Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 588/2016-T
Data da decisão: 2017-05-02  IVA  
Valor do pedido: € 20.764,63
Tema: IVA – ofertas - Bónus
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DECISÃO ARBITRAL

 

            I. RELATÓRIO

1. No dia 30 de setembro de 2016, a sociedade comercial A…, S. A., NIPC …, com sede na …, …, …, …, (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando:

- A declaração de ilegalidade e a anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º …2016…, que correu termos pelo Serviço de Finanças de Matosinhos-… e pela Unidade dos Grandes Contribuintes, interposta contra os atos de autoliquidação de IVA referentes aos 12 (doze) períodos mensais compreendidos entre janeiro e dezembro de 2014, na parte em que foi apurado e entregue imposto em excesso, no montante global de € 20.764,63; e

- A declaração de ilegalidade e a anulação parcial dos atos de autoliquidação de IVA referentes aos 12 (doze) períodos mensais compreendidos entre janeiro e dezembro de 2014, na parte em que foi apurado e entregue imposto em excesso, no montante global de € 20.764,63.

A Requerente juntou, inicialmente, 7 (sete) documentos e arrolou 4 (quatro) testemunhas, não tendo requerido a produção de quaisquer outras provas; posteriormente, a Requerente juntou aos autos um CD contendo 526 (quinhentos e vinte e seis) documentos. 

É Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).

1.1. Como a própria Requerente sumaria, o seu dissenso face ao ato de indeferimento da referida reclamação graciosa e, portanto, o sustentáculo do seu pedido de declaração de ilegalidade e anulação desse ato e dos mencionados atos de autoliquidação de IVA, radica nos seguintes aspetos:

            «. A Requerente liquidou IVA relativamente a bónus nos períodos compreendidos entre Janeiro de dezembro de 2014, no valor de € 20.764,63;

            . Nos termos das normas aplicáveis, os bónus estão excluídos do valor tributável, pelo que foi entregue IVA em excesso aos cofres do Estado;

            . Os bónus em causa inserem-se numa lógica comercial e visam promover as vendas de determinados produtos, em última análise, a satisfação e o bem-estar do consumidor final;

            . Ao contrário do que alega a AT, as normas em vigor não estabelecem que os produtos entregues a título de bónus tenham que ser da mesma natureza dos produtos que estão a ser vendidos;

            . Em todo o caso, na generalidade das situações, os bónus atribuídos até têm a mesma natureza dos produtos que estão a ser vendidos, definindo-se a natureza com o âmbito supra indicado (vide artigo 39.º [“Portanto, entende a ora Requerente, desde logo, que o produto atribuído a título de bónus não tem que ser igual ao produto vendido que dá origem ao bónus, podendo integrar produtos da mesma natureza ou categoria (por exemplo, cervejas com outra apresentação, embalamento ou rotulagem, com outras marcas, com outros teores alcoólicos, com outros sabores, outros sistema de capsulagem, etc. ou refrigerantes, gaseificados ou não, com outra apresentação, embalamento ou rotulagem, com outras marcas, com outros sabores, outro sistema de capsulagem, etc. ou, ainda, águas minerais naturais ou de nascente, gasocarbonadas, gaseificadas ou lisas, com outras marcas, apresentação, sabores e embalamentos), porquanto todos eles concorrem para satisfazer o objectivo de oferecer ao consumidor final bebidas que visam, cumulativa ou subsidiariamente, satisfazer a sede.”]). 

A Requerente remata o seu articulado inicial peticionando o seguinte:

            «Nestes termos, pretende a Requerente que o Exmo. Tribunal Arbitral declare ilegais os actos de autoliquidação referentes ao exercício de 2014, consubstanciados nas declarações periódicas mensais, de Janeiro a Dezembro de 2014, com todas as consequências legais daí decorrentes, designadamente, a declaração de ilegalidade e anulação do acto de indeferimento da reclamação graciosa e, consequentemente, a condenação da AT a reembolsar à Requerente o IVA liquidado em excesso nos períodos em causa, no valor total de € 20.764,636, acrescido dos juros indemnizatórios legalmente devidos, condenando-se a AT, ora Requerida, nas custas da presente lide.»

2. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT em 17 de outubro de 2016.

            3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

4. Em 6 de dezembro de 2016, as Partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

5. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 22 de dezembro de 2016.

6. No dia 2 de fevereiro de 2017, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual impugnou, especificadamente, os argumentos aduzidos pela Requerente, tendo concluído pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido.

A Requerida não juntou documentos, nem requereu a produção de quaisquer outras provas.

7.1. No essencial e de forma breve, respiguemos os argumentos mais relevantes aduzidos pela Requerida:

A Requerente não juntou quer à reclamação graciosa, quer ao presente pedido de pronúncia arbitral as declarações periódicas de IVA de janeiro a dezembro de 2014, não tendo demonstrado a falta de correspondência à realidade dos factos tributários que fez constar das suas declarações periódicas.

A Requerente não explica minimamente um iter cognoscitivo que permita concluir que os documentos apresentados (em bloco) demonstram a liquidação de um concreto valor de IVA alegadamente em excesso.

Os serviços da AT não apreciaram tal base de facto, no âmbito do procedimento de reclamação graciosa, pois o enquadramento jurídico estabelecido pela Direção de Serviços do IVA vincula os serviços da Unidade dos Grandes Contribuintes – que acompanha a gestão tributária da Requerente – na apreciação da questão controvertida, pelo que, alegando então a Reclamante uma situação de facto cujo enquadramento jurídico está estabelecido em moldes diferentes pelos serviços do imposto em causa, verificar se os 526 documentos apresentados (em bloco e sem qualquer explicação ou roteiro cognoscitivo) confirmariam a situação fática alegada seria tarefa absolutamente vedada, por inútil.     

Por isso, mesmo que o Tribunal não subscrevesse o enquadramento jurídico dado à situação pelos serviços da Requerida, da eventual anulação da decisão de indeferimento nunca resultaria de per si o reconhecimento do direito ao reembolso de qualquer valor concreto de IVA liquidado em excesso. Porquanto, não foi feito previamente qualquer apuramento dos pressupostos de facto de tal direito e, além disso, a Requerente não logrou fazer tal demonstração neste processo arbitral, limitando-se a apresentar milhares de folhas de documentação sem uma demonstração que suporte o efeito jurídico pretendido.

