DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros José Poças Falcão (Árbitro Presidente), Nuno Cunha Rodrigues e Nuno de Oliveira Garcia, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 25-11-2016, acordam no seguinte:
I – RELATÓRIO
No dia 05-09-2016, a sociedade A…, S.A., número de identificação fiscal…, com sede na Rua…, n.º…, …-..., em Lisboa (doravante apenas ‘Requerente’), nos termos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas ‘RJAT’), formula pedido de pronúncia arbitral da declaração de ilegalidade de decisão do Recurso Hierárquico n.º …2015… e dos atos de liquidação de Imposto do Selo (adiante apenas IS) efetuados pela Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante apenas AT ou ‘Requerida’) seguidamente melhor identificados.
As liquidações em crise respeitam ao ano de 2013 resultam da aplicação pela AT da Verba n.º 28.1 da Tabela Geral anexa ao Imposto do Selo (doravante apenas TGIS), e têm a seguinte numeração: n.os…, …, …, …, …, …, …, … ,… …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, e … .
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) do RJAT, os ora signatários foram designados pelo Excelentíssimo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral Coletivo, tendo a nomeação sido aceite no prazo e demais termos legalmente previstos.
Em 10-11-2016, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 25-11-2016.
II – SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, todos do RJAT.
As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
Não se verificam nulidades nem questões prévias que atinjam o processo, pelo que se impõe agora, conhecer do mérito do pedido, começando pela matéria de fato.
III – MATÉRIA DE FACTO
III. I. FACTOS PROVADOS
Em março de 2014 a Requerente foi notificada das Liquidações de Imposto do Selo acima identificadas referentes a 21 prédios identificados no Requerimento Inicial a p. 2, no § 2, que se encontravam inscritos, na data dos fatos, como ‘terrenos para construção’ – cfr. documentos juntos ao Requerimento Inicial como docs. n.os 23 a 43.
Em março, junho e outubro de 2014, a Requerente foi notificada para efetuar pagamento das 1.ª, 2.ª e 3.ª prestação, respetivamente, respeitantes às Liquidações de Imposto do Selo acima identificadas – cfr. documentos de cobrança juntos ao Requerimento Inicial como docs. n.os 2 a 22, 44 a 64, e 65 a 85.
O Valor Patrimonial Tributário (doravante apenas ‘VPT’) de cada um dos prédios a 31.12.2013, bem como o valor da coleta de Imposto do Selo constam de quadro que consta do Requerimento Inicial a pp. 3 e 4, para o qual se remete para todos os efeitos legais.
Considerando que as liquidações de IS referentes à 2.ª e 3ª prestação não foram pagas durante o prazo legal para o efeito, foram instaurados, para cobrança coerciva dos montantes em dívida nessas liquidações, os respetivos processos de execução fiscal, tal como identificados no Requerimento Inicial a p. 4 no respetivo artigo 9.º.
Em 2015, sendo credor da Requerente, o B…, S.A. solicitou ao Serviço de Finanças de Lisboa … o pagamento, por sub-rogação, dos montantes em dívida nos processos de execução fiscal acima referidos e identificados, tendo aqueles montantes sido integralmente pagos em 30 de dezembro de 2015 – cfr. docs. n.os 86 a 127 em anexo ao Requerimento Inicial tal como juntos pela Requerente.
Em agosto de 2014 a Requerente apresentou Reclamação Graciosa das referidas liquidações de IS, reclamação que correu com o n.º …2014… e que foi objeto de despacho de indeferimento, tendo deste despacho sido interposto Recurso Hierárquico – cfr. doc. n.º 128 em anexo ao Requerimento Inicial tal como junto pela Requerente.
Em 7 de junho de 2016, a Requerente foi notificada do despacho de deferimento parcial do referido Recurso Hierárquico – cfr. doc. n.º 1 em anexo ao Requerimento Inicial tal como junto pela Requerente.
Na decisão do referido Recurso Hierárquico, a AT reconheceu que 7 dos prédios em causa têm duas afetações, respetivamente habitação e comércio, pelo que são suscetíveis de integrar o âmbito de incidência da Verba 28.1 da TGIS apenas quanto a parte afeta a habitação, tendo a AT corrigido as respetivas liquidações de IS.
