Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 623/2015-T
Data da decisão: 2016-06-09  IRC  
Valor do pedido: € 194.874,31
Tema: IRC – SGPS; dedutibilidade dos encargos financeiros; Circular n.º 7/2004, da DSIRC
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Decisão Arbitral

 

Os árbitros José Baeta de Queiroz, (árbitro presidente), Hélder Faustino e Manuel Pires (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o Tribunal Arbitral constituído em 09-12-2015, acordam no seguinte:

 

I.                   Relatório

 

1.A A…– Sociedade Gestora de Participações Sociais, S.A. (doravante designada abreviadamente por “Requerente”), pessoa colectiva n.º…, com sede na … n.º…, …, em Torres Vedras, tendo sido notificada dos actos tributários de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) relativos ao período de tributação de 2011, formalizados pelos documentos de liquidação n.º 2015…, demonstração de acerto de contas n.º 2015… e compensação n.º 2015 …, no montante global de € 194.874,31, veio apresentar, ao abrigo da alínea a), do n.º 1 do artigo 2.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, doravante RJAT) pedido de pronúncia arbitral com vista à anulação daqueles actos.

 

2. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

 

3. A pretensão objecto do pedido de pronúncia arbitral consiste na anulação daqueles actos, a par da condenação da AT ao reembolso do imposto indevidamente pago e, bem assim, ao pagamento de uma indemnização por garantia indevidamente prestada.

 

3.1.A Requerente peticiona:

a)      a declaração de ilegalidade da liquidação adicional de IRC resultante da demonstração de acerto de contas n.º 2015 … relativa ao período de tributação de 2011 e consequente anulação do imposto e juros compensatórios devidos, no montante de € 194.874,31, indevidamente liquidado pela AT; ou

b)      a anulação parcial da liquidação adicional de IRC referente ao período de 2011, ou seja, que apenas seja considerado o imposto aplicável ao lucro tributável da Requerente correspondente ao acréscimo relativo a encargos financeiros não dedutíveis ao abrigo do n.º 2 do artigo 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), no montante de € 176.319,92, com a correspondente anulação do imposto nos montantes de € 121.046,02, relativo ao IRC, € 7.262,76, relativo à derrama municipal e € 14.445,93, relativos a juros compensatórios; e

c)      a condenação da AT ao reembolso do imposto indevidamente pago;

d)      a condenação da AT ao pagamento de indeminização por garantia indevidamente prestada.

 

4. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.

 

4.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou os árbitros José Baeta de Queiroz, Manuel Pires e Mariana Gouveia de Oliveira como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, os quais comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

4.2. Em 23-11-2015, as partes foram notificadas da designação dos árbitros não tendo arguido qualquer impedimento.

4.2. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 09-12-2015.

4.3. Posteriormente, a árbitro Mariana Gouveia de Oliveira renunciou às funções de árbitro adjunto no processo em referência, tendo o Senhor Presidente do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD determinado, em 10-12-2015, a sua substituição pelo árbitro Hélder Faustino.

4.4. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.

 

5. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral a Requerente alega, em síntese, o seguinte:

a)      Em cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI2015…, de 13-05-2015, de âmbito parcial, foi efectuado um procedimento de inspecção interna aos elementos recolhidos ao abrigo do projecto 2014/… /… – SGPS – Sociedades Gestoras de Participações Sociais, relacionadas com o controlo do cumprimento do preceituado no n.º 2 do artigo 32.º do EBF relativamente aos encargos financeiros, entre outros.

b)      Conforme referido no relatório de inspeção, AT desconsiderou determinados encargos financeiros, alegadamente suportados pela Requerente com a aquisição de participações sociais susceptíveis de beneficiar do regime previsto n.º 2 do artigo 32.º do EBF, na redacção em vigor à data, tendo acrescido, consequentemente, ao lucro tributável do período de tributação de 2011, o montante de € 660.504,01 (seiscentos e sessenta mil e quinhentos e quatro euros e um cêntimo), com a consequente alteração da matéria colectável declarada pela Requerente.

c)      A Requerente foi notificada da demonstração de liquidação de IRC n.º 2015…, emitida em 21-05-2015.

d)      A Requerente não concorda com a decisão da AT pelos motivos que se sumariam de seguida:

                                i.            A AT concluiu pela existência de correcções ao lucro tributável, relativas a encargos financeiros não dedutíveis tendo por base a metodologia prevista na Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, da Direcção de Serviços do IRC[1], aqual estabelece “(…) no essencial, uma afectação pro-rata dos passivos remunerados aos activos reflectidos no balanço das (…) SGPS”.

