Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 641/2016-T
Data da decisão: 2017-06-12  Selo  
Valor do pedido: € 14.252,20
Tema: Imposto do Selo - Terreno para construção; verba 28.1 da TGIS - juros indemnizatórios
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

1.                  Relatório

 

 

A - Geral

 

 

1.1.            A…, S.A., com o número único de matrícula e de pessoa colectiva …, com sede na Rua …, …, …, no Porto (de ora em diante designada “Requerente”), apresentou, no dia 27.10.2016, um pedido de constituição do tribunal arbitral singular em matéria tributária, que foi aceite, visando, por um lado, a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de Imposto do Selo referente ao ano de 2014, respeitante à verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (de ora em diante “TGIS”), relativos a prédio de que é proprietária, como adiante melhor se verá, e que deu origem às notas de cobrança n.º 2015 …, n.º 2015 … e n.º 2015 …, concernentes às primeira, segunda e terceira prestações, respectivamente, no valor global de € 14.252,20 (catorze mil duzentos e cinquenta e dois euros e vinte cêntimos), e, por outro, o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios pelo pagamento indevido de prestações tributárias.

 

1.2.            Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou o signatário como árbitro, não tendo as Partes, depois de devidamente notificadas, manifestado oposição a essa designação.

 

1.3.            Por despacho de 16.11.2016, a Administração Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada “Requerida”) procedeu à designação das Senhoras Dra. C…, que assina C…, e Dra. D…, que assina D…, para intervirem no presente processo arbitral, em nome e representação da Requerida.

 

1.4.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi constituído a 12.01.2017.

 

1.5.            No mesmo dia 12.01.2017 foi notificado o dirigente máximo do serviço da Requerida para, querendo, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar produção de prova adicional.

 

1.6.            No dia 15.02.2017 a Requerida apresentou a sua resposta.

 

 

B – Posição da Requerente

 

 

1.7.            A Requerente é sucessora da sociedade “D…, S.A.” e tem como objecto social a compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, administração, gestão patrimonial e arrendamento de imóveis.

 

1.8.            A Requerente é proprietária do prédio urbano, que é um “terreno para construção”, sito no …, freguesia da …, concelho da Maia, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo …, com um valor patrimonial tributário (de ora em diante “VPT”) de € 1.425.220,00 (um milhão quatrocentos e vinte e cinco mil duzentos e vinte euros), a que corresponde a caderneta que a Requerente anexa ao seu pedido como documento n.º 2, cujo teor se tem por reproduzido (de ora em diante designado “Prédio”).

 

1.9.            A Requerida, no dia 20.03.2015 procedeu à liquidação do Imposto do Selo (de ora em diante designado “IS”) referida em 1.1., cujos documentos de cobrança relativos à primeira, segunda e terceira prestações foram anexados ao pedido de pronúncia arbitral como documento n.ºs 4 a 6, cujos teores se têm por reproduzidos, que se baseou no art.º 1.º do Código do Imposto do Selo (de ora em diante o “CIS”) e na verba 28.1 da TGIS.

 

1.10.        De acordo com o alvará de loteamento que a Requerente junta como documento n.º 3, cujo teor se tem por reproduzido, o Prédio destinava-se à construção de um edifício de habitação colectiva e comércio.

 

1.11.        A Requerente procedeu ao pagamento das primeira, segunda e terceira prestações do IS supra referidas nos dias 29.04.2015, 30.07.2015 e 27.11.2015, respectivamente, cada uma no valor de € 4.750,73 (quatro mil setecentos e cinquenta euros e setenta e três cêntimos).

 

1.12.        A 29.03.2016 a Requerente reagiu contra a dita liquidação de IS, apresentando Reclamação Graciosa, que não mereceu qualquer resposta por parte dos serviços da Requerida, pelo que presume que, no dia 29.07.2016, teve lugar o respectivo indeferimento tácito.

 

1.13.        Alega a Requerente, em primeiro lugar, que a Liquidação ora contestada padece do vício de ilegalidade, porquanto a norma de incidência tributária, a saber, a verba 28 da TGIS, com a redacção em vigor à data dos factos, não poderia aplicar-se ao Prédio já que este se não destina à construção de habitação, mas antes à construção de habitação colectiva conjuntamente com comércio.

 

1.14.        Em segundo lugar, a verba 28.1. da TGIS, com a redacção em vigor à data dos factos, é inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da capacidade contributiva e da igualdade.