Não obstante, até à presente data, a AT não procedeu à anulação das referidas liquidações, que reconheceu serem ilegais e não reembolsou a Requerente qualquer quantia relativa as mesmas.
Para além dos prédios em relação aos quais a AT reconheceu terem duas afetações, também os terrenos para construção inscritos na matriz predial urbana identificados pela Requerente se destinam à construção de prédios com mais de uma afetação, a saber habitação e comércio/serviços, conforme regulamento do projeto de loteamento do Alvará de Loteamento n.º …/03, emitido pela Camara Municipal de …– cfr. documento que integra o conjunto de documentos identificado como doc. n.º 129 em anexo ao Requerimento Inicial tal como junto pela Requerente.
O prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo…, correspondente ao Lote 23 destina-se exclusivamente a construção de um edifício para silo-auto (estacionamento), bem como a sala de condomínio e fogo destinado a porteiro – cfr. artigo 9.º, n.º 4 (e não n.º 3 tal como identificado pela Requerente) do regulamento do projeto de loteamento do alvará de loteamento que integra o conjunto de documentos identificado como doc. n.º 129 em anexo ao Requerimento Inicial, e certidão do registo predial protestada juntar e mais tarde (19-09-2017)junta.
A Requerente dedica-se a atividade de «construção civil, compra, venda e revenda de bens imóveis» (cit.) – cfr. Certidão do Registo Comercial protestada juntar e mais tarde (19-09-2017) junta.
III. II. FACTOS NÃO PROVADOS
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
III. III. QUESTÕES A DECIDIR
Vêm colocadas ao Tribunal Arbitral duas questões a decidir –a ilegalidade das liquidações em crise, e a violação do Princípio da Igualdade. Ora, como é jurisprudência, maxime em matéria arbitral, o presente Tribunal não carece de pronunciar-se sobre todas as questões invocadas pelas partes. Tal sucede relativamente às questões suscitadas a propósito da alegada inconstitucionalidade por violação do Princípio da Legalidade,[1] posto que esta é invocada, necessariamente, de forma subsidiária à ilegalidade das liquidações de IS e do Recurso Hierárquico também em crise.
IV. – DA MATÉRIA DE DIREITO
Considerando a matéria fatual acima exposta, importa antes de mais, uma análise dos pressupostos da incidência do imposto do selo sobre prédios urbanos com afectação habitacional, com recurso às normas fiscais relevantes para a definição dos respectivos conceitos legais.
Para tal, socorremo-nos de abundante, constante e uniforme jurisprudência dos tribunais arbitrais, nomeadamente, e inter alia, das decisões 14/2015-T, 28/2015-T, 54/2015-T, 57/2015-T, 61/2015-T, 78/2015-T, 80/2015-T, 84/2015-T, 86/2015-T, 87/2015-T, 94/2015-T, 111/2015-T, 117/2015-T, 125/2015-T, 130/2015-T, 134/2015-T, 135/2015-T, 143/2015-T, 154/2015-T, 155/2015-T, 156/2015-T, 172/2015-T, 184/2015-T, 185/2015-T, 186/2015-T, 224/2015-T, 229/2015-T, 232/2015-T, 235/2015-T, 266/2015-T, 288/2015-T, 290/2015-T, 367/2015-T e 652/2015-T e 35/2016-T, estes dois últimos que acompanhamos de perto na presente decisão.
Assinale-se ainda o seguinte conjunto de acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, que seguimos no caso sub judice: procs. 1870/13, 1871/13, 46/14, 48/14, 55/14, 270/14, 197/14, 271/14, 274/14, 317/14, 467/14, 396/14, 425/14, 676/14, 707/14, 739/14, 740/14, 796/14 e 1338/15.
Vejamos:
Em consequência da aprovação da Lei n.º 55-A/2012, de 29/10, foi aditada à TGIS a Verba 28, a qual veio sujeitar, a este tributo, os prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (doravante apenas CIMI), seja igual ou superior a € 1 000 000.
A base tributável é constituída pelo valor patrimonial tributário considerado para efeitos do IMI, sendo aquele tributo anualmente liquidado pela AT relativamente a cada prédio urbano – vide CIS artigo 23.º, n.º 7 – à taxa de:
§ 1%, por prédio urbano com afetação habitacional;
§ 7,5%, por prédio, quando os sujeitos passivos, não sendo pessoas singulares, sejam residentes em país, território ou região sujeitos a regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças.
