Decisão Arbitral
I. RELATÓRIO
A…, S.A., NIPC…, com sede na …, n.º…, no Porto, (doravante apenas designado por Requerente), apresentou, em 26-08-2016, um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com a alínea a) do art. 99.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida).
O Requerente solicita a declaração de ilegalidade do acto de liquidação adicional de Imposto do Selo da verba 1.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (doravante, TGIS), no montante de € 887,20, e a consequente condenação da Requerida ao reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 26-08-2016 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nessa mesma data.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a ora signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 03-11-2016 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 18-11-2016.
Notificada para se pronunciar, a Requerida apresentou a competente resposta em que conclui pela total improcedência do pedido deduzido pelo Requerente.
Por despacho de 06-01-2017, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo sido concedido às partes prazo para apresentação de alegações escritas sucessivas.
II. OBJECTO DO PEDIDO
O Requerente vem solicitar a declaração de ilegalidade da liquidação adicional de Imposto do Selo (“IS”) da verba 1.1 da TGIS, no montante de € 887,20, efectuada oficiosamente pela Requerida e notificada ao Requerente a 08-10-2015, na sequência da aquisição pelo Requerente do imóvel sito na Rua …, n.º…, freguesia da …, concelho de …, inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o art. … .
O imóvel em causa foi adquirido no âmbito do processo de insolvência que correu termos pelo 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Évora, sob o processo n.º .../11.0TBEVR, em que foi declarado insolvente o anterior proprietário, pelo que, no entender do Requerente, a aquisição beneficia da isenção de Imposto do Selo prevista na alínea e) do art. 269.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresa (“CIRE”). Isso mesmo terá sido inicialmente reconhecido pela Requerida que, aquando da entrega da declaração Mod. 1 do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (“IMT”), averbou a referida isenção, tendo a guia de pagamento, datada de 13-02-2014, sido emitida a zero, sem qualquer montante de imposto a pagar.
Posteriormente, em Outubro de 2015, a Requerida entendeu não ser aplicável a isenção referida e procedeu à liquidação do Imposto do Selo, no montante de € 887,20.
O Requerente entende que a liquidação adicional efectuada é ilegal, devendo, em consequência, ser anulada, com os seguintes fundamentos:
a) violação do disposto na alínea e) do art. 269.º do CIRE. No entender do Requerente, a isenção prevista abrange “quer transmissão de imóveis efectuada em conjunto com a empresa ou o estabelecimento de que fazem parte, quer a transmissão isolada de imóveis, em separado da empresa ou estabelecimento que integram” (cfr. art. 37.º da p.i.);
b) violação do dever de fundamentação previsto no art. 77.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) e art. 133.º do Código de Procedimento Administrativo (“CPA”) porquanto “a quantia exigida não tem qualquer fundamento legal ou factual” (cfr. art. 53.º da p.i.);
c) erro na determinação da matéria colectável, nos termos do art. 99.º, n.º 1, alínea a), e art. 100.º do CPPT, alegando o Requerente que “a quantificação do facto tributário em análise suscita fundadas dúvidas” (cfr. art. 54.º da p.i.);
d) violação dos princípios da boa fé e da protecção da confiança, nos termos do art. 59.º da LGT, na medida em que se verifica “claramente um erro de direito por parte da Autoridade Tributária, visto que induziu em erro o Demandante quando reconheceu a isenção do IS a liquidar previamente à celebração da escritura pública” (cfr. art. 59.º da p.i.);
e) caducidade do direito de revogação do benefício fiscal porquanto a liquidação ora impugnada foi efectuada mais de um ano depois do reconhecimento da isenção, em violação do disposto no art. 141.º, n.º 1, do CPA e art. 58.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”).
Conclui, por isso, o Requerente pedindo a anulação do acto de liquidação de IS, com consequente reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
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Em resposta, a Requerida, contesta o pedido do Requerente, alegando que:
a) a isenção de imposto prevista na alínea e) do art. 269.º do CIRE é apenas aplicável aos “actos integrados no âmbito de planos de insolvência ou de pagamentos, ou de liquidação da massa insolvente, com reserva de o insolvente ser uma empresa ou estabelecimento” (art. 10.º da resposta). Sucede que “No caso em apreço, estamos perante a aquisição de um imóvel, ainda que em processo de insolvência, mas que não pertence a uma empresa nem estava destinado ao exercício de actividade empresarial alguma, mas que era propriedade de uma pessoa singular com destino a habitação” (cfr. art. 32.º da resposta);
b) a liquidação efectuada é tempestiva porque “não se verificando os pressupostos legais para o Autor poder beneficiar da isenção de IS, nos termos da alínea e) do art. 269.º do CIRE, a administração tributária não podia deixar de liquidar o imposto devido, desde que respeitado o prazo de caducidade, que, no caso dos impostos de obrigação única, como é o Imposto do Selo, da data em que o facto tributário ocorreu (cfr. art. 45.º, n.ºs 1 e 4, da LGT)” (cfr. art. 41.º da resposta).