 

1.15.        A aquisição de terrenos para construção por parte da Requerente não pode ser considerada um indício de capacidade contributiva acrescida, mas antes, e apenas, uma verdadeira condição para a prossecução da sua actividade económica.

 

1.16.         Assim, a norma de incidência parece estar a penalizar e a discriminar as empresas imobiliárias face às empresas que se dedicam a outros sectores de actividade e que não necessitam, para a realização do seu objecto social, de terrenos para construção, o que, por si, é violador do princípio da igualdade.

 

1.17.        Acresce que não se vislumbra qualquer razão para distinguir entre as empresas que comercializam terrenos para construção de edifícios habitacionais e as que comercializam terrenos para outras finalidades.

 

1.18.        Constitui igualmente uma discriminação desprovida de fundamentação racional tributar terrenos para construção com afectação habitacional e VPT superior a € 1.000.000,00 (um milhão de euros), quando se destinam à construção de edificações com VPT inferior a essa bitola.

 

1.19.         Os juros indemnizatórios peticionados são devidos, uma vez que a Requerente pagou prestações tributárias a seu ver ilegais.

 

 

C – Posição da Requerida

 

 

1.20.        Entende a Requerida que a Liquidação impugnada resulta da aplicação directa da norma legal, respeitando integralmente a sua letra e o seu espírito.

 

1.21.        A Requerente foi notificada da avaliação do Prédio segundo as novas regras do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (de ora em diante, “CIMI”), que confirmou ser o Prédio um terreno para a construção, destinado a habitação e com VPT superior a € 1.000.000,00 (um milhão de euros), não tendo a Requerente, na ocasião, reclamado dos resultados do procedimento, como era seu direito, pelo que a 15.01.2013 o VPT do Prédio e demais pressupostos de que depende a aplicação da verba 28.1 da TGIS foram definitivamente levados à matriz, consolidando-se na sua esfera jurídico-fiscal.

 

1.22.        O alvará de licenciamento dos lotes em causa evidencia que todas as edificações a construir serão prevalentemente destinadas a habitação, pelo que o Prédio se subsume cabalmente na verba 28.1 da TGIS.

 

1.23.        Também não há inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, na vertente da capacidade contributiva, porquanto este não impede, em termos absolutos, qualquer diferenciação de tratamento. Veda apenas a ocorrência de discriminações arbitrárias e injustificadas, tendo o legislador elegido, de forma racional e objectiva, um determinado pressuposto de facto como base da incidência: terrenos para construção com VPT superior a € 1.000.000,00 (um milhão de euros) tendo como destino único ou predominante a habitação.

 

 

D – Conclusão do Relatório e Saneamento

 

 

1.24.        Por despacho de 30.05.2017 o Tribunal Arbitral dispensou a reunião prevista no art.º 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), por entender que as Partes haviam já carreado para o processo os elementos de facto necessários e suficientes para a prolação da decisão, que se previu pudesse ter lugar até ao dia 19.06.2017, caso as partes entendessem prescindir do direito de apresentarem alegações, o que ocorreu.

 

1.25.        O tribunal arbitral é materialmente competente, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT.

 

1.26.        As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade nos termos do art.º 4.º e do n.º 2 do art.º 10.º do RJAT, e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

1.27.        A cumulação de pedidos (declaração de ilegalidade de acto de liquidação, por um lado, e reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, por outro) efectuada no presente pedido de pronúncia arbitral, em homenagem ao princípio da economia processual, justifica-se uma vez que o art.º 3.º do RJAT, ao admitir expressamente a possibilidade de “cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos”, acomoda, sem abuso hermenêutico, a apreciação de um pedido que decorre, em termos necessários, do juízo que o tribunal arbitral sufrague quanto à validade da liquidação posta em crise.

 

1.28.        O processo não padece de qualquer nulidade nem foram invocadas quaisquer excepções, pelo que pode passar-se de imediato à apreciação do mérito da causa.

 

2.                  Matéria de facto

 

2.1.      Factos provados

 

2.1.1.      A Requerente é sucessora da sociedade “D…, S.A.”, que foi objecto de uma cisão dissolução, tendo o Prédio, que era propriedade da dita sociedade sido integrado no património da Requerente, por força da respectiva escritura pública de “cisão – dissolução – fusão, com constituição de sociedade” (doc. n.º 1, junto com o pedido de pronúncia arbitral, verba 20 a fls. 43 da dita escritura).