                              ii.            A AT não apresenta um único fundamento (de facto, ou de direito) que lhe permita corrigir os encargos financeiros em apreço, nem faz prova de os mesmos tenham sido efectivamente suportados com a aquisição de participações sociais da Requerente.

                            iii.            A AT limita-se a reproduzir a argumentação expendida no âmbito do procedimento administrativo e outra de cariz absolutamente inútil para o caso em apreço (v.g., a parte relativa às prestações suplementares).

                            iv.            A questão dos encargos financeiros não dedutíveis não é, contudo, um tema novo e tem sido objecto de diversa jurisprudência (arbitral e não só), reconhecendo a ilegalidade do método indirecto de determinação destes encargos previsto na Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, bem como a inconstitucionalidade desta orientação administrativa por violação do princípio da legalidade e da reserva de lei formal.

                              v.            Inconstitucionalidade esta, que já se encontra confirmada e determinada superiormente pelo Tribunal Constitucional (v.g. o Acórdão n.º 42/2014, Processo n.º 564/2014, de 09-01-2014).

 

6. A AT apresentou resposta, alegando, em síntese, o seguinte:

a)      Entende a Requerida que como o n.º 2 do artigo 32.º do EBF não estabelece qual o método a utilizar para efeitos de afectação dos encargos financeiros às participações sociais, a Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, mais não pretende que dar cumprimento à lei, determinando o método e a forma de cálculo dos encargos financeiros suportados com a aquisição de partes sociais.

b)      Ora, conforme referido no Processo n.º 21/2012-T do Tribunal Arbitral, relativamente à ilegalidade / inconstitucionalidade da Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, não se vislumbra “(…) em que medida aquela doutrina administrativa possa conter verdadeiras normas de incidência, de determinação de taxa e de liquidação, violando, por isso, o princípio da legalidade fiscal previsto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 103º da CRP.”.

c)      Prossegue a AT que não é a Circular n.º 7/2004, de 30 de Março que cria normas de incidência, mas é a própria lei, interpretada nos termos acima expostos, que afasta a dedutibilidade, para efeitos de apuramento do lucro do exercício em que são incorridos, os encargos financeiros suportados com financiamentos ligados à aquisição das participações sociais alienadas e que realizam, ainda que potencialmente, mais-valias excluídas de tributação.

d)      Nesta medida, a interpretação constante da Circular n.º 7/2004, de 30 de Março está conforme à letra a lei, na medida em que mais não faz do que empreender a descoberta do seu mais preciso significado, em respeito, aliás, pela teoria geral da interpretação da lei e do quadro normativo que a conforma.

e)      Assim, a Circular n.º 7/2004, de 30 de Março não alterou nem desvirtuou a estatuição legal do n.º 2 do artigo 32.º do EBF, mas apenas uniformizou a interpretação e aplicação da norma, na adequada defesa do interesse público e respeito pelos direitos e interesses dos contribuintes cfr. artigos 266.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 55.º da Lei Geral Tributária (LGT).

f)       Acresce, ainda, que a explanação na circular do método a utilizar contribui para a realização efectiva das finalidades extra fiscais que presidiram à sua criação e obstar a que os contribuintes utilizem o normativo para prosseguirem fins alheios aos visados na lei.

g)      No caso concreto, a Requerente não apresentou qualquer método alternativo à Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, no âmbito das diligências em sede de procedimento inspectivo, não tendo inclusive exercido o direito de audição.

h)      Conforme decorre do procedimento inspectivo, a desconsideração dos encargos financeiros para efeitos de determinação do lucro tributável, consagrada no disposto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF, “(…) consubstancia um corolário do princípio da indispensabilidade dos custos, segundo a qual a dedução fiscal é condicionada à sua conexão com a obtenção de proveitos sujeitos a imposto ou indispensáveis para a manutenção da fonte produtora.”.

i)       Com efeito, como se referiu na decisão arbitral, processo n.º 14/2011-T, “(…) é estritamente em relação à entidade cujos custos estão em consideração, tendo em atenção à actividade empresarial que desenvolve, que importa apreciar a dedutibilidade fiscal dos encargos financeiros. Essa dedutibilidade fiscal supõe, então, que os custos incorridos com os encargos financeiros possuam uma conexão de causalidade com a actividade empresarial desenvolvida, maxime sirvam ao desenvolvimento da actividade da sociedade deles devedora.”.

j)       Em conclusão, a utilização do método de imputação utilizado pela Circular n.º 7/2004, de 30 de Março visa a tributação mais próxima possível ao lucro real, não existindo qualquer entorse ao princípio constitucional de tributação pelo lucro real.