Relativamente aos anos de 2012 e de 2013, era aplicável o regime transitório previsto no artigo 6.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29/10, com as seguintes especificidades;
a) O facto tributário verifica-se no dia 31 de outubro de 2012;
b) O sujeito passivo do imposto é o mencionado no n.º 4 do artigo 2.º do Código do Imposto do Selo na data referida na alínea anterior;
c) O valor patrimonial tributário a utilizar na liquidação do imposto corresponde ao que resulta das regras previstas no Código do Imposto Municipal sobre Imóveis por referência ao ano de 2011;
d) A liquidação do imposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira deve ser efetuada até ao final do mês de novembro de 2012;
e) O imposto deverá ser pago, numa única prestação, pelos sujeitos passivos até ao dia 20 de dezembro de 2012;
f) As taxas aplicáveis são as seguintes:
i) Prédios com afetação habitacional avaliados nos termos do Código do IMI: 0,5%;
ii) Prédios com afetação habitacional ainda não avaliados nos termos do Código do IMI: 0,8%;
iii) Prédios urbanos quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças: 7,5%.
2 - Em 2013, a liquidação do imposto do selo previsto na verba nº 28 da respetiva Tabela Geral deve incidir sobre o mesmo valor patrimonial tributário utilizado para efeitos de liquidação de imposto municipal sobre imóveis a efetuar nesse ano.
No âmbito da relação jurídica tributária em causa, são sujeitos passivos, e titulares do interesse económico (devedores do imposto), os proprietários, usufrutuários ou superficiários dos prédios em 31 de dezembro do ano a que o tributo respeita - relativamente a 2012, de acordo com o regime transitório referido no ponto anterior, esta data foi antecipada para 31 de outubro - conforme decorre do artigo 8.º do CIMI, por remissão expressa dos artigos 3.º, n.º 3, alínea u), e 2.º, n.º 4, do CIS.
Por outro lado, e no tocante à data da constituição da obrigação tributária, conexão fiscal, liquidação e pagamento do imposto do selo em causa, são aplicáveis as correspondentes regras do CIMI, também por remissão expressa dos artigos 5.º, n. º1, alínea u), 4.º, n.º 6, 23.º, n.º 7, 44.º, n.º 5, 46.º, n.º 5 e 49.º, n.º 3, do CIS. Em geral, por remissão do artigo 67.º, n.º 2, do mesmo código, são de aplicação supletiva às matérias não especialmente reguladas, as disposições do CIMI.
Referindo-se a norma de incidência do IS a prédios urbanos, importa ter-se presente que o conceito relevante consta do artigo 2.º do CIMI, conforme, aliás, prevê o n.º 6 do artigo 1.º do CIS.
Apelando a elementos de natureza física, patrimonial e económica, aquele preceito do CIMI define como prédio «toda a fração de território, abrangendo as águas, plantações, edifícios e construções de qualquer natureza nela incorporados ou assentes, com carácter de permanência, desde que faça parte do património de uma pessoa singular ou colectiva e, em circunstâncias normais, tenha valor económico […]» (cit.).
Para efeitos de IMI, os prédios são classificados como rústicos, urbanos ou mistos, sendo esta classificação particularmente relevante quer para efeitos de aplicação das regras de determinação do respectivo valor patrimonial tributário, quer para efeitos de aplicação das taxas de tributação.
Assim, o CIMI estabelece, no artigo 3.º, uma definição positiva de prédio rústico, definindo prédio urbano e misto, nos seus artigos. 4.º e 5.º em termos meramente residuais: são assim classificados todas aquelas realidades que, integrando o conceito fiscal de prédio, não sejam de classificar como prédios rústicos.
De acordo com aquele preceito, são prédios rústicos os que, situados fora de um aglomerado urbano, preencham um dos seguintes requisitos:
§ Não sejam de classificar como terrenos para construção;
§ Estejam afetos, ou tenham como utilização normal, a produção de rendimentos agrícolas, tal como considerados para efeitos de IRS;
§ Não tendo afetação agrícola, não se encontrem construídos ou disponham, apenas, de edifícios ou construções meramente acessórias, sem autonomia económica e de reduzido valor.