 

2.1.2.      A Requerente tem como objecto social a compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, administração, gestão patrimonial e arrendamento de imóveis (doc. n.º 10, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

  

2.1.3.      A Requerente é a única proprietária do Prédio (doc. n.º 2, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.4.      Ao Prédio foi atribuído o tipo de coeficiente de localização: habitação (doc. n.º 2, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.5.      O Prédio corresponde ao Lote n.º … do “Aditamento – Alvará de licença n.º …/08”, que altera o Alvará de Loteamento n.º …/91, ambos da Câmara Municipal da Maia, com a área de 882 m2, destinado a construção de prédio para habitação colectiva e comércio, com área de implantação de 882m2, área de construção de 6981 m2 e aparcamento em cave com a área de 1764 m2, constituído por 48 fogos e 8 comércios, com 2 pisos abaixo da cota de soleira e 9 pisos acima da cota de soleira (doc. n.º 3, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.6.      Ao Prédio foi atribuído o valor patrimonial tributário de € 1.425.220,00 (um milhão, quatrocentos e vinte e cinco mil, duzentos e vinte euros) (doc. n.º 2, junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.7.      A Requerente foi notificada dos documentos de cobrança referentes ao acto de liquidação de IS de 2014, respeitante à verba 28.1 da TGIS, relativo ao Prédio, no valor de € 14.252,20 (catorze mil duzentos e cinquenta e dois euros e vinte cêntimos) (docs. n.ºs 4 a 6, juntos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.1.8.      A Requerente procedeu ao pagamento das primeira, segunda e terceira prestações do IS supra referidas nos dias 29.04.2015, 30.07.2015 e 27.11.2015, respectivamente, cada uma no valor de € 4.750,73 (quatro mil setecentos e cinquenta euros e setenta e três cêntimos) (docs. n.ºs 7 a 9, juntos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

2.2.      Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a apreciação do mérito da causa que hajam sido dados como não provados.

 

2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos aos autos pelas Partes e nas posições por elas assumidas nos articulados apresentados.

 

 

3.                  Matéria de direito

 

3.1.      Questões a decidir

 

Resulta do que acima se deixou dito que as questões a apreciar são, no fundo, três: 

a)      A de saber se, à data a que se reportam os factos, o Prédio é “terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação nos termos do disposto no Código do IMI”, para efeitos da aplicação do art.º 1.º do CIS e da verba 28.1 da TGIS;

b)      Caso seja dada resposta afirmativa à questão anterior, a de saber se a verba 28.1 da TGIS é materialmente inconstitucional, por ser violadora dos princípios constitucionais da igualdade e da capacidade contributiva; e, por fim, 

c)      A de esclarecer se, caso se julgue procedente o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto de liquidação contestado, a Requerente, no âmbito do presente processo arbitral poderá obter a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios relativamente às quantias por si entregues para satisfação das prestações tributárias por esta ilegalmente exigidas.

 

3.2.      A verba 28.1 da TGIS na redacção que resultou da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro

 

A Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, entre várias alterações que promoveu ao CIS, aditou, pelo seu art.º 4.º, a verba 28 à TGIS, que contava, até 31.12.2013, com a seguinte redacção:

 

«28 - Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1.000.000 - sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:

 

28.1 - Por prédio com afetação habitacional - 1%;

 

 

Como se constata, a verba 28.1, com aquela redacção, referia-se a “prédios com afectação habitacional”. Ora, não só este conceito não surge definido em qualquer disposição do CIS, como tão-pouco é usado no CIMI, diploma para que expressamente remete o n.º 2 do art.º 67.º do CIS quando estejam em causa matérias não reguladas no CIS relativamente à verba 28.

 

3.3.      O sentido e o alcance do conceito de “prédio com afectação habitacional”

 

Não podem ser fixados o sentido e o alcance do conceito de “prédio com afectação habitacional” sem ter presente o significado do próprio vocábulo “afectação”. E esse terá de ser encontrado nos dicionários, colhendo-se neles o benefício do estudo criterioso dos lexicógrafos. Assim, “afectação”, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, é a acção de destinar alguma coisa a determinado uso e “afectar”, consequentemente, é sinónimo de destinar a um uso ou a uma função específica. 