 

7. Não tendo sido requerida a produção de prova constituenda, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo sido designado o dia 09-06-2016 como data limite para a prolação da decisão arbitral.

 

8. As partes apresentaram alegações escritas.

 

II.                Saneamento

 

9.1. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

9.2. O Tribunal Arbitral é competente e encontra-se regularmente constituído.

9.3. O processo não enferma de nulidades.

9.4. Não se verificam quaisquer outras circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

 

III.             Mérito

 

III.1. Matéria de facto

 

10. Factos provados

 

10.1.Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:

a)      A Requerente é uma sociedade gestora de participações sociais;

b)      Em 31-12-2011, a Requerente detinha as seguintes participações financeiras:

                                i.            B…, Lda.;

                              ii.            C…, SARL;

                            iii.            D…, Lda.;

                            iv.            E…– Construções, Lda.;

                              v.            F…, Lda.;

                            vi.            G…;

                          vii.            H…, Lda.;

                        viii.            I…, S.A.;

                            ix.            J…, S.A.;

                              x.            K…– Imobiliária, Lda.;

c)      L… AS

d)      Em 2011, a Requerente teve custos financeiros que totalizaram € 1.718.550,04, os quais resultaram de empréstimos obtidos a instituições financeiras, a saber: M…, S.A.; N…, S.A. e O…, S.A.;

e)      Em 2011, a Requerente concedeu diversos empréstimos a empresas do grupo, no montante de € 25.078.520,16

f)       A Requerente foi objecto de uma acção de inspecção, a qual teve exclusivamente por motivo e origem a análise aos elementos recolhidos ao abrigo do projecto …/EEP/… – SGPS, relacionadas com o controlo do cumprimento do preceituado no n.º 2 do artigo 32.º do EBF relativamente a encargos financeiros, entre outros;

g)      No âmbito desta acção de inspecção, foi efectuada uma única correcção à matéria colectável para efeitos do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), a qual se consubstanciou no acréscimo do montante de € 660.504,01, a título de encargos financeiros não aceites;

h)      A correcção em causa foi praticada com fundamento na Circular n.º 7/2004, de 30 de Março (cfr. ponto III.2.2.1, pág. 12 do Relatório de Inspecção da AT e Doc. n.º 2 anexo ao pedido de pronuncia arbitral);

i)       A Requerente foi notificada da demonstração de liquidação de IRC n.º 2015…, da demonstração de acerto de contas n.º 2015… e da compensação n.º 2015…, no montante global de € 194.874,31, cuja data limite de pagamento era 27-07-2015;

j)       Em 29-08-2015, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

10.2. Fundamentação da matéria de facto

 

A factualidade provada teve por base os documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e no processo administrativo, não havendo controvérsia sobre eles.

 

10.3. Inexistem outros factos com relevo para apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.

 

III. 2. Matéria de Direito

 

Do mérito

 

A questão central a decidir prende-se com a ilegalidade, ou não, da determinação dos encargos financeiros através do método previsto no ponto 7 da Circular n.º 7/2004, de 30 de Março.

 

Senão vejamos.

 

De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF então em vigor[2], “as mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim, os encargos financeiros suportados com a sua aquisição não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades.” [sublinhado nosso].

 

Na falta de um método de apuramento destes encargos definido de forma expressa no EBF (ou no Código do IRC), veio a Circular n.º 7/2014, de 30 de Março, sancionar o entendimento da Direcção de Serviços do IRC relativamente à metodologia a adoptar para efeitos do apuramento dos encargos financeiros não dedutíveis por força do disposto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF.

 

Genericamente, a metodologia prevista na referida Circular estabelece uma afectação proporcional dos passivos remunerados reflectidos no balanço de uma SGPS aos activos detidos por estas sociedades, não sendo tida, assim, em consideração a realidade concreta das sociedades que se encontram abrangidas pelo disposto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF, nem tão pouco a operação que possa ter originado a detenção das participações sociais.