A Requerente também não demonstra, como lhe competia, ter na sua posse qualquer prova de que o adquirente dos bens tomou conhecimento da retificação, como preceitua o n.º 5 do artigo 78.º do Código do IVA; porquanto, importa não esquecer que o valor tributável da operação e o imposto correspondente são alterados por consequência da alteração propugnada pela Requerente, pelo que se impunha a emissão de documento retificativo de fatura, isto é, de notas de crédito e de novas faturas, nos termos do n.º 7 do artigo 29.º do Código do IVA, assim como a contabilização da regularização e inscrição no campo 40 da respetiva declaração periódica, nos termos dos artigos 44.º e 45.º do Código do IVA.

Relativamente ao enquadramento em IVA dos factos em apreciação, importa destacar que os bónus podem ser configurados como uma redução da contraprestação efetiva para efeitos de exclusão do valor tributável, pelo que, só se constituírem bens da mesma natureza – o que acontece somente no caso de verdadeiros bónus de quantidade –, é que pode configurar-se uma situação equivalente a uma redução do preço.    

Assim, somente é possível configurar a situação em apreço como uma oferta (promocional) e o enquadramento destas ofertas em IVA determina a sua sujeição, como operações equiparadas a transmissão, exceto se cumprirem o disposto no n.º 7 do artigo 3.º do Código do IVA, cuja regulamentação consta da Portaria n.º 497/2008, de 24 de junho, o que não é aqui aplicável, por não se verificarem os respetivos pressupostos.

Por consequência, quando liquidou IVA sobre os bónus cruzados, como alega ter feito, a Requerente limitou-se a cumprir com os ditames legais aplicáveis.

A Requerida remata assim o seu articulado:

«Nestes termos, e nos mais de direito, e com o mui douto suprimento de V. Exa., deve o presente pedido de pronúncia arbitral ser julgado improcedente por não provado e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os pedidos, tudo com as devidas e legais consequências.»

7.2. Na mesma ocasião, a Requerida juntou aos autos o respetivo processo administrativo (doravante, abreviadamente designado PA).

8. Em 28 de março de 2017, teve lugar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT – na qual foi tratado o que consta da respetiva ata que aqui se dá por inteiramente reproduzida –, tendo-se, ainda, procedido à inquirição de três testemunhas arroladas pela Requerente. Naquela reunião foi ainda fixado o dia 15 de junho de 2017 como data limite para a prolação da decisão arbitral.

9. Ambas as Partes apresentaram alegações escritas, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, nas quais reiteraram as posições anteriormente assumidas nos respetivos articulados.     

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            II. SANEAMENTO

            O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

O processo não enferma de nulidades.

            As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, encontram-se devidamente representadas e são legítimas.

            Não existem exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.

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III. FUNDAMENTAÇÃO                      

III.1. DE FACTO

§1. FACTOS PROVADOS

Consideram-se provados os seguintes factos:

a) A Requerente é uma sociedade comercial que que tem por objeto a produção, comercialização e exportação de bebidas e outros produtos, exercendo, a título principal, atividade no âmbito de “Fabricação de cerveja” (CAE 11050) e, a título secundário, a “Fabricação de refrigerantes e outras bebidas não alcoólicas, NE” (CAE 11072). [cf. PA junto aos autos]

 b) Para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), a Requerente está enquadrada no regime normal, periodicidade mensal. [cf. PA junto aos autos]

c) A Requerente é considerada “contribuinte de elevada relevância económica e fiscal”, nos termos previstos no artigo 68.º-B da LGT, constando do elenco previsto no Despacho n.º 6999/2013, de 30 de abril de 2013, proferido nos termos do disposto na Portaria n.º 107/2013, de 15 de março. [cf. PA junto aos autos]

d) Por motivos comerciais, no mercado de comercialização de bebidas está enraizada uma prática generalizada consubstanciada na entrega gratuita de produtos a atuais e a potenciais clientes, sendo usual as empresas do setor de bebidas efetuarem este tipo de entregas. [cf. depoimento da testemunha B…]

e) No caso da Requerente, tais entregas gratuitas visam um fim eminentemente promocional dos seus produtos e marcas, assente numa política comercial diversificada de estratégia de fidelização dos atuais clientes e de captação de novos clientes. [cf. depoimentos de todas as testemunhas]

f) A Requerente designou essas entregas de “bónus cruzados”, consubstanciando-se na entrega de bens, normalmente da mesma marca, ainda que com embalagens ou categorias diferentes, em função da compra de determinadas quantidades por parte dos clientes (v.g. bónus de cerveja “…” de 0,25 litros na aquisição de cerveja “…” de 0,33 litros; bónus de cerveja “…” de 0,33 litros, mediante a aquisição da mesma cerveja em barril de 50 litros; bónus de refrigerantes “… Laranja” na aquisição de refrigerantes “… Ananás”), fazendo os produtos entregues parte do portfólio de compras habituais do cliente em causa. [cf. depoimentos de todas as testemunhas]

g) A designação de “bónus cruzados”, nas entregas em apreço, resulta da especificidade de serem atribuídas, aos vários produtos que são comercializados pela Requerente, referências distintas para cada tipo de embalagem, tamanho, marca e sabor, pelo que, sempre que o produto atribuído tenha uma referência (trata-se de um mero código) diferente dos produtos a cuja venda se encontra associado, o mesmo é designado de “bónus cruzado”. [cf. depoimentos das testemunhas C… e D…]

h) As referidas entregas gratuitas são mencionadas na própria fatura de venda dos produtos (“bónus cruzado dentro da fatura”) ou numa fatura autónoma, a qual faz referência a uma fatura inicial de venda (“bónus cruzados fora da fatura”). [cf. depoimentos das testemunhas C… e D…, os documentos n.ºs 4, 5 e 6 juntos com a PI e as faturas constantes do lote de documentos, numerados de 1 a 526, junto pela Requerente em CD]