 

a)      As regras de interpretação de normas fiscais

 

A questão a que primeiramente cumpria dar resposta não dispensava, antes implicava, que se surpreendesse o sentido e o alcance do conceito de “prédio com afectação habitacional” a que fazia apelo a verba 28.1 da TGIS. Na ausência de uma definição legal, quer no CIS, quer em qualquer outro diploma, tem o intérprete-aplicador desta disposição o dever de convocar as normas que regem o necessário exercício hermenêutico.

 

Não há verdadeiramente um regime especial de interpretação de normas tributárias. O n.º 1 do art.º 11.º da LGT manda observar, “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam”, “as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”.

 

Os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis são os estabelecidos no art.º 9.º do Código Civil:

   

ARTIGO 9º

(Interpretação da lei)

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

 

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

 

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

 

Note-se, porém, que a interpretação das normas, também das normas fiscais, não se esgota num exercício meramente lexical. Não envolve apenas, nem sequer sobretudo, a dissecação vocabular. Não estava, pois, em causa saber exactamente o que significava “prédio com afectação habitacional”, mas antes surpreender o sentido e o alcance desse conceito no âmbito do que dispunha a verba 28.1 da TGIS. O mesmo é dizer, sublinhe-se, que só haveria utilidade processual do esforço hermenêutico, no âmbito deste concreto pedido de pronúncia arbitral, se ele fosse dirigido a descortinar se o legislador, com a redacção então escolhida para a verba 28.1 da TGIS, quis nela abranger os prédios urbanos com as características do Prédio.

 

b)     A “afectação habitacional” – prédios habitacionais e com afectação habitacional

 

A afectação dos imóveis é um coeficiente que concorre para a sua avaliação, como bem recorda a Requerida. Contudo, importava saber se a verba 28 da TGIS, na redacção que vigorou em 2012 e 2013, compreendia quer os prédios edificados quer aqueles que fossem tidos por terrenos para construção.

 

O n.º 1 do art.º 6.º do CIMI, com preocupação taxinómica, distingue “prédios habitacionais” de “terrenos para construção”. Os primeiros serão, nos termos do disposto no n.º 2 do mesmo artigo, os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta dessa licença, os que tenham como destino normal esse fim. Já os terrenos para construção, esclarece o n.º 3 do preceito a que vimos fazendo referência, são aqueles para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, com algumas excepções.

 

Resulta claro, pois, que um terreno para construção não é, segundo esta classificação, um prédio habitacional. Importava ainda dilucidar a questão de saber se “prédio com afectação habitacional”, conceito então usado pela verba 28.1 da TGIS, correspondia, mau grado a diversidade literal, a “prédio habitacional”, noção empregue na classificação acabada de visitar.

 

Afectação, pelo que aprendemos com os dicionaristas, convoca o destino dado a certo bem. Já “habitacional” é relativo a habitação, sendo esta, por sua vez, e segundo o Dicionário que vimos usando, lugar ou casa em que se vive ou mora. Ora, afectação habitacional não poderá sugerir outro sentido que não seja a acção de dar a certo bem – no caso o Prédio, ainda que se admita para estes efeitos que é um terreno para construção – o destino de casa ou lugar onde se mora.

 

É sabido que o CIMI faz, em diversas disposições, uso da expressão “afectação”. Fá-lo, por exemplo:

 

  • No art.º 3.º, quando refere, relativamente a prédios rústicos, uma utilização geradora de rendimentos agrícolas;
  • No art.º 9.º, quando impõe aos sujeitos passivos o dever de comunicarem aos serviços de finanças que um terreno para construção passou a figurar no inventário de uma empresa que tenha por objecto a construção de edifícios para venda ou que um prédio passou a figurar no inventário de uma empresa que tenha por objecto a sua venda;
  • No art.º 27.º, quando relaciona certos edifícios e construções à produção de rendimentos agrícolas. 

 

Em todas as situações apresentadas, como se pode ver, a afectação não é referida em termos potenciais, de vocação ou de expectativa. É justamente ao contrário. Sugere um destino efectivo ou directo, para usar uma expressão a que o legislador faz apelo no art.º 27.º.

 

Contudo, o CIMI faz também abundante uso da expressão “afectação” quando enuncia as regras que devem aplicar-se à determinação do valor patrimonial tributário dos prédios urbanos (artigos 38.º e seguintes do CIMI). Poderia ser extraído das regras de determinação do valor patrimonial algum elemento útil que nos permitisse surpreender o sentido e o alcance do conceito de “prédio com afectação habitacional”?