 

Ora, à luz deste método de apuramento, são imputados encargos financeiros não dedutíveis a todas as participações sociais detidas por uma SGPS, ainda que a respectiva detenção não resulte de uma aquisição propriamente dita, não tendo assim, qualquer aderência com a norma de incidência prevista no n.º 2 do artigo 32.º do EBF.

 

De facto, a norma em causa tem implícita uma afectação real entre os activos e os passivos em causa, e os encargos suportados com a aquisição das partes de capital.

 

Segundo a Direcção de Serviços do IRC, a opção pela metodologia em apreço justifica-se pela dificuldade de utilização de um método de afectação directa ou específica e, bem assim, pelo facto de o método de afectação directa ou específica poder conduzir a manipulações.

 

Neste sentido, e tendo em conta as supostas dificuldades que acarretaria a utilização de um método de afectação directa dos encargos financeiros às partes de capital detidas pelas SGPS, poderíamos ser levados a considerar a Circular n.º 7/2004, de Março, como o resultado de um exercício interpretativo da norma constante do n.º 2 do artigo 32.º do EBF promovido pela Direcção de Serviços do IRC.

 

Contudo, e precisamente sobre a matéria controvertida, veio o Tribunal Arbitral[3]concluir que “(…) a definição dos pressupostos da tributação é matéria sujeita ao princípio da legalidade, desde logo por força do disposto no artigo 103.º, n.º 2, da CRP que estabelece que «os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes».” [sublinhado nosso].

 

Acrescenta aquele Tribunal Arbitral que “É, assim, claro que as normas relativas à liquidação de tributos, designadamente, as que definem a incidência e os benefícios fiscais, estão subordinadas ao princípio da legalidade, estando consequentemente afastada a possibilidade de, por via administrativa, serem criadas normas de que resulte uma efectiva oneração para os contribuintes.” [sublinhado nosso].

 

Conclui-se, pois, que não é permitida a criação de uma metodologia de imputação dos encargos financeiros não dedutíveis ao abrigo do disposto no n.º 2 do 32.º do EBF por via de uma instrução administrativa, atenta a sua subsunção ao princípio da legalidade previsto no artigo 8.º da LGT.

 

Entende este Tribunal Arbitral não poder, pois, em caso algum a AT, mediante um suposto acto interno de interpretação da lei, impor um método que determine quais os encargos financeiros não dedutíveis ao abrigo do disposto no n.º 2 do 32.º do EBF.

 

Como é, de resto, sabido, as interpretações da AT não são vinculativas para os contribuintes[4], porquanto o sistema jurídico português não considera as orientações genéricas emitidas pela AT como uma fonte do direito.

 

Atenta a inexistência de legislação que preveja a produção de feitos jurídicos externos destes actos, o seu carácter vinculativo é meramente interno.[5]

Por outro lado, e conforme referido anteriormente, a metodologia de cálculo dos encargos financeiros associados à aquisição de partes de capital prevista na Circular n.º 7/2004, de 30 de Março é baseada numa fórmula que não tem em consideração as condições relativas ao caso concreto e não atende às razões que possam conduzir a que o contribuinte se disponha a incorrer no ónus de demonstrar que, atentas as circunstâncias do caso, o endividamento se deveu a outros investimentos que não a aquisição de partes de capital.

 

Na prática, a aplicação cega da fórmula constante da Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, por parte da AT, poderá configurar uma presunção inilidível de que os encargos financeiros apurados são sempre suportados com a aquisição de partes de capital.

 

Ora, a metodologia prevista na Circular n.º 7/2004, de 30 de Março não confere ao contribuinte a oportunidade de demonstrar se, por um lado, o financiamento obtido do qual resultam os encargos financeiros suportados é anterior, ou posterior, à aquisição das partes de capital enquadráveis no âmbito da isenção de tributação das mais-valias prevista no artigo 32.º do EBF ou, por outro, se as partes de capital consideradas foram obtidas através da aquisição ou de outras operações que, pela sua natureza, afastam a existência de qualquer financiamento associado à respetiva obtenção.

 

A este respeito, poderá referir-se, ainda, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 15-01-2015, proferido no âmbito do processo n.º 009046/09.0BEPRT [6], nos termos do qual é rejeitado de forma categórica que o método de imputação de encargos financeiros a partes de capital seguido na Circular n.º 7/2004, de 30 de Março seja conforme ao disposto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF.