i) A informação da quantidade e do tipo de produto entregue é mencionada na fatura enviada ao cliente, não sendo referido nesse documento o preço do produto, nem o respetivo imposto (IVA). [cf. depoimentos das testemunhas C… e D…, os documentos n.ºs 4, 5 e 6 juntos com a PI e as faturas constantes do lote de documentos, numerados de 1 a 526, junto pela Requerente em CD]

j) Os produtos objeto das referidas entregas gratuitas destinam-se a ser, posteriormente, vendidos pelos clientes da Requerente – são, na sua quase totalidade, comerciantes (grossistas e retalhistas) – a terceiros. [cf. depoimentos de todas as testemunhas]

k) No período compreendido entre janeiro e dezembro de 2014, a Requerente liquidou o IVA relativo às mencionadas entregas gratuitas de produtos, fazendo-o incidir sobre o preço de tabela do produto entregue a título de “bónus”, na medida em que as considerou como ofertas para efeitos de IVA. [cf. depoimentos das testemunhas C… e D…]

l) A Requerente adotou esse procedimento pelo facto de tais entregas serem consideradas, pela Administração Tributária, como ofertas para efeitos de IVA – designadamente na Informação Vinculativa, constante de ficha doutrinária, proferida no processo n.º…, por despacho de 01.04.2010, do SDG do IVA, por delegação do Director-Geral dos Impostos, e na Informação Vinculativa, constante de ficha doutrinária, proferida no processo n.º…, por despacho de 15.06.2010, do Director-Geral dos Impostos, ambas publicadas no sítio da Internet da Administração Tributária (“Portal das Finanças”) –, entendimento esse que a Requerente seguiu no enquadramento daquelas entregas em sede de IVA. [cf. depoimentos das testemunhas C… e D…]

 m) A Requerente não repercutiu o IVA liquidado sobre tais entregas gratuitas de bens aos seus clientes. [cf. depoimentos das testemunhas C… e D…, os documentos n.ºs 4, 5 e 6 juntos com a PI e as faturas constantes do lote de documentos, numerados de 1 a 526, junto pela Requerente em CD]

n) Relativamente aos doze períodos mensais compreendidos entre janeiro e dezembro de 2014, nas respetivas declarações periódicas de imposto, a Requerente autoliquidou IVA relativamente às aludidas entregas gratuitas de bens no montante global de € 20.764,63. [cf. depoimentos das testemunhas C… e D…, o documento n.º 2 junto com a PI e os documentos contabilísticos e as faturas que constituem o lote de documentos, numerados de 1 a 526, junto pela Requerente em CD]  

o) A Requerente procedeu à revisão dos seus procedimentos na área do IVA, designadamente no que respeita à atribuição de ofertas, amostras e bónus a clientes, de forma a tornar mais rigorosa a tributação desses atos em IVA, tendo em conta a disciplina legal na matéria e os objetivos que presidem a esses atos. [cf. depoimentos das testemunhas C… e D…]

p) Nessa sequência, a Requerente entendeu que deveria ser revisto o enquadramento das preditas entregas gratuitas de bens, em IVA, tendo ainda considerado que nos períodos mensais compreendidos entre janeiro e dezembro de 2014, tinha liquidado indevidamente IVA sobre as mesmas. [cf. depoimentos das testemunhas C… e D…]  

q) Consequentemente, em 7 de março de 2016, a Requerente apresentou reclamação graciosa – cujo requerimento inicial aqui se dá por inteiramente reproduzido – pugnando pela anulação parcial dos atos de autoliquidação de IVA, respeitantes aos períodos mensais compreendidos entre janeiro e dezembro de 2014, na parte em que entendeu ter sido apurado e entregue imposto em excesso, no montante global de € 20.764,63. [cf. documento n.º 1 junto com a PI e PA junto aos autos]

r) A referida reclamação graciosa foi autuada, sob o n.º …2016…, no Serviço de Finanças de Matosinhos-… e sequentemente remetida para a Unidade dos Grandes Contribuintes, tendo a Requerente sido notificada, através de carta registada, do respetivo projeto de decisão e para, querendo, exercer o direito de audição. [cf. PA junto aos autos]

s) A Requerente não exerceu aquele direito de audição prévia, tendo, contudo, procedido à apresentação de documentação contabilístico-financeira (documentos contabilísticos e faturas), num total de 526 documentos, tendo em vista a comprovação do montante de IVA que entendia indevidamente pago – € 20.764,63 –, nos períodos mensais compreendidos entre janeiro e dezembro de 2014. [cf. PA junto aos autos]

t) A Requerente foi notificada, através do ofício n.º…, datado de 1/07/2016, da Unidade dos Grandes Contribuintes, Divisão de Gestão e Assistência Tributária, remetido por carta registada, da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, em conformidade com o Parecer n.º …/2016, de 30.06.2016, com a seguinte fundamentação [cf. documento n.º 3 junto com a PI e PA junto aos autos]:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

u) Em 30 de setembro de 2016, a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo. [cf. sistema informático de gestão processual do CAAD]

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§2. FACTOS NÃO PROVADOS

Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não há factos que não se tenham provado.

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§3. MOTIVAÇÃO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO

No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas Partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa, nos documentos e no processo administrativo juntos aos autos e, ainda, na prova testemunhal produzida.