 

c)      A relevância das regras de determinação do valor patrimonial tributário

 

A noção de afectação de prédio urbano encontra assento na parte relativa à avaliação dos imóveis. Para efeitos de determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção é clara a aplicação do coeficiente de afectação em sede de avaliação.

 

É certo que para a determinação do valor patrimonial tributário dos prédios se tem atendido à “afectação” do que neles possa ser edificado.

 

A mera constituição de um direito de potencial construção faz aumentar imediatamente o valor do imóvel em causa, em função, justamente, do que nele possa ser construído. Por isso, o art.º 45.º do CIMI “manda separar as duas partes do terreno”: de um lado, teremos de considerar “a parte do terreno onde vai ser implantado [rectius, onde pode vir a ser implantado] o edifício a construir, e do outro a área de terreno livre. Apurado o montante da primeira parte, reduz-se o valor determinado a uma percentagem entre 15% e 45% (…), em virtude de a construção não estar ainda efectivada”. É bom de ver que a aplicação daquela percentagem permite justamente atender à circunstância de não haver ainda construção, mas não autoriza o legislador que se ignore que o valor económico, ou de mercado, de um terreno está relacionado com a sua capacidade construtiva.

 

Dizer o que precede não significa, porém, afirmar que o legislador sente a necessidade de impor a tributação automática e necessária, em sede de Imposto Municipal sobre Imóveis, a todos os terrenos. Basta ler o que dispõe a alínea d) do já referido art.º 9.º do CIMI:

 

ARTIGO 9º

(Início da tributação)

1.      O imposto é devido a partir:

(…)

d)      Do 4.º ano seguinte, inclusive, àquele em que um terreno para construção tenha passado a figurar no inventário de uma empresa que tenha por objecto a construção de edifícios para venda;

(…)

 

Ou seja, ainda que o legislador entenda ser razoável, como parece ser, determinar o valor patrimonial tributário de um terreno levando em linha de conta a sua capacidade construtiva e, concedamos a benefício de raciocínio, a natureza ou vocação do que possa sobre ele ser edificado, não deixa de ser sintomático que tenha optado, do mesmo passo, por suspender essa tributação nos casos em que esses terrenos figurem no inventário de uma empresa que tenha por objecto a construção de edifícios para venda. Nos casos em que, poder-se-ia também dizer, esses prédios urbanos integram um processo produtivo que tende a continuar e a produzir, a jusante, frutos também eles tributáveis.

 

Se o sentido primacial de “afectação”, como deixámos dito, sugeria um destino efectivo, directo, dado a um determinado bem, não vemos como pudesse este entendimento ser infirmado pela constatação de que o legislador, no âmbito da avaliação de terrenos para construção, autoriza o uso do coeficiente de afectação, tendo em vista o que nele pode vir a ser construído. Na verdade, não parecia razoável admitir neste cenário o recurso a normas de determinação da matéria colectável para alargar a previsão das normas de incidência.

 

Face ao exposto, a boa interpretação do disposto na verba 28.1 da TGIS com a redacção aplicável aos anos de 2012 e 2013, impunha o entendimento segundo o qual a afectação habitacional de um prédio urbano sugeria que se lhe desse esse efectivo destino, ou se lhe pudesse directamente dar esse destino.

 

Não se diga que este juízo colide com a possibilidade de ver aplicado a um terreno para construção o coeficiente de afectação a que se faz referência na secção II do Capítulo VI do CIS. Na verdade, uma coisa são as regras que o legislador impõe para determinar o valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, não sendo estranho que se atenda à sua capacidade construtiva e à natureza e vocação do que neles possa ser edificado, outra, bem diversa, é pretender que essas regras sejam convocadas para recortar o campo da previsão normativa das regras de incidência.

 

Aliás, a interpretação que aqui se acolhe, e amplamente sufragada pela jurisprudência judicial e arbitral, está de harmonia com o que parece ter sido a intenção do Governo, autor da proposta que resultou nesta pouco rigorosa intervenção legislativa.

 

Aquando da apresentação e discussão, no Parlamento, da proposta de lei n.º 96/XII (2.ª), o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais referiu expressamente[1]:

 

“O Governo propõe a criação de uma taxa especial sobre os prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação. Esta taxa será de 0,5% a 0,8% em 2012 e de 1% em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros.”     