São ainda assim classificados, os prédios situados dentro de um aglomerado urbano que, por força de disposição legal, não possam ter utilização geradora de rendimentos (caso de espaços verdes, jardins, etc.) ou só possam ser utilizados em atividades agrícolas e tenham efetivamente, essa concreta afectação.
Um prédio que não reúna os requisitos acima referidos é, consequentemente, classificado como urbano.
Pode, pois, concluir-se que, para efeitos de IMI e, no caso, de imposto do selo, um terreno para construção é um prédio urbano, porquanto reúne os requisitos integrantes do conceito de prédio - realidade física, patrimonialidade e valor económico - e, qualquer que seja a afetação ou uso que esteja a ter, no caso de terrenos expectantes, é expressamente excluído do conceito de prédio rústico.
Referindo-se aos prédios urbanos, o n.º 1 do artigo 6.º do CIMI, distingue diversas espécies, dividindo-os em habitacionais, comerciais, industriais ou para serviços, terrenos para construção e outros, de acordo com os seguintes critérios:
§ «habitacionais, comerciais, industriais ou para serviços» – os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um desses fins (cfr. artigo 6.º, n.º 2 do CIMI);
§ «terrenos para construção», os terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, excetuando-se, os terrenos em que as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações, designadamente os localizados em zonas verdes, áreas protegidas ou que, de acordo com os planos municipais de ordenamento do território, estejam afectos a espaços, infra-estruturas ou a equipamentos públicos» (cfr. artigo 6.º, n.º 3 do CIMI, na redação da Lei n.º 64-A/2008, de 31/12);
§ «Outros», são como tal considerados os terrenos situados dentro de um aglomerado urbano que não sejam terrenos para construção nem sejam classificados como prédio rústicos, de acordo com o respetivo conceito legal, e ainda os edifícios e construções licenciados, ou na falta de licença, que tenham como destino normal outros fins que não os acima referidos (cfr. artigo 6.º, n.º 4 do CIMI).
Na definição do âmbito de incidência prevista na Verba 28 da TGIS, o legislador considera, como elemento relevante de capacidade contributiva, os prédios de elevado valor que, no segmento relativo a sujeitos passivos residentes em território português, sejam detidos para efeitos habitacionais.
No entanto, fazendo incidir a tributação sobre prédios urbanos «com afetação habitacional», o legislador não estabelece, no Código do Imposto do Selo, qualquer conceito específico que para o efeito deva ser considerado, antes remetendo a aplicação do regime de tributação dos prédios a que se refere aquela Verba 28 para as normas do CIMI.
Será, pois, na economia deste Código que terá de ser encontrado o sentido daquela expressão, entendimento que, de resto, é partilhado pela Requerente e pela Requerida, embora com diferentes conclusões.
No que concerne à definição das diferentes espécies de prédios urbanos, o referido Código, conforme acima se referiu, estabelece clara distinção entre prédios habitacionais e terrenos para construção.
Os primeiros são classificados em função da respectiva licença autárquica, ou, não existindo esta, em decorrência do uso normal.
Os segundos são definidos em função da sua potencialidade legal.
Considerada a legislação relativa à construção e edificação urbana, designadamente no que respeita aos diversos tipos de licenciamento, a classificação de um prédio como «habitacional», para efeitos tributários, não apresenta qualquer particularidade: são habitacionais os que, nos termos legais, assim forem classificados.
Na ausência de licenciamento, releva para a classificação o destino normal do prédio. Também aqui a lei fiscal não oferece qualquer conceito específico. Resulta, porém, quer do conhecimento geral, quer da legislação aplicável às edificações urbanas, que o destino a habitação pressupõe a existência de um mínimo de condições que preservem a intimidade pessoal e a privacidade familiar (cfr. artigo 65.º da CRP).
O licenciamento, pela entidade competente, ou o uso normal de um prédio, cujo destino seja a habitação referem-se, como não podia deixar de ser, a prédios edificados que reúnam as caraterísticas exigíveis para como tal serem classificados.
