100% sobre a matéria coletável (…) Colecta: € 0,00”
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B… e mulher C…, haviam adquirido o imóvel em causa por escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca outorgada em 16.06.2006, no Cartório Notarial de …, em que interveio o Requerente como mutuante, constando de tal ato que aqueles declararam que o imóvel que o imóvel em causa se destinava a habitação própria permanente.
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O Demandante foi notificado pelo ofício n.º …/1ª Sec., de 4.12.2015, remetido pelo Serviço de Finanças de Leiria -…, para, querendo, no prazo de 15 dias, exercer o direito de audição prévia ao projeto de liquidação adicional de IMT, no valor de € 1.858,84, e de imposto de Selo no valor de € 1.052,00.
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Desta notificação consta o seguinte:
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A Requerente não exerceu o direito de audição.
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Em 21.07.2016, em conformidade com o projeto de decisão notificado ao Requerente, foi efetuada a liquidação objeto do presente processo.
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Desta liquidação consta o seguinte
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Em 22.07.2016, o Requerente procedeu ao pagamento do valor da liquidação.
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Em 16 de Agosto de 2016 a Requerente apresentou reclamação graciosa contra a liquidação adicional de IMT ora impugnada.
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Em conformidade com despacho proferido no processo a 24 de Outubro de 2016, a Demandante foi notificada, em 27.10.2016, para exercer o direito de audição prévia e tomar conhecimento do projeto de decisão e da sua fundamentação concluindo pelo indeferimento da reclamação graciosa apresentada.
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Em 23 de Novembro de 2016, foi proferida decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada, tendo sido endereçada a respetiva notificação ao Requerente no dia seguinte.
Com interesse para a decisão da causa, no âmbito da matéria de facto alegada, inexistem factos não provados.
9. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se nos documentos constantes do processo, que não foram objeto de impugnação bem como dos articulados apresentados, sendo de salientar não ocorrer discordância das partes relativamente à matéria de facto, cingindo-se o desacordo à matéria de direito.
-III- O Direito aplicável
10. Ilegalidade da Liquidação por violação do disposto no artigo 270º, nº 2, do CIRE.
Entende o Requerente que a aquisição efetuada preenche os pressupostos legais da isenção prevista no art. 270º, nº 2, do CIRE, ao invés do que é entendido pela Requerida.
Este artigo 270.º do CIRE estabelece, na redação atual, o seguinte:
“1 - Estão isentas de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis as
seguintes transmissões de bens imóveis, integradas em qualquer plano de insolvência, de
pagamentos ou de recuperação:
a) As que se destinem à constituição de nova sociedade ou sociedades e à realização do
seu capital;
b) As que se destinem à realização do aumento do capital da sociedade devedora;
c) As que decorram da dação em cumprimento de bens da empresa e da cessão de bens
aos credores.
2 - Estão igualmente isentos de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de
imóveis os atos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta
integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou
praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.”
O Supremo Tribunal Administrativo decidiu no acórdão proferido no processo 0949/11, de 30.05.2012 que “deve entender-se estarem isentas de IMT não apenas as vendas da empresa ou estabelecimentos desta, enquanto universalidades de bens, mas também as vendas de elementos do seu activo, desde que integradas no âmbito de plano de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente”.[1]
Este entendimento tem sido perfilhado pela subsequente jurisprudência do STA.[2]
No caso especifico de aquisição de imóveis, não integrantes do ativo de empresa, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 03-07-2013, proc. 0765/13, concretizou este entendimento, entendendo que “terá de tratar-se de bens imóveis que integrem o património de uma empresa e não os bens imóveis de pessoas singulares, com a única justificação de fazerem parte de um processo de insolvência”, posição que se acompanha, nos termos expostos pelo douto acórdão e cujo entendimento tem, também, sido perfilhada pela jurisprudência arbitral.[3]
Assim, conclui-se que a isenção prevista no art. 270º, nº 2, do CIRE, não é aplicável à aquisição do imóvel em causa nos presentes autos, por não se ter demonstrado, nem sequer alegado, que o mesmo fizesse parte do ativo de uma empresa, ao invés, resultando do probatório, tratar-se dum imóvel que havia sido adquirido pelos insolventes com destino à sua habitação própria e permanente.