 

Ora, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais apresentou esta proposta de lei referindo as expressões “prédios urbanos habitacionais”, que são os que constam da alínea a) do n.º 1 do art.º 6.º do CIS e, como bem refere a Requerida, “casas”, sendo manifesto que, num caso e noutro, nesses conceitos não cabem, sem mais, terrenos, mesmo que para construção. 

 

Assim, mau grado a infelicidade da técnica legislativa e sem prejuízo da redacção posterior, resultava com meridiana clareza que a verba 28.1 da TGIS, não podia ser interpretada no sentido de nela estarem abrangidos imóveis com as características do Prédio, pelas razões supra aduzidas. Antes parece que o sentido e o alcance do conceito de “prédios com afectação habitacional” era o equivalente ao de “prédios habitacionais” mencionados na alínea a) do n.º 1 do art.º 6.º do CIS. 

 

3.4. A verba 28.1 da TGIS com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro

 

Com a alteração introduzida pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, a verba 28.1 da TGIS passou a ler-se assim:

 

28.1 - Por prédio habitacional ou por terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI;

 

Cuidemos, pois, de saber se o Prédio, no que se refere à liquidação de IS de 2014, está abarcado pela norma de incidência.

 

Estão as partes de acordo que o Prédio é um terreno para construção. Ora, já visitámos o n.º 1 do art.º 6.º do CIMI, a propósito da distinção entre “prédios habitacionais” e “terrenos para construção”, ou seja, aqueles para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, com algumas excepções, como se lê no n.º 3 do mesmo preceito.

 

Contudo, a preocupação do intérprete aplicador da norma não deve circunscrever-se ao conceito de “terreno para construção”. Esse exercício seria desprovido de qualquer utilidade se ignorasse a norma de incidência que o convoca.

 

Na verdade, mais do que saber se o Prédio é, ou não, um terreno para construção, o que é indisputado, importa descortinar se o Prédio é, para efeitos da verba 28.1 da TGIS, um “terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI”. Este é o ponto, no que se refere á liquidação de 2014.

 

Não é a simples inscrição matricial como “terreno para construção” que acarreta a inelutável aplicação da verba 28.1 da TGIS, já que ela não constitui, por si só, demonstração cabal de que um determinado prédio tem uma edificação para habitação prevista.

 

Veja-se a este propósito JOSÉ MANUEL FERNANDES PIRES, (Lições de Impostos sobre o Património e do Selo. Coimbra, Almedina, 3.ª ed., 2015, págs. 110 a 112): “O direito a construir não está ínsito no direito de propriedade, mas só nasce ex novo no património do proprietário quando um ato administrativo da entidade pública competente reconhece e autoriza o proprietário a construir ou a lotear. [...] só quando esse direito se constitui na esfera jurídica do proprietário é que o Código do IMI estabelece que estamos perante um terreno para construção”.

 

Assim, parece claro que para a verificação da previsão normativa não basta a mera inscrição matricial de um prédio como terreno para construção afecto a habitação, porquanto o recorte da incidência objectiva ora em apreço não abdica da demostração de uma efectiva potencialidade de edificação, necessariamente revelada pela existência de suportes documentais que a autorizam. O mesmo é dizer que a incidência do imposto, para efeitos do disposto na verba 28.1 da TGIS, só se materializa, e mesmo assim não em termos definitivos ou completos, com a verificação de uma “afectação efectiva”, para utilizar a feliz expressão de JOSÉ MANUEL FERNANDES PIRES (ob. cit., p. 507). No mesmo sentido, cfr., entre outros, o Acórdão do CAAD proferido no processo n.º 524/2015-T.

 

Ora, sem a demonstração dessa efectiva potencialidade de edificação não se mostra aplicável a verba 28.1 da TGIS. Contudo, para efeitos da aplicação da verba 28.1 da TGIS não basta essa efectiva potencialidade de edificação. É necessário provar que a edificação, autorizada ou prevista, é para habitação. O mesmo é dizer que não pode ser para fim diverso do que habitação, já que a edificação para comércio ou indústria não dará lugar à aplicação da norma a que vimos fazendo referência.

 

Ora, no Prédio, como se viu, está previsto no Alvará de Loteamento emitido pela Câmara Municipal da Maia a construção de prédio para habitação colectiva e comércio, com área de implantação de 882m2, área de construção de 6981 m2 e aparcamento em cave com a área de 1764 m2, constituído por 48 fogos e 8 comércios, com 2 pisos abaixo da cota de soleira e 9 pisos acima da cota de soleira.