Um terreno para construção - qualquer que seja o tipo e a finalidade da edificação que nele será, ou poderá ser, erigida - não satisfaz, só por si, qualquer condição para como tal ser licenciado ou para se poder definir como sendo a habitação o seu destino normal.
Referindo-se, pois, a norma de incidência do imposto do selo a prédios urbanos com afetação habitacional, sem que seja estabelecido qualquer conceito específico para o efeito, não pode dela extrair-se que na mesma se contenha uma potencialidade futura, inerente a um distinto prédio que porventura venha a ser edificado no terreno.
A expressão «com afectação habitacional» inculca, numa simples leitura, uma ideia de funcionalidade real e presente.
Da norma em causa não é possível extrair-se, por interpretação, que a opção do legislador por aquela expressão tenha em vista integrar «outras realidades para além das identificadas no artigo 6.º, n.º 1 do CIMI. Tal interpretação não tem apoio legal, face aos princípios contidos nos artigos 9.º do Código Civil e 11.º da Lei Geral Tributária.
Com efeito, se o legislador pretendesse abarcar no âmbito de incidência do imposto outras realidades que não as que resultam da classificação regida pelo artigo 6.º do CIMI, tê-lo-ia dito expressamente. Mas não o fez, antes remetendo, em bloco, para os conceitos e procedimentos previstos no referido Código.
Por outro lado, não pode também ser acolhido o entendimento da Requerida no sentido de que o conceito de "afectação habitacional" decorre da norma do artigo 45.º do CIMI.
Refere-se este artigo às regras aplicáveis na determinação do valor patrimonial dos terrenos para construção estabelecendo que este é o que resulta do valor da área de implantação do edifício a construir adicionado do terreno adjacente à implantação. Na fixação do valor daquela área considera-se uma percentagem, variável entre 15% e 45%, do valor das edificações autorizadas ou previstas.
Segundo a Requerida, na fixação do valor das edificações autorizadas ou previstas no terreno a avaliar são utilizados os coeficientes aplicáveis na determinação do valor patrimonial tributário, designadamente o coeficiente de afectação previsto no artigo 1.º daquele Código (cfr. artigo 5.º da resposta da Requerida).
Concluindo daí que a consideração de um tal coeficiente, dependente do tipo de utilização prevista para o prédio a edificar no terreno, será determinante para efeitos de aplicação da Verba 28 da TGIS (cfr. artigo 24.º da resposta da Requerida).
Suporta-se esta conclusão no pressuposto de que a expressão «prédios com afectação habitacional» apela a uma classificação que se sobrepõe às espécies previstas no n.º 1 do artigo 6.º do CIMI.
Não é possível, porém, acompanhar tal conclusão.
Por um lado, porque nada na lei permite concluir que o legislador do imposto do selo tenha pretendido alargar, para efeitos da incidência deste tributo, as espécies previstas no n.º 1 do artigo 6.º do CIMI, como já acima se referiu; por outro lado, porque a aplicação de um coeficiente de afetação se reporta a um dos elementos a considerar na avaliação no terreno, ou seja, na determinação do valor das edificações autorizados ou previstas.
Independentemente de, na determinação do valor das edificações autorizadas ou previstas para um terreno para construção, se dever ou não considerar um coeficiente de afetação, admite-se, por ser óbvio e do conhecimento geral, que o valor de um terreno é determinantemente influenciado pelo tipo e características dessas edificações. Porém, é matéria que extravasa a questão sobre que incide o presente pedido de pronúncia arbitral.
Nas condições referidas, a circunstância de, para um determinado terreno para construção, estar autorizada a edificação de prédio destinado a habitação, ou a qualquer outra finalidade, ainda que deva ser considerada na sua avaliação, não determina qualquer alteração na classificação do terreno que, para efeitos tributários, continua a ser como tal considerado.
Nestes termos, resultando do artigo 6.º do CIMI uma clara distinção entre, por um lado, prédios urbanos habitacionais e, por outro lado, terrenos para construção, não podem estes últimos ser considerados, para efeitos de incidência do imposto do selo, como «prédios com afectação habitacional».
Aliás, neste sentido se tem orientado a constante e uniforme jurisprudência, anteriormente referida na presente decisão.