Improcede, assim, a alegada ilegalidade por violação da norma em causa.
11. Ilegalidade da Liquidação por a mesma constituir a revogação ilegal do ato de concessão de benefício fiscal efetuada para além do prazo de um ano.
Entende ainda o Requerente que a liquidação consubstancia a revogação ilegal dum benefício fiscal constituído na sua esfera jurídica e que o art. 141º do Código de Procedimento Administrativo veda a possibilidade de revogação[4]
Porém, acontece que o beneficio fiscal em causa é automático, não dependendo de qualquer ato administrativo de reconhecimento por parte da administração, pois não existe previsão legal de ato administrativo de reconhecimento da isenção em questão. [5] [6]
Assim sendo, como é bom de ver, a liquidação em causa não constitui revogação de um ato administrativo anterior, sendo inaplicáveis ao caso dos autos quer o artigo 141º do Código de Procedimento Administrativo, quer o art. 14º, nº 4, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, cuja aplicação também pressupõe a existência de ato administrativo de reconhecimento do benefício fiscal.[7]
No nosso entendimento, à situação sub judice é aplicável o art. 31º, nº 2, do Código de Imposto Municipal Sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, que dispõe que:
“- Quando se verificar que nas liquidações se cometeu erro de facto ou de direito, de que resultou prejuízo para o Estado, bem como nos casos em que haja lugar a avaliação, o chefe do serviço de finanças onde tenha sido efectuada a liquidação ou entregue a declaração para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 19.º, promove a competente liquidação adicional.”, dispondo o nº 3 do mesmo artigo que “ A liquidação só pode fazer-se até decorridos quatro anos contados da liquidação a corrigir(…)”
É este o regime especifico que o CIMT[8] prevê para a alteração de liquidação em que se cometeu erro de facto ou de direito com prejuízo para o Estado na primitiva liquidação, com salvaguarda, naturalmente, dos casos de benefícios fiscais dependentes de reconhecimento em que, por ato administrativo prévio tenha havido reconhecimento do mesmo, que, como já vimos, não é o caso dos autos.
Termos em que, se conclui que a liquidação em causa não consubstancia revogação ilegal dum benefício fiscal.
12.Ilegalidade da liquidação por violação dos princípios da segurança jurídica, proteção da confiança e da boa-fé e da proibição da retroatividade da lei fiscal.
Sobre esta temática escreve Sérgio Vasques:
“(…) se este princípio da segurança jurídica, radicado no art. 2º da Constituição da República, se dirige a todas as áreas de intervenção legislativa e da prática da administração, é evidente que no domínio tributário ele reveste redobrada acuidade, desde logo porque os tributos representam uma ablação coactiva do património. Ao planear a sua actividade e ao gerir o seu dia-a-dia, famílias e empresas precisam de confiar na lei tributária e nas orientações da administração, fundando nestas muitas das decisões cujos efeitos económicos se prolongam no tempo”( Manual Direito Fiscal, Almedina, 2011, pág. 290).
Por sua vez, diz-nos Casalta Nabais que “Uma ponderação a que ainda haverá que proceder no caso de a administração ou de o próprio legislador, através da imposição retroactiva duma interpretação correcta da lei fiscal, pretender recuperar impostos não cobrados em virtude de a anterior interpretação ilegal da administração os excluir da zona de incidência ou de os atirar para os benefícios fiscais. Também a um tal venire contra factum proprium o princípio da protecção da confiança impõe limites” (Direito Fiscal, Almedina, 3ª Edição, 2005, pág. 150).