Relativamente aos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela Requerente – C… [funcionário da Requerente há cerca de 8 anos, desempenhando atualmente as funções de diretor financeiro (inquirido sobre a matéria de facto constante dos artigos 12.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 52.º, 55.º, 56.º, 58.º, 59.º, 60.º, 61.º, 62.º, 63.º, 65.º, 66.º, 67.º e 68.º da P. I.)], D… [funcionária da Requerente há cerca de 9 anos, desempenhando atualmente as funções de gestora de assessoria fiscal (inquirida sobre a matéria de facto vertida nos artigos 12.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 51.º, 52.º, 55.º, 56.º, 58.º, 59.º, 60.º, 61.º, 62.º, 63.º, 65.º, 66.º, 67.º e 68.º da P. I.)] e B… [funcionário da Requerente há cerca de 25 anos, desempenhando atualmente as funções de manager da área comercial (“…”) (inquirido sobre a matéria de facto constante dos artigos 9.º, 10.º, 11.º, 39.º, 40.º, 41.º, 42.º, 43.º, 51.º, 53.º, 54.º, 57.º, 63.º, 64.º, 70.º, 71.º, 72.º e 73.º da P. I.)] que depuseram de forma clara, objetiva e isenta sobre os factos aos quais foram inquiridos, com inequívoco e detalhado conhecimento direto dos mesmos, o que resultou revelado e comprovado pela forma circunstanciada como os explicitaram, pelo que os seus depoimentos mereceram total credibilidade –, as mesmas corroboraram, no essencial, a factualidade alegada pela Requerente, sobre a qual depuseram.

Neste conspecto, importa ainda frisar que os depoimentos das testemunhas C… e D…– particularmente o desta última – revelaram-se de particular importância para a correta e cabal compreensão do extenso acervo documental que a Requerente juntou aos autos, concretamente da documentação contabilística e das faturas que integram o lote de documentos, numerados de 1 a 526, junto pela Requerente em CD, e, consequentemente, para a determinação e comprovação do valor de IVA que é referido no facto provado n).

Há ainda a salientar, quanto a esse concreto facto, que para a formação da nossa convicção também foi tida em devida consideração quer a circunstância de tais documentos não terem sido materialmente/substancialmente impugnados pela AT, bem como a impressiva afirmação vertida na decisão da reclamação graciosa em apreço, segundo a qual foram “analisados todos os elementos remetidos pela Reclamante” – onde se inclui o dito lote de documentos, numerados de 1 a 526 – e que “a AT em momento algum havia questionado” o referido valor de imposto de € 20.764,63 (cf. fls. 96 do PA junto aos autos).  

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III.2. DE DIREITO

O thema decidendum neste processo reside em aferir qual a qualificação jurídico-tributária das entregas gratuitas de bens efetuadas pela Requerente aos seus clientes, isto é, descortinar se aquelas devem ser consideradas bónus – como sustenta a Requerente – ou ofertas – como propugna a Requerida – e, consequentemente, apurar se as mesmas se encontram ou não sujeitas a tributação em sede de IVA.

A Requerente defende, em suma, que “o produto atribuído a título de bónus não tem que ser igual ao produto vendido que dá origem ao bónus, podendo integrar produtos da mesma natureza ou categoria (por exemplo, cervejas com outra apresentação, embalamento ou rotulagem, com outras marcas, com outros teores alcoólicos, com outros sabores, outros sistema de capsulagem, etc. ou refrigerantes, gaseificados ou não, com outra apresentação, embalamento ou rotulagem, com outras marcas, com outros sabores, outro sistema de capsulagem, etc. ou, ainda, águas minerais naturais ou de nascente, gasocarbonadas, gaseificadas ou lisas, com outras marcas, apresentação, sabores e embalamentos), porquanto todos eles concorrem para satisfazer o objectivo de oferecer ao consumidor final bebidas que visam, cumulativa ou subsidiariamente, satisfazer a sede.”

Por seu turno, a Requerida entende que uma vez que os bónus podem ser configurados como uma redução da contraprestação efetiva para efeitos de exclusão do valor tributável, então, só se constituírem bens da mesma natureza – o que acontece somente no caso de verdadeiros bónus de quantidade –, é que pode configurar-se uma situação equivalente a uma redução do preço; por isso, somente é possível configurar as entregas gratuitas de bens em apreço como ofertas promocionais.

Nesta parametria, dúvidas não existem pois de que o epicentro do dissenso que opõe as Partes neste processo radica na qualificação das referenciadas entregas gratuitas de bens feitas pela Requerente aos seus clientes, tendo em consideração aquela que é a atividade empresarial/comercial da Requerente.

A resposta a esta questão primeira e essencial condicionará o subsequente enquadramento jurídico-fiscal daquelas entregas gratuitas de bens em sede de IVA, a ser feito de acordo com as normas próprias deste imposto.

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            §1. DA DEFINIÇÃO E ENQUADRAMENTO EM SEDE DE IVA DOS BÓNUS E DAS OFERTAS

A prossecução de atividades promocionais tendo em vista a angariação e fidelização de clientela desempenha, atualmente, uma função relevante no desenvolvimento das empresas.

As diversas conceções que as atividades promocionais podem assumir e, bem assim, a constante criação de modelos com vista a atingir tais finalidades carecem de uma análise cuidada ao nível do respetivo enquadramento fiscal, particularmente em sede de IVA.

O sentido económico subjacente a uma atividade promocional constitui o alicerce para efeitos de aferir o respetivo regime tributário; efetivamente, a qualificação de uma operação consubstancia o ponto de partida para o respetivo enquadramento em sede de imposto. Na prossecução de tal objetivo importa ter em conta que, uma vez esgotadas as restantes regras hermenêuticas, persistindo dúvidas sobre a incidência das normas, a substância económica dos factos tributários tem prevalência sobre a respetiva forma (cf. artigo 11.º, n.º 3, da LGT).

Atenta a diversidade das ações que são desenvolvidas com vista à angariação e fidelização de clientela, não é possível extrair, do quadro legal atualmente vigente, um conjunto unívoco de regras suscetível de ser aplicado à generalidade dos esquemas promocionais adotados pelos agentes económicos. Neste sentido, aferida a substância económica da atividade promocional, são essencialmente três as categorias em que esta se pode consubstanciar:

a)      A concessão de um desconto, abatimento ou bónus;

b)      A concessão de amostras e ofertas de pequeno valor; ou

c)      A prestação de um serviço a título gratuito.

Contudo, nem sempre o enquadramento das atividades promocionais numa destas categorias se afigura uma tarefa simples para o intérprete.

A nossa análise subsequente será limitada às duas primeiras categorias, uma vez que apenas estas se revestem de interesse para os presentes autos.