É certo que o artigo 194.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31/12, alterou a redação do n.º1 da Verba 28 da TGIS, passando esta a prever que tributação em causa incide, à taxa de 1% "Por prédio habitacional ou por terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação".
Trata-se, porém, de norma inovadora, aplicável a partir da data de entrada em vigor da referida Lei - 1 de janeiro de 2014 - não abrangendo, portanto, a situação que constitui objecto do presente processo, em que está em causa um facto tributário ocorrido em momento anterior ao início da sua vigência.
Só assim não seria se aquela alteração tivesse natureza interpretativa, aplicando-se, então aos factos passados. Mas, se o legislador pretendesse conferir tal natureza à norma alterada não deixaria de o fazer constar do respectivo texto.
Ora, não só o legislador o não fez, como não se extrai do texto da norma qualquer referência ao seu carácter interpretativo. Pelo contrário, a utilização, no texto da nova redacção, da disjuntiva "ou" exprime, neste contexto, um sentido de alternativa.
Por outro lado, desconhece-se qualquer controvérsia gerada pela anterior solução de direito, pois que a interpretação possível da norma em causa, na sua anterior redacção, tem vindo pacifica e invariavelmente a ser afirmada pela jurisprudência acima referida.
Ora, como refere Baptista Machado (in Introdução ao Direito e ao Discurso legitimador, Almedina, Coimbra, 2014, p. 267): «para que a lei nova possa ser interpretativa, de sua natureza, é preciso que haja matéria para interpretação. Se a regra de direito era certa na legislação anterior, ou se a prática jurisprudencial que lhe havia de há muito sido atribuído um determinado sentido, que se mantinha constante e pacífico, a lei nova que venha resolver o respectivo problema jurídico, em termos diferentes, deve ser considerada uma lei inovadora» (cit.).
Assim, considerando a literalidade da lei nova, bem como a constante e pacífica jurisprudência conhecida, não podemos deixar de concluir que não se está perante uma lei interpretativa, mas perante lei inovadora, aplicável apenas para o futuro.
Nestes termos, não pode deixar de se concluir pela ilegalidade das liquidações de imposto do selo que constituem objecto do presente pedido de pronúncia arbitral, concluindo-se também que, na sua origem, encontra-se erro imputável à Administração Tributária.
Inconstitucionalidade do disposto na verba n.º 28 da TGIS
Tal como já anteriormente decidido em sede arbitral em sede do Processo n.º 91/2012-T do CAAD, a “… procedência integral dos vícios de violação de lei prejudica o conhecimento dos vícios de forma e procedimentais, como decorre da ordem do conhecimento de vícios prevista no n.º 2 do artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária”.
Na verdade, o estabelecimento de uma ordem de conhecimento de vícios só se justifica pela circunstância de a eventual procedência dos vícios de conhecimento prioritários tornar desnecessário o conhecimento dos restantes, pois, se fosse sempre necessário conhecer todos os vícios seria irrelevante a ordem do seu conhecimento.
Pelo exposto, procedendo os vícios de violação de lei, fica prejudicado o conhecimento do vício de inconstitucionalidade.
V. – DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
b) Declarar a ilegalidade dos atos de liquidação de Imposto do Selo n.os…, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, e …, todas referentes ao ano de 2013, a que correspondem as notas de cobrança respeitantes aos documentos de cobrança juntos ao Requerimento Inicial como docs. n.os 2 a 22, 44 a 64, e 65 a 85, com o valor global de € 836.476,89€;
c) Anular as liquidações de Imposto do Selo acima referidas, com todas as consequências legais
VI. – Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 836.476,89€, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VII. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 11.934,00€, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 7 de março de 2017
O Árbitro Presidente
(José Poças Falcão)
O Árbitro Vogal
(Nuno Cunha Rodrigues)
O Árbitro Vogal
(Nuno de Oliveira Garcia)
[1] O que não impede que se referia que o Tribunal Constitucional já se tenha pronunciado sobre a não inconstitucionalidade da norma em questão à luz precisamente do Princípio da Igualdade, ainda que numa situação fatual com contornos não totalmente coincidentes com os do presente aresto. Assim, vide acórdão n.º 620/2015, emitida pela 2.ª Secção no processo n.º 305/15 (Relator: Cons. João Cura Mariano) em 3 de dezembro de 2015.