Mais solicita a Requerida a correcção do valor económico do pedido para € 887,20, correspondente ao valor da liquidação contestada, estando por justificar o valor declarado pelo Requerente (€ 911,94).
Conclui, a final, pela total improcedência do pedido.
III. SANEADOR
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades e não se suscita qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
IV. MATÉRIA DE FACTO
A. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
1. Por título de adjudicação, datado de 05-03-2014, elaborado por B…, na qualidade de Administrador Judicial, o Requerente adquiriu o imóvel destinado a habitação, sito na Rua …, n.º …, freguesia da …, concelho de …, inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o art…, pelo preço de € 110.900,00;
2. O artigo… da freguesia da …, concelho de …, deu lugar ao artigo … da União das freguesias da … e …, do mesmo concelho;
3. A adjudicação foi efectuada no âmbito do processo de insolvência n.º .../11.0TBEVR que correu termos pelo 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Évora em que foi declarado insolvente C…, proprietário do imóvel;
4. A 13-02-2014, o Requerente procedeu à entrega da declaração Mod. 1 do IMT que foi registada sob o número 2014/…;
5. Na declaração submetida consta no campo “Benefícios” a indicação “101 – Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – Transmissões integradas em Planos de insolvência ou de pagamentos ou no âmbito da liquidação da massa insolvente (Art. 269.º do CIRE, aprovado pelo DL 53/04), 100% sobre a matéria colectável”;
6. A declaração Mod. 1 do IMT deu lugar à emissão de um documento de cobrança, da mesma data, com colecta zero;
7. A 06-10-2015, pelo Ofício n.º…, a Requerida notificou o Requerente para se pronunciar, em audição prévia, sobre a proposta de liquidação adicional de Imposto do Selo no montante de € 887,20 referente ao registo n.º …/2014 que se veio a convolar em definitiva;
8. O Requerente procedeu ao pagamento do imposto liquidado em 15-01-2016, no âmbito do processo de execução fiscal n.º …2016…, instaurado pelo Serviço de Finanças Porto…;
9. Em 22-03-2016, o Requerente apresentou reclamação graciosa da liquidação efectuada;
10. Em 22-07-2016, pelo Ofício n.º…, recebido a 25-07-2016, o Requerente foi notificado do despacho de indeferimento da reclamação graciosa, proferido pelo Chefe do Serviço de Finanças.
B. Factos não provados
Não se provaram outros factos com relevância para a decisão arbitral.
C. Fundamentação da matéria de facto
A matéria de facto dada como provada assenta na prova documental invocada e não contestada.
V. MATÉRIA DE DIREITO
A. Da ilegalidade dos actos tributários
Como supra referido, o Requerente formula o seu pedido de declaração de ilegalidade da liquidação de IS, no montante de € 887,20, alegando uma série de vícios que, a considerarem-se procedentes, implicarão a sua anulação, com as demais consequências legais.
O art. 124.º do CPPT, aplicável ex vie alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT, estabelece a ordem pela qual a sentença deve apreciar os vícios invocados pelo impugnante, decorrendo desta ordem que, “(…) uma vez reconhecida a existência de um vício suscetível de levar à eliminação do ato da ordem jurídica com efetiva tutela da posição jurídica do impugnante (designadamente, que obste à renovação do acto com o mesmo sentido), ficará prejudicado o conhecimento de outros vícios imputados ao ato impugnado, pois, se fosse necessário conhecer sempre de todos os vícios imputados ao ato impugnado, seria indiferente a ordem da sua apreciação”[1].
Vem sendo entendimento do Supremo Tribunal Administrativo – de que são exemplos os acórdãos de 07/12/2010, proc. n.º 0569/10, de 22/03/06, proc. n.º 0916/04, de 24/01/2007, proc. n.º 0939/06, e de 06/07/2011, proc. n.º 0355/11 – que devem ser conhecidos primeiramente os vícios de violação de lei (stricto sensu), e só depois eventuais vícios de forma, porque assim se assegurará uma tutela mais eficaz dos direitos dos contribuintes.