§1.1. A concessão de descontos, abatimentos e bónus

Por regra, nos termos do disposto no artigo 73.º da Diretiva IVA[1], o valor tributável nas entregas de bens e prestações de serviços em sede deste imposto compreende tudo o que constitui a contraprestação que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva receber relativamente a essas operações, quer por parte do adquirente ou destinatário, quer por parte de um terceiro.

Contudo, existem situações em que àquela contraprestação há que fazer ajustamentos, uns de sinal positivo, outros de sinal negativo. São esses ajustamentos que estão previstos nos artigos 78.º e 79.º da Diretiva IVA, o primeiro tipificando determinados elementos que, não integrando embora a contraprestação, são incluídos no valor tributável para efeitos de IVA; o segundo, tipificando certos elementos que, integrando embora a contraprestação, são excluídos para efeitos do valor tributável.

Nos termos do artigo 78.º da Diretiva IVA, o valor tributável inclui os impostos, direitos aduaneiros, taxas e demais encargos que onerem a operação tributável, com exceção do próprio IVA. Nos termos da mesma norma, o valor tributável inclui também as despesas acessórias exigidas pelo fornecedor ao adquirente dos bens e serviços, tais como despesas de comissão, embalagem, transporte ou seguro.

Nos termos do artigo 79.º da Diretiva IVA, o valor tributável exclui as reduções de preço resultantes de desconto por pagamento antecipado, bem como os abatimentos e bónus que sejam concedidos ao adquirente no momento em que se realize uma operação. Esta mesma norma exclui também do valor tributável as quantias que o sujeito passivo receba do adquirente, a título de reembolso de despesas efetuadas em nome e por conta deste, registadas na sua contabilidade em contas de passagem.

Da transposição do artigo 73.º da Diretiva IVA para a nossa legislação nacional resulta que, por regra, o valor tributável, isto é, o montante sobre o qual incide o imposto, corresponde, nas operações internas, ao valor da contraprestação recebida ou a receber do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, como estatui o n.º 1 do artigo 16.º do Código do IVA.

Do facto de o conceito de contraprestação assentar nuclearmente no princípio da contrapartida real e efetiva, resulta a exclusão dos descontos, abatimentos e bónus da matéria coletável do IVA. Esta exclusão dos descontos, abatimentos e bónus do valor tributável das operações decorre, como já vimos, do artigo 79.º da Diretiva IVA, transposto para a legislação nacional por via da alínea b) do n.º 6 do artigo 16.º do Código do IVA. Por seu turno, o n.º 3 do artigo 3.º da Portaria n.º 497/2008, de 24 de junho, exclui do conceito de oferta para efeitos de IVA os bónus de quantidade concedidos pelos sujeitos passivos aos respetivos clientes.   

A concessão de descontos, abatimentos e bónus consiste numa prática empregue pelos agentes económicos tendo em vista a angariação e fidelização de clientela, consubstanciando uma das políticas empresariais promocionais por excelência. Sucede, contudo, que embora largamente aplicados na prática comercial, estes termos não encontram definição expressa quer na Diretiva IVA, quer no acervo legal interno. No entanto, é possível extrair da jurisprudência emanada do TJUE alguns critérios orientadores quanto ao respetivo significado.

Resulta da jurisprudência europeia, desde logo, que a concessão de um desconto ou de um abatimento de preço pressupõe a entrega de um bem ou a prestação de um serviço a título oneroso.

Por outro lado, o TJUE tem vindo a considerar que os termos desconto e abatimento fazem referência a uma redução parcial do preço total convencionado pelas partes; em contrapartida, quando a redução abrange a totalidade do preço estar-se-á perante uma entrega ou uma prestação de serviços efetuada a título gratuito (neste sentido, ver os acórdãos TJUE C-126/88, Boots Company Plc, de 27 de março de 1990 e C-48/97, Kuwait Petroleum GB Ltd., de 27 de abril de 1999). 

Por último, importa frisar que, em geral, a concessão do desconto ou abatimento não proporciona ao vendedor ou prestador outras vantagens que não a perspetiva de, através da captação e fidelização de clientes, aumentar o respetivo volume de negócios ou efetuar o escoamento dos seus produtos ou serviços.

À semelhança do que sucede quanto à definição de descontos e abatimentos, também quanto ao conceito de bónus a lei – Diretiva IVA e legislação interna – é totalmente omissa.

Neste conspecto, a AT tem vindo, desde sempre, a pronunciar-se no sentido de que os bónus concedidos em espécie têm cobertura legal na alínea b) do n.º 6 do artigo 16.º do Código do IVA, propugnando, contudo, que a entrega de um produto apenas se subsume na previsão normativa se o bónus entregue e o bem adquirido partilharem da mesma natureza.

Se assim não for, isto é, se o fornecedor entregar um bem por ocasião da compra de outro de diferente natureza, a AT entende que não existe um bónus enquadrável na alínea b) do n.º 6 do artigo 16.º do Código do IVA e, como tal, excluído da base tributável da operação.

§1.2. A concessão de amostras e ofertas de pequeno valor

O artigo 16.º da Diretiva IVA assimila à transmissão de bens a título oneroso a afetação, por um sujeito passivo, de bens da sua empresa ao seu uso próprio ou do seu pessoal, a respetiva transmissão a título gratuito ou, em geral, a sua afetação a fins alheios à empresa, desde que esses bens tenham dado lugar à dedução do IVA.

No entanto, são excluídos daquele regime-regra a afetação de tais bens a amostras e a ofertas de pequeno valor, desde que efetuadas para os fins da empresa.

A transposição destas regras europeias para o nosso direito nacional permite a definição de um quadro legal de base à concetualização das amostras e ofertas de pequeno valor.

A alínea f) do n.º 3 do artigo 3.º do Código do IVA determina que é considerada transmissão de bens, para efeitos de IVA, a afetação permanente de bens da empresa a uso próprio do seu titular, do pessoal, ou em geral a fins alheios à mesma, bem como a sua transmissão gratuita, quando, relativamente a esses bens ou aos elementos que os constituem, tenha havido dedução total ou parcial do imposto.