 

Senão vejamos.

 

É referido no Acórdão em causa que “O facto de na sua metodologia ter usado os critérios preconizados na circular n.º 7/2004, de 30 de Março, em especial seus pontos n.ºs 7 e 8 não salva a legalidade da operação, pois os critérios e pressupostos de imputação dos passivos remunerados das SGPS ultrapassam manifestamente o conteúdo do art. 31º/2 do EBF criando presunções e apuramentos proporcionais que o legislador manifestamente não assumiu nem consentiu.” [sublinhado nosso].

 

Mais, “Se o legislador não instituiu qualquer critério que permita distinguir nos custos financeiros totais das SGPS quais os que se devem à compra de participações sociais e quais os que foram usados para outros fins, a ATA só poderia mover-se no âmbito de um método que respeitasse a afectação directa ou específica, porque só esse seria compatível com o princípio da legalidade e da imparcialidade a que está sujeita (…) e que resulta da redacção do art. 31º/2 EBF ao excluir da formação do lucro tributável os encargos financeiros suportados com a aquisição das participações alienadas.” [sublinhado nosso].

 

Também o Tribunal Arbitral (no já citado Processo n.º 292/2015-T) teve oportunidade de se pronunciar expressamente a propósito da questão da ilegalidade da determinação dos encargos financeiros através do método previsto no ponto 7 da Circular n.º 7/2014, de 30 de Março.

 

Entendeu o Tribunal Arbitral que o“(…) conteúdo do princípio da legalidade é indicado no artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo de 1991, vigente ao tempo em que foi emitida a liquidação e subsidiariamente aplicável ao procedimento tributário por força do disposto na alínea c) do artigo 2.º da LGT, tendo a formulação positiva de que «os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes forem conferidos».”.

 

“Neste artigo 3.º do CPA de 1991, o princípio da legalidade deixou de ter «uma formulação unicamente negativa (como no período do Estado Liberal), para passar a ter uma formulação positiva, constituindo o fundamento, o critério e o limite de toda a actuação administrativa».”.

 

De facto, “«A lei não é apenas um limite à actuação da Administração: é também o fundamento da acção administrativa. Quer isto dizer que, hoje em dia, não há um poder livre de a Administração fazer o que bem entender, salvo quando a lei lho proibir; pelo contrário, vigora a regra de que a Administração só pode fazer aquilo que a lei lhe permitir que faça».” [sublinhado nosso].

 

“Por isso, no caso em apreço, (…) «pretendendo a ATA desconsiderar os custos contabilizados pela recorrida com fundamento na violação do art.º 31º/2 do EBF, deveria demonstrar os pressupostos do seu direito à tributação, ou seja, deveria provar que esses custos não eram legalmente dedutíveis quer porque se realizaram menos valias com a transmissão onerosa de partes de capital detidas há menos de um ano, quer porque foram suportados e contabilizados encargos financeiros com a sua aquisição». Na verdade, era este método directo o que deveria ter sido utilizado, pois a Autoridade Tributária e Aduaneira não pode fazer uso de um método indirecto para determinar a matéria tributável da Requerente sem estarem reunidos os requisitos legais de que a lei faz depender a sua utilização, previstos nos artigos 85.º e 87.º da LGT, e não pode usar para a

quantificação da matéria tributável critérios não previstos na lei (artigo 90.º da LGT).” [sublinhado nosso].

 

Conclui o Tribunal Arbitral que “(…) ao determinar a não dedutibilidade dos encargos financeiros, a Autoridade Tributária e Aduaneira está levar a cabo uma actividade de natureza desfavorável para o contribuinte, pelo que lhe cabe o ónus da prova dos factos que invocar para fundamentar a sua actuação, designadamente, ao optar pela utilização de método indirecto de determinação da matéria tributável, de provar que se verificava algum ou alguns dos pressupostos legais da sua aplicação, indicados no artigo 87.º da LGT, como decorre do n.º 3 do artigo 74.º da LGT.” [sublinhado nosso].

Se não se provaram, em concreto, factos que implicam o recurso a métodos indirectos, não podem ser utilizados métodos indirectos para determinar a matéria tributável, na medida em que estes apenas podem ser utlizados quando se demonstrar não ser viável a utilização de métodos directos, conforme previsto no n.º 1 do artigo 85.ºda LGT.[7]

 

Pelo que A «afectação indirecta» criada pela Autoridade Tributária e Aduaneira através da Circular n.º 7/2004 é uma mera ficção, baseada em presunções cujo fundamento não é nela explicado, para levar a concluir que houve uma afectação (necessariamente directa) de financiamentos à aquisição de participações sem se apurar se ela ocorreu ou não e em que medida.” [sublinhado nosso].