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Tendo presente estes princípios, entende este Tribunal avaliar, em primeiro lugar, a legalidade da liquidação inicialmente efectuada pela Autoridade Tributária na qual foi reconhecida ao Requerente a isenção prevista na alínea e) do art. 269.º do CIRE que previa o seguinte:
“Estão isentos de imposto do selo, quando a ele se encontrem sujeitos, os seguintes atos, desde que previstos em planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente:
(…)
e) realização de operações de financiamento, o trespasse ou a cessão da exploração de estabelecimentos da empresa, a constituição de sociedades e a transferência de estabelecimentos comerciais, a venda, permuta ou cessão de elementos do activo da empresa, bem como a locação de bens”.
Ao longo do pedido de pronuncia arbitral, o Requerente defende a aplicabilidade da referida isenção ao caso em apreço, invocando, analogicamente, a interpretação que é feita ao n.º 2 do art. 270.º do CIRE (isenção de IMT) e as recentes decisões do Supremo Tribunal Administrativo sobre a interpretação da referida norma. Conclui, por isso, o Requerente que “se verificam as condições para o Demandante beneficiar da isenção de IS prevista na alínea e) do artigo 269.º do CIRE, visto que esta norma abrange (incontestadamente) quer a transmissão de imóveis efectuada em conjunto com a empresa ou o estabelecimento de que fazem partem quer a transmissão isolada de imóveis, em separado da empresa ou estabelecimento que integram” (cfr. art. 37.º do pedido).
Esta até poderia ser uma conclusão legitima se, de facto, e nas palavras do Requerente, estivesse em causa “a transmissão isolada de imóveis, em separado da empresa ou estabelecimento que integram”, o que não é o caso. Com efeito, dos factos provados resulta que o anterior proprietário do prédio, declarado insolvente no processo identificado, é uma pessoa singular. Em nenhum momento foi alegado ou comprovado pelo Requerente que, não obstante se tratar de uma pessoa singular, o insolvente era proprietário de uma empresa ou de um estabelecimento do qual tal imóvel fizesse parte.
De acordo com a letra da lei – e a interpretação do próprio Requerente no trecho supra transcrito - a isenção prevista na alínea e) do art. 269.º do CIRE é apenas aplicável à transmissão de imóveis que integrem o activo de uma empresa, não sendo, por isso, invocável se o insolvente for uma pessoa singular, sem qualquer actividade empresarial ou profissional.
Este entendimento foi já sufragado pelo Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 29-09-2013, proferido no proc. n.º 0866/13 (disponível em www.dgsi.pt), em que se concluiu que “I. De acordo com o disposto no art. 269.º, alínea e), do CIRE, ficam isentas de IS as vendas de «elementos do activo da empresa». II. Assim sendo, a referida isenção não abrange a venda de prédio urbano destinado à habitação que pertence a pessoa singular, não bastando para beneficiar daquela isenção o facto de se tratar de actos de venda praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente, antes havendo de demonstrar-se que o bem vendido integra o activo de uma empresa.”
Nessa medida, concorda-se com a Requerida quando alega que “No caso em apreço, estamos perante a aquisição de um imóvel, ainda que em processo de insolvência, mas que não pertence a uma empresa nem estava destinado ao exercício de actividade empresarial alguma, mas que era propriedade de uma pessoa singular com destino a habitação. Pelo que não estão reunidos os pressupostos legalmente previstos para beneficiar da isenção de IS em razão da sua transmissão ter sido efectuada num processo de insolvência de pessoa singular” (cfr. arts. 32.º e 33.º da resposta).
Face ao exposto, e contrariamente ao alegado pelo Requerente, a operação identificada nos autos não beneficia da isenção de IS prevista na alínea e) do art. 269.º do CIRE, contrariamente ao inicialmente decidido pela Requerida e que justificou a emissão de um documento de cobrança sem imposto a pagar.
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Concluindo-se que a liquidação inicial é ilegal, por violação da alínea e) do art. 269.º do CIRE, cumpre analisar se a Requerida poderia actuar como fez e, simplesmente, liquidar adicionalmente o imposto que deveria ter sido pago ab initio.