Afigura-se-nos que a violação do princípio da segurança jurídica pela administração, nos casos em que se consubstancia numa conduta contraditória, lesiva da confiança suscitada no contribuinte, acaba por redundar na violação do princípio da boa-fé reconhecido nos arts. 59º, nº 1, e 68º da LGT e constitucionalmente consagrado no art. 266º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
A este respeito, considerou o STA no acórdão de 28-01-2009, proferido no processo 0699/08[9]:
“Embora tenha o seu domínio primacial de aplicação no que toca aos actos praticados no exercício de poderes discricionários, a verdade é que tem vindo a ser colocada a possibilidade, nomeadamente, do princípio da boa fé ser aplicado no caso de actos praticados no exercício de poderes vinculados, já que o texto do artigo 266.º da CRP não deixa entrever qualquer restrição à sua aplicação a qualquer tipo de actividade administrativa –(…).
Todavia, no confronto entre os princípios da legalidade e da boa fé deve ser ponderada cada situação em concreto por forma a poder concluir-se se da prevalência do primeiro, em sentido estrito, resulta uma flagrante injustiça para o contribuinte, acarretando-lhe um desproporcionado e intolerável prejuízo.
Só neste último caso, a violação do princípio da boa fé, na sua dimensão de protecção da confiança dos particulares e enquanto integrante do bloco de legalidade, em sentido lato, deve revestir efeitos invalidantes do acto tributário praticado.”
No caso concreto, há que observar que a menção na liquidação inicial de que a transmissão em causa se encontrava isenta de IMT é suscetível de criar no contribuinte o convencimento de que tal isenção existia e de que não teria a obrigação de suportar o imposto em causa mas também é certo, como vimos, que a própria lei prevê a existência de erros de direito praticados nas liquidações em prejuízo do Estado, e a possibilidade de tal erro ser retificado através de liquidação adicional.
Por outro lado, a lei prevê nos arts. 59º, nº 1, al. e) e 68º, da Lei Geral Tributária, o mecanismo, que o Requerente não utilizou, adequado a provocar a tomada de posição vinculante da administração fiscal antes da ocorrência do facto tributário.[10]
Nestas circunstâncias, não se podem ter por violados os princípios em questão.
Acrescente-se que, sempre seria de considerar que da tributação em causa não resulta para o Requerente, nas palavras do no acórdão do STA de 28-01-2009, proferido no processo 0699/08 acima citado, “uma flagrante injustiça” nem um “desproporcionado e intolerável prejuízo”, na medida em que a mesma resulta apenas da aplicação correta da lei ao caso concreto, no respeito pelos princípios da legalidade e da igualdade.
Com efeito, conforme se considerou neste acórdão:
“(…) no caso “sub judicio”, sendo de realçar que não foram liquidados juros moratórios, a liquidação (…), sendo justificada por razões de interesse publico e de acordo com regras de incidência tributária que são uniformemente aplicáveis a todos os contribuintes em iguais circunstâncias.
Desta forma, ao invés de poder constituir uma flagrante injustiça para as recorrentes, o acto tributário de liquidação realizado teve um contributo de reposição da igualdade entre esses contribuintes.”
Pelas razões expostas, entende o Tribunal que o ato tributário impugnado não é violador dos princípios da segurança e certeza jurídicas e da boa-fé.
É ainda manifesto não ter ocorrido qualquer violação ao princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, uma vez que dos autos apenas resulta que, no caso, na liquidação inicial foi praticado erro de direito em desfavor da Requerida, inexistindo aplicação retroativa de qualquer norma jurídica.
Termos em que se decide que a liquidação em causa não violou os referidos princípios constitucionais.
13.Ilegalidade da liquidação com base no vício de falta de fundamentação.
O Requerente alega ainda que o ato em causa não indica qualquer dispositivo legal e aplicável que fundamente e legitime a quantificação dos montantes apurados e a liquidação do tributo em causa, nem foram indicadas quaisquer razões justificativas da liquidação agora impugnada e que o ato impugnado enferma assim de manifesta falta de fundamentação de facto e de direito, ou, pelo menos, esta é insuficiente, obscura e incongruente.