 

Em conclusão, entende este Tribunal Arbitral que a fórmula administrativamente criada pela AT consubstancia um método que, quando aplicado de forma obrigatória, se desvirtua do objectivo previsto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF.

 

De facto, ao sobrepor o método previsto na Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, a AT violou o princípio da legalidade, enquanto “(…) princípio concretizador do Estado de direito que exprime a subordinação jurídica da administração pública (…)”.[8]

 

Conclui-se, assim, que o acto impugnado enferma de vício de violação de lei, por não ter observado o regime previsto no n.º 2 do artigo 32.ºdo EBF e ter infringido o princípio da legalidade, nas vertentes formal (n.º 1 do artigo 8.º da LGT) e procedimental (artigo 55.º da LGT).

 

Com efeito, fica assim prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pela Requerente, nomeadamente, o alegado vício de inconstitucionalidade e, bem assim, o pedido subsidiariamente formulado, por ter sido declarada a ilegalidade das liquidações supra identificadas, por vício substantivo que impede a renovação dos actos, assegurando-se eficazmente a tutela dos direitos da Requerente, de harmonia com o preceituado no artigo 124.º do CPPT. [9]

 

Da indemnização por prejuízos resultantes da prestação da garantia

 

A Requerente constituiu, por escritura pública de 16-09-2015, hipoteca a favor da Fazenda Pública / AT / Serviço de Finanças de … do imóvel constituído pela fracção autónoma individualizada pela letra C, inscrito na matriz da freguesia de…, concelho de Torres Vedras, sob o número…, com o valor patrimonial tributário de € 831.265,75, destinada a suspender a execução fiscal da sobredita e ora impugnada liquidação adicional, no montante de € 195.720,09 (Docs. n.º 13 e n.º 14 anexos ao pedido de pronúncia arbitral).

 

Segundo José Maria Fernandes Pires (Coordenador), Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal, Maria João Menezes, em anotação ao artigo 53.º da LGT, “São três os elementos constitutivos do direito a indemnização por garantia indevida:

 

a.      Em primeiro lugar, ter sido prestada garantia bancária ou equivalente em execução fiscal;

b.      Em segundo lugar, ter o sujeito passivo suportado custos com a prestação ou a manutenção da garantia. O objectivo desta norma é exactamente a devolução ao contribuinte de todos os custos suportados com a prestação ou manutenção da garantia que se veio a mostrar indevida, pelo que é essencial à constituição do direito que esses custos tenham sido efectivamente suportados;

c.       Em terceiro lugar, ter-se apurado ser indevido o imposto que deu origem à dívida, por ter sido anulada total ou parcialmente a liquidação que lhe deu origem. Neste caso podem ainda ocorrer duas circunstâncias distintas:

 

                                                                                                  i.      Nos casos em que a anulação da liquidação resulta de erro da própria administração tributária, o direito a indemnização constitui-se desde a data da prestação da garantia indevida;

 

                                                                                                ii.      Nos restantes casos, nomeadamente quando o erro é da responsabilidade do sujeito passivo, o direito a indemnização só se constitui depois de terem decorrido três anos sobre a constituição da garantia.”. [10]

 

A liquidação em apreço enferma de ilegalidade imputável à AT: o sujeito passivo obterá vencimento na impugnação e o fundamento da anulação não lhe é imputável.

 

Sendo público e notório que pela constituição da garantia, a Requerente suportou e continua a suportar encargos pela manutenção da mesma, reconhecem-se reunidos os pressupostos que lhe conferem direito a indemnização nos termos do disposto no artigo 53.º da LGT.

 

IV.             Decisão

 

Termos em que acorda o presente Tribunal Arbitral, por maioria, em:

a)      Julgar procedente o pedido formulado pela Requerente, declarando a ilegalidade e anulando o acto de liquidação adicional de IRC resultante da demonstração de acerto de contas n.º 2015 … relativa ao período de tributação de 2011 (com o consequente direito ao reembolso do valor indevidamente pago);

b)      Julgar indevida a garantia prestada no âmbito do processo de execução fiscal n.º …2015…;

c)      Julgar procedente o pedido de indemnização pelos prejuízos resultantes da prestação, ora julgada indevida, dessa garantia;

d)      Condenar a AT no pagamento de indemnização à Requerente, nos termos e com os limites previstos no artigo 53.º da LGT e a liquidar em execução de julgado, decorrente da procedência do pedido a que aludem as alíneas anteriores e

e)      Condenar a AT nas custas deste processo.