Nos termos do art. 5.º do EBF, os benefícios fiscais podem ser automáticos ou dependentes de reconhecimento, resultando os primeiros directa e imediatamente da lei, ao passo que os segundos pressupõem um ou mais actos posteriores de reconhecimento.
No caso em apreço, a isenção invocada pelo Requerente – alínea e) do art. 269.º do CIRE – será, à partida, qualificável como um benefício fiscal automático uma vez que não se prevê, no CIRE ou no Código do IS, um procedimento formal autónomo de reconhecimento.
No entanto, não obstante, tal carácter automático, constatamos que o reconhecimento da isenção em causa está dependente de requerimento apresentado pelo interessado e sujeito a um procedimento, ainda que não autónomo face ao procedimento de liquidação.
Com efeito, por força das remissões normativas ínsitas no n.º 4 do art. 23.º e n.º 4 do art. 44.º do Código do IS, à liquidação do imposto devido pela verba 1.1 da TGIS aplicam-se, com as necessárias adaptações, as regras contidas no Código do IMT, incluindo as regras relativas ao reconhecimento de isenções.
Sobre a esta matéria em concreto, dispõe o n.º 1 do art. 10.º do Código do IMT que “As isenções são reconhecidas a requerimento dos interessados, a apresentar antes do acto ou contrato que originou a transmissão junto dos serviços competentes para a decisão, mas sempre antes da liquidação que seria de efectuar” (sublinhado nosso). Em sede de IMT – e, consequentemente, em sede do IS da verba 1.1 da TGIS – vigora o princípio do pedido, cabendo ao sujeito passivo solicitar à Autoridade Tributária o reconhecimento de qualquer isenção de que pretenda beneficiar, incluindo isenções automáticas.
Daí que, no que se refere à repartição de competências para tal reconhecimento, o n.º 8 do art. 10.º do Código do IMT determine que, nas isenções automáticas, o seu reconhecimento – ainda que automático - compete ao serviço de finanças onde for apresentada a participação de imposto prevista no art. 19.º do Código do IMT, sendo este o órgão que deverá proceder à “sua verificação e declaração”. Ou seja, aquando da entrega da declaração de imposto e subsequente liquidação, a Autoridade Tributária deverá apreciar, com base nos elementos fornecidos pelo interessado, se este pode ou não usufruir do benefício fiscal invocado (neste caso, a isenção prevista no art. 269.º do CIRE). Sempre que conclua que o sujeito passivo tem direito à isenção invocada e emita um documento de cobrança sem imposto a pagar, a Autoridade Tributária está a reconhecer ao sujeito passivo o correspondente benefício fiscal, integrando no acto de liquidação a vantagem fiscal legalmente prevista. Isso mesmo é evidente na liquidação junta aos autos (documento n.º 3) em que é feita referência expressa ao benefício do art. 269.º do CIRE por se tratar de uma aquisição integrada em plano de insolvência. Se, pelo contrário, a Autoridade Tributária considerar que os requisitos legais para aplicação do benefício fiscal invocado não se verificam, recusa o seu reconhecimento e liquida o imposto devido nos termos gerais.
O facto de no n.º 8 do art. 10.º do Código do IMT se fazer referência a “reconhecimento automático” não significa que não haja avaliação e decisão do órgão competente quanto à aplicabilidade do benefício invocado. Com efeito, é entendimento deste tribunal que existe um efectivo acto de “reconhecimento”, prévio à liquidação do imposto, e que é formalmente exteriorizado no próprio acto tributário de liquidação. É esta “verificação e declaração” prévia da isenção, a cargo do serviço de finanças em que é entregue a participação Mod. 1 do IMT, que justifica que o sujeito passivo confie na decisão da Autoridade Tributária e efectue as suas opções económico-financeiras com segurança.
Este procedimento resulta das alterações introduzidas pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Orçamento Geral do Estado para 2009), que tiveram como objectivo adaptar o regime das isenções em sede de IMT ao procedimento de reconhecimento consagrado no art. 10.º do CIMT, afastando a prática normativa que remontava à anterior vigência do Imposto de Sisa, atento o estatuído no então art. 15.º do CIMSISD, em conjugação com o n.º 20 do art. 11.º do relevado diploma e que ainda fora incorporada na versão original do Código do IMT[2]. Depois destas alterações, passou a estar legalmente previsto o procedimento tributário para reconhecimento das isenções automáticas de IMT e de IS da verba 1.1 da TGIS e que passa pela “verificação” dos pressupostos para aplicação do benefício fiscal e sua “declaração” exteriorizada por via de emissão de um acto de liquidação sem valor de imposto a pagar, tudo conforme previsto na alínea d) do n.º 8 do art. 10.º e n.º n.º 3 do art. 19.º do Código do IMT.