Contudo, como decorre do n.º 7 do mesmo artigo 3.º, não são equiparadas a transmissões onerosas e, consequentemente, não são sujeitas a imposto, “os bens não destinados a posterior comercialização que, pelas suas características, ou pelo tamanho ou formato diferentes do produto que constitua a unidade de venda, visem, sob a forma de amostra, apresentar ou promover bens produzidos ou comercializados pelo próprio sujeito passivo, assim como as ofertas de valor unitário igual ou inferior a € 50 e cujo valor global anual não exceda cinco por mil do volume de negócios do sujeito passivo no ano civil anterior, desde que em conformidade com os usos comerciais”, nos termos definidos por portaria do Ministro das Finanças.          

A Portaria n.º 497/2008, de 24 de junho, que regulamenta as condições delimitadoras do conceito de amostras e de ofertas de pequeno valor, define amostras como os bens não dirigidos a posterior comercialização – destinam-se a apresentar ou promover os produtos produzidos ou comercializados pelo sujeito passivo – e que se apresentem em formato ou tamanho diferente daquele que se pretende mostrar ou apresentadas em capacidade, peso ou medida substancialmente inferiores aos que constituem as unidades de venda.

O que se refere à delimitação do conceito de oferta, a Portaria n.º 497/2008 especifica que a mesma pode ser constituída quer por bens comercializados ou produzidos pelo sujeito passivo, quer por bens produzidos por terceiros.  

Excluídos do conceito de ofertas estão, expressamente, os bónus de quantidade concedidos pelos sujeitos passivos aos respetivos clientes, nos termos do n.º 3 do artigo 3.º da referida Portaria.

Relativamente quer às amostras quer às ofertas, importa atentar à referência legal aos usos comerciais, a qual visa excluir as liberalidades que não apresentem qualquer conexão com a atividade empresarial do sujeito passivo; ou seja, àquelas deve estar sempre subjacente um intuito económico ou comercial, designadamente o de dar a conhecer os produtos comercializados e o de promover um incremento do volume de vendas.   

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§2. DO CASO CONCRETO: A QUALIFICAÇÃO DAS ENTREGAS GRATUITAS DE BENS EFETUADAS PELA REQUERENTE AOS CLIENTES

Como acima dissemos, constitui entendimento da Administração Tributária que não existe um bónus enquadrável na alínea b) do n.º 6 do artigo 16.º do Código do IVA nos casos em que um fornecedor entrega a um seu cliente um bem por ocasião da compra de outro de diferente natureza. Porém, tal não significa que a concessão desse bem de natureza distinta esteja necessariamente sujeita a imposto; porquanto, embora não estejamos perante um bónus, mas já perante uma oferta, esta poderá ou não ser tributada, como vimos, conforme o respetivo valor unitário seja igual ou inferior a € 50 e cujo valor global anual não exceda cinco por mil do volume de negócios do sujeito passivo no ano civil anterior e de desde que se encontre em conformidade com os usos comerciais (artigo 3.º, n.º 7, do Código do IVA).

Apesar de este entendimento que faz assentar a distinção entre os bónus e as ofertas apenas no facto de os produtos oferecidos serem, respetivamente, de igual ou distinta natureza face aos produtos cuja aquisição motiva a respetiva entrega, ser profusamente invocado pela AT, não lográmos encontrar qualquer razão de fundo, maxime legal, passível de justificar essa posição.

Na nossa perspetiva, antes de mais, importa salientar que os bónus se encontram associados a vendas efetuadas a clientes podendo constatar-se uma inelutável ligação do bónus à relação comercial com o comprador em causa, contrariamente ao que sucede com as ofertas.

A este propósito, entendemos que o critério de distinção adotado na decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º 141/2012-T do CAAD, se afigura de fino recorte e inequívoca solidez, pelo que merece a nossa inteira adesão e, por esse motivo, data venia, adotamo-lo na resolução do caso sub judice[2]:

«Os bónus, pelas suas características, não se confundem com as ofertas de pequeno valor: estamos, no caso dos bónus, no âmbito de uma operação de transmissão de bens ou prestações de serviços a um cliente em que lhe são atribuídos gratuitamente bens ou serviços de igual natureza; no caso das ofertas de pequeno valor, (…), (i) o âmbito é mais alargado quanto aos seus destinatários, que podem ser clientes ou terceiros, (ii) não há uma conexão directa com uma operação de venda concreta e o (iii) seu valor deve, segundo as práticas comerciais ou ditames legais, ser reduzido.

Apesar da existência de uma relação entre o bónus e uma operação concreta, poderá não existir uma correlação directa entre o seu valor e o saldo de vendas dos clientes. Com efeito, razões de natureza comercial poderão ditar, por exemplo, a necessidade de uma política comercial mais agressiva relativamente a um cliente ou grupo de clientes específicos.

Sem prejuízo, é comum às duas figuras o objectivo de promoção de um produto e o incremento das vendas ou prestações de serviços. Caberá ao sujeito passivo, na liberdade do exercício de uma actividade comercial, optar pelos meios que considere mais idóneos e eficazes para atingir aqueles objectivos. (…)

Conforme referimos, os conceitos de bónus ou ofertas de pequeno valor, apesar do enquadramento em sede de IVA ser similar, não são sinónimos e devem atender ao “animus” subjacente: foi intenção do sujeito passivo atribuir gratuitamente bens de igual natureza no âmbito de uma operação determinada ou, em sentido diverso, tratou-se de uma oferta de reduzido valor destinada a promover um determinado produto, sem qualquer relação de dependência directa com os produtos vendidos ao destinatário da oferta?»

Volvendo ao caso concreto, atento o acervo probatório produzido e a factualidade que resultou provada, impõe-se com meridiana evidência a existência de uma inequívoca conexão entre as entregas de bens gratuitas e as vendas efetuadas aos clientes da Requerente – relembramos aqui o depoimento da testemunha B… a este propósito, o qual referiu que as entregas gratuitas de bens feitas pela Requerente estão sempre associadas ao volume de compras (apelidou de “taxa de esforço de compras”) dos clientes que delas beneficiam, ou seja, a composição, quantidade e valor daquelas entregas de bens são feitas por escalões de compras –, pelo que não podemos deixar de concluir que se encontram verificados os requisitos para a qualificação daquelas entregas como bónus.