 

V.                Valor do Processo

 

De harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 306.º e no n.º 2 do artigo 297.º, ambos do Código do Processo Civil, da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de €194.874,31 (cento e noventa e quatro mil, oitocentos e setenta e quatro euro e trinta e um cêntimos).

 

VI.             Custas

 

De acordo com o previsto no n.º 4 do artigo 22.º, no n.º 2 do artigo 12.º, ambos do RJAT, no artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 3.º e nos n.ºs 1 a 4 do artigo 4.ºdo Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como na Tabela I anexa a este diploma, fixa-se o valor global das custas em €3.672,00 (três mil, seiscentos e setenta e dois euro).

 

 

Lisboa, 9 de Junho de 2016.

 

Os árbitros,

 

José Baeta de Queiroz

(Árbitro Presidente)

 

Hélder Faustino (Relator)

(Árbitro Vogal)

 

 

Manuel Pires

(Árbitro Vogal – vencido, conforme voto que se segue como parte integrante deste acórdão)

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 131.º, do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT. A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Votei, como no Processo arbitral n.º 663/2015-T, embora no aplicável, não concordando com o reconhecimento da competência do Tribunal relativa ao eventual reembolso do imposto, atento o disposto na lei (cfr. Acórdão arbitral no processo n.º 244/2013-T). Votei ainda e sem desconsideração do tipo de processo em causa, entendendo ser necessário o aprofundamento da análise da Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, da DSIRC (cfr. acórdão arbitral no processo 258/2015-T), da problemática por ela suscitada, tendo em atenção designadamente o aspecto quantitativo ou valorativo do pressuposto objectivo da tributação e das vias para a sua determinação, bem como das consequências derivadas desse aprofundamento, incluindo a invocação de princípios constitucionais. Atento o carácter interpretativo e guia de aplicação do artigo 32.º n.º 2 do EBF, por parte da circular, contribuindo para a segurança derivada da uniformização – artigo omisso quanto ao método aplicável na determinação nos encargos nele referidos -, é necessária a correcta interpretação da disposição em causa, atendendo-se à sua ratio essendi (evitar duplo desagravamento e até esquemas mais ou menos apurados de evitar o imposto), recorrendo-se, se necessário, à interpretação extensiva – hoje aceite, com o afastamento de orientações ultrapassadas como a interpretação meramente literal, mesmo no domínio dos elementos essenciais do imposto -, trabalho interpretativo que conduz ao afastamento da exclusividade da afectação directa ou específica. Também importa analisar o cumprimento do ónus da prova, ónus que não poderá ou poderia ser subestimado ou invertido, mesmo no caso de se chegar ou se se chegasse à conclusão de a referida circular ser contra legem.

 

Manuel Pires

 

 

 

 



[2] Revogado pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro.

[3] Processo n.º 292/2015-T, de 11-11-2015, disponível em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/.

[4]Cfr. o disposto no n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT.

[5] Neste sentido, José Maria Fernandes Pires (Coordenador), Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal, Maria João Menezes, “Lei Geral Tributária Comentada e Anotada”, Almedina, 2015, pág. 782 e António Lima Guerreiro, “Lei Geral Tributária Anotada”, Editora Rei dos Livros, 2001, pág. 314, para quem “(…) as orientações genéricas (…) não são geralmente fonte de direito, não vinculando os contribuintes, nem os tribunais, não tendo o valor de interpretação autêntica.”.

[6] Disponível em www.dgsi.pt.

[7] Neste sentido, José Maria Fernandes Pires (Coordenador), Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal, Maria João Menezes, “Lei Geral Tributária Comentada e Anotada”, Almedina, 2015, pág. 882

[8]Cfr. Marcelo Rebelo de Sousa, André Salgado de Matos, “Direito Administrativo Geral - Tomo I - Introdução e Princípios Fundamentais”, Dom Quixote, 2004, pág. 153 e seguintes.

[9] Subsidiariamente aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

[10]Op. Cit., pág. 550.