 

É certo que o Prédio está matricialmente dado como sendo “terreno para construção” afecto a habitação, todavia, resulta claro que está autorizada a edificação não apenas para fins habitacionais mas também para comércio, não se fazendo qualquer distinção entre as áreas que se destinam a habitação, em sentido próprio, das outras que mostram ter a afectação alternativa.

 

O que é seguro concluir é que o legislador não pretendeu tributar em sede de IS, por aplicação da verba 28.1. da TGIS, os terrenos para construção cuja edificação autorizada ou prevista tivesse por destino o comércio. Quis apenas tributar aqueles que se destinassem a habitação. Ora, atenta esta opção legislativa, que pode efectivamente suscitar o problema de saber se tal desiderato se mostra compatível, nomeadamente, com o princípio constitucional da igualdade tributária, não pode aplicar-se aquela verba a um imóvel para o qual se autorizou a construção de unidades afectas ao comércio. Onde o legislador distinguiu, não pode o intérprete-aplicador pretender ignorar a distinção.

 

Assim, a liquidação posta em crise, enferma do vício de violação de lei, porque estribada no que entende o tribunal arbitral ser uma errónea interpretação da verba 28.1 da TGIS, por erro sobre os pressupostos de direito.

  

3.5.      Dos juros indemnizatórios

 

A alínea b) do n.º 1 do art.º 24.º do RJAT dispõe que “a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”.

 

Não se ignora que a autorização legislativa concedida ao Governo pelo art.º 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, na base da qual foi aprovado o RJAT, determina que o processo arbitral tributário constitua um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária. Ainda que as alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT fundem a competência dos tribunais arbitrais em “declarações de ilegalidade”, parece razoável o entendimento segundo o qual se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo certo que nos processos de impugnação judicial, para além da anulação de actos tributários, podem ser apreciados pedidos de indemnização, desde logo relativos a juros indemnizatórios.

 

Com efeito, o princípio da cognoscibilidade dos pedidos de indemnização, em reclamação graciosa ou em processo judicial, justifica-se sempre que o dano que se pretende ver ressarcido resulte de facto imputável à Administração Tributária e Aduaneira. Encontramos manifestações desse princípio no n.º 1 do art.º 43.º da Lei Geral Tributária e no art.º 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

 

Assim, justifica-se a apreciação do pedido de pagamento de juros indemnizatórios feito pela Requerente.

 

São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, ter havido erro imputável aos serviços do qual resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

Ora, tendo a Requerente pago o tributo que pela liquidação reclamada lhe foi, por erro imputável aos serviços, exigido, tem ela direito não apenas ao reembolso de tudo quanto pagou mas ainda a perceber juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento de cada uma das prestações, até ao seu integral reembolso. 

 

3.6.      Questões prejudicadas

 

Por ser entendimento do tribunal arbitral que a liquidação posta em crise enferma do vício de violação de lei, porque baseada numa errónea interpretação da verba 28.1 da TGIS, fica prejudicada, por desnecessária, a análise da questão de inconstitucionalidade levantada pela Requerente.  

 

  1. Decisão

 

Nos termos e com os fundamentos expostos, o tribunal arbitral decide:

a)      Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral com a consequente anulação da liquidação impugnada, com todas as consequências legais, desde logo o reembolso à Requerente de todos os montantes por ela pagos, relativamente à liquidação ora anulada;

b)      Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, sendo eles contados desde a data do pagamento de cada uma das três prestações tributárias ora declaradas indevidas, até ao seu integral reembolso.

 

 

  1. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no n.º 2 do art.º 306.º do CPC, no art.º 97.º-A do CPPT e ainda do n.º 2 do art.º 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 14.252,20 (catorze mil duzentos e cinquenta e dois euros e vinte cêntimos).

 

 

  1. Custas

 

Para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 12 e no n.º 4 do art.º 22.º do RJAT e do n.º 4 do art.º 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 918,00 (novecentos e dezoito euros), nos termos da Tabela I anexa ao dito Regulamento, a suportar integralmente pela Requerida.

 

 

Lisboa, 12 de Junho de 2017

 

 

O Árbitro

 

 

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(Nuno Pombo)

 

 

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do art.º 131.º do CPC, aplicável por remissão da al. e) do n.º 1 do art.º 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro e com a grafia anterior ao dito Acordo Ortográfico de 1990.

 

 



[1] V. DAR I Série n.º 9/XII -2, de 11 de Outubro, pág. 32.