Assim sendo, haverá, então, que avaliar os poderes e a legitimidade da Autoridade Tributária para revogar tal acto de reconhecimento do benefício fiscal invocado pelo Requerente.
Cumpre, antes de mais, referir que, em sede tributária, vigora o princípio da livre revogabilidade dos actos tributários, conforme previsto no n.º 1 do art. 79.º da LGT que estabelece que “O acto decisório pode revogar total ou parcialmente acto anterior ou reformá-lo, ratificá-lo ou convertê-lo nos prazos da sua revisão”.
Este princípio da revogabilidade dos actos tributários é, também, admitido relativamente a actos que reconhecem benefícios fiscais, nos termos e com as condições previstas no n.º 4 do art. 14.º do EBF. Resulta desta norma que “O acto administrativo que conceda um benefício fiscal não é revogável, nem pode rescindir-se o respectivo acordo de concessão, ou ainda diminuir-se, por acto unilateral da administração tributária, os direitos adquiridos, salvo se houver inobservância imputável ao beneficiário das obrigações impostas, ou se o benefício tiver sido indevidamente concedido, caso em que aquele acto pode ser revogado”.
Nos termos legais, são, assim, duas as situações em que se admite a revogação de um acto de reconhecimento de um benefício fiscal: (i) a inobservância das obrigações impostas pela lei ou pelo acto reconhecedor do benefício e que constituíam o pressuposto da sua motivação legal e funcional; (ii) a indevida concessão do benefício por erro nos pressupostos em que o acto assentou.
Tendo em conta o decidido supra sobre a inaplicabilidade da isenção prevista na alínea e) do art. 269.º do CIRE ao caso em apreço, não restam dúvidas quanto à legitimidade da Requerida para revogar o benefício fiscal indevidamente concedido.
Sucede que a lei tributária não regulamenta o procedimento e os prazos em que tal revogação pode suceder pelo que serão aqui aplicáveis, subsidiariamente, as regras do Código de Procedimento Administrativo (“CPA”).
Isso mesmo defendem Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa[3], quando referem que “Na falta de regras especiais sobre os requisitos da revogação, da ratificação, da reforma, da conversão e da rectificação do acto administrativo, deverão ser aplicadas as previstas no CPA, subsidiariamente aplicável, nos termos da alínea b) do art. 2.º da LGT”. No caso concreto da revogação, entendem estes AA.[4] que “A revogação é um acto que faz cessar ou elimina os efeitos de um acto anterior com fundamento na sua inconveniência ou invalidade. O seu regime está previsto nos arts. 138.º a 146.º do CPA (…)”.
Este entendimento vem já sendo sufragado por decisões do Supremo Tribunal Administrativo de que são exemplo o acórdão de 15/05/2013, proferido no proc. n.º 0566/12, e o acórdão de 27/03/2012, proferido no proc. n.º 590/11, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
No mais recente dos acórdãos referidos, o Supremo Tribunal Administrativo concluiu que “(…) nem esse diploma legal [Lei Geral Tributária] nem o CPPT contém qualquer norma sobre o prazo para a aludida revogação, pelo que tal prazo só pode ser o constante das regras do CPA – diploma constitui legislação complementar e subsidiária ao direito tributário [arts. 2.º, alínea c), da LGT e 2.º, alínea d), do CPPT] – e que devem ser aplicadas no direito tributário de acordo com a natureza do caso omisso, mais precisamente as regras que directamente regulam a revogação dos actos administrativos nos arts. 136.º e segs”.
Assim sendo, a avaliação da legitimidade e tempestividade da actuação da Requerida deverá ser analisada à luz dos arts. 165.º e seguintes do CPA, em vigor à data da revogação do acto em que foi verificado e declarado o direito do Requerente usufruir da isenção prevista na alínea e) do art. 269.º do CIRE.
Concretamente, dispõe o n.º 2 do art. 168.º do CPA que “Salvo nos casos previstos nos números seguintes, os actos constitutivos de direitos só podem ser objecto de anulação administrativa dentro do prazo de um ano, a contar da data da respectiva emissão”. Este prazo de um ano será ampliado para cinco anos caso se verifique alguma das situações elencadas no n.º 4 do mesmo artigo.