Todavia, também este vício se não verifica.
Com efeito foi o próprio requerente que, ciente da incidência objetiva e do facto tributário apresentou a competente declaração para efeitos do imposto em causa, tendo-se considerado, erradamente, nessa primeira liquidação, ocorrer a isenção prevista no art. 270º, nº 2, do CIRE, o que pressupõe a ocorrência da incidência objetiva.
Previamente à segunda liquidação foi o Requerente notificado, para efeitos de exercício de direito de audição da intenção da Requerida de praticar o ato tributário constando de tal notificação, de forma sucinta mas suficiente, congruente e clara, as razões porque a Requerida considerou inexistir o direito à mencionada isenção e, em consequência, pretendia proceder à liquidação. Na liquidação objeto do presente processo identifica-se, ainda, a liquidação inicial, referindo-se, explicitamente, que se trata de liquidação adicional daquela.
Assim sendo, julga-se também improcedente o alegado vício de falta de fundamentação do ato tributário de liquidação.
14. Improcede, pois, o pedido de declaração de nulidade ou de anulação do ato tributário, e, em consequência, o pedido de restituição do imposto pago, bem como de juros indemnizatórios.
-IV- Decisão
Assim, decide o Tribunal arbitral julgar totalmente improcedentes os pedidos arbitrais, mantendo-se a liquidação na ordem jurídica.
Valor da ação: € 1.858,84 (mil oitocentos e cinquenta e oito euros e oitenta e quatro cêntimos) nos termos do disposto no art. 306º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Custas pelo Requerente, no valor de 306.00 € (trezentos e seis euros) nos termos do nº 4 do art. 22º do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, CAAD, 26.06.2017
O Árbitro
Marcolino Pisão Pedreiro
[2] Cfr. acórdão do STA de 15 de Fevereiro de 2017, proferida no processo 0793/16 e demais acórdãos deste tribunal aí referidos. (também disponível in http://www.dgsi.pt)
[3] Cfr, designadamente, as decisões arbitrais proferida nos processos 649/2015-T de 26 de Setembro de 2016, 517/2016-T de 11.01.2017, 514/2015-T de 15 de fevereiro de 2017.(disponíveis in https://www.caad.org.pt/jurisprudencia/tributario/)
[4] Na numeração à data do facto tributário. Atual artigo 14º, nº 4 deste diploma.
[5] Como escreve Jorge Lopes de Sousa “Como resulta do preceituado no nº 1 deste art. 65º, na falta de disposição legal que preveja o benefício automático, é necessário o seu reconhecimento. No entanto, como decorre da definição de benefício fiscal automático que consta do art. 4º, nº 1, do EBF, não é necessário que essa disposição legal refira expressamente esse automatismo, bastando que ele resulte de a lei atribuir direta e imediatamente o benefício, sem fazer depender a sua relevância de prévio reconhecimento, o que significa que, na prática, se estará perante um benefício automático, sempre que a lei não previr a necessidade de reconhecimento” (Código de Procedimento e Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 2006, págs. 508-509)
[6] Também no sentido de se tratar de benefício fiscal de reconhecimento automático veja-se a decisão arbitral proferida no processo 517/2016-T de 11.01.2017.
[7] Neste ponto não se acompanha o decidido no âmbito do processo arbitral 517/2016-T de 11.01.2017.
[8] À semelhança do que está estabelecido para outros impostos (Cfr. arts. 89º, nº 2, b) e 92º, nº 1 do CIRS, 99º, nº 2, al. c) e 101º do CIRC, 115º, nº 1, al. c) 1 116º, nº 1, do CIMI.)
[9] Que pode ser consultado no sítio da internet “www.dgsi.pt”.
[10] Nas palavras de Saldanha Sanches “quando o sujeito passivo obtém uma informação vinculativa segunda a qual ao facto y se aplica o regime x, não pode a Administração, mesmo que posteriormente se convença de que a decisão está errada(…)” (Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, 3ª Edição, 2007, pág. 205).