Como vertido no acórdão arbitral proferido no processo n.º 539/2015-T do CAAD – atinente ao IVA autoliquidado pela Requerente, no período compreendido entre os meses de janeiro e dezembro de 2013, sobre entregas gratuitas de bens efetuadas aos seus clientes, tendo sido ali apreciadas as mesmas questões de direito aqui em causa –, impõe-se que «a ênfase na análise da questão decidenda, se deva colocar não na circunstância de os produtos que constituem os bónus serem – ou não – diferentes daqueles que comercialmente justificaram a sua atribuição, mas, antes, nos concretos contornos da justificação e destino da atribuição daqueles bónus.

Com efeito, estando em causa, como é o caso, entregas gratuitas que se justificam pela aquisição de determinadas quantidades de produto, e que se destinam, não a ser consumidas, nem a ser objecto de oferta gratuita, haverá que concluir que, o que ocorre na realidade – independentemente da apresentação comercial que for dada (…) – é que o preço de aquisição do conjunto (produto base mais produto oferta), é descontado, por se cumprirem determinadas condições. (…)

Verifica-se portanto, que o preço final fixado, não é preço unicamente das quantidades do produto A transaccionadas, mas, antes, o preço descontado da quantidade do produto A, mais a quantidade do produto B, não se compreendendo como é que a natureza diferente dos produtos abrangidos possa fundadamente obstar, como pretende a AT, à fixação de um preço global descontado.

(…) considera-se que a situação em causa nos autos, tem a mesma substância, e deverá ter o mesmo tratamento, que os chamados bónus de quantidade, por, na realidade, serem essencialmente a mesma coisa. (…)

Assim, embora, (…), “a alínea b) do n.º 6 do artigo 16.º do CIVA se refira a “bónus”, sem efetuar qualquer distinção entre as várias categorias dos mesmos, é entendimento unânime e resulta da própria lei que essa expressão não pode ser interpretada em sentido lato, abrangendo todo e qualquer tipo de bónus”, a verdade é que nenhuma razão material existe, como se viu, para excluir a concreta situação sub iudice do âmbito da norma referida, incluindo a circunstância de que “os bens entregues pela Reclamante aos seus clientes, traduzem-se em produtos de natureza diversa daqueles que foram vendidos” antes, pelo contrário, havendo razões substanciais que corroboram a subsunção de tal situação à norma em causa.»

            Consequentemente, os atos de autoliquidação de IVA controvertidos padecem de vício de violação de lei, consubstanciada na errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 3.º, n.º 7 (conjugado com a alínea f) do n.º 3 do mesmo artigo) e 16.º, n.º 6, alínea b), ambos do Código do IVA, o que importa a respetiva anulação na parte em que foi apurado e entregue imposto em excesso, no montante global de € 20.764,63.

O mesmo vício invalidante fulmina o ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º …2016…, o qual também será a final anulado.

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§3. DA REGULARIZAÇÃO DO IVA PELA REQUERENTE

Posteriormente à apresentação da declaração periódica tendo por base o registo contabilístico, qualquer correção à dedução de imposto exercida constitui e é regida pelas normas de regularização do IVA. Tal correção pode incidir, designadamente, sobre o facto tributário, a fatura que o titula, o registo contabilístico ou a declaração periódica.

  O artigo 184.º da Diretiva IVA prevê a regularização da dedução de imposto inicialmente efetuada pelos sujeitos passivos, a qual, de acordo com o artigo 186.º da Diretiva IVA, deve ser disciplinada normativamente pelos Estados membros.

Na nossa legislação interna, a regularização de imposto está regulada nos artigos 23.º, n.º 6, 24.º a 26.º e 78.º a 78.º-D do Código do IVA.

No âmbito das regularizações previstas no Código do IVA, são de destacar as reguladas pelo respetivo artigo 78.º e que incidem sobre os seguintes aspetos: o facto gerador (artigo 78.º, n.ºs 2 e 4); a fatura que titula o facto gerador (artigo 78.º, n.º 3); o registo contabilístico e a declaração periódica (artigo 78.º, n.º 6); e os créditos incobráveis (artigos 78.º, n.ºs 7 a 12, e 78.º-A a 78.º-D).

Isto posto.

Os bónus em espécie são suscetíveis de ser atribuídos (i) no momento em que ocorre a operação tributável, ou (ii) apenas em momento posterior à transação.

No concernente aos bónus concedidos no momento em que se concretiza a operação sujeita a imposto, estes encontram-se excluídos do valor tributável nos termos da alínea b) do n.º 6 do artigo 16.º do Código do IVA, desde que, obviamente, constem da respetiva fatura. O que quer dizer que, nos casos em que constem da fatura, a base tributável da operação, para efeitos de IVA, corresponde ao valor líquido na mesma evidenciado.   

Se os bónus forem concedidos em momento posterior ao da operação tributável que lhes subjaz e, portanto, após a emissão da fatura, à atribuição do bónus deverá corresponder a emissão de uma fatura sem liquidação de imposto, sendo que, por forma a observar o disposto na alínea e) do n.º 5 do artigo 36.º do Código do IVA, a indicação do motivo justificativo da não liquidação do imposto deve integrar a menção de que se trata de um bónus e, ainda, a referência às faturas (nomeadamente, o respetivo número, data e valores) referentes às operações tributáveis que estiveram na base da atribuição a posteriori do bónus concedido em espécie.  

Dito isto, voltando ao caso concreto, decorre da factualidade provada que os erros nos registos contabilísticos da Requerente – que consubstanciam erros de direito e, nessa medida, não são subsumíveis ao n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA, o qual está expressamente circunscrito ao erro material ou de cálculo –, com reflexos nas declarações periódicas respeitantes aos meses de janeiro a dezembro de 2014, são de caráter meramente interno, isto é, não tiveram qualquer interferência na esfera de terceiros, pelo que a sua correção pode ser efetuada nos mesmos moldes em que se procede à impugnação da declaração periódica, previstos no artigo 97.º do Código do IVA, sem necessidade da prévia retificação de faturas e registos contabilísticos ao abrigo do artigo 78.º do Código do IVA; ademais, não tem aqui aplicação a regra prevista no n.º 5 deste artigo 78.º, uma vez que a mesma é de aplicação transversal a todas as categorias de regularizações que possam comportar uma dedução de imposto pelo adquirente dos bens ou serviços de valor superior à correspondente liquidação pelo seu transmitente ou prestador, o que é manifesto que não acontece no caso concreto.      