Para este efeito, haverá que recorrer à definição legal de “acto constitutivo de direito” que nos é dada pelo n.º 3 do art. 167.º do CPA do qual decorre que “Para efeitos do disposto na presente secção, consideram-se constitutivos de direitos os actos administrativos que atribuam ou reconheçam situações jurídicas de vantagem ou eliminem ou limitem deveres, ónus, encargos ou sujeições, salvo quando a precariedade decorra da lei ou da natureza do acto”.
Em face desta definição legal, entende este tribunal que o acto de liquidação inicial em que a Requerida reconheceu, após verificação, o benefício fiscal invocado pelo Requerente – atribuindo-lhe uma situação jurídica de vantagem traduzida na isenção do pagamento de determinado valor a título de IS - é, para este efeito, um acto constitutivo de direitos, cuja revogação está sujeita ao prazo do n.º 2 do art. 168.º do CPA.
Não se verificando nenhuma das situações do n.º 4 do art. 168.º do CPA, a Requerida teria o prazo de um ano, a contar da sua prática, para revogar o acto de liquidação inicial em que reconheceu ao Requerente o benefício previsto na alínea e) do art. 269.º do CIRE.
Considerando que o acto inicial é datado de 13-02-2014, a sua revogação só poderia ter lugar até 13-02-2015. Tendo a liquidação ora contestada sido efectuada após esta data (Outubro de 2015), resta concluir pela extemporaneidade da actuação da Requerida que, assim, actuou para além do prazo legal.
Por tudo isto, este tribunal considera procedente o pedido do Requerente, concluindo que o acto de liquidação de IS da verba 1.1 da TGIS, no montante de € 887,20, foi praticado para além do prazo legalmente permitido, em violação do disposto no n.º 4 do art. 14.º do EBF conjugado com o n.º 2 do art. 168.º do CPA, aplicável por remissão dos arts. 2.º, alínea c), da LGT e 2.º, alínea d), do CPPT, o que justifica a sua anulação. Em consequência, será também de anular a decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida por se tratar de acto subsequente.
Concluindo-se pela anulação da liquidação com este fundamento fica prejudicado, por ser inútil, a apreciação dos demais vícios que o Requerente imputou ao acto.
B. Do direito a juros indemnizatórios
Nos termos do n.º 1 do art. 43.º da LGT “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Como referem Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa[5], “O erro imputável aos serviços que operaram a liquidação fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou a impugnação dessa mesma liquidação e o erro não for imputável ao contribuinte (por exemplo, haverá anulação por erro imputável ao contribuinte quando a liquidação assentar em errados pressupostos de facto, mas o erro tiver por base uma indicação errada na declaração que o contribuinte apresentou)”.
Ora, no caso concreto, está justificado o pedido de pagamento de juros indemnizatórios efectuado pelo Requerente uma vez que a liquidação de imposto contestada é ilegal pelo que deverá ser anulada. Assim, o Requerente terá direito ao pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal em vigor, contados desde a data de pagamento até à data de processamento da respectiva nota de crédito, em que são incluídos – cfr. art. 43.º da LGT e n.º 4 do art. 61.º do CPPT.
VI. DECISÃO
De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, declarar ilegal a liquidação de Imposto do Selo da verba 1.1 da TGIS, no montante de € 887,20, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida, ordenando-se a anulação dos mesmos e condenando a Requerida ao reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios, desde a data de pagamento até à data de processamento da respectiva nota de crédito.
Valor do processo: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 887,20 correspondente ao valor total do Imposto do Selo liquidado e cuja anulação aqui se ordenou.
Custas: Nos termos do n.º 4 do art. 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 306,00 de acordo com a Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.
Registe-se e notifique-se esta decisão arbitral às partes.
Lisboa, 09-03-2017
O Árbitro Singular
(Maria Forte Vaz)
[1] Cfr. Jorge Lopes de Sousa, Guia da Arbitragem Tributária, Coord. Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira, Almedina, 2013, págs. 202 e 203.
[2] Isto mesmo foi divulgado pela Autoridade Tributária através da Circular n.º 5/2011, de 11 de Março, disponível em www.portaldasfinancas.gov.pt.
[3] Cfr. Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4.ª Edição, 2012, Encontro de Escrita Editora, pág. 724, nota 1.
[4] Cfr. obra citada, pág. 725, nota 2.
[5] Cfr. obra citada, pág. 342, nota 2.