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§4. DO REEMBOLSO DAS QUANTIAS PAGAS E DO PAGAMENTO DE JUROS INDEMNIZATÓRIOS

            A Requerente peticiona, ainda, a condenação da Administração Tributária ao reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios.

            O artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT preceitua que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, restabelecer a situação que existiria adotando os atos e operações necessários para o efeito, o que se deve entender, em conformidade com o disposto no artigo 100.º da LGT, aplicável ex vi alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, como abrangendo o pagamento de juros indemnizatórios, em consonância, aliás, com o disposto no n.º 5 do mesmo artigo 24.º do RJAT.    

            O artigo 43.º, n.º 1, da LGT determina que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, decorrendo do n.º 2 do mesmo artigo que também se considera “haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efetuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas”; por seu turno, o n.º 5 do artigo 61.º do CPPT, na parte aqui a considerar, determina que os juros são contados “até à data do processamento da respectiva nota de crédito, em que são incluídos”.

            No caso concreto, como decorre da factualidade provada e do acima exposto, verifica-se que a ilegalidade de que padecem as autoliquidações de IVA controvertidas é inteiramente imputável à AT, na justa medida em que emerge do facto de a Requerente ter seguido o entendimento da AT, quanto ao conceito de bónus, plasmado em orientações genéricas, devidamente publicadas[3], pelo que a Requerente tem direito, em conformidade com o disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, ao reembolso dos valores de imposto indevidamente pagos, no montante total de € 20.764,63 (vinte mil setecentos e sessenta e quatro euros e sessenta e três cêntimos) e ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do estatuído nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, calculados desde a data do indeferimento da reclamação graciosa n.º …2016…[4], à taxa resultante do n.º 4 do artigo 43.º da LGT, até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos.      

***

 

IV. DECISÃO

Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide:

a)      Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:

- declarar ilegal e anular o ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º …2016…;

- declarar ilegais e anular parcialmente os atos de autoliquidação de IVA referentes aos 12 (doze) períodos mensais compreendidos entre janeiro e dezembro de 2014, na parte em que foi apurado e entregue imposto em excesso, no montante global de € 20.764,63; 

b)      Julgar procedente o pedido de condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira a reembolsar à Requerente os valores de imposto indevidamente pagos, no montante total de € 20.764,63 (vinte mil setecentos e sessenta e quatro euros e sessenta e três cêntimos), acrescido de juros indemnizatórios calculados, à taxa legal, desde a data do indeferimento da reclamação graciosa n.º …2016… até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos; 

c)      Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas do processo.

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VALOR DO PROCESSO

Em conformidade com o disposto nos arts. 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de 20.764,63 (vinte mil setecentos e sessenta e quatro euros e sessenta e três cêntimos).

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CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, o montante das custas é fixado em € 1.224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

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Lisboa, 2 de maio de 2017.

 

O Árbitro,

 

 

(Ricardo Rodrigues Pereira)

 

 

 



[1] Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado.

[2] Visando, dessa forma, prosseguir o desiderato de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito (cf. artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil).

[3] Como resulta do já citado n.º 2 do artigo 43.º da LGT, considerar-se-á existir erro imputável aos serviços e não ao contribuinte, nos casos em que este tenha seguido as orientações genéricas da Administração Tributária, devidamente publicadas. Esta é, como refere Jorge Lopes de Sousa, “uma norma que consagra uma evidência, à face dos deveres de informação atribuídos por lei à Administração Tributária de informar os sujeitos passivos sobre a interpretação das leis tributárias e sobre a forma de lhes dar cumprimento, que (…), actualmente, resultam das alíneas a), c) e f) do n.º 3 do art. 59.º da LGT. (…)

Esta imputabilidade de erros à Administração Tributária é independente da prova da existência de culpa concreta de qualquer dos seus órgãos, funcionários ou agentes, ou mesmo da prova da culpa global dos serviços.  

Trata-se de uma responsabilidade objectiva, não dependente de culpa.” (Sobre a Responsabilidade Civil da Administração Tributária por Actos Ilegais, Lisboa, Áreas Editora, 2010, pp. 50 e  52).

A Requerente, in casu, seguiu a posição da AT vertida na Informação Vinculativa, constante de ficha doutrinária, proferida no processo n.º…, por despacho de 01.04.2010, do SDG do IVA, por delegação do Director-Geral dos Impostos (publicada em http://info.portaldasfinancas.gov.pt/NR/rdonlyres/63F291DD-7167-4626-9A51-30FF278D9EEC/0/INFORMA%C3%87%C3%83O.544.pdf) e na Informação Vinculativa, constante de ficha doutrinária, proferida no processo n.º…, por despacho de 15.06.2010, do Director-Geral dos Impostos (publicada em http://info.portaldasfinancas.gov.pt/NR/rdonlyres/D08D5364-95C2-47ED-921E-C57044B3A62E/0/INFORMA%C3%87%C3%83O.731.pdf), as quais extravasam os casos concretos sobre que versam.    

[4] Como salienta Jorge Lopes de Sousa, nos casos “em que a prática do acto que define a dívida tributária cabe ao contribuinte (como sucede, nomeadamente, nos referidos casos de autoliquidação, retenção na fonte e pagamentos por conta), (…), o erro passará a ser imputável à Administração Tributária após o eventual indeferimento da pretensão apresentada pelo contribuinte, isto é, a partir do momento em que, pela primeira vez, a Administração Tributária toma posição sobre a situação do contribuinte, dispondo dos elementos necessários para proferir uma decisão com pressupostos correctos.” (Idem, ibidem).